domingo, 20 de abril de 2014

Um filósofo imaginativo: o legado de W. V. Quine





Wilard van Orman Quine, o deão dos filósofos americanos, morreu aos 92 anos no dia de Natal. Exatamente a cinqüenta anos antes, em dezembro de 1950, ele leu um paper na Divisão Leste da Associação Filosófica Americana que fez a audiência girar nos calcanhares. “Dois dogmas do empirismo”, publicado no ano seguinte, tornou-se o artigo mais discutido e mais influente da história do século XX na filosofia anglófona. Poucas coisas de tamanha brevidade tiveram tal impacto no curso do pensamento filosófico. É um modelo de argumentação convincente e sucinta, um bom exemplo da elegância da prosa de Quine. Mas é, acima de tudo, um atalho imaginativo. Nele, Quine levantou uma nova e disposta forma da questão sobre a relação entre filosofia e investigação empírica.


Em “Dois Dogmas”, Quine questionou a distinção entre verdades necessárias e contingentes. A investigação empírica produz verdades do último tipo – afirmações que podem, em princípio, ser rescindidas à luz de outras observações ou experimentos (“Esquilos não hibernam” e “E=mc2”, por exemplo). A filosofia, Platão e Aristóteles nos ensinaram, deveria produzir verdades necessárias, exatamente como a matemática. Rudolf Carnap, mentor de Quine, e seus colegas ligados ao empirismo lógico (como Bertrand Russell e A. J. Ayer) concordavam com isso. Mas, eles diziam, verdades necessárias são verdades “analíticas” – enunciados que nada nos conta sobre a realidade, mas simplesmente refletem convenções lingüísticas. “Dois mais dois são quatro” é tornado verdadeiro pelo significado do “dois” e do “quatro” e do “mais”, tanto quanto “Todos os solteiros são não casados” é tornado verdadeiro pelos significados de seus termos componentes.


A filosofia, os empiristas lógicos concluíram, não deveria tentar nos contar algo sobre a natureza das coisas. Deveria confinar-se à clarificação dos significados de enunciados e exibir o que Carnap chamou de “a sintaxe lógica da linguagem”.


Até meados do século, muitos filósofos assumiram a oposição entre aquela visão modesta da filosofia e a visão mais velha, mais ambiciosa, como um resumo do contraste entre Carnap, um homem decente perfeitamente dentro da perspectiva da esquerda política, e Martin Heidegger, um ex-nazista megalomaníaco que punha questões como “O que é o Ser?” sem se importar em tornar claro como ele saberia se havia dado a resposta correta. Carnap queria filósofos para tornar seus critérios de êxito explícitos e, portanto, imitadores da honestidade intelectual dos investigadores empíricos. Heidegger tinha considerável desprezo pelas ciências naturais e pela lógica matemática desenvolvidas por Russell e outros, aquilo que Carnap viu como um indispensável instrumento do bom trabalho filosófico.


Quine, um jovem brilhante, que havia feito contribuições para a um tipo de lógica, tinha ido a Praga em 1933 para trabalhar com Carnap. Poucos anos depois, ajudou Carnap e seus amigos imigrantes a encontrar empregos nos Estados Unidos (o que rendeu um inestimável serviço à vida acadêmica americana). Assim, era natural esperar que sua fala em 1950 (em um simpósio “Tendências recentes da filosofia”) seria um manifesto do empirismo lógico. Ao invés disso, Quine veio a público com dúvidas com as quais ele havia pressionado Carnap, privadamente, por anos. Não há, Quine disse, nenhum teste para determinar onde termina o apelo à realidade empírica e onde começa o apelo às relações entre idéias, aos significados das palavras. Certamente, não há nenhum bom modo de classificar as verdades em necessárias e contingentes. Em lugar do antigo dualismo, ele sugeriu, deveríamos visualizar um espectro contínuo de crenças, aquelas que não poderíamos imaginar como sendo abandonadas e aquelas que poderíamos facilmente imaginar como desconfirmadas por observações futuras.


Muito influenciado por seu amigo B.F.Skinner, Quine estava preparado para traçar uma linha entre fato e linguagem – entre apelo à experiência sensível e apelo ao conhecimento de significados – unicamente se tal linha fosse traçada na base da observação do comportamento lingüístico. Mas, ele indicou, não há qualquer teste por meio do qual um lingüista aprendiz de uma nova linguagem pode contar como apelo que os nativos estão produzindo, quando estes lidam com a verdade de certas sentenças como incontroversas. Assim, os “Dois dogmas” virou o lado empirista do empirismo lógico contra o seu lado lógico. “Para todos os seus razoáveis a priori”, Quine disse, “uma fronteira entre enunciados analíticos e sintéticos [isto é, empiricamente confirmado e desconfirmado] simplesmente não havia sido traçada. Que tal distinção pode ser, em absoluto, traçada, é um dogma não empírico dos empiristas, uma artigo metafísico de fé”.


“Dois dogmas” levantou a questão: “como podemos ter filosofia analítica, o tipo de filosofia que Carnap e ele próprio, Quine, queriam fazer, se não havia nenhuma coisa tal como verdades analíticas? O golpe de Quine não somente lançou dúvidas sobre uma distinção que tinha parecido óbvia a Platão, Aristóteles, David Hume e Immanuel Kant, mas também pareceu frustrar a esperança recém adquirida de que filósofos pudessem alcançar resultados úteis, permanentes de uma vez por todas.


Quine compartilhou o costumeiro desgosto anglófone por Heidegger, e ele obviamente não quis trazer de volta o tipo de metafísica especulativa que tinha sido produzida, por exemplo, por F.H. Bradley e A. N. Whitehead. Mas ele não ofereceu um programa metafilosófico para substituir aquele que Russell e Carnap haviam levado adiante. Antes, ele simplesmente instigou os filósofos a trazer a filosofia para o contato com a ciência empírica. Tratava-se de estancar a tentação por verdades necessárias e, ao invés, incentivar a busca de modos claros de arrumar o material fornecido pelas ciências naturais. Ele visualizou, por exemplo, um futuro em que a epistemologia, o estudo filosófico do conhecimento, poderia ser “naturalizado”e, então, absorvido no que, agora, podemos chamar de “ciência cognitiva”. Este tipo de colaboração com a investigação empírica que, agora, parece a muitos dos filósofos anglófonos como o melhor modo de fazer avançar a sua disciplina.


Tal visão do seu papel cultural torna-os motivados a mover a filosofia para fora das humanidades e dar menos ênfase, do que no passado, na familiarização dos estudantes com os escritos dos filósofos mortos. Quine uma vez disse, satiricamente, que há dois tipos de pessoas que se tornam professores de filosofia: aqueles que estão interessados em filosofia e aqueles que estão interessados em história da filosofia. Quando seus colegas de Harvard (onde ele ensinou durante toda sua carreira) tentaram ganhá-lo para ensinar matérias históricas, ele resistiu. Uma vez ele deu um curso sobre Hume, mas observou em sua autobiografia de 1985, O tempo da minha vida, que “determinar o que Hume pensava e transmiti-lo aos estudantes era menos atrativo do que determinar a verdade e transmiti-la.” Sua observação fez eco a uma outra, supostamente dita por Carnap, quando foi solicitado a dar um curso sobre Platão: “Não ensinarei Platão. Não ensino nada, exceto a verdade”.


A tentativa feita por filósofos analíticos de deixarem a vizinhança dos departamentos de história e de literatura e se moverem para mais próximo dos laboratórios científicos contribuiu para a divisão analítico-continental dentro da disciplina. Em países não anglófonos, a repugnância a Heidegger é animadamente admitida, mas ele é, todavia, considerado por muitos professores de filosofia como o mais importante pensador do século XX. Essa opinião é compartilhada por bem poucos professores de literatura, teoria política e história intelectual americanos e britânicos – pessoas que não podem ver muito o que é a questão dos filósofos analíticos, e que suspeitam que a filosofia anglófona tem se tornado excessivamente técnica e intelectualmente estéril. A acusação de esterilidade, contudo, é injusta. Ao contrário, o desafio de Quine a Carnap (junto com os desafios complementares oferecidos por Thomas Kuhn e Ludwig Wittgenstein) abriu a porta para uma série toda de reconsiderações originais e frutíferas das abordagens tradicionais das relações entre linguagem e realidade, entre conhecimento e experiência dos sentidos, entre ciência e filosofia. Tais reconsiderações levantaram dúvidas concernentes à convicção, mantida por Quine, de que a ciência natural é a área da cultura em que a verdade sobre a realidade é mais clara e obviamente alcançada e na qual a racionalidade está mais claramente em evidência. Muitos filósofos que reconhecem um profundo débito para com Quine, se tornaram menos ávidos pelo prazer com as assim chamadas ciências duras enquanto paradigmas do conhecimento. À medida que Quine afirmou, de modo célebre, que “a filosofia da ciência é o suficiente em filosofia”, esses pensadores neo-quineanos se tornaram mais motivados a ver a investigação científica com menos diferença do resto da cultura do que Quine a havia tomado.


Quine nunca se desviou da afirmação de que os vocabulários da lógica e das ciências físicas, propriamente regidos pela filosofia, podiam revelar o que ele chamou de “a verdadeira e última estrutura da realidade”. Mas, muitos dos filósofos analíticos contemporâneos concordam com Nelson Goodman, um colega de Quine no departamento de filosofia de Harvard, que não existe tal estrutura – que não há, como Goodman colocou, qualquer modo de como o mundo é, mas há meramente várias descrições alternativas dele. Algumas descrições são úteis para certos propósitos, outras para outros propósitos, mas nenhuma deles está mais próxima ou mais distante do modo da realidade. A visão de Goodman é reminiscente da abordagem de John Dewey e, em particular, à motivação de Dewey em negligenciar as questões sobre a relação do pensamento com a realidade, no sentido de se concentrar sobre a utilidade pragmática dos modos alternativos de pensamento.


Muitos dos melhores estudantes de Quine (como Donald Davidson) e muitos de seus mais fervorosos admiradores (como Hilary Putnam) tentaram argumentar com Quine no sentido dele abandonar ou suavizar seu cientificismo, mas sem qualquer êxito. A doutrina de que enunciados sobre crenças e desejos humanos não representam qualquer coisa real, ao passo que enunciados sobre estrelas e moléculas representam, permaneceu central no pensamento de Quine. Davidson, Putnam e outros gastaram muitos anos tentando estender e radicalizar a visão de Quine, apontando para aparentes inconsistências e falhas em seu pensamento, criticando-o implicitamente (e em certas ocasiões, explicitamente) por não apreciar as implicações de seu próprio progresso. Deve-se crédito a Quine e a tais outros pelo fato de tais críticas, que foram certamente bem profundas, nunca terem conduzido a antagonismos pessoais ou a uma rachadura na filosofia analítica, criando duas escolas filosóficas. Ao contrário, o respeito, criado por um profundo sentido de gratidão, que Quine mostrou a Carnap, mesmo quando ele fez seu melhor demolindo algumas das mais queridas crenças de Carnap, foi equivalente à honra merecidamente paga a Quine por aqueles que tentaram demolir algumas de suas crenças.


A relação entre Quine e Davidson era particularmente próxima, e Davidson, ainda produzindo idéias originais e provocativas no ano de 1983, herdou a posição de deão de Quine. Davidson resumiu sua radicalização das dúvidas de Quine sobre a distinção entre linguagem e fato dizendo que “temos apagado a fronteira entre conhecer uma linguagem e conhecer o mundo ao nosso redor, em geral (...) Concluo que não há uma tal coisa como a linguagem, não se a linguagem é algo como o que muitos filósofos e lingüistas tem sustentado. Não há, portanto, nenhuma tal coisa a ser aprendida, controlada, ou inata. Devemos abandonar a idéia de uma estrutura claramente definida compartilhada, que usuários da linguagem adquirem e então a aplica a casos”.

O hiper quineanismo de Davidson não somente ofende Noam Chomsky (que considera tal coisa como um dogmatismo a priori, exibindo desprezo por lingüistas empíricos), mas causa consternação entre aqueles que pensam que a filosofia analítica iria à bancarrota se não pudesse estudar precisamente aquele tipo de estrutura lingüística compartilhada, definida claramente, que Davidson pensa que não existe. Essa posição de Davidson também não lembraria o próprio Quine. Quando Davidson sugeriu que lançássemos fora não somente a distinção analítico-sintética, mas todo resíduo da velha distinção lockeana-kantiana entre o caos fornecido pelos sentidos e a mente organizadora que torna o caos com sentido, Quine afundou nos calcanhares.


Em seu artigo de 1974 “Sobre toda idéia de um esquema conceitual”, Davidson incitou a se colocar de lado a distinção entre conceitos e dados sensórios, como aquela distinção entre nossos esquemas conceituais e o mundo não conceitualizado ao qual os esquemas são aplicados: “[o] dualismo esquema e conteúdo, o de um sistema organizador e algo esperando para ser organizado, não pode tornar-se inteligível e defensável.Ele próprio é um dogma do empirismo, o terceiro dogma. Uma terceiro, e talvez o último, pois se o abandonamos, então não mais é claro que há alguma coisa distinta a ser chamada de empirismo”.


Quine respondeu, em um ensaio bem humoradamente intitulado “A idéia toda de um terceiro dogma” (incluído em seu livro de 1981, Teorias e coisas), que o empirismo é muito importante para ser abandonado. Se o empirismo acabasse, Quine pensava, então assim também ocorreria com o projeto de naturalização da epistemologia – o de mostrar como os seres humanos sempre modelam mais quadros acurados do mundo na base de míseros imputs fornecidos pelos órgãos dos sentidos. A esperança de Quine nesse projeto, e para a confluência resultante de filosofia e investigação empírica, repousava na sua convicção de que o serviço da filosofia é servir de criada da ciência natural.


Na perspective de Davidson, contudo, as ciências duras não são assim tão especiais: ele está menos convicto do que Quine de que enunciados sobre partículas elementares estão mais proximamente relacionadas à realidade do que enunciados sobre valores morais e estéticos. Empirismo, sendo meramente a desajeitada tentativa de Locke de encontrar uma filosofia que se harmonizaria com a mecânica corpuscular de Boyle e Newton, talvez pudesse se permitir secar de uma vez.


Se amanhã os filósofos analíticos revoarem sob a liderança de Davidson, e se concordarem com Putnam sobre o cientificismo como tendo sido uma má influência sobre o pensamento filosófico do século XX, então a filosofia analítica terá se metamorfoseado em algo que Russell e Carnap teriam dificuldade em reconhecer. Historiadores da filosofia do século XX, provavelmente, estão aptos a identificar “Os dois dogmas” como o início dessa transformação, mas podem pensar sobre Quine como desmotivado para cruzar a terra que seus discípulos foram colonizar.


Se tal transformação ocorresse, haveria alguma chance (admitidamente fraca) de um fim ao que é, ainda, a bem azeda e contenciosa discordância sobre o papel da filosofia na cultura, o que divide filósofos analíticos e não analíticos. Os primeiros, tipicamente não enxergam a questão de Heidegger. Os últimos, que ainda dominam a profissão de filósofo na maior parte dos países anglófonos, pensam (como eu) que há muito a ser aprendido dele. A maioria dos filósofos não analíticos não considera as ciências como um modelo apropriado para a filosofia. Eles gostariam de manter a filosofia dentro das humanidades. Embora não compartilhem o desprezo de Heidegger pela ciência natural, eles acham que sua importância é super estimada pelos seus colegas analíticos.


Filósofos exteriores à tradição analítica, gastam a maior parte do tempo pensando, de um modo típico, sobre a história intelectual antes do que sobre ciência natural. Alguns de seus livros favoritos são narrativas abrangentes das histórias das idéias, histórias sobre como a Europa pensou, dos gregos até hoje. Estas são o tipo de histórias contadas, por exemplo, por Hegel, Nietzsche (no Nascimento da Tragédia), Heidegger, Hans Blumenger e Jurgen Habermas (em O discurso filosófico da modernidade). Lendo e escrevendo livros desse tipo, eles criam uma espécie bem diferente de ambiente intelectual daquele ligado aos estudos de artigos relativamente curtos, eficazes, de Quine, Davidson e Putnam e seus admiradores. Filósofos não analíticos premiam virtudes intelectuais como a ressonância histórica e a visão sinótica tanto quanto a acuidade argumentativa.


Deveria haver um espaço dentro de uma disciplina singular para ambos os tipos de pensamento e escritas. Infelizmente, muitos dos filósofos analíticos ainda têm o mesmo tipo de dúvida sobre seus colegas não analíticos que Carnap tinha sobre Heidegger em 1930. Suspeitam de seus colegas não analíticos como sendo frívolos, irracionalistas e moralmente dúbios para argumentar a partir de premissas enunciadas bem claramente até chegar a conclusões estabelecidas claramente.


Muitos dos filósofos não analíticos retaliam, então, com igual e infeliz acusação de decadente escolasticismo. Eles vêem os problemas para os quais os filósofos analíticos afirmam oferecer soluções como artefatos frágeis, periodicamente descartáveis e substituídos tanto quanto a fome analítica de uma geração ameaça a outra posta abaixo. Filósofos não-anglófonos com dificuldade de familiarizarem-se com a tradição analítica, algumas vezes zombam do fato dos filósofos de língua inglesa terem gasto cinqüenta anos, antes de o “Dois Dogmas”, marchando até o pico de saída da toupeira – e terem gasto mais cinqüenta marchando de volta.


Tal desprezo está tão equivocado quanto os muitos daqueles arremessados pelos filósofos analíticos. Os críticos não percebem que Quine abriu uma porta que levou a um mundo intelectual mais amplo. Insistindo que a filosofia poderia permanecer fiel ao espírito e aos resultados da ciência moderna – e ao mesmo tempo repudiando os dualismos herdados de Platão, Aristóteles, Hume e Kant –, ele abriu novos caminhos filosóficos. Tornou possível aos seus alunos irem a lugares que ninguém sabia que existiam. Ainda que a importância de “Dois dogmas” nunca venha a ser imediatamente evidente ao leigo (algo a mais do que a importância da Crítica da razão pura, de Kant), a maioria daqueles que fazem a leitura do background requisitado para se entender o desígnio contra o qual Quine estava reagindo, suspirarão de admiração diante do poder de sua imaginação esplendidamente iconoclasta.


A filosofia faz avanços, mas não de um modo linear. Ao contrário, o progresso é feito em várias e diferentes frentes ao mesmo tempo, esporadicamente. Leva tempo para que qualquer iniciativa seja consolidada, e mais tempo para que ela seja integrada com outras iniciativas. Nós, filósofos, estamos ainda deliberando não somente sobre que moral deveríamos tirar de “Dois dogmas”, mas quais lições podem ser aprendidas da Fenomenologia do Espírito, de Hegel. Em um livro recente, Articulating reasons, o filósofo da linguagem Robert Brandom faz bom uso tanto de Hegel quanto de Quine. Não acho (e aqui eu discordo de muitos de meus colegas filósofos) que o progresso é tipicamente feito pelo exame cuidadoso e rigoroso das implicações de argumentos alternativos. Ocasionalmente sim, mas mais freqüentemente é o resultado de alguém como Quine expondo o que Hegel teria chamado de contradição implícita no coração da sabedoria convencional, encarando como as coisas se pareceriam se uma distinção que parece intuitiva e de senso comum fosse colocada de lado, desarranjando todas as peças do tabuleiro. “Dois dogmas”, como observei acima, exibe grande habilidade argumentativa tanto quanto enorme poder imaginativo. Mas o último faz a maior parte do trabalho.


Esse é o tipo de poder, o extraordinário dos dons intelectuais, que é encontrado tanto em filósofos como Wittgenstein, Quine, Sellars e Davidson quanto em filósofos como Nietzsche, Dewey, Bergson, Heidegger e Derrida. O que tais figuras têm em comum – a habilidade de visualizar alternativas que ninguém mais havia vislumbrado – é de longe mais importante do que qualquer diferenças entre eles. Assim (para tirar a conclusão contra a qual Quine provavelmente resistiria com toda sua força) seria uma coisa boa se os estudantes de filosofia em todos os países fossem encorajados a estudar ambos os tipos de filosofia do século XX.


2001 © Richard Rorty
Trad. Paulo Ghiraldelli Jr.
Obituário de Quine: Chronicle of Higher Education
Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA)

Virada Línguistica – Um verbete


05/11/2007

Wittgenstein
Ainda que possa ser encontrada em outras áreas, a expressão “virada lingüística” ou “giro lingüístico” (linguistic turn) é típica do campo filosófico. Designa o predomínio da linguagem sobre o pensamento como um dos objetos da investigação filosófica. De acordo com o filósofo estadunidense Donald Davidson (1917-2003), é uma expressão que nomeia um novo paradigma quanto ao modo de se fazer filosofia e que veio para ficar.
A virada lingüística, uma vez aceita como paradigma pelos filósofos, também alterou a periodização da historiografia da filosofia. Ou seja, uma boa parte dos historiadores da filosofia tem construído narrativas a partir de “viradas” ou “giros” – os “turns”.
Fala-se ao menos em três “viradas”, como uma maneira de estabelecer uma divisão entre a filosofia antiga e a moderna, uma outra divisão entre a moderna e a contemporânea e, por fim, uma divisão no interior da filosofia contemporânea. O filósofo alemão Jürgen Habermas tem adotado essa terminologia, falando em “virada epistemológica”, “lingüística” e “lingüístico-pragmática”. No que segue, a ênfase é sobre as duas primeiras “viradas”.
Apogeu e Queda da Virada Epistemológica
A filosofia antiga tem preocupações cosmológicas e ontológicas, por isso mesmo, pergunta sobre o mundo; e faz isso de um modo direto (intentio recta). A filosofia moderna, diferentemente, pergunta sobre o mundo de um modo indireto (intentio obliqua). Isto é, antes de perguntar sobre o mundo, pergunta sobre o conhecimento (do mundo). Antes de perguntar o que há de real e/ou existente no mundo, pergunta qual representação do mundo é válida; qual representação é verdadeira e, assim, se há ou não conhecimento do mundo. A pergunta sobre o conhecimento gera a filosofia enquanto teoria do conhecimento ou epistemologia. Explicar o conhecimento – o que ele é e como ocorre – leva os filósofos a elaborarem e testarem modelos do que seria o aparato cognitivo. Este aparato cognitivo, em parte, é denominado de “a mente” ou, mais ampliadamente, “a consciência”. Entendendo que a consciência produz reflexões, crenças, desejos, intenções e juízos, ela é também tomada, então, como sujeito. Criar e testar modelos de subjetividade se torna a tarefa do filósofo moderno, que a partir de meados do século XIX passa a dividir tal trabalho com o psicólogo.
De John Locke (1632-1704) a Friedrich Hegel (1770-1831) e Karl Marx (1818-1883) o modo como os filósofos construíram a noção de subjetividade ganhou várias especificidades, mas o resultado foi semelhante: “sujeito é aquele (ou aquela entidade) que é consciente de seus pensamentos e responsável pelos seus atos”. Colocaram como núcleo do sujeito ou como o seu melhor representante algo como “mente”, “pensamento”, “entendimento”, “consciência transcendental”, “Espírito”, “proletariado”, etc..
Na transição do século XIX para o XX e em meados deste os filósofos começaram a acreditar que era melhor elaborarem críticas do sujeito ou criarem “subjetividades” que saíssem do padrão até então estabelecido.
Arthur Schopenhauer (1788-1870) aliou o conhecimento ao corpo; para ele, haveria um conhecimento especial, para além do Entendimento, que seria fornecido por processos ligados à compaixão. Friedrich Nietzsche (1840-1900) disse que o sujeito era uma “ficção da linguagem”, isto é, apenas uma função gramatical que, por motivos sociais, se cristalizou ontologicamente na discurso da filosofia. Sigmund Freud (1856-1939) fez a consciência ficar tripartida e deu ênfase ao que seria o subconsciênte: Id e Superego controlariam o Ego e seriam, de certo modo, responsáveis por muito mais atos e falas do que se poderia imaginar. Os pragmatistas disseram que Charles Darwin (1809-1882) os havia ensinado a ver continuidade entre seres com consciência e seres sem consciência; desse modo, a idéia de sujeito deveria ser repensada, pois não se tratava de algo que não tivesse uma gênese – biológica e antropológica. Os frankfurtianos, no início do século XX, evocaram Marx e Freud para dizerem que o sujeito em nossa sociedade moderna é em verdade o objeto; ou seja, por questões econômicas e libidinais, estaríamos em uma sociedade onde o que é vivo se transforma no que é morto e vice-versa, de modo que o morto – no limite os objetos e o próprio Capital – passam a ser as instâncias de tomada de decisão, ou seja, o vivo.
Nessa crítica, mas já usando instrumentos da “virada lingüística”, Ludwig Wittgenstein (1889-1951) sugeriu que o núcleo da garantia da noção tradicional da consciência era algo como uma “linguagem privada”, mas esta, de fato, não poderia existir; pois uma linguagem privada não seria uma linguagem uma vez que a única linguagem possível é a social, e nosso próprio pensamento é a linguagem social ou uma estrutura muito semelhante a ela.
Willard Van O. Quine (1908-2000), na trilha de John Dewey (1859-1952) e Wittgenstein, afirmou que a “mente” não seria capaz de ter o que atribuíam a ela como seu núcleo duro, os significados – os substitutos, na filosofia contemporânea, das “essências” aristotélicas.
Martin Heidegger (1889-1976) afirmou que a acoplagem entre “homem” e “sujeito” não era legítima. “Sujeito” viria da noção de substrato, do que é que sustenta e/ou recebe e/ou põe o objeto. A doutrina do Humanismo, que teria imperado na modernidade, ao fazer do homem o substrato de tudo, fez tudo se transformar em objeto – o que é posto e, no limite, então, manipulado pelo homem. Nesse sentido, o projeto humanista e moderno seria o de domínio do mundo pelo homem. Esse domínio epistemológico encaminharia, cedo ou tarde, para o mundo em que vivemos, o do predomínio da tecnologia: a forma máxima de dominação. Uma vez que somos seres naturais, também nós seríamos os manipuláveis pela tecnologia. O tiro teria saído pela culatra: ao nos colocarmos como sujeitos, perdemos toda condição de ouvirmos a voz da filosofia, ou seja, a “voz do Ser”.
Portanto, em menos de cem anos, a filosofia moderna, ou seja, a “filosofia da consciência” ou a “filosofia do sujeito” ganhou mais críticas, talvez, do que qualquer outro tipo de paradigma filosófico dos vinte e cinco séculos anteriores.
Virada Lingüística – Contemporaneidade
Ao lado de tais críticas, alguns filósofos se voltaram para a idéia de que o melhor para a filosofia seria, mesmo, abandonar a “filosofia da consciência”, porque ela estava envolta a algo que mais era uma ciência empírica do que com a filosofia propriamente dita. Tal ciência era a psicologia. O melhor seria, então, se livrar de todo e qualquer psicologismo em filosofia. Husserl caminhou nesse sentido, mas com a noção de intencionalidade acabou voltando a dar ênfase na filosofia da consciência. Os filósofos de língua inglesa, em especial George Moore (1873-1958) e Bertrand Russell (1872-1970), e depois os “positivistas lógicos” do chamado Círculo de Viena, também advogaram o afastamento de todo e qualquer psicologismo, de um modo muito mais radical que o de Husserl. Surgiu, então, a filosofia analítica e, em certa medida, desenvolveu-se de fato um tipo de prática filosófica que bem mais tarde passou a ser denominado de o resultado da “virada lingüística”.
Russell deu ao panorama do que se produziu – ao menos inicialmente – no interior da “virada lingüística” algumas características especiais. Seu realismo epistemológico se fez contra os idealistas neohegelianos ingleses e também contra as tendências da tradição inglesa empirista, vinda principalmente de David Hume (1711-1776). Hume achava que a tarefa da filosofia era a de fazer a análise psicológica das idéias. Russell defendia a análise das idéias, sim, mas de modo a focalizar sua atenção sobre a lógica. Ele tomou a lógica como a sintaxe de uma linguagem “ideal”, ou seja, uma linguagem “logicamente perfeita”. Tal linguagem teria todos seus enunciados ordinários, já que significativos, contendo proposições com estrutura e relacionamento mútuo sob regras lógicas estritas. Então, o pensamento claro e correto sobre o mundo – a chamada conversação sem ruídos – deveria ser encontrado na lógica formal. Essa linguagem ideal espelharia o mundo exatamente como um mapa espelha o mundo por meio de símbolos. A identidade de estruturas entre os pontos do mapa e os pontos da Terra nos daria o mapa perfeito, tal como seria uma linguagem ideal. Assim, para todo nome próprio haveria uma propriedade correspondente. Quando corretamente usada, tal linguagem figuraria os fatos tais como eles são. Uma teoria da verdade derivada de tal concepção seria a teoria da verdade como correspondência.
Independentemente de lembrarmos os êxitos e fracassos da concepção de Russell, é possível ver nela como que há uma transição do trabalho filosófico de modo natural para a linguagem.
A expressão “virada lingüística” ou “giro lingüístico” já estava sendo utilizada quando, em 1966, Richard Rorty reuniu em um volume um número significativo de textos importantes a respeito de “filosofia lingüística”, com o título de The linguistic turn. A partir daí, a expressão ganhou popularidade. Na introdução desse livro, Rorty nos dá um parágrafo que equivale a uma definição:
“O propósito do presente volume é fornecer material de reflexão sobre a maior parte da revolução filosófica recente, a da filosofia lingüística. Com a expressão “filosofia ¨lingüística”, estarei entendendo aqui uma visão de que os problemas filosóficos são problemas que poderiam se resolvidos (ou dissolvidos) pela reforma da linguagem, ou por uma melhor compreensão da linguagem que usamos presentemente” (Rorty, 1992, p. 3).
Rorty, mais tarde, abandonou a idéia de que problemas de filosofia poderiam ser resolvidos ou dissolvidos. Ele assim agiu não por desencanto com a filosofia analítica, não ao menos como um estilo, mas sim por causa de que passou a desconfiar da facilidade com que a filosofia analítica circunscrevia o que deveria ser ou não um “problema filosófico”. Desistiu de conferir à filosofia analítica uma supremacia em relação a outras filosofias, a não ser como um estilo mais claro e elegante que outros tipos de filosofia. Mas essa mudança não alterou o fato dele e outros passarem a conferir à linguagem um novo status na investigação filosófica.
Mas a linguagem, aqui, já estava bem distante daquela concepção que integrou o realismo de Russell. Rorty, em um estágio bastante desenvolvido do cruzamento americano entre pragmatismo e filosofia analítica, passou a pensar na linguagem como “instrumento” natural de seres naturais para lidar com o mundo – se o tamanduá tem língua para comer formigas e se a formiga tem antenas para, talvez, lidarem umas com as outras e “informarem” sobre o tamanduá, nós humanos temos a linguagem para arcarmos com tamanduás, formigas, nós mesmos e todo o resto. Esse tipo de abordagem é, de certa forma, a continuidade de certos resultados da “virada lingüística” no interior da “virada pragmática”.
Paulo Ghiraldelli Jr, o filósofo da cidade de São Paulo. Veja também: Portal Brasileiro da Filosofia: www.filosofia.pro.br e TV Filosofia.

Weber filósofo


04/05/2009
1.
Nietzsche e Marx foram os pensadores do século XIX que mais se aproximaram daquilo que, em geral, vemos como o pensador típico do século XX. Eles fizeram filosofia relacionando-a com o pensamento social. Essa maneira de filosofar criou o que, no século XX, deu origem a uma filosofia diferente, a chamada filosofia social.
Ambos atacaram a filosofia, ou o que se entendia como filosofia até então, a metafísica. Arrebanhando para sua argumentação filosófica aspectos sociológicos, históricos e antropológicos, Nietzsche criou uma filosofia da história e uma tipologia, e se serviu de ambas para gerar uma abordagem da linguagem a partir da filosofia social. Por sua vez, Marx não queria falar da metafísica de um modo exclusivamente teórico; ele entendia que todo o ideal da boa vida, pregado pela filosofia desde seu nascedouro, se realizaria praticamente se houvesse uma revolução social para além das revoluções que ele assistiu – a revolução capaz de extinguir as classes sociais. Em outras palavras: a filosofia se realizaria por meio da história e, assim, chegaria ao fim.
Assim, quanto a alvos e até mesmo quanto aos meios, Nietzsche e Marx foram bem diferentes. Mas quanto ao “espírito do século XIX”, ambos comungaram da idéia de que o pensador social era o coração que deveria estar no peito do pensador tout court. Mais do que gostaríamos, Marx e Nietzsche viveram no século de Augusto Comte. A idéia de uma “ciência da sociedade” ou de uma “filosofia social” pairou nos céus do século XIX, e foi por aí que figuras como Marx e Nietzsche abriram para Sartre, Dewey, Adorno e tantos outros uma regra de conduta que, desde Sócrates, estava no encalço da filosofia. Cícero escreveu que Sócrates fez a filosofia descer dos Céus à Terra. Mas, o feito de Sócrates foi realmente um feito nas mãos de Marx e Nietzsche. Só então a filosofia cumpriu esse programa socrático de pouso.
A filosofia do século XIX, toda ela, foi uma filosofia mensurada a partir de sua proximidade ou distância para com o que parecia ser o seu destino, o de ser filosofia social. Aos filósofos do século XX não foi dado o direito de não se envolver com a vida social. Mesmo a filosofia analítica não conseguiu ficar alheia a isso. Tornou-se lugar comum no século XX ver o existencialismo, o pragmatismo, a Escola de Frankfurt, o estruturalismo, o neotomismo e tantas outras correntes da filosofia não terem apenas uma visão específica relativa ao conjunto chamado “ética e política”, mas, antes disso, tentarem se referir a problemas filosóficos típicos com a ajuda de parâmetros e elementos vindos da sociologia, antropologia e história.
Max Weber se insere perfeitamente no centro desse movimento, como figura que viveu a transição do século XIX para o XX. Todavia, ele fez uma espécie de caminho inverso da maioria dos pensadores que lhe deram asas ou que colheram nele algum alimento. Weber não foi o filósofo que se transformou em filósofo social, ele foi o sociólogo que tinha vocação para a filosofia – a filosofia social, com certeza.
Talvez por isso, Weber tenha se tornado o mais filosófico dos sociólogos, mas não pelo que queria escrever ou pelo que queria pesquisar. Ele assim se fez porque escreveu sociologia como se ela não pudesse ser outra coisa que não filosofia social. Talvez tenha sido Weber, e não Marx e Nietzsche, ou Comte e Durkheim, o verdadeiro fundador da filosofia social. Quem sabe não possamos dizer que Weber foi, antes que Dewey, Adorno ou Sartre, o verdadeiro criador da filosofia social. Weber agiu assim de dois modos. Primeiro, transformou seu neokantismo em uma epistemologia própria para sua sociologia. Segundo, transformou sua compreensão sociológica da modernidade em um quadro filosófico dos tempos modernos.
No que segue, falarei de modo breve sobre esses dois pontos. Serei altamente sucinto quanto ao primeiro ponto, o tema da epistemologia. Terei mais tempo, então, para a visão de Weber a respeito da modernidade. Pois penso que é exatamente neste segundo campo que Weber deixou sua marca de pensador social para a filosofia social que se espraiou pelo século XX.
2.
A respeito da epistemologia, Weber deixou claro que ele entendia que o porto seguro do conhecimento não era o ponto de partida, como afirmava o positivismo francês. O ponto de partida não deveria ser visto como o do agente cognitivo com esquemas capazes de se deparar com os “dados da realidade” de forma bruta. O ponto de partida teria de ser entendido como o do agente cognitivo colocando seus esquemas de apreensão sobre a realidade, e construindo então os “dados” a partir de esquemas já alterados pela própria forma interação com a realidade social.
Assim, a objetividade deveria ser grafada deste modo: “objetividade”, com aspas. Com isso, Weber queria mostrar que a concordância teórica ao final de uma investigação não era nada natural, e sim um esforço compreensivo grande, uma vez que agentes diferentes partiam de pontos de vista diferentes.
Na época de Weber, e também depois, esse seu neokantismo, esse seu, por assim dizer, idealismo, trouxe para o pensamento alemão uma marca característica. Weber ficou conhecido como historicista e sua sociologia passou a ter o nome de “compreensiva”. Os manuais se cansaram de expor tais características, e no decorrer do século evoluíram no sentido de apresentar Weber como o contraponto de Durkheim, para quem a sociologia era antes explicativa que compreensiva. Os “fatos sociais” deveriam ser tratados como “coisas”, como objetos naturais que, na visão positivista clássica, não poderiam ser “construídos”, e seriam realmente dados – dados brutos.
Talvez essa forma de Weber trabalhar, o da sociologia compreensiva, o tenha feito prestar mais atenção às cosmovisões de cada pessoa que quer “ler a realidade”. E, então, por isso mesmo, ele se viu impulsionado a tecer considerações sobre a modernidade como um tema singular. A própria concepção do que é o moderno seria, de certo modo, o ponto de partida de uma visão de mundo, exatamente o esquema que iria construir o “fato social”.
3.
Não há em Weber um texto cujo objetivo é descrever a modernidade. A compreensão que tiramos de Weber a respeito dos tempos modernos depende de uma leitura geral de vários de seus trabalhos. A visão da modernidade fornecida por Weber, e que é o que a filosofia do século XX mais absorveu, pode ser posta sobre quatro expressões: 1) “Separações das esferas de valor”; 2) “desencantamento do mundo”; 3) “burocratização das instituições”; 4) a modernidade cria “o especialista sem inteligência e o hedonista sem coração”.
Comentando cada uma dessas expressões, terminaremos por compor o quadro da modernidade fornecido por Weber para os filósofos do século XX e, ao mesmo tempo, estaremos fornecendo a filosofia social do pensador Max Weber.
1. Separação de esferas de valor
Weber não fala em esferas de valor em oposição a esferas de fatos. Weber trata todas as esferas de atuação humana como esferas de valor. O que são essas “esferas”? Simplesmente isto: são os campos das atividades humanas centrais. Basicamente três: a esfera da ciência e da técnica, a esfera da arte e a esfera da moral. Ele segue a tríade kantiana: conhecimento teórico, apreciação estética, normatividade ético-moral.
Weber lembra que todas essas esferas, no Ocidente pré-moderno, estão articuladas sob o imã da religião. A modernidade se configura quando essa imantação perde a força, e então cada uma dessas áreas da atividade humana ganha autonomia e se separa uma da outra. Há uma independência entre tais esferas. O próprio trabalho de Kant, ao falar do homem como ser transcendental, que é uma consciência que deve ser analisada em três campos, já se mostra ela mesma, tal obra, como fruto da modernidade.
Assim, a modernidade é a época em que o conhecimento e as teorias se fazem a partir de diretrizes intrínsecas, e não mais em função de uma cosmovisão específica, como a cosmovisão religiosa. Ao mesmo tempo, a moral passa a ser uma moral laica, antes regrada pela cidade e pela profissão do que por qualquer ordenação de doutrinas que seriam fornecidas pelas divindades. Não à toa, também em Kant, nasce a idéia de que a virtude é algo do âmbito específico da consciência, e que o ser moral não precisa de uma religião para se comportar moralmente. O equivalente ocorre com a arte, que passa a retratar o mundo e, enfim, a ficcionar o mundo. A idéia de uma arte que é arte por representar os feitos do cristianismo perdem a razão de ser. A arte fica em função do belo, e o belo é visto por Kant, por exemplo, como o que é da ordem do desinteresse.
Nos tempos modernos a ciência, a arte e a moral andam pelas suas próprias pernas. Paulatinamente se desgarram do que lhes dava unidade e, nesta unidade, sentido. A religião, em especial o cristianismo, é a fonte de sentido dessa unidade. A modernidade se faz como modernidade na medida em que essa unidade não se verifica mais na vida dos homens. E então, não raro, vários deles, individualmente, sentem o peso da perda de sentido. Do final do século XIX até os dias de hoje, encontramos pessoas que lamentam a “vida sem sentido” provocada pelos “tempos modernos”. O senso comum e a mentalidade popular sabem bem expressar isso que é a separação e autonomia das esferas de valor, como tudo isso é posto, em forma erudita, no pensamento social de Weber – sua caracterização da vida moderna.
2. Desencantamento do mundo
Às vezes encontramos leitores de Weber que exageram no entendimento da expressão “desencantamento do mundo”. Eles tomam a idéia de modernidade segundo a característica da “perda de sentido”, e então falam do “desencantamento do mundo” como uma espécie de sentimento subjetivo-individual de angústia, de desespero. Mas não é assim que Weber utilizou a expressão.
“Desencantamento do mundo” é, em Weber, a expressão que caracteriza uma situação geral que se abate sobre o homem que, se age segundo tal ordenação, pode ser chamado de homem moderno.
Em oposição ao homem não moderno, o moderno é aquele que olha para tudo que há ao seu redor, e também para si mesmo, como sendo regido ou por causa e efeito ou por razões. Tudo é naturalizado. Aquilo que não pode ser explicado ou compreendido na base de relações causais ou relações racionais não é misterioso. Uma vez que não pode ser explicado, isso se deve a duas circunstâncias: ou porque quem quer explicar não foi educado para explicar ou porque a ciência ainda não encontrou razões ou causas para tal. Então, ou por educação individual ou pelo progresso da ciência, o que deve ser explicado será, a qualquer momento, explicado. Deuses, gênios, demônios, forças extra-naturais e assim por diante caem fora do horizonte do homem, e então ele é, de fato, um homem moderno.
É claro que um homem moderno pode ter uma mentalidade arcaica. É isso que o faz tomar remédios e, ao mesmo tempo, fazer simpatias. Mas não é o fato de termos mais gente do primeiro tipo que gente do segundo tipo que definimos se estamos ou não na modernidade. O que vale é que o que impera nas nossas relações, como fator preponderante, é que levamos a sério a idéia de um mundo a nossa volta que não funciona senão por relações que não são nem um pouco mágicas. O encanto ou o enfeitiçamento do mundo cai por terra aos nossos olhos. Quando isso ocorre, a modernidade já bateu à nossa porta.
3. Burocratização das instituições
Em um mundo em que as relações entre os homens e as relações entre os homens e a as coisas são todas passíveis de serem expostas segundo um relato racional, por qual motivo se haveria de ficar sujeito ao acaso? As chances de previsibilidade e controle se tornam muito mais concretas, ou ao menos plausíveis. Para tal, as instituições privadas e públicas, as empresas e, enfim, o Estado, devem ser regrados segundo um plano administrativo.
O plano administrativo tipicamente moderno é potencializado pela racionalização das ações. A racionalidade que Weber toma como a racionalidade tout court é aquela da ação levada a cabo através dos meios mais econômicos. Então, a racionalização da administração é posta em prática na medida em que idiossincrasias e gostos pessoais ficam de lado, cedendo espaço para atividades de rendimento ótimo. Nada melhor que uma burocracia profissional, completamente impessoal, para realizar tal façanha.
A burocratização torna-se o caminho pelo qual as instituições e o Estado se permitem chamar de entidades racionais. O mundo do trabalho é produto e produtor desse tipo de racionalidade que, com a burocratização das relações, se torna um mundo que promete realizar o ideal de Comte: “prever para prover”. O mundo em que esse lema se torna verdadeiro é o mundo moderno.
4. Especialista sem inteligência, hedonista sem coração
As conseqüências psico-sociais da “perda de sentido” e da “burocratização” produzem o típico homem moderno, caracterizado por Weber como “o especialista sem inteligência e o hedonista sem coração”.
Essa figura típica é encontrada por nós em todos os lugares. Não raro, quando nos olhamos no espelho, somos capazes de nos reconhecermos nessa figura. Temos um saber profissional que se revela como um know how especial. Precisamos de ser experts em algo para sobrevivermos no mundo moderno. Isto é, o que nos faz aproveitáveis na vida moderna é nossa capacidade de sermos racionais ao máximo, e nossa profissão espelha isso. Ou somos aqueles que sabem mais de muito pouco, ou simplesmente somos chamados de diletantes e, então, somos colocados à margem do trabalho. Não temos que ter inteligência. Temos de ser experts.
Nossa condição de experts, em um mundo sem sentido, em que tudo é regido pela capacidade de fazermos a relações não saírem de seu traçado racional, nos tornamos capazes de viver o momento, sem grandes preocupações com o futuro. O futuro virá, e ele será bom, acreditamos nisso. Nossa crença está baseada na idéia de que nada pode ocorrer de diferente no mundo se seguirmos os procedimentos racionais e burocratizados. Então, cada minuto pode ser vivido, cada dia pode ser aproveitado, tudo que temos nas mãos é algo para aproveitarmos ao máximo e, então, descartarmos. Vivemos, sim, um tipo de hedonismo. Mas é um hedonismo caricato, pois nosso coração é incapaz de se regozijar com nossa ampliada capacidade de usufruir dos bens que geramos e novos caminhos que abrimos. Não temos o coração educado para a verdadeira doutrina do hedonismo.
Podemos ficar horas na praia, como nenhum outro homem do passado conseguiu ficar, uma vez que tinha de parar sua vida para voltar ao trabalho, ou seja, garantir os meios de sobrevivência; todavia, todo esse tempo que ficamos na praia, nos sentimos entediados se não temos nosso laptop conectado por meio de algum wireless. Nosso hedonismo é um sintoma moderno, não o aprendizado da doutrina de Epicuro.
4.
Essas características apresentadas por Weber postas pelos sociólogos – bem mais do que pelos filósofos – como atreladas ao “paradigma do trabalho”, que seria o modelo teórico pelo qual teríamos de enxergar a sociedade moderna.
Entretanto, atualmente a filosofia social imagina que deve absorver o “paradigma da linguagem”, colocando em Banho-Maria o “paradigma do trabalho”. Não poderia ser diferente, uma vez que temos dúvida de se estamos, ainda, vivendo a modernidade. Associamos o “paradigma do trabalho” à modernidade. Agora, que o trabalho parece não ser o imã de nossa sociedade, e a idéia de trabalho parece não ajudar muito para descrever nossas relações sociais , alguns de nós diz que vivemos não só na sociedade pós-trabalho, mas na sociedade pós-moderna.
Todavia, não precisaríamos pensar em “paradigma do trabalho” ou “da linguagem”. Podemos pensar que ainda vivemos na modernidade ou que vivemos em uma situação pós-moderna. Essas questões, para o que quero dizer de Weber e de sua atualidade, são bem menos importantes do que pensam uma boa parte dos sociólogos.
Desde o início dos anos oitenta do século XX temos procurado saber se estamos ou não no campo que, até então, entendíamos ser o “campo moderno”. Mas, independentemente dos resultados desse debate, é difícil descartar essas quatro características postas acima, traçadas por Weber para falar da modernidade, como o que somos obrigados a manter na mira e entender se quisermos compreender o nosso mundo, seja lá qual for este mundo. Mesmo para aqueles que apostam que há traços pós-modernos em nossa vida ocidental que não podem mais ser negados, é difícil descartar esses elementos descritivos de Weber. A modernidade pode ir embora, pode desaparecer e, enfim, no campo teórico, podemos acreditar que o melhor seria deixar para trás o “paradigma do trabalho”. Mas, será que não podemos levar para o mundo pós-moderno esses elementos de Weber? Será que não temos que levar?
Essa pergunta faz sentido. E justamente por ela fazer sentido, nós podemos dizer que a filosofia social gerada por Weber tem uma sobrevida maior do que ele próprio, talvez, tenha imaginado que conseguiria. Esses quatro elementos, que Weber usou para descrever a modernidade, podem se readaptados para descrever uma sociedade em que o trabalho não é mais nem fato central nem categoria teórica fundamental. Não nos vemos obrigados a ficar rodando o cadáver do “paradigma do trabalho” para não deixar o espírito de Weber ir embora. Podemos enterrar o cadáver. Weber e sua caracterização da vida moderna parece, agora, não uma caracterização da vida moderna, e sim um panorama amplo que a filosofia social tem para oferecer para nossas reflexões acerca até mesmo de uma sociedade que já não pode mais ser descrita, exclusivamente, como sociedade moderna. É como se o moderno, em Weber, tivesse adquirido uma tipo de caráter mais amplo que o do “paradigma do trabalho” ou mesmo o da noção de modernidade. E se isso é correto, mais ainda, então, vamos ter Weber como filósofo – filósofo social, sem dúvida, mas, por isso mesmo, filósofo.
© 2009, São Paulo
Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo
http://ghiraldelli.org e http://ghiraldelli.ning.com

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Se você gosta de se conceber como um simples e comum racionalista então talvez você não queira esquentar a cabeça com Theodor Adorno, o filósofo alemão que colocou o holocausto na conta da hiper-valorização da razão.
Se você gosta de se conceber como um simples e comum racionalista então talvez você não queira esquentar a cabeça com Theodor Adorno, o filósofo alemão que colocou o holocausto na conta da hiper-valorização da razão. Porém, Adorno não foi um defensor da irracionalidade, misticismo ou superstição. Ele é um intencional semeador de paradoxos, mas, assim como você, ele está do lado do progresso, da ciência e do secularismo. A diferença é que ele também estava profundamente alerta ao modo como o bom senso obstinado pode levar à complacência intelectual e, em seguida, à incompreensão, ao preconceito e à catástrofe.
Adorno nasceu em uma rica família de Frankfurt, em 1903, e foi educado para ser um aristocrata cultural com um forte senso de responsabilidade histórica – um dever para acalentar e preservar as altas tradições das artes e literatura europeias que ele herdara. Mas, enquanto ela era apenas um colegial durante a Grande Guerra, ele aprendeu a odiar o nacionalismo alemão e começou a sentir atração pelo marxismo revolucionário. Ele não precisava ganhar a vida e gastou a década de 1920 se preparando para ser um auto-consciente e elegante escritor, um especialista em filosofia e música e um crítico mordaz de tudo aquilo que fosse considerado falso, bombástico, liso, simplificado, nostálgico ou sentimental. Ele desprezava o otimismo vazio dos positivistas científicos, assim como ele detestava o pessimismo, tal qual ele concebeu, de Kierkegaard e Heidegger e ele foi repelido pela cultura popular de todos os tipos. Em 1934 ele se auto-exilou na Inglaterra e depois nos EUA e observou a resistível ascensão da violência nazista com um terrível espanto. Em seu livro Dialética do Esclarecimento, em coautoria com o teórico social marxista Max Horkheimer em 1944, ele tentou demonstrar que as calamidades políticas do séc. XX não foram desvios de algum plano pré-ordenado do progresso, mas sintomas de uma doença congênita da modernidade: uma enfermidade que permite benevolência transformar-se em terror, conhecimento em mito, razão em dogma e civilização em barbárie. Crescimento econômico, ele diz, “fornece as condições para um mundo mais justo”, mas ao mesmo tempo “permite que o aparato técnico e os grupos sociais que o administram tenham uma superioridade desproporcional em relação ao resto da população.”
Isso pode parecer a doutrina clássica do marxismo, mas, para melhor ou pior, representou algo profundamente revisionista. Para Adorno, as origens da injustiça contemporânea não repousam tanto nas inequalidades e misérias causadas pelo modo capitalista de produção, mas na estupidez gerada pela cultura da modernidade. Ele pensava que a sociedade como um todo tinha sido vítima de uma forma de razão tecnológica que apagou o poder da crítica ao obliterar a subjetividade e destruir a cultura autêntica, e ele não tinha expectativa que a classe trabalhadora fosse se levantar um dia e expropriar os expropriadores e liderar a humanidade em direção a um reino dourado de liberdade e igualdade. A razão iluminista criou uma forma de falsa consciência que – emprestada do teórico húngaro Georg Lukács – ele chamou de “reificação”, significando algo que trata relações sociais mutáveis como se elas fossem fatos da razão que não se transformam. Esse processo foi trazido para uma grotesca perfeição pela “indústria cultural”, em que cinema, rádio, teatro e jornais derramam um miasma venenoso de pornografia, lascívia e auto-congratulação mútua, ao mesmo tempo em que o sucesso e o reconhecimento popular se confundem com mérito artístico. A verdadeira inteligência e a arte genuína tinham se transformado, portanto, em passatempo idiossincrático de um pequeno e exclusivo avant-garde.
Alguns leitores se empertigaram diante da aparente implicação de que Adorno era o único qualificado a falar pelo pequeno enclave cultural que tinha escapado da devastação geral. Ele parecia ter descoberto um modo de se tornar um marxista sem que tivesse que renunciar aos hábitos de um excêntrico e refinado esteta, ou, por assim dizer, de um rico elitista e esnobe, e sua companheira de exílio Erika Mann o descrevia como um “vaidoso patológico” e um “grande blefe”. Quando ele retornou a Frankfurt em 1949 ele foi recepcionado com alegria por estudantes traumatizados e por intelectuais da Alemanha Ocidental como um emblema de retitude incorruptível e ele aproveitou uma curiosa forma de fama popular até sua morte que se deu 20 anos depois, aos seus 65 anos.
Sua reputação se encontra principalmente em Minima moralia, um livro de aforismos e observações escrito em 1951. A premissa geral é a de que nós vivemos em uma “falsa sociedade”, onde tudo é “totalmente organizado” e as pessoas são tratadas como coisas, e coisas como pessoas. Não há qualquer valor, exceto o valor de troca, e isso se infiltrou em nossas vidas tão completamente que nós esquecemos como amar alguém pelo seu valor próprio. Nós até perdemos a habilidade de dar presentes inteligentes: o ato de fabricar um presente se degenerou em um estratagema tático, uma troca de má vontade de objetos feitos com “adesão cuidadosa ao orçamento prescrito, avaliação cética do outro e o mínimo de esforço possível.” Enquanto isso, cada encontro com a cultura popular nos fez mais grossos e estúpidos, sendo que estamos sempre muito ocupados para gastar algum tempo com arte, quando muito com “biografias inúteis” que “humanizam” os feitos de grandes artistas, trazendo-os para o nosso próprio nível. A vigorosidade do pensamento original foi substituída pela “profundidade assalariada” de professores universitários, que treinam seus alunos para harmonizar seus julgamentos com os de seus colegas, de modo a ganhar a vida como “porta-vozes da média”. O único remédio possível é combater os “filisteus da cultura”, renunciar ao velho ideal de “coesão teórica” e se esforçar para alcançar a verdade na única forma que ainda tem algum significado: não a trivialidade pré-mastigada do bom senso da racionalidade, mas fragmentos irregulares de visão cujo valor não reside na sua plausibilidade, mas na sua “distância da continuidade do familiar”.
Por provocações apimentadas como essa, Minima moralia merece um lugar em toda estante de livros de um racionalista. Mas há momentos em que Adorno exagera e se torna inteligente pela metade. “Só a mentira absoluta agora tem qualquer liberdade para dizer a verdade”, diz ele, e “a demanda por honestidade intelectual é ela mesma desonesta” – observação que, ao menos para mim, soa nada mais que desculpas chorosas para os seus próprios vícios. Seus livros mais respeitáveis – notavelmente, Dialética negativa e o póstumo Teoria estética – são irritantes de diferentes modos: eles são escritos num estilo de alguém que engoliu uma biblioteca e que perdeu toda a capacidade de percepção clara e de declaração franca, e é difícil imaginar alguém os lendo a não ser por algum imperativo profissional. Por outro lado, ele às vezes mudava a mão para formas de expressão menos rebarbativas – incluindo seminários, muitos deles publicados, e discursos populares de rádio – nos quais a ideia de irracionalidade da razão surge enfim docemente razoável.
Em novo livro, Adorno and the Ends of Philosophy, Andrew Bowie de Royal Holloway, University of London, baseia-se nessas fontes familiares, apresentando seus leitores a um pensador que, uma vez despojado de seus “exageros indefensáveis”, pode ser capaz de trazer paz e prosperidade para o território devastado pela guerra da filosofia contemporânea. Se Bowie está certo, então as facções que tem lutado por décadas, arte e ciência, natureza e cultura, corpo e mente, determinismo e liberdade precisam ler os trabalhos de Adorno e por um fim a suas obsessões destrutivas. Uma vez que eles entendam que a humanidade tem relações com o mundo objetivo que “não são apenas cognitivas” – em particular aquelas obras de arte musicais e outras formas de manifestação artística e de experiência de beleza natural –, eles vão depor as armas, abrir negociações sem condições e se preparar para restabelecer a paz. Bowie combina uma enorme gama de leitura com um poder extraordinário de exposição lúcida, e é difícil ver como a tarefa de transformar Adorno em um pacificador intelectual poderia ser melhor alcançada. Mesmo assim, talvez não estejamos persuadidos: Adorno estava no seu momento mais interessante quando ele estava mais extravagante, e talvez uma das melhores coisas dele foi justamente o exagero.
Traduzido por Vitor Lima, membro do CEFA e estudante de Filosofia da UFRRJ
Autoria de Jonathan Rée, filósofo e historiador freelancer. Escreve para várias revistas, dentre elas: The London Review of Books, Prospect, The Independent e The Times Literary Supplement
Texto original de RÉE, Jonathan. Deadly reason. Rationalist Association. Publicado em 13/01/14. Disponível em http://rationalist.org.uk/articles/4531/deadly-reason. Acesso em 26/01/14.

Marx e Weber, românticos na contramão [somente para leitores inteligentes] 14/07/2008


14/07/2008

Marx e Engels escreveram o Manifesto Comunista ainda relativamente jovens. Quando o Manifesto foi publicado, em 1848, Marx tinha trinta anos de idade. Talvez o Manifesto seja o seu texto mais belo do ponto de vista literário, com metáforas surpreendentes e descrições sintéticas, próprias de um gênio. Mas isso não foi feito da noite para o dia. Engels deu as linhas mestras do texto, e Marx se responsabilizou pela organização do conteúdo e, principalmente, pelo estilo. Ele reescreveu o texto várias vezes, e por incontáveis tentativas de correção foi pinçando as melhores palavras e sentenças. Quando ele e Engels terminaram o texto, sabiam de antemão que haviam escrito um clássico da filosofia política.
Diferentemente de quando escreveram A ideologia alemã, que acabaram por não publicar, o Manifesto não foi feito com todo o humor que emergiu na outra ocasião. Não que Marx e Engels não se divertissem escrevendo. Sempre escreviam sem desprezar bons palavrões e gargalhadas, transformando-os, uma vez nos textos, em boa ironia. Os poderosos ficavam irritados com isso, pois sabiam que Marx tinha o dom de atingir pessoas simples, sem que para isso tivesse de escrever de modo simplório.
É fácil saber a razão pela qual Marx escrevia bem. Não era exclusivamente por ter tido uma boa educação. Sua verve literária veio por conta do pé que manteve no Romantismo. O Iluminismo do século XVIII trouxe para ele sua missão de militante político revolucionário. Trouxe também seu apego à idéia de fazer uma espécie de ciência com aquilo que, até então, era filosofia. Todavia, o seu lado de escritor poderoso, é certo, veio do campo romântico.
Em que Marx foi um romântico? Não foi romântico no sentido literário do termo, e sim no modo como trouxe preceitos românticos para a filosofia e, então, em forma de sentimento, os transmitiu para o texto do Manifesto. Dizendo de um modo mais correto: sua união de iluminismo e romantismo foi responsável pelo charme desse seu escrito.
A razão iluminista e finita. É a razão propriamente humana, de homens e mulheres, e em geral é a ela que atribuímos nossa capacidade de organizar o mundo à nossa volta ou mesmo de mudá-lo. A razão romântica é infinita. É a razão não humana, do Cosmos ou do Mundo, da Natureza ou de Deus. É uma razão maior que, enfim, está nas estruturas nas quais vivemos, e então nos organiza ou mesmo nos transforma. Marx nunca decidiu por uma ou outra. Ora manteve-se dúbio, ora tentou conciliá-las. Sua interpretação da história foi, sem dúvida, um dos momentos em que procurou a conciliação.
A interpretação da história de Marx, nos momentos em que buscou resumi-la, apareceu como uma teoria que dizia que o homem era o agente e construtor da história; mas, ao mesmo tempo, o homem não era o construtor da história ao seu bel prazer, tinha de levar em conta as “condições objetivas determinadas”. Esse enunciado de Marx exemplifica bem sua tentativa de dar a cada uma das concepções de razão a sua devida força. Que o seja o homem aquele que faz a história é uma idéia que concede à razão iluminista sua força transformadora; que a história seja feita sob condições objetivas determinadas é uma idéia que enxerga o poderio maior das coisas, ou seja, da razão romântica.
Marx foi exatamente este pensador – iluminista e romântico. No Manifesto Comunista, nos trechos em que as teses românticas prevalecem, a genialidade do Marx escritor salta aos olhos. É o que vemos no trecho em que expõe o papel do que denomina de burguesia.
É o trecho mais belo do Manifesto e, sem dúvida, uma das peças mais bem escritas de toda a literatura da filosofia política.
Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia calcou aos pés as relações feudais, patriarcais e idílicas. Todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus “superiores naturais” ela os despedaçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do “pagamento à vista”. Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal.
A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com piedoso respeito. Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio fez seus servidores assalariados.
A burguesia rasgou o véu de sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias.
A idéia básica desse parágrafo poderia ser resumida em uma frase também literariamente bela e profunda, escrita mais tarde pelo sociólogo alemão Max Weber: a modernidade é a época do “desencantamento do mundo”. Aliás, em termos de beleza e profundidade, Weber cunhou também outra frase, igualmente adaptável a esse parágrafo de Marx: o homem moderno é “o expert sem inteligência e o hedonista sem coração”.
Nos dois casos, tanto o de Marx quanto o de Weber, as sentenças para descrever e avaliar os tempos modernos deixam transparecer um irônico e paradoxal sentimento de nostalgia pelo mundo de antes da modernidade. A ironia é de dupla mão: é uma forma de fustigar o leitor que porventura se identifique com a burguesia, para Marx, ou que faça a apologia da modernidade, para Weber. Amantes da modernidade, Marx e Weber mostram que isso não os impede de serem seus críticos até mesmo nos acertos dessa nova época.
Marx escolhe as palavras que sabe que podem estar sendo idolatradas por aqueles mesmos burgueses que prezam o mundo medieval e feudal, e que não conseguem ainda admitir que foram eles mesmos que destruíram o velho mundo. Os burgueses de todo tipo, e mais ainda o que Marx chama de “pequenos burgueses”, vivem adorando o passado, o que seria idílico e com aura; então Marx mostra a eles que eles é que terminaram com esse mundo que, agora, parece a eles, como conservadores, algo que deveria ser preservado ou restaurado. Não é mais possível fazer voltar o que destruíram. Assim, o texto é um soco no estômago dos ricos e poderosos, e mais ainda da classe média, ao mostrar que todo conservadorismo moral deles é apenas hipocrisia. Duas frases com meias metáforas saltam aos olhos aqui, neste exato sentido: primeira, a burguesa destruiu as relações passadas, e deixou apenas “o laço do frio interesse, as duras exigências do ‘pagamento à vista´”; e segunda: “a burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com piedoso respeito”.
Que homem que pode surgir dessa situação senão aquele que se vangloria de ser não um sábio que fala sobre tudo e todos, mas um especialista, um expert. É assim o homem moderno. Ele não quer mais ser sacerdote ou filósofo; quer mostrar que de um determinado assunto, ele entende. Tem sua utilidade no mercado exatamente por saber daquilo que o dinheiro diz que ele deve entender. “Expert” ou especialista – eis um nome que a modernidade idolatra. Weber não o poupa: “expert sem inteligência”. E ao mesmo tempo, que homem que pode surgir de relações frias “do pagamento a vista” senão aquele que apenas quer o gozo, o hedonista? Todavia, não se trata do hedonista filosófico, e sim do hedonista vulgar, por isso Weber completa: “hedonista sem coração”. Sem coração, no caso, quer dizer: sem a devida harmonia de conduta do hedonista sábio, que mais do que ninguém sabe preencher seu peito com gozos aproveitados de modo correto. Sem coração quer dizer: sem espírito.
Marx deixou para Weber o enunciado que é o creme do bolo da avaliação da “revolução burguesa” e do “advento do mundo moderno”: “desencantamento do mundo”. É difícil não ver que este parágrafo do Manifesto Comunista pode ser batizado com tal frase weberiana. A perda da auréola e a emergência de relações que não são mais mascaradas por religião ou qualquer outro elemento similar é exatamente isso: o império de uma situação em que tudo pode ser tratado às claras. Em outras palavras: tudo pode ser considerado pela noção de explicação, que mostra relações de causa e efeito, ou pela compreensão, que mostra razões. Essas razões, para Weber, não são argumentos, são apenas descrições da racionalidade que adéqua meios a fins.
Marx e Weber estão como que dizendo de modernos ou burgueses: são homens que saem de casa sem consultar oráculos, astrólogos ou mesmo sem orar para qualquer deus, pois a única coisa que os possibilita saírem de casa é a consulta que fazem ao número de folhas de seus talões de cheque.
Essa é a possibilidade que o romantismo de cunho até mesmo conservador fornece a dois pensadores nada conservadores: o de ousarem estapear todos os ganhos da modernidade que eles não querem ver destruídos, e sim ampliados e melhorados. A crítica romântica, em geral, foi uma crítica conservadora. Ela surgiu em oposição às modificações introduzidas pelo iluminismo. Marx e Weber sabem incorporar em metáforas e alegorias surpreendentes o espírito dessa crítica, produzindo escritos que, sem isso, talvez viessem a soar apenas como panfletos iluministas e positivistas pouco agradáveis. Outros escritores da época, ao contrário de Marx e Weber, não souberam harmonizar iluminismo e romantismo, e produziram escritos progressistas, dogmáticos, pouco afeitos à beleza literária que encontramos nesses dois alemães.
© 2008 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo

Os grandes paradigmas filosóficos


12/11/2007

Ceiling of the Stanza della Segnatura - Raffaello di SanzioUm dos melhores modos de responder à pergunta “o que é filosofia?” é mostrar como os filósofos fizeram filosofia. Escolho abaixo alguns nomes de filósofos e algumas escolas de pensamento. Penso que elas são representativas do pensamento ocidental enquanto matrizes paradigmáticas.
Ao escolher o que escolhi, pretendo mostrar qual a minha concepção de filosofia, e tentarei torná-la legítima para o leitor. O procedimento para tal será o de argumentar pela capacidade de minha definição de filosofia ser harmoniosa com a tarefa a que se propuseram as principais matrizes do pensamento filosófico ocidental.
Admiração e desbanalização: Platão e Aristóteles
Platão e Aristóteles deram à filosofia uma de suas melhores definições. Eles viram a filosofia como um discurso admirado e/ou espantado com o mundo.
Nessa linha de raciocínio, dizemos que quando falamos sobre o mundo e colocamos questões do tipo “o que é um raio?” (e “como acontece um raio?”), estamos propensos a adentrar no campo da ciência, enquanto que quando fazemos perguntas do tipo “o que é o que é?” estamos assumindo um tipo de discurso filosófico.
As perguntas da filosofia mostram uma atitude de máxima admiração, pois estampam inquietude com aquilo que até então era o mais banal. Se alguém pergunta “o que é que é?”, cria alguma coisa da ordem da desbanalização, pois traz à baila algo bastante corriqueiro, que é a condição de ser, o que até então não havia preocupado ninguém. Afinal, quem perguntaria “o que é que é?”. Para a maioria das pessoas, tudo que existe “está aí”, e por que não estaria? Então, quando alguém se espanta com o mundo e com tudo nele simplesmente porque o mundo está aí, acaba lançando um olhar para o que era banal e, se conquistar a si mesmo (e depois outros) para essa pergunta, estará desdobrando uma atitude filosófica. O mundo está aí. Sim, está – mas poderia não estar!
Estamos cotidianamente preocupados em saber coisas que não sabíamos. Agora, perguntar pelo ser das coisas que queremos saber o que são, isso nos parece fora de propósito – por que teríamos de perguntar pelo que é tão banal? Ora, o que a filosofia faz, na acepção tradicional que aparece em Platão e Aristóteles, é justamente o que, no meu jargão, pode ser dito assim: olhar o banal como não mais banal. Desse modo, na minha acepção, a filosofia é o vocabulário com o qual desbanalizamos o banal. Tudo com o qual estamos acostumados torna-se motivo para uma suspeita, tudo que é corriqueiro fica sob o crivo de uma sentença indignada, e então deixamos de nos aceitar como acostumados com as coisas que até então estão estávamos acostumados.
Em parte, adoto essa perspectiva para dizer “o que é a filosofia”. Eu a amplio para toda e qualquer banalidade, e imagino que do modo que, desse modo, trago para baixo do meu guarda-chuvas outras respostas ao “o que é filosofia?”, dadas por várias escolas filosóficas.
Por exemplo, penso que com o modo como adoto a perspectiva da filosofia como “desbanalização do banal”, não preciso deixar de fora a maneira como Sócrates via a filosofia. Nem a de outros.
2. O Saber Ignorante: Sócrates
Se fosse perguntado a Sócrates “o que é a filosofia?”, é possível dizer que ele não responderia como Platão, ainda que não desmentisse seu discípulo. Em boa medida, Sócrates esteve mais disposto a fazer filosofia do que erigir uma discussão meta-filosófica, isto é, uma discussão sobre a definição e os métodos da filosofia.
Estava disposto a fazer da filosofia um trabalho com conseqüências mais drásticas – para a vida prática cotidiana – que as assumidas por Platão. Ele não estava interessado na admiração ou no espanto com o que é banal no mundo, mas motivado a ver a desbanalização do que poderia ser tomado como banal para si mesmo e para outros homens: a condição de cada um a respeito do que sabe sobre o mundo e sobre si mesmo em relação à conduta na vida prática, a vida moral.
No jogo de perguntas e respostas para cada transeunte de Atenas, que caracterizava o elenkhós, Sócrates não tinha respostas para nada, ainda que tivesse um bom número de perguntas que terminava por conduzir seus interlocutores a perceber que o que sabiam da vida e de si mesmos (especialmente no campo das verdades morais) era muito pouco A condição de sábio, aquele que poderia se auto-conhecer, talvez fosse justificável apenas para os que sabiam que nada sabiam.
Essa forma de olhar para si mesmo, que Sócrates provocava nos homens de Atenas, e que o estimulava, também era uma maneira de desbanalização. Tanto é que, em um primeiro momento da conversação, os interlocutores respondiam suas perguntas com facilidade, achando-as ingênuas até. Mas, em um segundo momento, eles percebiam que não conseguiam uma definição ampla a respeito do que Sócrates perguntava – não estavam de posse do conceito do objeto da pergunta. Então, não sabiam o que até então lhes parecia banal.
3. O Cogito como fundamento último
Descartes não desmentiu Sócrates, Platão ou Aristóteles. Ele, como bom filósofo, realmente se espantava com o que os outros acreditavam como banal. Para sua época, não deveria ser banal encontrar tantos povos com tantos modos de pensar e de falar distintos uns dos outros e, ao mesmo tempo, serem todos tomados como “humanos e inteligentes”. Mas, na verdade, o contato dos povos europeus com outros, da maneira que se deu no período das grandes navegações, se tornou algo rapidamente banal. Ainda que houvesse estranhamento e guerras – inclusive guerras de religião e de todo tipo de intolerância – o estranhamento foi menor que a aceitação da tese de que cada povo tem sua vida e suas maneiras. Enfim, logo surgiu no cenário o ditador popular “cada cabeça uma sentença”. Era uma forma de legitimação da relativização das conclusões que cada um poderia chegar.
Descartes viu algo esquisito nisso. Ele não tomou tal relatividade de posições e condições como banal. Ele achou muito estranho essa forma.
Se cada cabeça tem sua sentença, então quem está com a verdade? Descartes estranhou o que, mais tarde, viemos a denominar de “relativismo” – no âmbito do conhecimento e em vários outros campos. Ele queria saber como, para além de nossas divergências de modos de pensamento, que caracterizava nossas diferenças culturais, étnicas, geográficas etc., poderíamos todos ter certezas ou não a respeito de enunciados que se punham como verdades. Para resolver isso, sua idéia foi simples: vamos aceitar somente o que não pudermos duvidar a partir de uma certeza cristalina.
Se eu tenho uma verdade cristalina, então, por dedução (silogística), posso tirar outras verdades – conjecturou ele. Descartes logo conseguiu sua primeira verdade e, junto, sua certeza. Qual? A de que se eu estiver enganado de tudo, se tudo que penso e digo é engano, é falso e ilusão, ainda assim é pensamento. Não poderia ser iludido de modo tão amplo se não pensasse. Desse modo, o Cogito – o pensamento – é o que não posso abrir mão; o pensamento e o que realmente está se dando – eis aí uma certeza. Daí o enunciado cartesiano célebre: “penso, existo”.
Descartes inaugurou a filosofia como a busca da certeza do Cogito, como ponto de partida para toda e qualquer outra investigação. Mas só agiu assim por causa de que soube desbanalizar o que era o banal, ou seja, levou a sério a dúvida cética para, então, jogá-la contra a parede.
4. A Critica da Razão e da Racionalidade: Kant, Hegel e Marx
Descartes colocou em dúvida tudo, mas não colocou em dúvida a própria capacidade de pensar de modo conscientemente racional. “Penso, logo sou” é uma certeza, mas só consigo dizer isso na medida em que estou de posse da razão.
Qualquer um de nós, que refaz a meditação cartesiana, chega ao “penso, logo sou” por conta própria, por causa de ser racional. Não acreditamos que algum ser não racional chegaria a tal certeza. Mas se a razão como capacidade de julgar se tornou isso, ou seja, algo banal, cabe ao filósofo desbanalizá-la. Um dos méritos da filosofia pós-cartesiana foi o de tentar questionar até mesmo aquilo que não havia sido questionado por Descartes. O propósito era tirar do banal aquilo que, apesar de tudo, se manteve banal mesmo com Descartes. Esse foi um dos méritos de Kant. Sua acepção de como fazer filosofia ficou conhecida como reflexão e discurso da razão que faz a crítica da razão.
Kant foi quem acreditou que o papel da filosofia era o de crítica de tudo aquilo que ela própria, e não só as ciências, poderiam dizer. Ele se propôs, então, a colocar a razão em um tribunal um tanto esquisito: o tribunal em que a razão estaria nele como ré e juíza ao mesmo tempo. Foi a época na qual a filosofia se transformou, basicamente, em epistemologia, perguntando não mais coisas a respeito do mundo (humano, social, físico), mas sim, especificamente, sobre o conhecimento; ou mais exatamente: sobre as condições do conhecimento e da normatividade, sobre os limites da razão na sua tarefa de produção do saber e de delimitação das normas de conduta,
Kant perguntou sobre as condições do conhecimento e da liberdade de agir e, assim, elaborou a crítica da razão; tanto da razão teórica – a que conhece – quanto da razão prática – a que julga e que é responsável pela conduta moral –, sendo que também esboçou algo semelhante em relação ao aparato capaz de fazer juízos estéticos. Mas Kant fez essa crítica, em grande medida, sem levar suficientemente a sério a história, ao menos se o compararmos com o que fizeram os que viveram no século XIX. Em outras palavras: a história era o seu banal que ele não desbanalizou.
O século XVIII, o de Kant, foi o século da razão; o XIX foi o século da história.
Tendo lido Hegel – o filósofo que racionalizou a história e historicizou a razão – Marx levou adiante a idéia da filosofia de Kant como uma busca pela crítica da razão, mas uma razão banhada na racionalidade dos homens no mundo histórico. Daí que a crítica de Marx não era somente uma crítica da razão, tomada em um sentido epistemológico restrito, mas a crítica da racionalidade da vida humana enquanto vida social e econômica.
Não à toa a obra máxima de Marx, O Capital, vinha com o subtítulo de “crítica da Economia Política”. A racionalidade humana enquanto impregnada no âmbito sócio-histórico havia sido descrita pelos teóricos da “Economia Política”, mas Marx achava que eles não haviam levado em conta um estudo crítico, ou seja, um estudo capaz de revelar limites, condições e pressupostos de suas próprias conclusões. O conhecimento da vida econômica e social dos homens deveria passar por uma atividade que, hoje, podermos chamar de epistemologia social crítica (um trabalho no qual a Escola de Frankfurt se esmerou). Os limites da razão não teriam de ser apontados nela própria, exclusivamente, mas na sua gênese no interior de situações históricas determinadas, situações estas que Marx nomeou a partir de “modos de produção”. Não à toa Marx insistiu que a psicologia do homem poderia ser vista pelos pensadores se eles abrissem a porta da fábrica (e não a porta dos cérebros).
Kant viu que a razão produzia ilusões necessárias por causa de sua própria maquinaria interna. “Deus”, “alma” e “mundo” eram idéias da razão a serviço da possibilidade do raciocínio humano; isto é, evitariam o pensamento conduzido ao regresso infinito em esquemas explicativos – seriam o ponto de chegada para perguntas do tipo “ovo e galinha”. Mas, ao definir “Deus”, “alma” e “mundo” como idéias da razão, e somente idéias, Kant as determinou não apenas como o que não poderíamos apreender pela faculdade dos conceitos, ele também mostrou que esses elementos criavam ilusões – eles próprios nada seriam senão ilusões necessárias. Acreditaríamos em Deus para poder dar fim a uma seqüência explicativa do tipo da gerada por perguntas “o que criou X?”. Quando respondemos que (X) foi criado por (X-1) e (X-1) foi criado por (X-2) e assim por diante, o regresso infinito só é eliminado se temos um ponto de chegada do raciocínio. Deus é uma idéia para tal. Mas só uma idéia – uma ilusão, sim, mas necessária para o funcionamento da maquinaria racional. Jamais o entendimento poderia mostrar factualmente Deus (como “alma” e “mundo” e outras idéias da razão).
Marx poderia concordar facilmente com Kant a respeito dessas idéias serem mecanismos da maquinaria racional, mas preferia ver toda e qualquer ilusão necessária não como intrínseca a um aparato “interno”. Preferia ver a modernidade como geradora de outro tipo de ilusão (necessária, ao menos no interior de um “modo de produção”). A modernidade teria criado a fetichismo da mercadoria e a reificação dos seres humanos. Fetichismo e reificação foram tomados por Marx como faces de uma mesma moeda, que em geral ganhou o nome de “ideologia” – um modo de pensar que não poderia deixar o homem não ver a mercadoria como sujeito, e ele próprio como objeto. O morto (o produzido) agiria como vivo, impondo sua vontade ao vivos (os produtores e agentes), que apenas obedeceriam tais vontades externas. Uma vez não mais donos de suas vontades, não poderiam ser considerados sujeitos.
É fácil entender o fenômeno da reificação e do fetichismo, ou seja, a ideologia. Uma moça entra em uma loja para comprar uma calça jeans. A calça não serve. E então ela não pensa em levar a calça para ajustes. A calça (o morto, o produzido) é que cria vida na medida em que ordena a moça que vá para academia ou para a mesa de um cirurgião plástico e, uma vez lá, corte a si mesma. A velha prática de cortar a calça fica afastada. E a moça obedece. Uma vez esculpida (pelo bisturi laser ou pela “malhação”) a moça é sugada para a loja pela vontade da calça, e chegando lá compra a calça. Na prática, foi a calça que levou a moça. O morto cria vida e realiza seus desejos sobre os que estavam vivos (os agentes, os produtores ou sujeitos), e que então se portam como mortos – sem vontade. Ir para academia ou para a mesa de cirurgia pode parecer um ato de vontade forte, mas nesse tipo de análise, não é, pois não houve vontade deliberativa, apenas a vontade da calça se impôs. A mercadoria é fetichizada, cria vida, e o vivo é reificado, vira coisa – objeto morto. A ilusão é evidente: a moça acredita que agiu por sua vontade, mas agiu por vontade da mercadoria, a calça jeans.
Eis aí uma simples compra de calça, algo banal, sendo desbanalizado por Marx. Também aí a filosofia funcionou como desbanalização do banal. A ideologia moderna do fenômeno fetichismo-reificação seria algo banal, olhado, mas não enxergado, e só realmente visto depois do tratamento de Marx, que delimitou o acontecimento recortando-o teoricamente.
Mas o que Marx (e os filósofos de sua geração) não percebeu é que talvez esses mecanismos de ilusão não pudessem existir se eles não fizessem parte da teia semântica. Afinal, nós menos vemos as coisas do que conversamos sobre elas. E só vemos, ou melhor, só enxergamos aquilo para o qual damos significação, sentido, aquilo que trazemos para o âmbito da nossa linguagem.
O século de Marx foi o século da história, sem dúvida, e o século XX, então, pode ser chamado de o século da linguagem. Os filósofos que ficaram atentos para a linguagem ganharam destaque. No final do século XIX ninguém poderia imaginar que só dois filósofos daquele período continuariam a ser interessantes no final do século XX: Nietzsche e Frege. Ambos deram atenção à linguagem.
5. A Terapia da Linguagem: o movimento analítico e Nietzsche
A investigação de Frege não começou nem terminou como ele queria, uma vez inserida na história da filosofia. Ela começou como um projeto sobre filosofia da matemática e, em parte, terminou com uma proposta metafísica, platônica. Mas a filosofia não vive dos resultados alcançados pelos filósofos – ela parece escolher por si mesma os passos dos filósofos que quer aproveitar para ampliar o caldo de seu leito Assim, desterritorializa os elementos que quer e os coloca a serviço de seu destino.
O que Frege fez e que realmente gerou mudanças de comportamento filosófico se encerra em suas observações sobre semântica.
Não raro, até Frege os filósofos – e quase todos os outros pensadores – haviam banalizado a linguagem. Somos seres falantes – e daí? Qual a importância há nisso? A linguagem era tomada apenas como um “dom”, um meio pela qual poderíamos expressar pensamentos. Assim, nossa linguagem teria a função de fazer referência a objetos nomeados por ela, e tal referência daria o sentido para os nossos enunciados. Esse tipo de compreensão da linguagem era uma forma de manutenção do banal. Frege desbanalizou isso quando lançou o desafio de ponderar que “sentido” e “referência” poderiam não ser a mesma coisa.
Ora, mas sentido e referência não são a mesma coisa? Quando damos a referência de um enunciado, de uma frase nossa, não estamos dando o sentido da frase? Ou, ao menos em princípio, ao dar a referência não estamos colaborando em muito para mostrar o sentido? As perguntas “a que você se refere?” e “qual o sentido do que disse?” não são intercambiáveis em muitas situações? Acreditamos que sim. Os filósofos antes de Frege também acreditavam que sim. Eles ontem, como nós hoje, banalizamos a linguagem.
Frege mostrou que sentido e referência não eram tão parentes quanto poderiam nos parecer. E fez isso a partir de um exemplo fácil. Ele partiu de três elementos de nomeação: a Estrela da Manhã (M), a Estrela da Tarde (T) e Vênus (V). (M) refere-se a um corpo celeste que aparece no céu um pouco antes do nascer do Sol. Durante séculos essa informação foi importante, básica para marinheiros, que se guiaram por tal informação; se localizavam logo ao acordarem cedinho por meio de tal informação. (T) também se refere a um corpo celeste, que aparece ao pôr-do-Sol, e justamente em um lugar oposto ao de (M). Isso também foi informação que deu guia para marinheiros. (V) refere-se ao planeta Venus, aquele que nós, terrestres, vemos com o mais brilhante, e segundo o que sabemos hoje ele é o segundo planeta a contar do Sol. Isso é uma informação empírica, e junto com ela temos outra, disponível para qualquer pessoa hoje em dia, a de que a chamada Estrela da Manhã é a conhecida Estrela da Tarde e, enfim, trata-se do Planeta Vênus. Assim, graças a uma descoberta empírica, temos hoje que (M)=(T)=(V). Se pudermos dizer – e podemos – que X é o objeto nomeado, então temos que X=X, de fato X (é assim que os filósofos dizem). O que é isso? Ora, uma tautologia. Uma tautologia não transmite nenhuma informação. Por definição uma tautologia não dá informação, pois apenas reitera como predicado o que é o sujeito e vice-versa. Todavia, nesse caso, se observarmos bem, há sim uma informação.
Fica fácil ver isso. Basta notar que quem sabe hoje a respeito de que (M) é (T) e é (V), sabe mais do que os homens do passado sabiam (os marinheiros, por exemplo). Quando Frege percebeu isso, ele passou a desconfiar de que haveria muito mais coisa no significado do que a simples relação de ligar um nome a um objeto, ou seja, dar a idéia banal de “referência”. Ele passou a fazer distinção entre sentido e referência.
Sua pesquisa seguiu por um caminho (platônico). Mas esse passo em que ele viu a distinção entre sentido e referência serviu para outros propósitos. Os filósofos estabeleceram teorias de referência e teorias semânticas separadamente. E a linguagem, até então um campo sem problemas, banal, passou a gerar todo tipo de problema – e a filosofia no século XX quase que se transformou totalmente em filosofia da linguagem.
Mais ou menos na mesma época de Frege, Nietzsche também estava olhando para a linguagem, mas de uma forma distinta, com outros instrumentos.
Nietzsche e os filósofos analíticos, dentre estes últimos os positivistas lógicos do Círculo de Viena, fizeram uma revolução na filosofia. Eles se espantaram com a própria filosofia. Acharam que fazer filosofia é que havia se tornado banal. Então, eles tentaram desbanalizar a própria filosofia.
Para eles, as atividades de adquirir o saber ignorante ou de encontrar certezas e, enfim, a atividade crítica, só tinham algum sentido se fosse levado em conta que todas essas atividades estavam impregnadas da idéia de que a filosofia, desde sempre, procurou por algo que, talvez, não fosse lá muito correto de se procurar: um ponto arquimediano, ou seja, uma âncora que ligasse pensamento ou linguagem ao mundo. Mas tal âncora seria feita de pensamento ou de mundo?
Em outras palavras, a filosofia teria sido, desde sempre, uma metafísica, e a metafísica seria apenas um grosseiro erro provocado por uma linguagem excessivamente rebuscada – para alguns analíticos – ou uma linguagem originalmente maculada pela “doença”, “fraqueza”, “moral escrava” e outros males da decadência – como Nietzsche os qualificou.
Para alguns filósofos analíticos, em especial os positivistas lógicos, a filosofia, ao ter se dedicado à busca de fundamentos metafísicos que envolviam a criação de uma linguagem descuidada, teria se enredado em um grande número de problemas, todos eles, na verdade, pseudo-problemas, pois adviriam de confusões criadas por um uso indevido das palavras, sentenças, proposições etc.
Alguns desses filósofos acreditaram que a filosofia poderia ainda ser crítica, mas crítica da linguagem, de modo a revelar o que é que haveria de puro e realmente sólido por baixo de tantas frases meramente alusivas, metafóricas, etc., na nossa linguagem, tanto quando falamos no cotidiano quanto quando falamos cientificamente. Outro grupo, nunca achou que a atividade de análise da linguagem, que seria então a atividade par excellence da filosofia, deveria cumprir uma função crítica, desveladora, iluminista, mas que ela seria, sim, apenas uma terapia da linguagem: ela teria menos a ver com “resolver problemas” e mais a ver com “dissolver pseudo-problemas”.
Nietzsche, junto com os positivistas lógicos e certos filósofos analíticos do século XX, quis ver o fim da metafísica adotando uma postura que incidiu em colocar a linguagem na sala de cirurgia. Todavia, Nietzsche nunca acreditou que poderia tornar a linguagem mais clara, capaz de apreender o real, nem mesmo tentou achar uma âncora que pudesse ser mostrada como o que fixa a linguagem no mundo. Esse foi um projeto derivado do que fizeram os analíticos, em especial os positivistas lógicos.
Ao dizer que os homens ainda acreditavam em Deus por acreditarem na gramática, Nietzsche disse tudo a respeito do seu programa de desbanalização. A composição dos enunciados deveria ser o foco de atenção, principalmente a relação entre sujeito e predicado. Para servir de exemplo, ele pegou frases da linguagem comum e, ao mesmo tempo, da linguagem científica.
Ele nos lembrou de como que ao usarmos a frases sobre fenômenos naturais, geramos sempre um sujeito e um predicado, e então ontologizamos o predicado sem qualquer pudor. Achamos isso banal. Não percebemos que o sujeito é apenas uma partícula gramatical, que está ali como elemento da linguagem e não como elemento ontológico. Quando falamos sobre o que é que um raio ou um trovão fazem, temos mesmo de colocar um elemento ontológico para segurar em um ponto fixo a ação? Ou a ação é tudo que temos? Isso deveria valer para tudo, mas não vale. Nossa gramática nos força, na maioria dos casos, a colocar um agente responsável pela ação, e então, em um segundo passo, esquecemos que esse agente ou sujeito é mera peça gramatical, que está ali apenas para que a linguagem flua de maneira retoricamente melhor, e logo conferimos a tal elemento um estatuto metafísico e ontológico. Fazemos isso com tudo, e também com o “Eu” que está em nossas frases. Não à toa, então, começamos a achar que o eu do “eu penso” é um ponto fixo que merece receber algum estatuto ontológico, que o tal “eu” é uma “substância pensante”. O recebemos como uma “res cogitans” e, então, nos embrenhamos por uma mata metafísica por conta de correr para pegar um coelho que nada é que um coelho gramatical – não existe senão como partícula da linguagem.
A desbanalização da gramática colocou Nietzsche com boas armas para atacar a metafísica e, então, poder dizer que a própria filosofia estava cega.
Entramos no século XXI sob esse impulso de Frege e Nietzsche, dados no final do século XIX. O século XX não aproveitou todas as potencialidades dos projetos de desbanalização da filosofia pelas filosofias postas por esses dois pensadores. Às vezes, tudo que é para ser banalizado volta a ser banal, dentro da própria filosofia. Mas o trabalho nosso é o de retomar esses projetos.
No âmbito em que a filosofia olha para o próprio umbigo, a desbanalização se volta para os mecanismos que a própria filosofia não está dando atenção. Fora disso, no campo da filosofia aplicada, tudo que não é notado, ou que é notado demais a ponto de ser comum, são os melhores objetos da filosofia. A filosofia como desbanalização do banal, que é a minha concepção de filosofia, parece ter sido realmente a que todos os filosóficos adotaram quando se tratou de alterar paradigmas. Eles foram alterados, mas esse fio condutor, o da desbanalização do banal, permaneceu.
Paulo Ghiraldelli Jr. - pgjr23@yahoo.com.br