segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Quais os riscos da junção do álcool e cocaína?


  
Publicado por Vida Mental (extraído pelo JusBrasil)
 
 
É comum ouvir relatos de usuários ou dependentes de cocaína sobre o consumo de álcool antes ou depois do uso da cocaína ou crack. A junção dessas drogas no organismo é chamada de COCAETILENO. O problema é que muitos não sabem o quão perigosa é essa mistura!

Em geral, os usuários ou dependentes de cocaína usam essa mistura por três fatores: para minimizar os efeitos desagradáveis da cocaína como suor excessivo, palpitação, dor de cabeça, tremores, ansiedade, contração muscular, na mandíbula e língua, por exemplo; pela intensa euforia provocada pela junção de ambas; e por fim, para diminuir os efeitos negativos do álcool como lentidão do pensamento e dos movimentos.

O grande problema é que essa mistura pode ser de 3 a 5 vezes mais perigosa do que cada substância separada! A junção pode resultar num prolongamento da euforia, como também em convulsões, prejuízos no fígado (local onde são metabolizadas as substâncias) e no sistema imunológico.

Como a mistura disfarça ou diminui os sintomas da cocaína, o indivíduo corre maior risco de overdose e complicações cardíacas, pois ele não percebe que já usou demais!

A hiperestimulação, a euforia e a impulsividade causada pelas drogas tornam os indivíduos mais expostos a situações de risco. É muito comum indivíduos que fazem essa mistura de drogas apresentarem comportamentos agressivos e violentos e acabarem com um processo na justiça. Profissionais da Psiquiatria Forense e Psicologia Forense podem auxiliar em casos de processos jurídicos que requerem avaliações da sanidade mental e capacidade de discernimento do indivíduo, mesmo em casos em que não envolvem grande criminosos.

É muito importante o conhecimento da ação de cada droga no organismo e da junção de duas ou mais substâncias. Esse saber pode ajudá-lo a conscientizar alguém que faz abuso ou é dependente de uma droga e costuma misturar com álcool. A informação salva vidas!

Se você conhece alguém que faz uso de drogas ou se você é uma pessoa que tem o costume de fazer uso, procure um especialista mais próximo na rede pública de saúde ou nos serviços privados. Busque ajuda e não desista! Sempre é tempo de cuidarmos de quem amamos mesmo que esse alguém seja você!

Se você quer saber mais sobre essas substâncias, no site Sanidade Mental cursos você encontrará mais informações relacionadas ao tema. Cursos que esclarecem essa e outras dúvidas sobre a dependência química, estão disponíveis no portal da Vida Mental, confira abaixo.

Hewdey Lobo Ribeiro
CREMESS 114681
Mèdico Psiquiatra Forense pela ABP
Psiquiatra - ProMulher - IPQ-HC-FMUSP
lobo@vidamental.com.br
0xx - 11- 4114 0019
0xx - 11 - 2371 7053

Aline C. Baptistão
Psicóloga - Pós Graduanda em Dependência Química
CRP: 94648/06
alibapt@hotmail.com

COCAÍNA(AÇÃO TÓXICA NO CORAÇÃO )

AÇÃO TÓXICA NO CORAÇÃO
Dr. Alberto Siqueira Lopes
Nos últimos anos tem ocorrido um aumento significativo do consumo de cocaína em jovens, apresentando um número acentuado de complicações no sistema cardiovascular. Estatísticas nos EEUU nos relatam que cinco milhões de habitantes a consomem regularmente e vinte e dois milhões a utilizam pelo menos uma vez. Quarenta e sete mil estudantes de primeiro e segundo grau da rede estadual de ensino de dez capitais brasileiras, consumiram drogas, incluindo a cocaína, durante o período de 1987 a 1989.
Nos preocupa o fato de que o número de pacientes jovens com episódios coronarianos associado, ao uso de cocaína, vem aumentando progressivamente. A cocaína tem química similar aos anestésicos locais. Ela é absorvida por todas as mucosas e a utilização pode ser realizada através das vias respiratórias, intranasal, intravenosa, intravaginal, oral e intraretal.
A adição de bicarbonato de sódio à pasta básica ou à cocaína produz o CRACK cujos cristais, quando entram em combustão, crepitam, daí o nome. A pasta básica da coca quando tomada pura ou associada a cigarros de tabaco ou maconha é comumente usada entre jovens dos EEUU e denominada BASUKA. O metabolismo da cocaína ocorre em grande parte no fígado. A eliminação é feita quase toda pelos rins. A meia vida da cocaína, quando administrada por via endovenosa, é em torno de noventa minutos. A concentração após o uso intranasal atinge o máximo em quinze a sessenta minutos.
A intoxicação e a morte ocasionada pelo uso da cocaína, depende da via de administração, da quantidade da associação com outras substâncias - entre as quais o álcool -, e com este último existe uma potencialização de efeitos responsável por grande número de óbitos por "overdose". Os efeitos cardiovasculares da cocaína decorrem da sua ação nos sistemas nervoso central e periférico.
A droga bloqueia a reutilização pré-sináptica dos neuro transmissores noradrenalina e dopamina, produzindo excesso destas substâncias nos receptores pré - sinápticos. Os efeitos cardiovasculares incluem vasoconstricção, taquicardia, elevação da pressão arterial, aumento do consumo de oxigênio e alteração do rítimo cardíaco (carritimias).
A cocaína quando usada em pequenas doses produz diminuição dos batimentos cardíacos (ação vagal) e em maiores doses produz aumento dos batimentos cardíacos
(ação simpática ou adrenérgica). A ação tóxica direta sobre o músculo cardíaco causa depressão da função ventricular levando ao aumento da área cardíaca.

O número de complicações cardiovasculares agudos e críticos relacionados ao consumo de cocaína em jovens, tem aumentado de modo assustador. Constatamos recentemente em uma única semana, dois casos de jovens de 21 e 25 anos com lesões coronárias evidenciadas durante cinecoronariografia, feita por nós no Hospital
Rio - Mar. Ambos faziam uso constante de cocaína por via inalatória e sofreram infarto agudo, sem evidências de outras causas para tal episódio. Ambos apresentaram arritimias graves e não faleceram porque foram prontamente atendidos no pronto-socorro e recuperados.

As seguintes complicações são freqüentes nos consumidores de cocaína:
- Infarto agudo do miocárdio;
- Morte súbita;
- Arritimias (distúrbios do rítimo cardíaco);
- Miocardite (inflamação do músculo miocárdico);
- Edema pulmonar agudo;
- Hipertensão arterial;
- Ruptura da aorta;
- Hemorragia subaracnóidea.
Destas complicações, a mais freqüente é o infarto do miocárdio. A artéria predominantemente atingida é a principal do coração - a artéria descendente anterior, responsável pela irrigação de grande parte do ventrículo esquerdo.
A associação de cocaína e álcool, freqüentemente utilizada pelos jovens, é potencialmente fatal levando à síncope, arritimia e morte súbita.
Nas primeiras duas semanas de suspensão da cocaína, o eletrocardiograma realizado durante 24 a 27 horas denominado HOLTER, apresentou em estudo realizado em jovens, episódio de ISQUEMIA SILENCIOSA ( sem dor ), evidenciando que o perigo persiste mesmo após a suspensão do tóxico.
A cocaína além de produzir espasmo nas artérias coronárias, produz trombose (coagulação do sangue) arterial, dois fatores que geram o infarto do miocárdio com conseqüencias imprevisíveis, que podem levar à morte súbita.
Os distúrbios do rítimo (arritimias ventriculares) parecem ser a causa de morte pelos usuários de cocaína.
Aos jovens que usam cocaína aconselhamos não fazerem uso simultâneo de bebidas alcóolicas, antidepressivos ou calmantes e procurar orientação psiquiátrica, pois trata-se de um distúrbio grave do comportamento humano como a autodepressão, automutilação e suicídio lento ou súbito.
Nos casos em que a droga foi suprimida a tempo, todas as complicações puderam ser evitadas. O melhor tratamento médico que pode ser dado ao usuário de cocaína é feito por ele mesmo. Só dele depende a suspensão da droga.
Ninguém o obriga a usá-la. Se faz o uso, é porque quer. Portanto, as más companhias não é a causa enfatizada por muitos. A causa é o próprio usuário; este sim é a má companhia para os outros.
Dr. Alberto Siqueira Lopes
Prof. Adjunto de Cardiologia da UERJ

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Somatizações e Quadros Dolorosos

 

Somatizações e Quadros Dolorosos

Sintomas que refletem o comprometimento físico das emoções.
| Psicossomática | Histeria e Afins |

Tanto os Transtornos Somatoformes, quanto os fenômenos Dissociativos e Conversivos, podem ser considerados transtornos psicorreativos, ou seja, aparecem sempre como uma reação a algum evento de vida, a alguma emoção. Trata-se de uma resposta do orgânico a uma vivência traumática. De certa forma aqui se incluem também os transtornos psicossomáticos.
 
De modo geral, o Transtorno Somatoforme se caracteriza por um salto do psíquico para o orgânico, com predominância de queixas relacionadas aos órgãos e sistemas, como por exemplo, queixas cardiovasculares, digestivas, respiratórias, etc.
 
Quando se usa o termo Conversão, embora exista da mesma forma um salto do psíquico para o orgânico, os sintomas são predominantes no “sistema de comunicação” da pessoa com o mundo, ou seja, em sua mímica, em seus cinco sentidos, em sua mobilidade e coordenação motora. Dessa forma, todos os quadros de conversão se confundem com sintomas neurológicos, ou seja, desmaios, formigamentos, paralisias, perda da voz, da visão, etc. Na Conversão os sintomas aparecem sob a forma de perda da função de um ou de vários atributos necessários à vida de relação. Isso significa que a musculatura estriada e os órgãos sensoriais são afetados.

Os problemas de Somatização, por sua vez, normalmente envolvem a clínica médica. Os sintomas envolvem os diversos órgãos e sistemas, como por exemplo, dores no peito (sistema cardiovascular), falta de ar (sistema respiratório), cólicas abdominais (sistema gastroenterológico ou ginecológico), e assim por diante.
 
Nos distúrbios de Dissociação há, da mesma forma, um salto do psíquico, porém, não mais para o orgânico: há um salto do psíquico para o próprio psíquico. Aqui são afetadas a consciência e integração da pessoa com a realidade. A Dissociação, segundo a CID.10, é representada pelos fenômenos onde o indivíduo fica, repentinamente, dissociado dos estímulos internos e externos.
 
Todos esses sintomas psicorreativos são reversíveis e não obedecem à realidade orgânica ou à fisiologia médica conhecida. Eles obedecem sim, à representação emocional que o sujeito tem de seus conflitos, de seu corpo e de seu funcionamento. Através dessa representação sintomática nada fisiológica podemos observar uma perda total da visão sem que o reflexo foto-motor se encontre alterado, ou uma lombalgia com exames neurológicos normais, tonturas com exames otoneurológicos normais e assim por diante.
 
Vale acrescentar que nenhum desses sintomas tem algo a ver com a simulação, tratando-se, pois, da comunicação corporal de um conflito ou mobilização emocional. É a expressão de uma necessidade psicológica onde os sintomas não são voluntariamente produzidos e não podem ser explicados, após investigação apropriada, por qualquer mecanismo clínico conhecido.
 
É muito importante fazer uma boa distinção entre sintomas somatiformes e conversivos com os sintomas psicossomáticos, embora todas essas manifestações possam ocorrer em um mesmo paciente. Na Conversão e Somatização, a representação da realidade vivenciada penosa, desagradável ou traumática é reprimida para o inconsciente e sua energia psíquica é deslocada para alguma zona do corpo, convertendo-se em sintoma.
 
Isso pode ser o que acontece, por exemplo, quando uma paciente apresenta queixa ginecológica vaga e incongruente, após ter participado de alguma prática sexual com o namorado em desacordo com seus valores morais. Nesses casos não existem lesões orgânicas, embora sempre exista a queixa do sofrimento. Tais queixas conversivas ou alterações funcionais independem da anatomia e fisiologia reais do organismo.
 
Na Doença Psicossomática, diferentemente, de fato existe alteração orgânica confirmada por exames clínicos, embora tais alterações tenham sido desencadeadas, determinadas ou agravadas por razões emocionais. Na Doença Psicossomática o Sistema Nervoso Autônomo (SNA) é o mais mobilizado. Alguns autores aceitam a idéia de que a Doença Psicossomática acontece quando há prejuízo da manifestação afetiva típica, ou seja, quando há alguma dificuldade para a pessoa reconhecer e verbalizar sentimentos e emoções (alexitimia).
 
Resumindo, a maneira mais didática de entender essa sucessão de termos parecidos e confusos pode ser assim:
 
TERMO
SIGNIFICADO
Somatiforme, ou Somatomorfo
Toda patologia psíquica que se faz representar no orgânico através de sintomas compatíveis ou não com a patologia clínica, com a anatomia ou com a fisiologia.
Somatização
Quando a parte física envolvida diz respeito aos órgãos e sistemas (coração, muscular, respiratório, genital...)
Conversão
Quando a parte física envolvida diz respeito à comunicação corporal da pessoa (cinco sentidos, musculatura, coordenação...)
Dissociação
Quando a parte envolvida diz respeito ao próprio psiquismo (confusão mental, delírios, desorientação...)
Psicossomática
Doenças determinadas, agravadas ou desencadeadas por razões emocionais com alterações orgânicas constatáveis (asma, hipertensão, dermatites, diabetes...)
 
 
Transtornos Somatoformes
A característica principal dos Transtornos Somatoformes é a presença de sintomas físicos que sugerem alguma doença orgânica ou física. A base do quadro clínico diz respeito à presença repetida de sintomas físicos associados à busca persistente de assistência médica. Apesar dos médicos nada encontrarem de anormal nos pacientes com Transtorno Somatoforme, as queixas persistem. E quando há alguma alteração orgânica, esta normalmente não justifica a queixa.
 
Para que haja um diagnóstico de Transtorno Somatoforme deve haver, juntamente com as queixas, algum sofrimento ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional. Caso isso não ocorra estaremos diante apenas de um traço histérico de personalidade.
 
A pergunta que sempre está presente diante de casos com somatização é quanto à intencionalidade consciente dos sintomas. Nos Transtornos Somatoformes a intencionalidade é inconsciente, ou seja, pode haver uma espécie de “planejamento” inconsciente da sintomatologia, a qual passa a se manifestar involuntariamente. Esse quadro difere da simulação, onde os sintomas físicos não são conscientemente intencionais, isto é, voluntários.
 
Há estudos mostrando que 75% das pessoas adultas e sadias sofrem algum tipo de dor ou de mal estar num prazo de uma semana. Isso quer dizer que, em condições normais, o ser humano costuma apresentar alguma queixa sobre si mesmo e isso não se constitui em nenhum transtorno psiquiátrico (White KL, Williams TF, Greenberg BG. The ecology of medical care. N Eng J Med 1961; 265: 885-892). Entretanto, devemos pensar em um diagnóstico de Somatização, apenas quando a pessoa que se queixa acredita estar sofrendo de um problema orgânico e busca diagnóstico e tratamento médico persistentemente. Nesses casos parece haver uma relutância do paciente em aceitar as seguidas negativas dos médicos quanto a possibilidade de não haver nenhuma doença física.
 
A diferença entre os Transtornos Somatoformes e as Doenças Psicossomáticas está no fato dessas últimas comportarem, junto com a queixa, realmente alguma alteração orgânica constatável clinicamente, enquanto na somatização não. Havendo confirmação de alterações orgânicas e, sendo a doença em pauta influenciável (determinada ou agravada) por razões emocionais, estamos diante de Doenças Psicossomáticas. Alguns exemplos desses transtornos podem ser a asma brônquica, hipertensão arterial essencial, psoríase, retocolite ulcerativa, entre muitas outras.
 
De acordo com o DSM.IV, o Transtorno Somatoforme se constitui num grupo de enfermidades psiquiátricas que são caracterizadas quando o paciente apresenta sintomas físicos que sugerem um transtorno físico mas, entretanto, não existe nenhuma causa orgânica ou mecanismo fisiopatológico conhecido que explique os sintomas completamente.
 
A indiscutível importância dos Transtornos Somatoformes está na gritante freqüência com que esses pacientes visitam médicos das mais variadas especialidades. Tão ou mais importante ainda é o fato desses transtornos estarem quase sempre associados a outros quadros emocionais.
 
Comorbidade
A comorbidade do Transtorno Somatoforme (concordância com outra doença simultaneamente) com outros quadros emocionais tem sido observada em torno de 85% dos casos, com predomínio de transtornos depressivos e de ansiedade. Essa comorbidade pode ser assim dividida (García-Campayo J, Sanz Carrillo C, Pesrez-Echeverría MJ, Campos R, Lobo A. Trastorno por somatización en atención primaria: aspectos clínicos diferenciales. Med Clin – Barc - 1995; 105: 728-733.)
 
Comorbidade do Transtorno Somatoforme
Diagnóstico associado
%
Distimia
40.0
Transtorno de ansiedade generalizada
25.7
Transtorno por angustia
22.8
Abuso de analgéssicos
20.0
Agorafobia
17.1
Depressão maior
5.7
Depressão não especificada
5.7
Outros
14.2
Note-se que somando distimia com outras depressões dá um total de 51.4% de comorbidade com o Transtorno Somatoforme.
 
Essa expressiva comorbidade convoca a formulação de hipóteses, entre as quais, perguntar-se se o Transtorno Somatiforme não seria apenas uma das manifestações (atípicas) dos estados depressivos e/ou ansiosos.
 
Entre os tipos de manifestação do Transtorno Somatiforme há maior prevalência o tipo Transtorno de Somatização (72%), a Hipocondria (63%), a Dor Crônica (59%) e o Transtorno Dismórfico Corporal (65%). (Bass C, Murphy M. Somatoform and personality disorders: syndromal comorbidity and overlapping devoopmental pathways. J Psychosom Res 1995; 39: 403-428.)
 
Importancia Clínica dos Trastornos Somatiformes
A importância clínica dos Transtornos Somatoformes é totalmente determinada pela sua enorme prevalência, portanto, determinada pela assiduidade com que os pacientes somatoformes se utilizam dos sistemas de saúde. Eles estão presentes (muito presentes) nos consultórios médicos de quase todas as especialidades e, não raro, esses pacientes costumam visitar mais de uma especialidade simultaneamente. Portanto, além da alta prevalência, deve ser levado em consideração o alto custo social determinado pelos Transtornos Somatoformes.
 
Não obstante, apesar da assiduidade desses pacientes no sistema de saúde, eles estão continuadamente descontentes com o tratamento que recebem. A dificuldade do médico em lidar com esse transtorno emocional faz com que o paciente esteja constantemente trocando de serviço de saúde.
 
Transtorno de Somatização
Somatização a rigor, significa passar para o somático, físico ou corpóreo, somatizar. Normalmente essa expressão não deve ser tomada exclusivamente como se tratasse de alguma categoria diagnóstica específica. A somatização aparece na medicina em geral e na psiquiatria, em particular, muito mais como um sintoma, encontradiço em muitos estados emocionais, do que como uma doença específica.
 
Quem trabalha em saúde está familiarizado com aquele tipo de paciente que apresenta queixas múltiplas, imprecisas, confusas e difusas. Normalmente começam dizendo “... não sei nem por onde começar doutor.” Essas pessoas costumam se sentir inconformadas com resultados negativos dos muitos exames que se submetem.
 
A categoria diagnóstica dos Transtornos Somatoformes e suas subdivisões (Transtorno de Somatização, Somatoforme de Dor, Disfunções Neurovegetativas, etc.) abrangem uma série de pacientes cujos sintomas correspondem a respostas somáticas, indicadoras de alterações emocionais e super valorizadas através de ampliações das sensações corporais.
 
A característica principal do Transtorno de Somatização é a elaboração de múltiplas queixas somáticas, recorrentes e clinicamente significativas. Uma queixa é considerada clinicamente significativa quando resulta ou acaba determinando algum tratamento médico. Também pode ser considerada clinicamente significativa quando é capaz de causar algum prejuízo no funcionamento social ou ocupacional da pessoa.
 
No Transtorno de Somatização normalmente há uma história de dor incaracterística e de difícil explicação médica que acomete predominantemente a cabeça, as costas, articulações, extremidades, tórax, e/ou uma história de comprometimento nas funções de órgãos, como por exemplo, em relação às menstruações, ao intercurso sexual, digestão, funcionamento intestinal, etc.
 
As queixas do Transtorno de Somatização freqüentemente levam o paciente a muitos exames médicos, radiográficos, tomográficos e mesmo a cirurgias exploratórias desnecessárias, até porque essas queixas são formuladas em termos dramáticos, são eloqüentes e exageradas ou, curiosamente, ao extremo contrário, ou seja, completamente indiferentes à sugerida gravidade do problema. Freqüentemente as pessoas portadoras do Transtorno de Somatização têm um histórico de hospitalizações e extensa trajetória médica, muitas vezes buscando tratamento com vários médicos ao mesmo tempo.
 
Concomitantemente, sintomas proeminentes de ansiedade e humor depressivo são muito comuns, podendo ser até a razão principal para o atendimento médico. Os transtornos Depressivo e de Pânico podem estar associados com muita freqüência.
 
Existem numerosos sintomas físicos e variados, contínuos e queixados no dia-a-dia que caracterizam mais a maneira desse paciente ser do que uma maneira nervosa dele estar. Assim sendo, os somatoformes são pacientes poliqueixosos, com sintomas sugestivos de muitos problemas de saúde, mas que não se confirmam pelos exames médicos habituais.
 
Os sintomas da somatização podem aparecer como quadros dolorosos incaracterísticos, queixas cardíacas e circulatórias que não se confirmam por exames especializados, distúrbios digestivos e respiratórios, enfim, por queixas que refletem alterações em qualquer sistema funcional, mas raramente se confirmam por exames clínicos ou de laboratório. Nota-se sempre, inclusive com reconhecimento pelo próprio paciente, de variação na intensidade das queixas conforme alterações emocionais, embora a maioria deles insista em discordar do ponto de vista médico que aponta para a possibilidade psíquica dos sintomas.
 
Nas características psicológicas associadas ao Distúrbio de Somatização encontramos com freqüência o humor depressivo e, em segundo lugar, o Transtorno Histriônico da Personalidade. Habitualmente os sintomas iniciam-se entre os 10 e 20 anos e, nas mulheres, é comum que problemas menstruais (Dismenorréia) sejam a primeira queixa.
 
Mesmo diante da suspeita do Transtorno de Somatização o médico deve, obrigatoriamente, excluir a existência de alguma doença orgânica real. Não deve ser negligenciada a possibilidade, mais que comum, dos pacientes somatizados clássicos portarem, simultaneamente, algum outro transtorno clínico orgânico. Desta forma, ressalta-se para o diagnóstico do Transtorno de Somatização puro a inexistência de alguma patologia orgânica real. Para o diagnóstico do Transtorno Somatização é importante que os sintomas causem sofrimento significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes. Depois deste procedimento clínico podemos observar uma extensa lista de sintomas possíveis de refletir uma somatização:
 
SINTOMAS DO TRANSTORNO DE SOMATIZAÇÃO
1 - vômitos
2 - palpitações
3 - dor abdominal
4 - dor torácica
5 - náuseas
6 - tonturas
7 - flatulência
8 - ardência nos órgãos genitais
9 - diarréia
10 - indiferença sexual
11 - intolerância alimentar
12 - dor durante o ato sexual
13 - dor nas extremidades
14 - impotência
15 - dor lombar
16 - dismenorréia
17 - dor articular
18 - outras queixas menstruais
19 - dor miccional
20 - vômitos durante a gravidez
21 - dor inespecífica
22 - falta de ar
 
A manifestação emocional somatizada não respeita a posição sócio-cultural do paciente, como podem suspeitar alguns, não guarda também relação com o nível intelectual, pois, como se sabe, a emoção é senhora e não serva da razão. O único fator capaz de atenuar as queixas é a capacidade da pessoa expressar melhor seus sentimentos verbalmente. Quanto maior a capacidade do indivíduo referir seu mal-estar emocional através de discurso sobre o que sente, como por exemplo, relatando sua angústia, sua frustração, depressão, falta de perspectiva, insegurança, negativismo, pessimismo, carência de carinho e coisas assim, menor será a chance de representar tudo isso através de palpitações, pontadas, dores, falta de ar, etc. 
 
Entre os próprios médicos ainda é muito forte a idéia de que o paciente somatizador tenta enganá-los ou procede de má-fé. Às vezes e intimamente, o médico se aborrece porque as queixas somatiformes não obedecerem o que ele aprendeu nos livros tradicionais de medicina e, tão diferentes assim eles passam a representar um desafio a seus conhecimentos científicos e fisiopatológicos.
 
O Transtorno Somatização é um transtorno crônico e flutuante mas raramente apresenta remissão ou cura completa. É raro passar um ano sem que o indivíduo busque algum atendimento médico, normalmente levado por queixas somáticas medicamente inexplicáveis. Os critérios de diagnóstico tipicamente são satisfeitos antes dos 25 anos, mas os sintomas iniciais freqüentemente estão presentes desde adolescência. Os sintomas sexuais freqüentemente estão associados com desajuste conjugal.
 
Transtorno de Conversão
O paciente conversivo, como os histéricos de um modo geral, é extremamente sugestionável, demonstrando com isso seu clássico infantilismo e falta de maturidade da personalidade. Normalmente os afetos e relações objectuais são bastante pueris nos histéricos, com predomínio da vida fantasiosa na tentativa de negar uma realidade frustrante e penosa.
 
A teatralidade dos histéricos é sempre marcante, ensaiando e interpretando papéis que acreditam adequados a eles. Por mais que lhe sejam dispensados carinhos a atenções, estes nunca são suficientes e insistentemente estão a reclamar que ninguém os entende. Ele não simula seus sintomas, não está enganando e não é caso de falcatrua. De fato o conversivo está sofrendo e percebendo subjetivamente seus sintomas.
 
Neste tipo de transtorno, sempre que o sintoma servir para o alívio de alguma emoção (medo, ansiedade, angústia, desespero, frustração, etc.), haverá um mecanismo chamado de Lucro Emocional Primário. Diz-se “primário” porque é dirigido ao benefício emocional da própria pessoa. Uma adolescente conversiva, por exemplo, diante de uma situação vivencial potencialmente ansiosa, como pode ser o caso de uma briga entre seus pais, recorre a uma síncope conversiva (desmaio). Com esse desmaio, certamente ela estará se afastando da situação traumática e se protegendo da ansiedade provocada pela briga dos pais.
 
Também um soldado com Transtorno Conversivo, diante da ansiedade produzida pelo conflito entre o medo do combate e a vergonha da fuga, poderá apresentar uma paralisia ou qualquer outra limitação neuromuscular; se fosse um deficiente físico, não teria de experimentar a ansiedade de saber-se um covarde já que, infelizmente, a natureza impediu sua participação no combate através de uma doença limitante de sua mobilidade. Nessa circunstância pode aparecer-lhe uma paralisia, por exemplo.
 
Num outro mecanismo psicodinâmico a pessoa conversiva obtém um Lucro Emocional Secundário, ou seja, um benefício junto aos espectadores. Ela conquista um suporte de aprovação, complacência ou compaixão do ambiente para com sua falha funcional ou para a evitação constrangedora da atividade que lhe é nociva. A mesma adolescente do exemplo acima, que manifestou uma síncope ao presenciar a briga de seus pais, despertará sentimentos de remorso nas pessoas responsáveis pela sua crise, juntamente com uma compaixão pelo seu estado deplorável e, inevitavelmente, receberá uma boa dose de carinho em seguida. 
 
 
CRITÉRIOS DE DIAGNÓSTICO PARA TRANSTORNOS CONVERSIVOS - DSM-IV
A. Um ou mais sintomas ou déficits afetando a função motora ou sensorial voluntária, que sugerem uma condição neurológica ou outra condição médica geral.
B. Fatores psicológicos são julgados como associados com o sintoma ou déficit, uma vez que o início ou a exacerbação do sintoma ou déficit é precedido por conflitos ou outros estressores.
C. O sintoma ou déficit não é intencionalmente produzido ou simulado (como no Transtorno Factício ou na Simulação).
D. O sintoma ou déficit não pode, após investigação apropriada, ser completamente explicado por uma condição médica geral, pelos efeitos diretos de uma substância ou por um comportamento ou experiência culturalmente sancionados.
E. O sintoma ou déficit causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo, ou indica avaliação médica.
F. O sintoma ou déficit não se limita a dor ou disfunção sexual, não ocorre exclusivamente durante o curso de um Transtorno de Somatização, nem é mais bem explicado por outro transtorno mental.
Especificar tipo de sintoma ou déficit:
Com Sintoma ou Déficit Motor
Com Sintoma ou Déficit Sensorial
Com Ataques ou Convulsões
Com Apresentação Mista
 
 
Transtorno Doloroso e Hipocondria
O diagnóstico de Transtorno Doloroso veio satisfazer a necessidade de classificar os pacientes com queixas dolorosas inconsistentes e de difícil entendimento médico, relacionadas a estados emocionais. De fato, é como se fosse uma somatização mais específica, ou seja, enquanto na somatização as queixas são muitas e variadas, no Transtorno Doloroso a dor costuma ser uma só.
 
Para o diagnóstico de Transtorno Doloroso a dor deve causar sofrimento significativo e algum prejuízo sócio-ocupacional, sendo suficientemente severa para indicar uma atenção médica. A dor pode perturbar severamente vários aspectos da vida diária, como por exemplo, no emprego ou na escola, assim como causar problemas de relacionamento, tais como desajuste conjugal e mudanças no estilo de vida (desemprego, isolamento social, problemas financeiros, etc.).
 
Esses pacientes costumam usar freqüentemente o sistema de saúde, transformar a dor em um foco importante de sua vida, usar exageradamente medicamentos analgésicos e antiinflamatórios. Não é raro, portanto, que tais pacientes desenvolvam dependência ou abuso de opióides e/ou benzodiazepínicos.
 
Os fatores psicológicos devem exercer um papel importante para esse diagnóstico, seja na gravidade, na exacerbação ou na manutenção da dor. Nunca é demais ressaltar que a dor não é voluntariamente produzida ou simulada, como culturalmente se acredita, e esse aspecto involuntário é que diferencia o Transtorno Doloroso da simulação. 
 
O longo itinerário médico das pessoas com Transtorno Doloroso deve-se à convicção que eles têm sobre a existência, em algum local, de um médico que tenha a "cura" para sua dor. Eles podem gastar tempo e dinheiro na busca de um árduo objetivo.
 
Muitíssimo semelhante é o Transtorno Hipocondríaco. Aqui existe uma preocupação, medo ou crença persistente de estar com algum transtorno somático grave e progressivo. De modo geral a atenção do paciente se concentra em um ou dois órgãos ou sistemas. Pode acontecer também dos pacientes manifestarem queixas somáticas persistentes ou preocupação duradoura com a aparência física. Sensações e sinais físicos normais ou triviais são freqüentemente interpretados pelo sujeito como anormais ou perturbadores.
 
De um modo geral, tanto o Transtorno Doloroso quanto o Hipocondríaco, parecem estar associados com outros transtornos emocionais, especialmente a Transtornos Depressivos e de Ansiedade. Pacientes cuja dor está associada à severa Depressão e aqueles cuja dor se relaciona a uma doença terminal, mais notadamente câncer, parecem estar em risco aumentado de suicídio.
 
Na prática, em pesquisa realizada no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (1995), houve prevalência de 73% de transtornos de ansiedade e 37% de transtornos depressivos em 51 pacientes portadores de queixas difusas. Esses dados contribuem para estruturar a idéia de que a somatização também possa ser uma forma de expressão dos transtornos afetivos ou de ansiedade. As sólidas constatações da associação somatização-depressão têm levado alguns autores a acreditar que os quadros somáticos possam ser uma forma da Depressão se apresentar em algumas pessoas.
 
Transtorno Neurovegetativo ou Psicossomático
No Transtorno Neurovegetativo o paciente atribui seus sintomas a um transtorno somático de um órgão ou sistema controlado pelo Sistema Nervoso Autônomo (ou neurovegetativo). A diferença entre o Transtorno Neurovegetativo e o Transtorno de Somatização é que nesse último existem as queixas, mas não existem alterações clinicamente constatáveis, como por exemplo, existe a falta de ar sem o broncoespasmo ou a sensação de lipotímia sem queda da pressão arterial.
 
Normalmente as queixas neurovegetativas dizem respeito de um funcionamento alterado, a um hiper ou hipofuncionamento, como por exemplo, palpitações, transpiração, ondas de calor ou de frio, tremores, assim como por expressão de medo e perturbação com a possibilidade de uma doença física.
 
No sistema cardiovascular, por exemplo, pode haver aceleração da freqüência sem nenhuma correspondência clínica. Para ilustrar melhor as diferenças de classificação podemos dizer que, se fosse uma somatização no sistema cardiovascular, teríamos uma palpitação sem aumento da freqüência ou uma dor sem alterações orgânicas. Se fosse um Transtorno Psicossomático do sistema cardiovascular teríamos uma extrassistolia de fundo emocional eletrocardiologicamente constatável.
 
No sistema gastrintestinal o Transtorno Psicossomático pode se manifestar como aerofagia, flatulência, cólon irritável, diarréia, dispepsia, flatulência, piloroespasmo, úlcera digestiva, a retocolite ulcerativa, etc. No sistema respiratório costuma haver hiperventilação, suspiração, soluços, tosse persistente asma brônquica (com broncoespasmo constatável). Na parte urogenital os sintomas neurovegetativos dizem respeito à disúria, polaciúria, nictúria, urgência miccional, etc.
 



para referência:
Ballone GJ - Somatizações e Quadros Dolorosos, in. PsiqWeb, disponível em www.psiqweb.med.br, revisto em 2011.
Ballone GJDa Emoção à Lesão, Manole, 2ª. Ed., 2006
Ballone GJPsiqWeb www.psiqweb.med.br

sábado, 18 de janeiro de 2014

"As drogas não são o problema": entrevista com o neurocientista Carl Hart.

 


DemocracyNow.com
Columbia University

 
A Carta Maior traduziu trecho da entrevista que o neurocientista Carl Hart concedeu ao site Democracy Now!. Atualmente, o debate da questão das drogas no Brasil muitas vezes foca a internação compulsória e o acirramento das leis anti-drogas como as medidas necessárias a serem tomadas para tentar solucionar o problema da dependência química. O Dr. Carl Hart traz uma visão totalmente diferente e inovadora para os padrões científicos amplamente difundidos na grande mídia.
 
 
 
Entrevista do Dr. Carl Hart a Amy Goodman, do DemocracyNow!
 
O Dr. Carl Hart é o primeiro cientista afro-americano titular na Universidade de Columbia, onde é professor associado dos departamentos de psicologia e psiquiatria. Ele também é membro do Conselho em Assuntos de Abuso de Drogas e pesquisador da Divisão de Abuso de Substâncias do Instituto de Psiquiatria de Nova York. No entanto, muito antes de ter entrado nos  salões consagrados da Ivy League, Carl Hart adiquiriu conhecimento de primeira-mão sobre o uso de drogas nos bairros mais perigosos de Miami, onde cresceu. Ele publicou recentemente o seu livro High Price: A Neuroscientist’s Journey of Self-Discovery That Challenges Everything You Know About Drugs and Society. Neste livro, ele relembra sua jornada de descobertas e como escapou de uma vida de crimes e não se tornou um dependente químico como aqueles que ele hoje estuda.
 
Amy Goodman: Vamos começar falando sobre de onde você vem.
 
Dr. Carl Hart: Bom, como dizem, eu vim do gueto. E, quando pensamos nestas comunidades, logo pensamos naquela imagem de lugares devastados pelo abuso de drogas: eu acreditei nessa narrativa por muito tempo. Na verdade, eu tenho estudado as drogas há 23 anos; e por 20 acreditei que as drogas eram o problema das comunidades. Mas quando eu comecei a olhar com mais cuidado, quando comecei a olhar as evidências de maneira mais cuidadosa, ficou claro para mim que as drogas não eram o problema. O problema era a pobreza, a política anti-drogas, a falta de empregos - um leque variado de coisas. E as drogas eram apenas um componente que não contribuía tanto quanto os outros que citei anteriormente.
 
Amy Goodman: Então, fale-nos dos resultados destes estudos que você vem publicando há alguns anos nos maiores jornais científicos.
 
Dr. Carl Hart: Bom, uma das coisas que me chocaram quando eu comecei a entender o que estava acontecendo foi o fato de ter descoberto que de 80% a 90% das pessoas que usam drogas como o crack, a heroína, metanfetaminas, maconha, não são viciadas. Eu pensei, “espera aí. Eu pensava que uma vez que se usava estas drogas, todos se tornavam viciados, e essa era a causa dos problemas sociais.” Outra coisa que eu descobri foi que se dermos alternativas às pessoas - como empregos - elas não abusarão das drogas como fazem. Descobri isso no laboratório com humanos assim como com animais.
 
Amy Goodman: o que você quer dizer? Você está dizendo que o crack não é tão viciante quanto todos dizem?
 
Dr. Carl Hart: Bom, temos um belo exemplo agora: o prefeito de Toronto, Rob Ford. Ele usou crack e fez seu trabalho normalmente. Deixando de lado o que pensamos sobre ele ou suas políticas, ele foi ao trabalho todos os dias. Ele fez seu trabalho. A mesma coisa aconteceu com Marion Barry. Ele foi ao trabalho todos os dias. Na verdade, ele o fez tão bem na opinião das pessoas de Washington que ele foi votado mesmo depois de ter sido condenado pelo uso de crack. E assim é a maioria dos usuários de crack. Assim como qualquer outra droga, a maior parte das pessoas o faz sem outros problemas.
 
Amy Goodman: Compare com o álcool.
 
Dr. Carl Hart: Bom, quando pensamos no álcool, cerca de 10% a 15% dos usuários são viciados ou se encaixam em critérios do alcoolismo; para o crack, cerca de 15% a 20% - quase a mesma coisa se tratando de números. E nós sabemos disso cientificamente já faz 40 anos. Mas não dizemos esse tipo de coisa ao público
 
Amy Goodman: Então, você está dizendo que alguém que toma vinho todas as noites no jantar não seria considerado viciado da mesma forma que a pessoa que usa crack é?
 
Dr. Carl Hart: Exatamente. Então, o crítério, para mim, para julgar se alguém é ou não viciado é o de se esta pessoa tem problemas nas suas funções psicossociais. Ela vai ao trabalho? Ela lida com suas responsabilidades? O ela deixa de lado suas atividade? E quando pensamos em drogas como o alcool, as pessoas podem beber todos os dias e ainda assim lidar com todas suas responsabilidades. O mesmo se dá com usuários de crack. O mesmo se dá com usuários de cocaína. O mesmo com maconha. Pense da seguinte forma: os três últimos presidentes recentes usaram drogas ilícitas, e todos eles cumpriram com suas responsabilidades. Eles alcançaram os níveis mais altos de poder. E teríamos orgulho deles se fossem nossos filhos, apesar do fato de terem usado drogas ilegais.
 
Amy Goodman: Mas todos eles dizem que não usavam de maneira regular...
 
Dr. Carl Hart: Bom, quando nós dizemos “de maneira regular,” por exemplo, eu uso álcool assim. Eu posso beber uma vez por mês, duas, quatro vezes. Pode variar, mas isto é, certamente, regular. E então eu penso que, quando as pessoas dizem regular, elas pensam na verdade em abusar. E quando as pessoas abusam várias vezes ao dia isso vai atrapalhar algumas de suas funções psicossociais. Mas, isto se dá com um número pequeno de pessoas. Só algumas têm um comportamento como esse. E eu asseguro que se alguém tem esse tipo de comportamento, este não é seu único problema. Ela tem muitos outros.
 
Amy Goodman: Então, por que algumas pessoas se viciam em crack e outras não?
 
Dr. Carl Hart: Esta é uma ótima questão. As pessoas se viciam por muitas razões. Algumas possuem outras doenças psiquiátricas que contribuem com seu vício em drogas. Outras ficam viciadas porque esta é a melhor opção disponível a elas; outras porque têm poucas capacidades limitadas para assumir responsabilidades. As pessoas se tornam viciadas por um leque muito diverso de razões. Se nós estivéssemos de fato preocupados com o vício em drogas, nós estaríamos tentando entender precisamente o porquê as pessoas se tornam dependentes. Mas não é nisso que estamos interessados. Nesta sociedade nós nos interessamos em maldizer as drogas. Dessa forma, não temos de lidar com os problemas sociais mais complexos que transformam as pessoas em dependentes químicos.
 
Amy Goodman: Fale sobre neurociência.
 
Dr. Carl Hart: Essa é uma ótima questão. Em algum nível, em termos de abuso de drogas, a neurociência se tornou um tipo de "vodu", apesar de ser meu tipo favorito de ciência. As pessoas acham que a neurociência se resume em imagens bonitinhas mostradas aos pacientes e suas reações, como se essas refletissem seu comportamento. Não reflete. Partindo dessa perspectiva, isso me preocupa muito. Mas por um outro lado, eu me maravilho com o que aprendemos sobre o funcionamento do cérebro. Não estamos nem perto de poder explicar o vício em drogas com a neurociência, mas isso não significa que não deveríamos tentar descobrir o que se passa no nossa cabeça.
 
Amy Goodman: Você tem feito testes em humanos. Como esses experimentos se comparam com os feitos em animais e nos ratos?
 
Dr. Carl Hart: Depende da pergunta que você faz. Quando pensamos na dopamina, e você tem ouvido falar bastante desse neurotransmissor, está nos cérebros dos ratos e dos humanos. Se você quer saber o que a cocaína faz com a dopamina, você pode usar o cérebro de um rato para descobrir isso, assim como o de um humano. Mas quando começamos a falar sobre vício em drogas e suas complexidades, o aspecto muda pois esse vício é uma doença dos humanos, não dos ratos. O que você pode fazer nos ratos é, talvez, formular um componente ou até dois da dependência química, mas temos de entender que isso tem suas limitações.
 
Amy Goodman: Doutor, você pode falar da sua jornada de vida? Como acabou sendo o primeiro cientista Afro-Americano a ser titulado na Universidade de Columbia?
 
Dr. Carl Hart: Essa é uma questão que a sociedade deveria responder. Eu digo, quando pensamos nos números de Afro-Americanos que estão no campo da neurociência e porque são baixos, esse é um assunto que a sociedade ainda não analisou. E tem relação com o papo sobre maconha. Você mostrou algo sobre Kennedy mais cedo. Esse tipo de pessoa me enoja, sério, quando pensamos sobre o papel do racismo na repressão às drogas, e essas pessoas não pensam nisso?
 
Amy Goodman: O ex-membro do Congresso, Patrick Kennedy, co-fundou o grupo Alternativas Inteligentes para a Maconha, sendo contrário à legalização, baseando-se no argumento de que poderia ser prejudicial às minorias do país. O que você pensa sobre isso?
 
DR. Carl Hart: Se ele realmente estivesse preocupado com as comunidades compostas por minorias, ele deveria fazer menção a este fato: hoje, se mantivermos a mesma aplicação de políticas em relação às drogas, um a cada três afro-americanos nascidos hoje passariam um tempo na cadeia. Se ele estivesse realmente preocupado, ele iria entender que homens afro-americanos representam 6% da populaçao e 35% da população carcerária. Isso é abominável.
 
E quando nós pensamos sobre os perigos da maconha de uma perspectiva científica, eles são equivalentes ao do álcool. Agora, eu não quero ficar falando sobre os perigos do álcool ou acabar com sua reputação, pois eu penso que toda sociedade deveria ter drogas. Nós precisamos delas, e toda sociedade sempre os utilizou.
 
AMY GOODMAN: Por que nós precisamos de drogas?
 
Dr. Carl Hart: Deixa as pessoas mais interessantes, diminui a ansiedade. O álcool é associado com um grande leque de efeitos benéficos à saúde - diminui a chance de doença no coração, de enfartos. O mesmo pode ser dito da maconha - ajuda as pessoas a dormir melhor, pode combater a ansiedade.
 
Pensemos em analogia com os automóveis. Nos anos 1950, o número de acidentes de carro eram relativamente altos. Foram instituídas medidas: cinto de segurança, limite de velocidade etc. Os acidentes diminuíram sensivelmente. Se as pessoas estão preocupados com os perigos da maconha, nós podemos ensina-las como usar de forma mais segura.
 
Amy Goodman: Como você saiu de uma vizinhança violenta em Miami para a Universidade de Columbia ?
 
Dr. Carl Hart: Nós tinhamos um Estado de bem-estar social, que servia como uma rede de segurança para famílias como a minha. Eu tenho sete irmãos e hoje somos todos contribuintes, mas nós fomos criados no Estado de bem-estar. Sem isso, eu não estaria aqui. O governo tinha programas em ciência para as minorias, o que me ajudou a conseguir um Ph.D. Além disso, tive muitos mentores: negros, brancos, mulheres. E uma avó forte e cinco irmãs mais velhas que me ajudaram muito.
 
Amy Goodman: Você inicia seu livro falando sobre um experimento humano que você fez recentemente. Explique.
 
Dr. Carl Hart: Esse experimento foi pubicado no New York Times recentemente. Eu pesquisei a literatura animal, a qual mostra que quando você permite que um animal auto-administre cocaína pressionando uma alavanca que a injeta em suas veias, ele o fará até morrer. No entanto, após um estudo mais aprofundado da literatura, descobri que se você oferece um parceiro sexual a esse animal, ou algo doce para comer, eles dispensam a droga. Eles dão atenção a essas outras atividades. Então, eu achei que seria interessante descobrir se viciados em crack teriam seus comportamentos em relação à droga alterados se lhes fossem oferecidas alternativas. Nesse experimento, oferecíamos apenas 5 dólares. E é possível ver que eles aceitam o dinheiro em mais da metade das ocasiões.
 
Amy Goodman: Explique essa cena.
 
Dr. Carl Hart: Você leva uma pessoa para o laboratório. Eles se sentam de frente para um computador para indicar suas escolhas. Do lado esquerdo, a droga; do direito, o dinheiro. E eles têm cinco oportunidades, separadas por 15 minutos, que é o intervalo de tempo que uma enfermeira entra na sala e pede para que eles indiquem a opção escolhida.
 
Amy Goodman: Quem são esses sujeitos?
 
Dr. Carl Hart: Esses participantes são pessoas que atendem ao critério do vício em crack: indivíduos que usam crack por volta de cinco dias por semana. Eles gastam por volta de 200 a 300 dólares por semana com a droga. E nós passamos todos os requisitos éticos para que eles possam vir ao laboratório. Eles passam por exames físicos e são monitorados por uma enfermeira e um médico.
 
Assim que eles indicam sua escolha para a enfermeira, ela as traz para nós. Quando você oferece cinco dólares, a escolha é dividida. Mas se você aumenta a oferta para 20 dólares, eles sempre escolhm o dinheiro, nunca a droga. E muitas vezes as pessoas dizem: "Eles selecionam o dinheiro para comprar mais droga". Uma coisa que normalmente se diz sobre usuários de crack é que eles não conseguem fazer escolhas racionais uma vez que possuem a opção de escolher a droga. Mas eu sei que a maioria dessas pessoas nesses estudos não simplesmente pegou o dinheiro para comprar drogas, até porque pagamos algumas de suas dívidas. Eles guardaram o dinheiro que receberam e nos pediram para pagar certas contas.
 
Amy Goodman: Você ficou surpreso com suas descobertas?
 
Dr. Carl Hart Eu fiquei absolutamente surpreso quando comecei a coletar esses dados em 1999, 2000, pois eu havia sido levado a pensar, assim como o público americano, que usuários de crack iriam sempre escolher por mais crack. E isso é um mito.
 
Amy Goodman: Finalmente, Dr. Carl Hart, qual sua avaliação da forma como a mídia lida com as questões relacionadas às drogas?
 
Dr. Carl Hart: Não é apenas a mídia. Cientistas também contribuem para a desinformação, em parte porque têm medo de que qualquer coisa que digam seja interpretada como permissiva, então dizem muito pouco. Aparentemente, o principal objetivo dos cientistas não é a comunicação, mas sim não estar errado. E assim nós perdemos uma oportunidade de educar o público americano sobre como diminuir prejuízos relacionados às drogas.
 
Amy Goodman: O que você diz para os jovens a respeito de drogas e álcool?
 
Dr. Carl Hart: Eu penso nessas coisas da mesma forma que eu penso sobre outros comportamentos potencialmente perigosos, como dirigir, por exemplo. Eu faço questão de educar meus filhos para que dirijam de forma segura, para fazerem sexo seguro. O mesmo vale para as drogas. Eu faço questão de que eles entendam os potenciais efeitos positivos, negativos, e como evitar os negativos.
 
 
Tradução de Isabela Palhares, Roberto Brilhante, e Rodrigo Giordano