sábado, 28 de junho de 2014

Liberou Geral, pois "Quem tá preso tem pressa" Por Luiz Holanda

Liberou Geral, pois “Quem tá preso tem pressa”. Luiz Holanda A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal-STF, por unanimidade, decidiu pela devolução dos processos relativos à Operação Lava Jato (que apura a corrupção institucionalizada na Petrobrás), à Justiça do Paraná. Com essa decisão, todos os atos relacionados às investigações feitas pela Polícia Federal-PF, assim como os praticados pelo ínclito juiz Sérgio Moro, foram validados. A partir de agora, somente as investigações envolvendo parlamentares federais ficarão sob a tutela do STF. Não havia necessidade dessa formalidade, a não ser para justificar a decisão tomada pelo ministro Teori Zavascki de libertar apenas o ex-diretor da Petrobrás, Paulo Roberto Costa. Ao julgarem a questão de ordem apresentada perlo próprio Zavascki, os demais ministros tentaram consertar o erro do relator, que não tinha como justificar a decisão de levar para o Supremo um processo em que, até aquele momento, nenhum parlamentar federal estava sendo investigado. Mesmo assim, sua excelência encontrou um jeito de paralisar as investigações aplicando a regra constitucional do foro privilegiado, que tantos favores vem prestando aos ladrões da coisa pública. Agora a vez é do seu colega, Luís Roberto Barroso, o novo relator dos processos do mensalão. Esse ministro, mesmo não tendo participado do julgamento naquela ocasião, sempre considerou excessivamente rigorosas as penas aplicadas aos réus. Segundo ele, as decisões do Supremo foram tomadas “fora da curva”. Logo após sua nomeação veio a público que o seu antigo escritório recebeu R$ dois milhões por uma consultoria jurídica na celebração do compromisso arbitral com relação aos pleitos do CETUC no âmbito do contrato SUP2. 0.5.2000. Mesmo não se fazendo acusações levianas (não há prova de prática de ato ilícito) não deixam de existir na mente popular estranhas dúvidas pela coincidência. Tão logo foi sorteado relator, Barroso afirmou que os processos do mensalão entrarão em pauta de julgamento ainda nesta semana, pois “Quem tá preso tem pressa”. Para ele, ser escolhido relator foi um “prêmio”, pois agora terá a oportunidade de colocar o STF dentro da curva. Mesmo que não tenha tido qualquer intenção contrária ao histórico julgamento comandado pelo ministro Joaquim Barbosa, suas opiniões dão a entender que pessoas até então consideradas acima da lei não podem deixar de ser beneficiadas pelo Supremo, considerado pelo povo o principal ancoradouro dos marginais no exercício das funções públicas. A erudição empregada pelo ministro, assim como seus argumentos jurídicos farão o STF retornar à sua tradição de assegurar que os nobres permaneçam inatingíveis pela justiça da plebe, que somente pune os pobres, pois esses não têm pressa na libertação. Juntamente com os colegas que integram a maioria absoluta que o PT tem hoje no colegiado, Barroso deverá determinar que os presos do mensalão trabalhem durante o dia, fora das grades. O Brasil conta, atualmente, com 512 mil presos. Depois dos Estados Unidos e da China, é a terceira maior população carcerária do mundo, sendo que, desse total, 225 mil são presos provisórios, sem nenhuma pressa para serem libertados. De acordo com a Lei de Execução Penal, a concessão do trabalho externo deve seguir requisitos objetivos e subjetivos. A parte objetiva exige que o condenado cumpra um sexto da pena para ter direito ao benefício. A subjetiva exige apenas bom comportamento e aptidão para o trabalho. O Superior Tribunal de Justiça-STJ, flexibilizando a interpretação literal da lei, entende que os juízes das Varas de Execução Penal podem autorizar o trabalho externo aos presos que não cumpram um sexto da pena. Como é o próprio tribunal que desrespeita a lei, certamente prevalecerá a interpretação libertadora. Mesmo assim, a infelicidade do ministro ao parafrasear o sociólogo Herbert José de Souza, o Betinho - autor da frase “Quem tem fome tem pressa”, foi total. A analogia feita pelo “novato” apenas confirma a tradicional impunidade dos poderosos na mais alta corte de justiça do país. Sua excelência esquece que milhares de encarcerados, famintos e sem esperança, também esperam pela agilidade da justiça, que, em relação a eles, não tem nenhuma pressa.


(Luiz Holanda)

terça-feira, 24 de junho de 2014

Beethoven - Für Elise (60 Minutes Version)

Sequestro de animais domésticos


É cada vez mais frequente a divulgação de notícias envolvendo o "sequestro" de animais domésticos em diversas localidades do Brasil. Após uma rápida consulta na internet foi possível confirmar a proliferação desse tipo de crime em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia. Até o jornal Folha de São Paulo chegou a informar que um programa de televisão discutiria o sequestro de cães na região dos Jardins em São Paulo.
As notícias confirmam essa nova prática criminosa envolvendo o "sequestro" de cachorros e gatos, em que os donos desses animais são surpreendidos com exigências de altos valores como preço do resgate e não mais simples pedidos de recompensa. Essa mudança no alvo dos criminosos talvez reflita o status que os bichos ganharam nas famílias, sendo considerados por muitos como um membro da família.
No entanto, esses fatos noticiados se referem ao crime de sequestro? Para fins meramente didáticos, o seguinte exemplo será utilizado: um cão é subtraído de uma residência à noite e horas depois os donos do animal recebem uma ligação em que é exigido o pagamento de um valor em dinheiro como condição do resgate.
No presente caso, trata-se de um crime de sequestro?
Por óbvio que NÃO.
O crime tipificado no art. 159 do Código Penal define como extorsão mediante sequestro o fato de "sequestrar pessoacom o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem como condição ou preço do resgate".
Portanto, o sujeito passivo deste delito pode ser qualquer pessoa, mas nunca um animal. O exemplo utilizado pode configurar um crime de furto majorado pelo repouso noturno (art. 155, §1° do CP), pois o animal pode ser considerado como uma coisa alheia móvel, conforme ensina Damásio:
"Podem também ser furtados os minerais do solo e os semoventes".
Até aqui nenhuma dificuldade, pois basta lembrar que existe o crime de abigeato (furto de gado), o que facilita essa conclusão.
Em que pese o erro cometido pelos jornais, a notícia é interessante do ponto de vista acadêmico, então vamos aproveitar o exemplo já utilizado e dificultar as coisas. Levando-se em consideração o exemplo anterior, o que aconteceria se os meliantes utilizassem grave ameaça ou violência?
Nessa hipótese, a grave ameaça pode causar um constrangimento ao dono do animal, levando-o a fazer, tolerar ou omitir alguma coisa. Assim sendo, resta configurado, em tese, o crime de extorsão:
"Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa".
Cumpre salientar que a perda de um animal que é considerado como um filho por alguns será um sacrifício muito superior do que o prejuízo patrimonial correspondente à vantagem exigida pelo extorsionário, podendo afetar a tranquilidade pessoal e familiar, bem como a integridade física da vítima (não é incomum relatos de grande sofrimento pela perda de um animal, inclusive depressão e outras doenças).
Por esse motivo, concluímos que o exemplo citado narra, em tese, um crime de extorsão, na medida em que o dono do animal é constrangido a fazer algo (prestar uma vantagem econômica indevida), mediante a grave ameaça de perder o seu animal de estimação.Ademais, o crime de extorsão se concretiza no constrangimento físico (violência) ou psíquico (ameaça) da pessoa, qualquer que tenha sido o meio empregado.
Por este motivo, pouco importa a qualidade do meio, bastando que seja suficiente para constranger a vítima a ponto desta prestar uma vantagem econômica indevida a outrem.
Em outras palavras, se o meio empregado é irrelevante, pode ser feita com a utilização de um animal doméstico. Nas palavras de Cezar Roberto Bittencourt, "os bens ou interesses que constituem objeto da ameaça ou da violência praticadas pelo agente são aqueles cujo sacrifício implique, para seu titular, um mal maior que o prejuízo patrimonial decorrente da indevida exigida, como a vida, a integridade física, a honra, a reputação, o renome profissional ou artístico, o crédito comercial, o equilíbrio financeiro, a tranquilidade pessoal ou familiar, a paz domiciliar, a propriedade de uma empresa, entre outros".
Portanto, as notícias que estão sendo veiculadas como sequestro de animais domésticos são inverídicas, pois não é possível a prática de tal crime contra um animal, conforme aduzido acima.
No entanto, foi demonstrado mediante a utilização de um exemplo hipotético que é possível a configuração do crime de extorsão, na medida em que o dono do animal é constrangido a fazer algo (prestar a outrem uma indevida vantagem econômica), mediante a grave ameaça de perder o seu animal de estimação.
Assim sendo, cuide bem de seu animal de estimação para não ser vítima de um extorsinonário.


Leia mais: http://jus.com.br/artigos/14328/sequestro-de-animais-domesticos#ixzz35ZPoNAU0

segunda-feira, 23 de junho de 2014

As cuequinhas da menina



Só vemos o que queremos ver. Desviar o olhar é fácil
A Natureza, quando nos deu os cinco sentidos, mostrou uma generosidade quase plena. De uma forma ou de outra, conseguimos cheirar, olhar, tocar e provar apenas o que queremos. Só a audição ficou de fora do nosso controlo: é impossível fechar os ouvidos ou ignorar um som estridente. A solução de espalmar as mãos nas orelhas tem as suas limitações.
Como nunca é demais recordar o que se sabe (porque o que não se sabe não se recorda, aprende-se), aqui ficam alguns exemplos de como controlar os nossos sentidos face a algo indesejável:
. Sente tonturas por causa do forte odor corporal da pessoa ao seu lado no elevador? Feche as narinas apertando o nariz entre o indicador e o polegar. Não é muito subtil, mas a prazo, acredite, está a fazer um favor ao sujeito que mostra graves problemas de higiene pessoal.
. O sabor agoniante dessa primeira garfada dá-lhe vómitos? Pare imediatamente de comer. É provável que a razão para o bife estar esverdeado não tenha nada a ver com molho de pimentos. Espreite lá a ementa e confirme que a única coisa verde é o gelado de menta.
. Acaba de descobrir urtigas na beira da estrada? Parabéns, mas não lhes faça festas. Por baixo da sua amigável aparência de hortelã fresquinha dorme um pequeno monstro. Repare: não precisa de fugir. As urtigas não correm atrás de si. Basta não lhes tocar.
. Apercebe-se (e aqui vou atirar particularmente ao calhas) que uma menina de 12 anos, vestida com uma minissaia, tem as cuequinhas à mostra na aula? Não se incomode, acontece. Desvie o olhar e continue a dar a matéria.
Este exemplo é complexo e precisa de mais atenção. Digamos que a visão das cuequinhas da menina de 12 anos não lhe sai da cabeça e o incomoda ao ponto de se desconcentrar irrevogavelmente. Ou não consegue parar de olhar. Neste caso, tem duas opções:
. Ir a correr avisar a directora da escola que aquele pedaço de tecido impede o normal funcionamento das aulas e pedir-lhe para mudar os regulamentos da escola, de maneira a não tornar a passar por tal provação.
. Abrir as Páginas Amarelas, procurar em Clínicas de Psiquiatria e ligar o primeiro número que encontra.
As duas hipóteses não são mutuamente exclusivas.
Bem, está na hora de mudar de assunto. Parece que um professor de uma Escola Básica do 2º e 3º Ciclo do Pinhal Novo se foi queixar de uma situação desagradável à dirigente do Conselho Executivo. "Sentiu-se incomodado por conseguir ver as cuequinhas de uma menina, devido à minissaia muito curta que ela trazia vestida", descreveu a presidente, Natividade Azeredo. Depois disto, os regulamentos sofreram uma emenda para proibir decotes demasiado grandes e saias demasiado pequenas. "Enquanto cá estiver, irei transmitir aos meus alunos valores e princípios", justificou.
Entre as suas transmissões aos alunos, terá transmitido alguma coisa ao pobre professor que, coitado, se sentiu tão incomodado por ver as cuequinhas de uma menina que não viu outra saída senão pedir ajuda à presidente?
A directora que dirige professores paralisáveis pelas simples cuequinhas de uma menina de minissaia tem mais com que se preocupar do que a indumentária dos alunos. O problema de muita gente que, como a directora, gosta de transmitir valores e princípios não são as intenções. O problema é a cegueira parcial. É ver só o que se quer ver.
Essa dádiva da Natureza que nos permite olhar para o outro lado é um pau de dois bicos.


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Desde que rime, é poesia



"O vento sopra doido e o que foido" e outras letras de canções
A música é um eficaz disfarce de limitações poéticas. Quando vamos no carro a cantarolar uma música que passa na rádio, raramente pensamos no significado das letras. Apenas repetimos as palavras que ouvimos sem dar grande atenção à mensagem que o artista tenta transmitir. Talvez porque estamos extasiados com a voz melodiosa do cantor. Ou com a nossa. Mas, sem música, o crime perfeito deixa de ser perfeito: de repente, a letra da canção perde o aparente bom gosto. E o sentido. Aqui ficam alguns exemplos de candidatos a Camões-com-guitarra-e-bateria-de-fundo:
E se partires de manhã
Deixa a sombra e o chão
Esta noite eu e tu
Somos a palma e a mão
(A Palma e a Mão, João Pedro Pais)
Repare-se na mestria métrica (artisticamente ignorada, coisa que exige coragem por parte do autor), mas, sobretudo, tente-se descortinar o que o João Pedro quer dizer com isto. Um é a palma e o outro é a mão? Mas a mão inclui a palma... E os dedos também, já agora... Quer isto dizer que um dos protagonistas é mais do que o outro? Ou significa que são indissociáveis, de uma forma que deve fazer todo o sentido na cabeça do João Pedro? Mas neste caso levanta-se outra questão, bem mais interessante: será que uma mão que perde os dedos ainda pode ser chamada de mão ou passará a ser apenas uma palma? 
Deixemos o Poeta João Pedro e passemos ao Poeta André.
Gosto de ti desde aqui até à lua
Gosto de ti desde a lua até aqui
Gosto de ti simplesmente porque gosto
E é tão bom viver assim
(Adivinha o Quanto Gosto de Ti, André Sardet)
Fico extasiado com a implícita sinceridade do André a admitir, sem vergonhas, a sua óbvia falta de ideias, ao dizer "gosto de ti simplesmente porque gosto". Imagino-o sentado no sofá da sala de estar, de guitarra ao colo, a cantar para a filha "Gosto de ti desde aqui até à lua, gosto de ti desde a lua até aqui...". Entretanto hesita; pára de tocar e começa a puxar pela cabeça: "Mas gosto de ti porquê, filha? Eu sei lá... Estas coisas não se explicam."; "Então não expliques, papá."; "Boa ideia! É mesmo isso! Porque é que me hei-de dar ao trabalho? Gosto de ti simplesmente porque gosto, e é tão bom viver assim. Rima? Rima! Siga para bingo." 
Um advérbio de modo, seja ele qual for, fica sempre bem numa canção. Antes que a cabeça comece a doer, passemos ao último exemplo.
Mas nisto o vento sopra doido
E o que foido
Corpo num turbilhão
(O Sopro do Coração, Clã)
Podem tentar convencer-me de que a Manuela Azevedo quer dizer "e o que foi do corpo num turbilhão". Mas macacos me mordam se ela não diz "foido". 
É preciso é rimar. A poesia que se foida.


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Um apelo ao ateísmo



Pelo sim pelo não, é melhor não acreditar em deus
As cinco pessoas que morreram abalroadas por um comboio em Baião iam a Fátima. Mas ai de quem apontar a incongruência entre a bondade de um suposto deus e o sangrento destino provocado pela tentativa de lhe prestar vassalagem. Não, esta é só mais uma provação, um teste à fé, dirão os fanáticos do costume. Afinal, se a fé não tivesse minas no caminho, qualquer um podia ser religioso, que não custava nada.
(Na verdade, não vejo que seja incoerente morrer-se durante uma viagem religiosa. Ninguém morre por causa disso, da mesma forma que ninguém é salvo por causa disso. Morre-se numa passagem de nível a caminho de Fátima pelo mesmo motivo que se morre numa passagem de nível a caminho do Algarve: porque um comboio vai a passar naquele momento.)
É nestas alturas que volto a lembrar-me do que devia ser claro para toda a gente: objectivamente, há tantas razões para acreditar em deus como no pai-natal, em unicórnios ou na fada-dos-dentinhos (em todos os casos, alguém se lembrou de inventar umas personagens e de escrever uma história à volta delas). Aliás, até é mais seguro acreditar-se nestas personagens - injustamente desacreditadas - do que ser-se religioso. Pelo menos nunca ouvi falar de ninguém assassinado por um fanático crente no pai-natal. Ou de alguém morto num atentado terrorista perpetrado em nome de um unicórnio. Ou esmagado por um comboio a meio da viagem para ver umas imagens em porcelana da fada-dos-dentinhos.
 
PS: A ambulância que transportava dois dos sobreviventes teve um acidente a caminho do hospital, a menos de 500 metros do destino. Se fosse crente, diria que alguém lá em cima não gosta destas pessoas.


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A Bíblia é um livro chato


A Bíblia é um livro chato

E tem mais sangue que um filme do Tarantino
A liberdade de expressão há-de ter sempre um limite: a religião. É assim quando alguém diz umas verdades sobre o Corão e é assim quando alguém diz umas verdades sobre a Bíblia. Claro que Saramago não foi alvo de uma fatwa e, em princípio, não precisará de um batalhão de guarda-costas, como Rushdie. Mas a História prova-nos que a Igreja Católica evoluiu à força. Não deixou de queimar gente na fogueira por vontade própria ou por ser moralmente superior ao Islão, mas sim porque foi posta no seu lugar, quando perdeu poder com o (re)nascimento dos Estados laicos - coisa que ainda não aconteceu no mundo muçulmano. Não, não me convencem. Se a Igreja ainda tivesse uma fracção do poder que tinha há 200 anos, Saramago não se safava apenas com umas bocas imbecis a sugerirem que entregue o passaporte português.
(Sabiam que a inquisição espanhola durou até 1834? Já rolavam comboios em Inglaterra e nos EUA nessa altura...)
Vamos então à Bíblia: Saramago disse que estava cheio de episódios cruéis e cenas de carnificina. Factualmente, não mentiu e só quem não leu pode dizer o contrário. Eu li.
(Aliás, ter lido a Bíblia foi um dos mais importantes passos que dei na direcção do meu ateísmo. E estou convencido de que muitos dos que se intitulam orgulhosamente católicos só o fazem porque nunca se deram ao trabalho de a ler. Os inquéritos mostram que nove em cada dez portugueses nunca o fizeram, o que para um país com - supostamente - mais de 90% de católicos me parece pouco.)
O Velho Testamento apresenta-nos um deus odioso, macabro, que exige sacrifícios de animais a torto e a direito, que chacina multidões e primogénitos com um estalar de dedos, que se impõe pelo medo e pelo terror. E não me venham com a eterna desculpa das parábolas e das metáforas. Tretas. Com argumentos desses, é possível ver bondade até nos discursos do Hitler.
A Bíblia não é sagrada, é mundana. Uma boa parte (precisamente a parte de que os padres evitam falar) não passa de um chatíssimo manual de costumes, com descrições detalhadas sobre o modo de degolar cabras no altar e de como verter o sangue em ânforas. E não há mal nenhum nisso. Tudo foi escrito com propósitos políticos e sociais fundamentais para a época, com a religião em pano de fundo. Nada de estranhar, num tempo anterior à eclosão da ciência. De estranhar é gente inteligente e do século XXI continuar a socorrer-se desses textos para nortear a sua vida.
Mais interessante é a fé cega de tanta gente em algo escrito por homens comuns. Sim, a Bíblia foi escrita por homens como os outros, com a diferença de espalharem aos quatro ventos que deus falava com eles.
Mas alguém me explica, por favor, porque é que os que acreditam de olhos fechados nesses tipos são os mesmos que gozam com a Alexandra Solnado, quando a mulher publica um livro a relatar os seus diálogos com Jesus? Que justificação há para crer que uns falam com deus e que outros são esquizofrénicos?
A fé não é motivo para orgulhos. Ter fé no que está na Bíblia e chamar malucos aos que hoje dizem ouvir a voz de deus é ter dois pesos e duas medidas sobre assuntos exactamente iguais. E, se querem que vos diga, até preferia que acreditassem mais nas palavras da Alexandra Solnado. Pelo menos o deus dela não faz mal a ninguém.


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Aplicabilidade da indignidade por analogia

Fernanda Cristina Rodrigues de Moraes - Estudante
nandadmoraes@gmail.com



Aplicabilidade da indignidade por analogia


Resumo: Este artigo busca um breve estudo sobre a indignidade e sobre a aplicabilidade da mesma a outros campos fora da herança devido ao fato de que hoje nossa sociedade se encontra carente de preceitos morais e éticos, o que enseja a prática de atos indignos tendo em vista o recebimento de herança dentre outros benefícios. Assim, buscam-se meios para que seja aplicado o instituto da indignidade a casos que não descritos no art. 1.814 do Código Civil, mas, que também são indignos por terem a finalidade de obter recebimento de herança e outros benefícios decorrentes da morte do de cujus autor da herança.
Palavras chave: Indignidade – Sociedade – Herança – Aplicabilidade – Instituto – Sucessão - Analogia.

Sumário: I – introdução – II- Indignidade - III- Natureza Jurídica da Indignidade - IV- Ação de indignidade e seus efeitos - V- Aplicabilidade da indignidade a outros campos fora da herança - VI- Considerações Finais- VII- Referências Bibliográficas.


I – Introdução
Atualmente ouvimos falar, com freqüência, de histórias noticiadas que chocam toda a sociedade, como é o caso da família Von Richtofen em que a própria filha planejou o assassinato dos pais para que pudesse receber sua parte na herança.
O que nos preocupa mais é fato de que hoje no direito brasileiro não há nenhuma forma de exclusão dos herdeiros que praticam este tipo de conduta homicida de forma automática, pelo contrário deve a exclusão ser declarada por sentença, em ação própria.
Conforme o renomado autor: VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Direito das Sucessões. 9ª Ed. Vol. 7. São Paulo: Atlas, 2009. p. 53; anota em sua doutrina:
“É moral e lógico que quem prática atos de desdouro contra quem lhe vai transmitir uma herança torna-se índigo de recebê-la. Daí por que a lei traz descritos os casos de indignidade, isto é, fatos típicos que, se praticados, excluem o herdeiro da herança. A lei, ao permitir o afastamento do indigno, faz um juízo de reprovação, em função da gravidade dos atos praticados. Como veremos, no entanto, não existe a exclusão automática por indignidade. O indigno só se afasta da sucessão mediante uma sentença judicial.”
II – Indignidade

As causas de indignidade estão descritas no Código Civil no artigo 1.814 que dispõe da seguinte forma:
“Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:
I – que houverem sido autores, co-autores ou partícipes do homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente; II – que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro; III – que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de ultima vontade”.
Vemos que causa indignidade a prática de atos gravíssimos contra o autor da herança ou contra pessoa próxima a ele pelo fato de que a indignidade está fundada em valores morais e éticos relevantes, supondo uma relação de afeto, solidariedade e consideração entre o autor da herança e o sucessor.
Além do mais, a indignidade está pautada também nesses valores, pois, é moralmente condenável em nossa sociedade um filho que mata o pai e ainda, recebe a herança. Este tipo de conduta se permitida, abriria precedentes gravíssimos de casos de filhos que assassinam os pais para ficar com a herança, além dos casos que diretamente são noticiados nos meios de comunicação, e isto é devido o atual estágio em que se encontra nossa sociedade, pobre e escassa em preceitos morais, éticos e valores como a solidariedade, fraternidade, respeito ao próximo dentre vários outros valores que poderiam aqui ser enumerados.

III- Natureza Jurídica da Indignidade

Como já dito anteriormente, a indignidade não opera automaticamente e não se confunde com a incapacidade para suceder. Neste ponto deve ficar bem claro que se a indignidade fosse considerada uma incapacidade sucessória, significaria que o indigno nunca herdou e seus descendentes conseqüentemente não teriam direito a representá-lo na sucessão para receber a herança.
Portanto, a indignidade deve ser considerada como penalidade imposta ao indigno que consiste na perda de seu direito a herança. Assim, desde a abertura da sucessão, transmite-se desde logo a herança aos herdeiros legítimos e testamentários, conforme o princípio da saisine , disposto no artigo 1.784 do Código Civil. No entanto, devido ao ato de indignidade praticado pelo herdeiro, este sofre a pena de não receber a herança sendo excluído da sucessão e por ser a indignidade uma penalidade esta não pode passar da pessoa apenada já que tem efeitos pessoais.
Por isto, os descendentes do indigno podem exercer o direito de representação conforme preceitua o artigo 1.816 do Código Civil os efeitos da indignidade são pessoais e ainda dispõe: “os descendentes do herdeiro excluído sucedem, como se ele morto fosse antes da abertura da sucessão”. Assim, por exemplo: os filhos do indigno representam o pai na herança do avô, se concorrerem com o irmão do indigno.

IV - Ação de Indignidade e seus efeitos

Deve ser proposta uma ação, de rito ordinário, movida por quem tenha interesse na sucessão e na exclusão do indigno. Sendo que no curso da ação devem ser provados a(s) causa(s) de indignidade.
Vale ressaltar que a prova do fato descrito como indigno será feito no juízo comum, no curso da ação de indignidade e não há necessidade de que se espere uma condenação penal sobre o crime cometido. Mas, casso ocorra à absolvição do herdeiro na ação penal isso impedirá a propositura da ação de indignidade devido ao instituto da coisa julgada.
Cabe ainda salientar que se o crime for apenas culposo, não há que se falar em indignidade já que de acordo com o art. 1.814, inciso I para haver declaração de indignidade é necessária a prática de homicídio doloso.
A penalidade da indignidade pode ser aplicada também ao herdeiro que instiga o suicídio do autor da herança bem como das pessoas enumeradas no inciso I do mesmo artigo acima citado, por se tratar de crime contra a vida e ainda, é aplicada nos demais casos descritos nos incisos II e III do art. 1.814, cc.
A indignidade com o transito em julgado da ação tem os seguintes efeitos:
“1- efeito retroativo, desde a abertura da sucessão (ex tunc) os descendentes do indigno sucedem como se ele morto fosse (art. 1.816); 2- o indigno é obrigado a devolver os frutos e rendimentos da herança, já que é considerado possuidor de má-fé com relação aos herdeiros, desde a abertura da sucessão (art. 1.817, parágrafo único); 3- na forma do art. 1.817, os atos da administração e as alienações praticadas pelo indigno antes da sentença de exclusão são válidos”. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Direito das Sucessões. 9ª Ed. Vol. 7. São Paulo: Atlas, 2009. p. 55.

Pode ocorrer na indignidade à reabilitação do indigno em que o de cujos, ofendido por uma das causas de indignidade pode perdoar o ofensor, ato este que é privativo do ofendido sendo, portanto, um ato personalíssimo. Entretanto, não aprofundaremos aqui o estudo sobre a reabilitação do indigno que está previsto em nosso ordenamento jurídico no art. 1.818 do Código Civil.

V – Aplicabilidade da indignidade a outros campos fora da herança

A questão principal que se pretende levantar por meio deste artigo é se o instituto da indignidade poderia ser aplicado a outros campos fora da herança, tendo em vista impossibilitar que se receba a herança aquele que praticou atos que seriam indignos, mas que devido à taxatividade do art. 1.824, CC não são abrangidos pelo mesmo.
Segundo, NEVES, Rodrigo Santos¹; É o caso, por exemplo, da possibilidade da aplicação do instituto da indignidade aos contratos de seguro de vida, em que a seguradora recusaria a efetuar o pagamento do seguro ao beneficiário, no caso de este ser o responsável pela morte do segurado.
De primeiro plano, não se poderia aplicar o instituto da indignidade para impossibilitar que o beneficiário que cometeu homicídio doloso contra o segurado recebesse o valor segurado, uma vez que o seguro é um contrato em favor de terceiro.
Mas, a seguradora recusaria o pagamento do valor segurado pelo fato do beneficiário ter assassinado o segurado sendo, portanto, declarado indigno. Vale salientar aqui, que neste caso estamos tratando do herdeiro legítimo ou testamentário que praticada ato de indignidade (homicídio doloso) contra o autor da herança.
Sendo que já existem casos como o descrito acima, o que evidencia a necessidade de adequação da norma penal a realidade social que vivenciamos o que está de fato acontecendo já que há hoje no Brasil entendimento jurisprudencial ainda, minoritário que aceita a aplicação do instituto da indignidade por analogia a outros casos além da herança. Nesse sentindo:
“Declaratória – Caso Concreto – Previsão legal – Ausência – Analogia – Costumes- Princípios Gerais do Direito- Possibilidade. Seguro de vida- segurada- homicídio- beneficiário- indignidade- declaração- indenização- herdeiros. Não havendo previsão legal quanto à determinada situação apresentada à apreciação do julgador, deve utilizar-se da analogia, dos costumes e princípios gerais do direito. Inteligência do art. 4º da LICC. Vindo a pessoa que indicou como beneficiário do seguro de vida o seu algoz, se por ele assassinada, deve ser reconhecida a indignidade deste, sob pena de malferir os mais comezinhos princípios do direito. Declara a indignidade do beneficiário do seguro de vida, deve este ser pago aos herdeiros do segurado.” (TJMG, 1.0518.02.016087-6/001 (1), rel. José Amâncio, Dj 07.04.2006).

VI – Considerações Finais

Assim, o instituto da indignidade hoje pode e deve ser aplicado em casos como o descrito acima, pois não seria moral e ético no Direito o estímulo da prática de homicídios dentre outros atos ilícitos para o recebimento de benefícios contratuais simplesmente pelo fato de que os casos de indignidade não poderiam ser aplicados, por analogia, em relação ao que está definido no art. 1.814 do Código Civil.
Temos que lembrar aqui dos princípios gerais do direito, da analogia e dos costumes conforme preceitua o art. 4º da LICC e, de que na aplicação da lei o juiz deve atender aos fins sociais a que norma se destina para que a esta cumpra sua verdadeira função social e atenda as exigências do bem comum coibindo praticas ilícitas. Neste caso então, vale salientar a validade da aplicação analógica do referido dispositivo legal que trata dos casos de indignidade de modo a ampliar sua aplicabilidade para que a justiça prevaleça.
Sendo que, nada obsta a aplicabilidade do instituto da indignidade por analogia, pois esta apesar de ser uma penalidade não possuiu natureza jurídica penal não tendo que se falar no ramo de direito civil do respeito à tipicidade que é inerente e própria do ramo de direito penal que decorre do princípio da reserva legal absoluta (art. 5º, XXXIX, CF/88). Entretanto, há posicionamento diverso que entende que não pode ser aplicado o instituto da indignidade por analogia.
Portanto, cabe a cada um diante desta divergência doutrinaria fazer uma reflexão dos rumos que nossa sociedade tomou e assim, ponderarmos se vale mais seguir apenas aquilo definido em lei não permitindo a interpretação e aplicação desta por analogia à outros casos cada vez mais constantes e rotineiros em nossa sociedade ou, se vale mais, permitir a aplicação deste dispositivo legal por analogia tendo a finalidade social como escopo realizando-se e prevalecendo a justiça já que a própria sociedade demanda ações que coíbam praticas ilícitas e imorais e que na maioria das vezes já está positivado em nosso ordenamento jurídico faltando apenas que os instrumentos já existentes sejam postos em prática como o da aplicação analógica da lei dentre outros instrumentos que buscam a realização e promoção da justiça social.

NOTA:
¹ Rodrigo Santos Neves é mestre em Direito pela UCAM. Coordenador de ensino do Curso de Direito e Professor da UVV. Advogado.

VII – Referências Bibliográficas:


VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Direito das Sucessões. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2009. V.7.


GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2009. V.8.


NEVES, Rodrigo Santos. Instituto da indignidade e seus aspectos processuais. In: Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 9 , nº 33, Jan- Mar, 2008.


Currículo do articulista:

Estudante do oitavo período de Direito da Universidade de Ribeirão Preto

Por Herança,fazem quase TUDO


Não há limite nos caminhos e estratégias em disputas por heranças. No Superior Tribunal de Justiça, diversas ações se acumulam nos gabinetes, sempre com o objetivo de faturar um pouco mais de dinheiro em cima do patrimônio de quem morreu.

A maior parte das desavenças por heranças acabam nos tribunais, onde processos contam casos de falsificação e roubo de documentos, alegações de insanidade de quem fez o testamento ou suspeição de testemunhas. Por vezes, chega-se ao homicídio. O direito à herança é garantido pela própria Constituição brasileira, seja ela legítima ou testamentária. O problema começa quando os herdeiros, ou quem ficou de fora do legado, começam a buscar ou defender judicialmente o seu quinhão.

Um exemplo da falta de limites: uma pessoa se casa, sai de casa nove anos depois sem explicação e sem deixar rastros e, após 20 anos, sem nunca ter contribuído financeiramente para as despesas da filha e da esposa, com outra família em cidade distinta, retorna e entra na Justiça para se separar judicialmente e ter parte na herança que a ex-mulher recebeu dos pais. Decisão do STJ impediu a pretensão.

Outro exemplo é o caso de uma mulher que, após estar seis anos separada de fato, entra na Justiça para tentar obter parte dos bens deixados pelo irmão do ex-marido. A 4ª Turma decidiu que é impossível a comunicação dos bens adquiridos após a ruptura da vida conjugal, ainda que os cônjuges estejam casados em regime de comunhão universal. Ao examinar outro caso, decidiu que a proibição de deixar bens em testamento para uma simples amante não se estende à companheira.

Um casamento com separação total de bens que dura três meses pode garantir herança em caso de morte de um dos cônjuges? Não, diz o STJ. Na ocasião, o voto vencedor do ministro Cesar Asfor Rocha, hoje presidente da Corte, considerou: “A regra contida no Código Civil pretende, em verdade, conferir proteção maior ao cônjuge sobrevivente, isso, evidentemente, partindo-se da hipótese de que havia pelo menos convivência do casal, o que não ocorre no caso em questão”.


Princípio da indignidade
Marido mata mulher e quer receber pensão por morte? Sem chance, afirma o STJ, que vem mantendo, em grau de recurso, decisões que aplicaram ao caso a declaração de indignidade, instituto previsto pelo Direito que provoca a perda da herança nos casos em que o herdeiro, como no caso, trama contra a vida do autor da herança. A declaração de indignidade está sendo questionada, por exemplo, no caso de Suzane Richthofen, a garota paulista condenada pela morte dos pais.

Outra maneira de deserdar é por meio de disposição testamentária. Mas, morto o testador, o beneficiário ou quem se acha no direito de sê-lo aciona a Justiça para discutir, por exemplo, a isenção de quem serviu de testemunha. Ao julgar casos como esse, o STJ vem considerando que a proibição para ser testemunha da última vontade do legatário abrange não só os ascendentes, descendentes, irmãos e cônjuges do herdeiro instituído, como também os do testamenteiro.

“O legislador busca proteger a higidez e a validade da disposição testamentária, vedando como testemunhas os incapazes e os que têm interesse no ato”, observou o ministro Luis Felipe Salomão, em julgamento ocorrido no mês de março passado. Corroborando esse entendimento, a Terceira Turma julgou, na semana passada (19 de agosto), um caso em que a nora da testadora, casada em regime de comunhão universal de bens, discute a restrição imposta pela sogra ao gravar a herança do filho com cláusula de inalienabilidade. Como a sogra morreu três meses antes do prazo que teria para acrescentar as razões da restrição, o caso foi à Justiça.

Ao examinar a questão, a ministra Nancy Andrighi observou que a regra prevista no artigo 1.911 do Código Civil de 2002 estabelece que a cláusula de restrição imposta aos bens por ato de liberalidade implica impenhorabilidade e incomunicabilidade. “Se assim não fosse, o beneficiado poderia contrair débitos e deixar de solvê-los, com o intuito de burlar a inalienabilidade. Dessa forma, a impenhorabilidade pode estender-se aos frutos e rendimentos, tal como o fez a testadora, mediante cláusula expressa”, explicou.

A decisão da 3ª Turma restabeleceu a sentença que considerou válida a restrição imposta pela sogra, mesmo sem o aditamento. “Ao testador, de uma forma geral, são asseguradas medidas acauteladoras para salvaguardar a legítima [parte da herança de cada um] dos herdeiros necessários e que na interpretação das cláusulas testamentárias deve-se preferir a inteligência que faz valer o ato àquela que o reduz à insubsistência”, concluiu a relatora do caso. Em casos de deserdação ou indignidade, no entanto, os herdeiros do excluído herdarão em seu lugar, como se este pré-morto fosse, de acordo com o direito de representação.

Ainda sobre bens gravados com cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade, por disposição de última vontade, o STJ vem entendendo que, apesar de tais bens não poderem ser usados para pagar dívidas dos herdeiros, eles devem, no entanto, responder pelas dívidas contraídas pelo autor da penhora. “A cláusula testamentária de inalienabilidade não impede a penhora em execução contra o espólio”, afirmou, na ocasião do julgamento, o ministro Gomes de Barros, hoje aposentado.

As questões analisadas pelo STJ parecem não ter fim: “Casal morre em acidente e horário da morte vai definir herança”, “justiça cancela doação de bens de filha enganada pela mãe”, “irrelevante regime de casamento para definir vontade de doação a herdeiros”, “doação a filho é adiantamento de herança e integra partilha”, esses são alguns exemplos dos temas já examinados pelo Tribunal.

A discussão continua: “Irmã tenta impedir divisão da herança com irmão por parte de mãe”, “pai e madrasta em conluio para fraudar herdeira”, “indenização a mãe de santo deve integrar herança”, “herdeiros têm direito a participação sobre venda de obra de arte”. Discussões entre herdeiros do pintor Portinari e do banqueiro Amador Aguiar também provocaram debates e decisões no STJ.

Como última palavra em legislação infraconstitucional, a responsabilidade das decisões do STJ é grande, pois é preciso, para garantia da ordem institucional, a certeza de que a Justiça será feita em cada caso julgado. Afinal, em seu papel de unificador da lei federal, tudo o que é decidido vai servir de parâmetro para outros e certamente mexer com a vida e, neste caso, com o bolso, de muita gente.

Legitimidade em dúvida
Sancionadar em 30 de julho, a Lei n. 12.004/2009 (alterando a Lei n. 8.560) deverá reduzir a quantidade de ações na Justiça de pessoas que buscam o reconhecimento como filho para ter direito à herança. A lei torna presumida a paternidade nos casos em que o suposto pai se recusa a fazer o exame de DNA ou submeter-se a qualquer outro meio científico de prova. A presunção também vale contra a mãe que se recusa a fornecer material genético da criança.


Há mais de dez anos, no entanto, o STJ vem examinando casos como esses. Num dos primeiros casos, o ministro Ruy Rosado concluiu que a recusa do investigado em submeter-se ao exame de DNA, marcado por dez vezes, ao longo de quatro anos, aliada à comprovação de relacionamento sexual entre o investigado e a mãe do menor, gerava a presunção de veracidade das alegações do processo. O entendimento se consolidou na súmula 301, publicada em 2004.

A fim de dar solução à busca por herança em processos que chegam ao STJ, o Tribunal da Cidadania vai além, afirmando que, na falta do pai, os avós devem, em caso de falecimento do suposto pai, submeter-se aos exames de comprovação, atraindo também a presunção de parentesco em caso de recusa.

Netos podem ser reconhecidos pelo avô? “Absolutamente legítimo que um neto busque a sua identidade verdadeira, a sua família, e, evidentemente, daí decorrendo seus direitos e obrigações”, afirmou o ministro Aldir Passarinho Junior após examinar um caso desses. A condição de herdeiro, no entanto, será reconhecida somente quando não houver mais possibilidades de recurso contra a decisão que julgou procedente a ação de investigação de paternidade.

Enquanto corre o processo, provável herdeiro pode requerer reserva de sua parte, como garantido pelo STJ em um processo de viúva contra filha menor do marido incluída no inventário. “Não se afigura prejuízo para os herdeiros já conhecidos a reserva do quinhão, salvo, é certo, a indisponibilidade temporária dessa parte, o que não chega a constituir grande restrição”, cita em voto o ministro Aldir Passarinho Junior, ao reconhecer que a dificuldade de recebimento pela menor, sem fazer reserva, seria maior, já que teria de litigar com os demais irmãos para obtê-la, não se sabendo o destino que dariam ao patrimônio obtido.

Fraudes e manobras
E o que diz o STJ quando irmão forja registro de nascimento, inventando um pai fictício para a irmã, para não vê-la reconhecida como filha do seu pai verdadeiro e ter que dividir a herança? Ou naqueles casos em que o marido da mãe, num gesto magnânimo, ao contrário do caso anterior, registra a criança como sua e esta descobre que o pai é outro – pode herdar bens? De ambos? Após examinar casos assim, o tribunal reafirma: a ação de investigação de paternidade é um direito personalíssimo, indisponível e imprescritível. Em casos de improcedência da ação, por exemplo, pode-se, com base em novos elementos, reabrir a discussão na Justiça. Nos dois casos anteriores, tais entendimentos permitiram à irmã provar a falsidade do registro e a uma advogada registrada por outro homem ser reconhecida pelos verdadeiros pais e garantir o direito à herança.


Situações familiares reconhecidas e consolidadas ao logo do tempo devem ser protegidas por meio das decisões judiciais. Tal entendimento manteve a validade de registro civil de nascimento de três irmãos, filhos do primeiro casamento do marido os quais foram adotados pela segunda mulher. Os filhos comuns do casal queriam a anulação para que os três primeiros não tivessem direito à herança deixada pela mãe. Em outro processo, o Judiciário garantiu a uma criança o direito à herança do pai adotivo.

Reconhecimento após a morte
O que fazer nos casos em que o reconhecimento da paternidade ocorre apenas após a morte do genitor? O início para o recebimento dos frutos e rendimentos deve ser contado a partir do momento em que os herdeiros já existentes tomam conhecimento deles, ou seja, a partir da citação. E se a partilha já foi realizada? Não há outro jeito: os bens do falecido devem ser devolvidos e reaberto o processo sucessório, entende a Quarta Turma ao se deparar com esse tipo de questão.

E quando não há herdeiros? O Tribunal aplica a lei que prevê o município como parte legítima para recebê-la. E se não há herança, ou é tão ínfima que não cubra nem os gastos? O Tribunal garante justiça gratuita para os herdeiros. E também decide que herdeiro usufruindo sozinho de imóvel deixado como herança e impedindo o direito de usufruto do outro herdeiro deve indenizá-lo. O ministro Castro Meira explicou ao votar: até que a partilha seja feita, ocorre o regime de comunhão hereditária e os herdeiros são cotitulares do patrimônio deixado.

Também não deve incidir Imposto de Transmissão dos Bens Imóveis (ITBI) na renúncia de herdeiros de sua parte na herança. Ao decidir, a Primeira Turma ressaltou que a herança não deve passar para a viúva, e sim para os filhos dos herdeiros renunciantes.

Os problemas de sucessão hereditária a serem resolvidos com intercessão de Judiciário não param por aí. Numa decisão histórica, o STJ examinou um caso em que os pais de um homem morto pretendiam ficar com um apartamento adquirido por ele e pelo companheiro homossexual durante a convivência. Segundo o processo, o companheiro sobrevivente prestou sozinho assistência no hospital, pois a família não aceitava o relacionamento. Para fazer justiça e deixar o bem com o companheiro, o tribunal foi buscar na lei das sociedades uma solução para o caso, já que o Brasil ainda não reconhece legalmente esse tipo de relacionamento.

Herança para animais
Tornar animais de estimação em herdeiros em testamento era tido como excentricidade registrada só no exterior, principalmente nos Estados Unidos e Grã-Bretanha. Mas os primeiros casos já começam a ser registrados no Brasil, como é o de um gato que herdou um apartamento de 300 m2 de frente para o mar, no Rio de Janeiro, ato contestado que chegou a ser examinado pelo STJ.

Fraudes e manobras
E o que diz o STJ quando irmão forja registro de nascimento, inventando um pai fictício para a irmã, para não vê-la reconhecida como filha do seu pai verdadeiro e ter que dividir a herança? Ou naqueles casos em que o marido da mãe, num gesto magnânimo, ao contrário do caso anterior, registra a criança como sua e esta descobre que o pai é outro – pode herdar bens? De ambos? Após examinar casos assim, o tribunal reafirma: a ação de investigação de paternidade é um direito personalíssimo, indisponível e imprescritível. Em casos de improcedência da ação, por exemplo, pode-se, com base em novos elementos, reabrir a discussão na Justiça. Nos dois casos anteriores, tais entendimentos permitiram à irmã provar a falsidade do registro e a uma advogada registrada por outro homem ser reconhecida pelos verdadeiros pais e garantir o direito à herança.


Situações familiares reconhecidas e consolidadas ao logo do tempo devem ser protegidas por meio das decisões judiciais. Tal entendimento manteve a validade de registro civil de nascimento de três irmãos, filhos do primeiro casamento do marido os quais foram adotados pela segunda mulher. Os filhos comuns do casal queriam a anulação para que os três primeiros não tivessem direito à herança deixada pela mãe. Em outro processo, o Judiciário garantiu a uma criança o direito à herança do pai adotivo.

Reconhecimento após a morte
O que fazer nos casos em que o reconhecimento da paternidade ocorre apenas após a morte do genitor? O início para o recebimento dos frutos e rendimentos deve ser contado a partir do momento em que os herdeiros já existentes tomam conhecimento deles, ou seja, a partir da citação. E se a partilha já foi realizada? Não há outro jeito: os bens do falecido devem ser devolvidos e reaberto o processo sucessório, entende a Quarta Turma ao se deparar com esse tipo de questão.

E quando não há herdeiros? O Tribunal aplica a lei que prevê o município como parte legítima para recebê-la. E se não há herança, ou é tão ínfima que não cubra nem os gastos? O Tribunal garante justiça gratuita para os herdeiros. E também decide que herdeiro usufruindo sozinho de imóvel deixado como herança e impedindo o direito de usufruto do outro herdeiro deve indenizá-lo. O ministro Castro Meira explicou ao votar: até que a partilha seja feita, ocorre o regime de comunhão hereditária e os herdeiros são cotitulares do patrimônio deixado.

Também não deve incidir Imposto de Transmissão dos Bens Imóveis (ITBI) na renúncia de herdeiros de sua parte na herança. Ao decidir, a Primeira Turma ressaltou que a herança não deve passar para a viúva, e sim para os filhos dos herdeiros renunciantes.

Os problemas de sucessão hereditária a serem resolvidos com intercessão de Judiciário não param por aí. Numa decisão histórica, o STJ examinou um caso em que os pais de um homem morto pretendiam ficar com um apartamento adquirido por ele e pelo companheiro homossexual durante a convivência. Segundo o processo, o companheiro sobrevivente prestou sozinho assistência no hospital, pois a família não aceitava o relacionamento. Para fazer justiça e deixar o bem com o companheiro, o tribunal foi buscar na lei das sociedades uma solução para o caso, já que o Brasil ainda não reconhece legalmente esse tipo de relacionamento.

Herança para animais
Tornar animais de estimação em herdeiros em testamento era tido como excentricidade registrada só no exterior, principalmente nos Estados Unidos e Grã-Bretanha. Mas os primeiros casos já começam a ser registrados no Brasil, como é o de um gato que herdou um apartamento de 300 m2 de frente para o mar, no Rio de Janeiro, ato contestado que chegou a ser examinado pelo STJ.

Ação civil pública e ações coletivas.


Açoes coletivas

Ação civil pública e ações coletivas.

A Lei n. 7.347/85 disciplina a ação civil pública de responsabilidade dos danos causados ao meio ambiente; ao consumidor; a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; a qualquer outro interesse difuso ou coletivo (art. 1°, com a redação dada pelo art. 110 do Código do Consumidor).

Na lição de ADA GRINOVER, essa lei regula as ações coletivas para a tutela do ambiente e dos consumidores, cuidando dos interesses difusos propriamente ditos, tutelando exclusivamente os bens coletivos indivisivelmente considerados (Ações Coletivas para a Tutela do Ambiente e dos Consumidores. AJURIS, Porto Alegre, (36): 7-22, mar., 1986). O art. 81 do Código do Consumidor refere-se às ações coletivas, dividindo- as em três espécies:

a) ações coletivas pró-interesses difusos;

b) ações coletivas pró-interesses coletivos;

c) ações coletivas pró-interesses individuais.

O Código do Consumidor é lei especial em relação à Lei n. 7.347, que regula a ação civil pública, podendo-se imaginar que, no futuro, se utilizará a expressão ‘ação civil pública’ com referência às ações coletivas pró-interesses difusos relativos ao meio ambiente, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico e outros, com exclusão dos relativos às relações de consumo; utilizar-se-á a expressão ‘ações coletivas’, com referência às voltadas à tutela do consumidor.

Essa é, pelo menos, a previsão de RODOLFO MANCUSO: ‘Pela ordem natural das coisas, é lícito prever que, embora haja um núcleo comum aproximando as ações do Código de Defesa do Consumidor à ação civil pública da Lei n. 7.347/85 e à ação popular da Lei n. 4.717/65, tudo indica que cada uma dessas ações passará a ter, na prática, um especial campo de aplicação, em função mesmo da vocação própria de cada qual: os interesses e direitos dos consumidores, através das ações codificadas; os interesses difusos relativos ao meio ambiente e ao patrimônio natural e cultural através da ação civil pública da Lei n. 7.347/85; os interesses difusos respeitantes à preservação do erário público, através da ação popular da Lei n. 4.717/65’ (in OLIVEIRA. Comentários, p. 274).

Conforme dispõe o art. 90 do Código de Defesa do Consumidor, aplicam-se, às ações nele previstas, as normas da Lei n. 7.347/85, que regula a ação civil pública.

Por outro lado, há uma espécie de reenvio, porquanto o art. 21 dessa lei (acrescentado pelo art. 117 do Código de Defesa do Consumidor) manda aplicar, à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, os dispositivos do Título lIl do Código de Defesa do Consumidor.

Pode-se, por isso, dizer que ‘esses dois diplomas se completam e se interpenetram, salvo as incompatibilidades recíprocas’ (ARRUDA ALVIM. Código do Consumidor Comentado, São Paulo, RT, 1991, p. 256).

Temos, assim, que a Lei n. 7.347/85 rege as ações relativas ao meio ambiente e ao patrimônio natural e cultural, com aplicação subsidiária do Código de Defesa do Consumidor; este rege as ações relativas ao consumidor, com aplicação subsidiária da Lei n. 7.347/85. 2. Interesses e direitos, consumidores e vítimas.

O Código do Consumidor trata de modo igual, indiferenciadamente, os interesses e os direitos de consumidores e vítimas (art. 81).

Direito subjetivo é um poder, concedido a alguém, pelo ordenamento jurídico, para a realização de um interesse seu. Distingue-se da função, que também importa na atribuição de um poder a uma pessoa, mas para a realização de um interesse superior ou, de qualquer maneira, alheio. ‘As potestades, precisamente porque tutelam um interesse que não é do titular, constituem funções, onde não só existem deveres ligados ao poder, o que acontece também nos Direitos subjetivos, mas onde, além disso, o próprio exercício do poder está vinculado em muitos aspectos. Daqui uma série de características que permitem distinguir as potestades dos Direitos subjetivos e que são especialmente evidentes nas potestades familiares’ (SANTORO-PASSARELLI, F. Teoria Geral do Direito Civil, Trad. Manuel de Alarcão, Coimbra, Atlântida, 1967, p. 53).

Quer se defina o Direito subjetivo como um poder da vontade (WINDSCHEID), quer se o conceitue como um interesse juridicamente protegido (JHERING), certo é que dele decorre a subordinação do interesse do sujeito passivo da relação jurídica ao do titular do Direito (sujeito ativo).

Contudo, há interesses que não são direitos. É o caso da situação jurídica e do reflexo de direito.

‘Durante o desenrolar da situação que cria a relação pela qual se atua a subordinação definitiva de um a outro interesse, e que por isso se diz relação definitiva, pode surgir uma (ou mais do que uma) relação jurídica, instrumental relativamente à primeira, a que se dá o nome de relação jurídica preliminar.

Para designar esta fase propõe-se também o nome de situação jurídica. É o caso dos vínculos que resultam da proposta irrevogável, e, ainda antes da obrigação, da promessa ao público’ (ibid., p. 54). Situação jurídica ou ‘posição jurídica era, ao tempo do Império, a situação do pretendente à concessão de terras devolutas que, tendo-lhe sido autorizada pelo Governo Imperial a concessão pretendida, ainda não recebera do Presidente da Província o competente título. Algo de jurídico já aparecera, então, capaz de influir na formação do direito do pretendente: ‘Talvez mesmo — escreve RODRIGO OTÁVIO — já um verdadeiro direito adquirido, mas apenas a que se promovessem os ulteriores termos legais para que pudesse entrar na posse, uso e gozo da concessão’.

Não obstante, essas formalidades ulteriores poderiam mostrar-se de execução impossível, inconveniente ou inoportuna e, nessa hipótese, aquele suposto direito adquirido se reduziria a nada’ (LIMA, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo, Porto Alegre, Sulina, 1964, p. 58). ‘Distintos do Direito subjetivo e da posição jurídica, são, a seu turno, os assim chamados reflexos de direito (...). Na Constituição e nas leis, encontra, algumas vezes, o indivíduo o reconhecimento de particulares interesses seus; ora esse reconhecimento resulta de uma relação puramente de fato (por exemplo a organização legal de um serviço de transporte mais adequado a um gênero de comércio do que a outros); ora dimana da indireta eficácia da disposição constitucional, ou legal, que, prescrevendo para os poderes públicos, Ihes cria, perante a Constituição ou a lei, senão uma obrigação, ao menos, a abstrata imagem dela. Desta última modalidade de reconhecimento incidente, por via objetiva, de interesses individuais, procedem os assim chamados reflexos de direito’ (ibid., p. 59).

‘A relação jurídica, como combinação de poder e de dever, existe entre as partes. Os outros sujeitos, seja qual for a posição em que se encontrem relativamente às partes, são estranhos a ela, e por isso a relação não pode realizar nem sacrificar um interesse seu. Todavia, isto não significa que a relação jurídica não influi diretamente na esfera jurídica de quem não seja parte na mesma relação, e não já que ela não tenha um efeito reflexo relativamente àqueles que, estranhos à relação, estão contudo numa posição juridicamente dependente da posição de uma das partes da relação em causa. Tanto basta para explicar o fenômeno da relatividade (rectius: reflexidade) das relações jurídicas’ (SANTORO-PASSARELLI, op. cit. p. 77).

A distinção entre Direito subjetivo e reflexo de direito é freqüentemente exemplificada com a proibição, estabelecida pelo poder público, de construções além de certa altura, que atende ao interesse de qualquer proprietário ou possuidor que possa ser privado de luz ou de sol pela construção de algum vizinho. Tal proprietário ou possuidor, embora tenha seu interesse atendido pela proibição, não tem Direito subjetivo contra o vizinho, como teria se houvesse uma servidão estabelecida em favor de seu prédio.

A relevância da distinção está em que, em princípio, o mero interesse não autoriza o prejudicado a demandar em juízo contra quem pratique o ato lesivo. Falta-lhe legitimação. Assim, a construção, em contravenção à proibição do poder público, autorizaria apenas ação do Município; não do vizinho prejudicado.

Tende-se, porém, e cada vez mais manifestamente (e ó Código do Consumidor é bem um exemplo disso), a outorgar-se legitimação a todo prejudicado pela desobediência à lei. Tende-se, pois, a outorgar a tutela jurisdicional independentemente da existência de Direito subjetivo. Basta que o autor demonstre interesse legítimo, para que se Ihe reconheça legitimação para agir, em defesa do Direito objetivo.

Situação jurídica, no Código do Consumidor, é por exemplo a que decorre da incidência de seu art. 30, que regula a oferta do fornecedor: ‘Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado’. Aceitando a oferta, pode o interessado, no caso de recusa do fornecedor, ‘exigir o cumprimento forçado da obrigação’ (art. 35, I). Tal ação, porém, deverá ser precedida do depósito do preço, motivo por que necessariamente será individual, e não coletiva, ainda que se litisconsorciem vários interessados. No caso de oferta para pagamento a prazo, a ação talvez não caiba, porque ao fornecedor seria facultado recusar o crédito, v. g., por inidoneidade do pretendente. Tudo, porém, dependerá da configuração do caso concreto.

Nos termos do art. 32 o consumidor tem direito ao fornecimento de peças de reposição. Trata-se, se, já de verdadeiro Direito subjetivo. O descumprimento da obrigação autoriza a resolução do contrato e pedido de perdas e danos (art. 35, III). Também nesse caso não é de se admitir ação coletiva, porque a resolução de contrato constitui exercício de direito formativo, que não pode senão ser exercido individualmente. Claro, nada impede que se litisconsorciem vários consumidores.

Os direitos do consumidor à proteção da vida, saúde e segurança; à educação e divulgação sobre o consumo adequado de produtos e serviços; à informação adequada e clara; à proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, não são, a rigor, verdadeiros Direitos subjetivos, mas reflexos de obrigações impostas aos fornecedores pelo poder público. ‘Quando os interesses do indivíduo se consubstanciam nas permitidas manifestações de sua vontade autônoma, apresentam-se como direitos. Se, no entanto, o interesse particular do indivíduo é tutelado pelo preceito estatuído no interesse geral, estará protegido de modo reflexo, mas não se caracteriza como um direito, porque o interessado não dispõe da faculdade de compelir quem o contraria a observar a norma, nem da faculdade de liberá-lo do seu dever. Enquanto das disposições quem atribui ao indivíduo uma esfera de poder derivam Direitos subjetivos, das normas que estabelecem deveres a serem observados no interesse geral não nasce para o indivíduo direito, na acepção técnica do vocábulo. No entanto, seu interesse é protegido, porquanto o Estado pode exigir, de todos, obediência à norma que prescreve tais deveres’ (GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, 7 a ed., Rio de Janeiro, Forense, 1983, p. 107).

Da inexistência, nesses casos, de direito subjetivo, decorre o descabimento de ação individual ou mesmo da ação coletiva do art. 81, parágrafo único, III. Cabe, porém, a ação civil pública (incs. I e II), por se tratar de interesses transindividuais, de natureza indivisível.

Consumidor é o adquirente ou utente de produto ou serviço, como destinatário final (art. 1°). Equipara-se ao consumidor a cooperativa de adquirentes ou utentes, ex vi do art. 2°, parágrafo único. Também se consideram consumidores os destinatários de oferta pública ou de publicidade, bem como quaisquer pessoas sujeitas a práticas abusivas ou à cobrança de dívidas ou que tenham seus nomes inseridos em bancos de dados ou cadastros de consumidores (art. 29).

Vítima é quem sofre dano. As vítimas, que sofram dano decorrente de fato do produto ou serviço, equiparam-se aos consumidores (art. 17), não importando, pois, a sua condição de adquirentes ou utentes.

3. Interesses individuais, coletivos e difusos.
Interesses difusos são os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato (art. 81, parágrafo único, I), como os dos moradores de uma região, dos consumidores de um produto, dos turistas que freqüentam um lugar de veraneio e dos usuários de uma linha de ônibus.

Interesses coletivos são os transindividuais de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com parte contrária por uma relação jurídica-base (art. 81, parágrafo único, II), como os dos condôminos de um edifício, dos acionistas de uma empresa, dos atletas de uma equipe esportiva, dos empregados de um mesmo patrão, dos integrantes de um grupo consorcial.

Ao passo que, a propósito dos difusos e coletivos, é mais próprio falar-se em interesses, em se tratando de interesses individuais é mais próprio falar-se em direitos, porque é com verdadeiros Direitos subjetivos que, então, quase sempre nos deparamos.

São direitos individuais homogêneos os decorrentes de origem comum (art. 81, parágrafo único, III), como os decorrentes de um mesmo acidente. Os interesses dos consumidores de um produto são difusos. No caso, porém, de danos causados por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento do produto, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos (art. 12), a indenização devida pelo fornecedor corresponde a direito individual de cada vítima, porque não ocorre a indivisibilidade que se apresenta nos interesses difusos e coletivos. Os passageiros de um ônibus ligam-se ao transportador por uma relação jurídica-base, que é o contrato de

transporte. Contudo, ocorrendo um acidente com mortos e feridos, são individuais os direitos à indenização das vítimas e seus dependentes.

Por fim, há os direitos individuais heterogêneos, que não autorizam ação coletiva.

4. Legitimação ativa. O Ministério Público.
O Ministério Público surgiu na França, por volta do século XIV, com a presença, nos Pretórios, dos agentes do Rei (les gens du roi), para a defesa dos interesses da Coroa. Durante muito tempo foi visto, entre nós, como uma reedição moderna desses órgãos do Rei, isto é, como representação do Poder Executivo junto ao Judiciário. Efetivamente, cabia-lhe a representação do Estado em juízo, particularmente nas execuções fiscais.

A Constituição de 1988 não situa o Ministério Público nem no âmbito do Poder Executivo, nem no do Poder Judiciário. Constitui, ao lado da advocacia, uma das ‘funções essenciais à Justiça’, proibindo-se-lhe ‘a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas’ (art. 129, IX). Rompeu-se, assim, o último laço que ainda ligava, historicamente, o Ministério Público aos agentes do Rei. Outra é hoje sua razão de ser. Nota essencial à jurisdição é a imparcialidade, motivo por que se veda ao Juiz agir de ofício e, portanto, como interessado. Há, então, de haver alguém que provoque o exercício da jurisdição.

Se privado o interesse, ao interessado outorga-se o direito de ação. Se público ou difuso, ao Ministério Público é que se atribui, em primeiro lugar, a função de provocar o exercício da jurisdição. Em ambos os casos, a ação apresenta-se como um poder, o de acionar a jurisdição. Trata-se, no primeiro caso, de Direito subjetivo, porque o autor vai a juízo para a defesa de interesse próprio. No caso do Ministério Público, trata-se de função, porque ele propõe a ação, não para a defesa de direito próprio, mas para a tutela de interesses superiores ou alheios.

Repete-se, com o Ministério Público, o fenômeno de um órgão que, ao mesmo tempo, integra e é independente de outro. O Poder Judiciário é um dos órgãos do Estado, mas, ao mesmo tempo, apresenta-se como que alheio ao Estado, para poder julgar imparcialmente atos dos demais Poderes. O Ministério Público é, hoje, parte inseparável do Judiciário, que a ele, porém, não se integrou nem se deve integrar, para que a ação permaneça destacada da jurisdição.

A fusão de ambas desintegra a jurisdição, com sua nota essencial da imparcialidade.

No processo civil, leciona HUGO NIGRO MAZZILLI, a atuação do Ministério Público ‘desenvolve-se sob vários ângulos: pode ele ser autor; representante da parte (v. g., na assistência judiciária supletiva que presta ao necessitado. Cfe. art. 22, XIII, da Lei Complementar n. 40/81) substituto processual (do incapaz, do revel ficto ou da vítima pobre na ação reparatória ex delicto, exemplificativamente) interveniente em razão da natureza da lide, desvinculado a priori dos interesses de quaisquer das partes (o chamado custos legis, quando oficia em autos de mandado de segurança, ação popular, questão de Estado, etc.) ou interveniente em razão da qualidade da parte (como o incapaz, o acidentado do trabalho, o indígena, a pessoa portadora de deficiência)’. Constitui, esse último caso, uma forma peculiar de assistência (A Defesa dos Interesses

Difusos em Juízo, São Paulo, Rev. dos Tribs., 1990, p. 37 e 47). ‘Não se pode esquecer’, prossegue o mesmo autor, que, agora destinado exclusivamente à defesa de interesses indisponíveis do indivíduo e da sociedade, como ao zelo dos interesses sociais, coletivos ou difusos (CF, arts. 127 e 129, III), a lei somente poderá cometer-lhe a defesa de interesses individuais se indisponíveis (CF, art. 127,caput, c/c. o art. 129, IX).

Cabe agora indagar, então, da constitucionalidade da legitimação do Ministério Público para as ações coletivas pró-direitos individuais homogêneos.

O art. 129, IX, da Constituição autoriza o exercício, pelo Ministério Público, de funções nela não previstas, desde que compatíveis com sua finalidade, vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

Parece-me que, a fortiori, há que se ter como incompatíveis com os fins do Ministério Público as atividades de consultoria, representação e substituição de pessoas privadas.

A ação do art. 91 do Código de Defesa do Consumidor é ação de indenização. Diz respeito a direitos individuais disponíveis. Não pode, pois, ser proposta pelo Ministério Público, porque este é instituído pela Constituição como órgão de defesa de interesses públicos e difusos e não como defensor de Direitos Privados, de caráter patrimonial e disponíveis. Observe-se que da soma de interesses individuais não resulta interesse público. Este se revela pelos caracteres da transindividualidade e indivisibilidade.

Indiscutível, porém, a legitimação do Ministério Público para ação cominatória tendente a obrigar o fornecedor a substituir produto defeituoso, que ponha em risco a vida ou a saúde de consumidores ou de terceiros. Manifesta, aí, a indisponibilidade dos interesses em jogo e o caráter público de que se revestem.

Um segundo caso em que se pode excepcionalmente admitir ação do Ministério Público em prol de interesses individuais homogêneos resulta da tradição de nosso Direito, que não parece rompida pela atual Constituição, de fazer dele um defensor público eventual. Assim o art. 58 do CPP o autoriza a propor ação cível de liquidação de sentença penal condenatória, quando o titular do direito à reparação do dano for pobre. O art. 22, Xll, da Lei Orgânica do Ministério Público (Lei Complementar n. 40, de 14.12.81) impõe ao Ministério Público estadual o dever de prestar assistência judiciária aos necessitados, onde não haja órgãos próprios. O art. 201, III, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13.7.90) autoriza o Ministério Público a promover ações de alimentos. Nessa linha de pensamento, é de se admitir ação coletiva pró-direitos individuais homogêneos, quando a situação de pobreza ou de ignorância dos respectivos titulares seja tal que não se possa razoavelmente esperar que constituam associação que os defenda.

O art. 51, § 4°, autoriza o Ministério Público a propor ação declaratória de nulidade de cláusula contratual que contraria o Código do Consumidor ou que de qualquer forma não assegure o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes. Havemos de entender que a autorização, aí contida, é para a tutela de interesses transindividuais de natureza indivisível (art. 81, parágrafo único, I ou II). Efetivamente, a cláusula contratual estatuída em contratos de adesão assemelha-se à previsão abstrata de norma legal, incidente sobre a situação de fato nela prevista. Daí o caráter transindividual de que se pode revestir, e o interesse público em que sua nulidade, quando infringente da lei, seja declarada.

5. Legitimação ativa. Entidades sem personalidade jurídica.
Quando o CC, no art. 2°, diz que todo homem é capaz de direitos e obrigações, está a dizer que todo homem é uma pessoa, porque ser pessoa não é senão ser capaz de direitos e obrigações.

‘... a mera circunstância de existir confere ao homem a possibilidade de ser titular de direitos. A isso se chama personalidade.

‘Afirmar que o homem tem personalidade é o mesmo que dizer que ele tem capacidade para ser titular de Direitos. Tal personalidade se adquire com o nascimento com vida, conforme determina o art. 4° do Código’ (RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil, Parte Geral, 2 a ed., São Paulo, Max Limonad, 1964, I/57-8).

A personalidade jurídica envolve a capacidade de gozo e se distingue da capacidade de exercício de direitos.

‘Se todos os homens são capazes de direito, podendo ter Direitos subjetivos e contrair obrigações, nem todos são aptos a praticar pessoalmente os atos da vida civil. Distinguimos, pois, a capacidade de direito, ou seja, a possibilidade de adquirir direitos e contrair obrigações por si ou por terceiros da (...) capacidade de exercício ou de negócio, em virtude da qual a pessoa pode praticar pessoalmente os atos da vida civil, sem necessitar de assistência ou de representação’ (WALD, Arnoldo. Direito Civil brasileiro, Parte Geral, Rio de Janeiro, Lux, 1962, p. 162).

A contraposição, capacidade de gozo (personalidade) versus capacidade de exercício, do Direito Civil, corresponde à contraposição, capacidade de ser parte versus capacidade de estar em juízo (legitimação processual), do processo civil.

‘Na órbita civil, diferem a capacidade de ter direitos e a capacidade de exercê-los. Assim é que, v. .g., o menor pode ter direitos, mas não pode exercê-los pessoalmente.

‘O mesmo princípio se aplica no Direito Processual, em que se distinguem a capacidade de ser parte e a capacidade de estar em juízo, que correspondem, aproximadamente, àquela distinção feita na ordem civil.

‘Assim, tem capacidade de ser parte toda pessoa natural, não importando a idade, estado mental, sexo, nacionalidade, estado civil, bem como as pessoas jurídicas, além de outras figuras a que a lei atribui essa capacidade, como o nascituro, espólio, etc.

‘Mas a capacidade de estar em juízo, também chamada legitimidade, ou legitimação para o processo, ou legitimatio ad processum, só é atribuída aos que estiverem no exercício dos seus direitos, excluídos, assim, os menores, os loucos, os silvícolas, etc.’ (BARBI, Celso Agrícola. Coments. ao CPC, Rio de Janeiro, Forense, 1975, I/122-3, Tomo I).

Uma das tendências do Direito moderno é a de romper com os limites traçados pelo conceito legal de personalidade jurídica, adquirida, pelas pessoas jurídicas de Direito Privado, com a inscrição de seus contratos, atos constitutivos ou compromissos no seu registro peculiar’ (CC, art. 18).

No campo do processo, cunhou-se a expressão ‘personalidade judiciária’, definida como aptidão para ser parte, independentemente da existência ou não de personalidade jurídica, nos termos do Direito Civil. Assim, não são pessoas, mas têm aptidão para serem sujeitos do processo, a massa falida, a herança jacente ou vacante, o espólio, o condomínio e as sociedades sem personalidade jurídica (CPC, art. 12). Em mandado de segurança, Câmaras de Vereadores, Assembléias Legislativas e a mesa da Câmara dos Deputados podem ser impetrantes ou impetrados.

De um ponto de vista estritamente lógico, o reconhecimento da capacidade de ser parte (personalidade judiciária) importa, ipso facto, no reconhecimento da personalidade jurídica do ente havido como possível sujeito do processo, isto é, como centro de imputação de direitos e obrigações processuais.

O Código do Consumidor prossegue nessa trilha. Entidades sem personalidade jurídica podem ser autoras (art. 82, III) ou rés (art. 3°), havendo ainda uma seção dedicada à desconsideração da personalidade jurídica (art. 28).

Ação civil tem sido explicada como direito subjetivo público (direito à tutela jurisdicional). Isso não é sempre verdadeiro. Direito subjetivo é poder concedido a alguém, para a realização de um interesse seu. Poderes conferidos para a realização de interesses superiores, ou alheios, constituem função (cfe. SANTORO-PASSARELLI, F. Teoria Geral do Direito Civil, Trad. Manuel de Alarcão, Coimbra, Atlântida, 1967, p. 53).

Assim, o Ministério Público (órgão sem personalidade jurídica), não exerce, na ação penal, nenhum jus puniendi. Não há Direito subjetivo do Ministério Público à punição do réu, ainda que culpado. Trata-se, aí, do exercício, pelo Ministério Público, de uma função do Estado.

Quando se admite, como no art. 82, III, do Código do Consumidor, que um ente promova ação, não para a defesa de Direito próprio, mas para a tutela de interesses alheios, transindividuais, a ação civil apresenta-se sim como poder, mas na modalidade de função e não de direito subjetivo.

Do ponto de vista lógico, é inadmissível a atribuição do direito de ação a um ente que, por definição, não tem aptidão para ser titular de direitos, por não ter personalidade jurídica.

Uma função, porém, pode ser atribuída a órgãos que não são pessoas, porque o fim aí visado não é a tutela de direitos próprios, mas de interesses alheios.

6. Legitimação ativa na ação coletiva pró-interesses individuais homogêneos.
A ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos é regulada pelos arts. 91 a 100 do Código do Consumidor. No que se refere à legitimação ativa, tem-se o art. 91, a estabelecer que os legitimados de que trata o art. 81 poderão propô-la, em nome próprio e no interesse das vítimas ou seus sucessores. Todavia, norma sobre legitimação ativa tem-se no art. 82, e não no art. 81. Daí a conclusão de TUPINAMBÁ MIGUEL CASTRO DO NASCIMENTO, no sentido de que ocorre um evidente engano, na remissão do art. 91 ao 81. Este ‘não diz respeito a qualquer legitimado. A remissão pretendida e que deve ser admitida, pela evidência do engano, é ao art. 82, este sim se referindo a legitimados.

Este engano detectado também se encontra no art. 98, que trata da execução coletiva facultativa. Entretanto, nos arts. 97 e 100, a remissão feita está correta, referindo-se ao art. 82, tolhendo qualquer discussão a respeito’ (Coments. ao Código do Consumidor, Rio de Janeiro, Aide, 1991, p. 105).

Em princípio, devem-se presumir corretos os enunciados legais, não cabendo afastar-se o que não compreendemos com o fácil expediente da atribuição de equívocos ao legislador. Por isso, vamos afastar, provisoriamente, a conclusão de TUPINAMBÁ, supondo correta a remissão do art. 91 ao 81. Temos, então, que a ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos pode ser proposta, como no Direito americano, por qualquer dos representantes da respectiva classe. Segue-se, então, que a legitimação de que trata o art. 82 se refere, exatamente como nele se declara, à hipótese do art. 100, parágrafo único, isto é, à execução para o Fundo criado pela Lei n. 7.347, de 24.7.85.

Eis que, porém, nos deparamos com nova dificuldade: entre os legitimados encontram-se as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo Código do Consumidor, dispensada a autorização assemblear, podendo, porém, o Juiz dispensar o requisito da pré-constituição, nas ações previstas nos arts. 91 e segs., quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido. Inarredável, então, a conclusão de que o art. 82 regula a legitimação ativa para a ação coletiva de tutela de direitos individuais homogêneos. Segue-se, então, que também há equívoco do Código no art. 82, em sua remissão ao art. 100, parágrafo único. A remissão correta é ao art. 81, parágrafo único. Portanto, quer se bate de ação civil pública, para a tutela de interesses transindividuais de natureza indivisível, quer se bate de ação coletiva para a tutela de direitos individuais homogêneos, a legitimação ativa é das pessoas e órgãos enumerados no art. 82, a saber: o Ministério Público; a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; as entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo Código do Consumidor; as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo mesmo Código, dispensada a autorização assemblear. Reforça essa conclusão o disposto no art. 92: ‘O Ministério Público, se não ajuizar a ação, atuará sempre como fiscal da lei’. Efetivamente, se a legitimação ativa, para a ação coletiva de defesa de direitos individuais homogêneos, fosse a prevista no art. 81 (pela remissão do art. 91), o Ministério Público não estaria legitimado, restando sem sentido a hipótese prevista no art. 92, de não ser a ação ajuizada pelo próprio Ministério Público.

Lamentavelmente, temos, então, que reconhecer a existência, no Código do Consumidor, de equívocos de remissão: no art. 91, bem como no art. 98 a remissão deve ser ao art. 82; no art. 82, ao art. 91.

A legitimação de um grupo de consumidores ou vítimas, como representantes da respectiva classe, como ocorre no Direito americano, teria mais razão de ser do que a das pessoas ou órgãos arrolados no art. 82, I, II e lII. É surpreendente que se autorize o Ministério Público a propor ação coletiva, em defesa de direitos individuais de caráter patrimonial, negando-se igual legitimação a grupo de lesados que se apresente como porta-voz da respectiva classe.

Pode-se, porém, facilmente superar o obstáculo, mediante a constituição de associação ad hoc, v. g., a das vítimas do vôo X, com vistas à propositura e ação fundada em contrato de transporte. Em casos tais, pode o Juiz dispensar o requisito temporal de um ano (art. 81, § 1°).

A associação tem legitimação para a defesa coletiva dos interesses, não só dos associados, mas da classe inteira.

VICENTE GRECCO FILHO discorda: ‘No que concerne, porém, à legitimação das associações de defesa do consumidor, deve ser interpretada a legitimação em consonância com o inc. XXI do art. 5° da Constituição, ou seja, que as associações poderão promover a ação em favor de seus associados ou filiados, para se usar o termo da Constituição. Isso porque, se a Constituição assegura o direito de não se associar (art. 5°, XX), conseqüentemente não se pode submeter o direito de alguém a decisão judicial por entidade de que não participe. Isso sem falar do abuso que poderia ocorrer por parte das associações questionando direitos de pessoas indeterminadas e estranhas’ (in OLIVEIRA. Coments., p. 352).

Ocorre que a atuação em prol de terceiros, que o autor não representa, mas substitui, é da essência das ações coletivas. Assim como o Ministério Público e demais órgãos ou pessoas relacionadas no art. 82 atuam em prol de consumidores ou vítimas que de nenhum modo manifestaram sua vontade de que tal ocorresse, assim as associações agem em prol de terceiros, filiados ou não. Daí não decorre prejuízo para direitos individuais, porque, ‘em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual’ (art. 103, § 2°).

Também do ponto de vista prático se impõe a solução aqui preconizada.

Se a sentença há de ser eficaz apenas para os associados, seria mais simples outorgarem os interessados mandato a um advogado, para representá-los em juízo, dispensando-se assim as formalidades de constituição de uma associação.

Considerem-se, ainda, as dificuldades que surgiriam para se determinar quais os beneficiados pela coisa julgada. Teria o Juiz de investigar que pessoas eram ou não eram associadas ao tempo da propositura da ação, ou da sentença, em registros de entidades privadas ...

O que pode ocorrer, sim, é a limitação dos efeitos da sentença, em função da própria natureza da associação autora. Se esta se constituiu para defesa dos interesses dos consumidores de gasolina do Estado de São Paulo, é certo que a sentença de procedência não beneficiará os consumidores de outros Estados, inobstante a identidade de situações.

Um problema que o Código deixou em aberto é o da representatividade da associação. Suponha-se a mesma ação, proposta por duas associações, ambas dizendo-se representativas de determinados consumidores da mesma região. Poder-se-á, é certo, afastar a duplicidade de ações pelas regras da prevenção. Todavia, se é manifesta a representatividade da associação que propôs a segunda ação, não passando a primeira de uma entidade fantasma, a solução encontrar-se-á na decretação da carência de ação, por ilegitimidade ativa.

7. Competência.
O art. 93 do Código de Defesa do Consumidor está inserido no capítulo que regula as ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos.

Poder-se-ia, então, imaginar que a competência aí estabelecida seria restrita a essas ações, cabendo invocar-se, para as demais, o disposto no art. 2° da Lei n. 7.347/85.

Por duas razões me parece claro que a norma de competência estabelecida no art. 93 se aplica a todas as ações coletivas reguladas pelo Código de Defesa do Consumidor. A primeira, é que a Lei n. 7.347/85 regula apenas as ações coletivas pró-interesses difusos. Não teríamos, então, norma sobre competência nas ações coletivas pró-interesses coletivos. A segunda razão é que o art. 93 do Código de Defesa do Consumidor não se refere apenas ao foro do lugar onde ocorreu o dano, próprio para as ações reguladas pelos arts. 91 a 100. Também se refere ao foro do lugar onde deva ocorrer o dano, com que aponta, v. .g., para a ação cominatória do art. 84, o que por si só mostra que o âmbito de aplicação do art. 93 transcende os limites das ações coletivas de responsabilidade civil (arts. 91-100).

O art. 93 do Código de Defesa do Consumidor começa por ressalvar a competência da Justiça Federal, regulada pela Constituição, inclusive no que se refere à competência de Foro (art. 109, § 2°).

No caso de ação coletiva, assim como no de ação civil pública, quem seja o autor não importa, para os efeitos de identificação da ação. Em outras palavras, pode ocorrer que a mesma ação seja proposta por autores diferentes.

Pode ocorrer, pois, que a mesma ação seja proposta pela União ou por órgão da administração pública direta ou indireta da União, perante a Justiça Federal e por associação, perante a Justiça local Estadual. Prevalece, no caso, a competência da Justiça Federal, como nos casos em que a União intervém, mesmo que na mera condição de assistente, em causa pendente (Constituição, art. 109, I).

Competente que seja a Justiça comum Estadual, a competência é do foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer dano de âmbito local (Código de Defesa do Consumidor, art. 93, I); no caso de danos de âmbito nacional ou regional, a ação pode ser ajuizada na capital do Estado ou no Distrito Federal.

Como exemplo de dano meramente local, RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO aponta o de escola paulista praticando sobrepreço em desrespeito à norma de regência (OLIVEIRA, Juarez de & alli. Coments. ao Código do Consumidor, São Paulo, Rev. dos Tribs., 1991, p. 322).

Observe-se que ‘lugar onde ocorreu o dano’ expressa significado diverso de ‘lugar do ato ou fato’ (CPC, art. 101, V, a). Assim, a queda de uma aeronave em local ermo, no interior deste Brasil, provoca danos de caráter nacional, suposta a morte de tripulantes e passageiros de vários Estados do país. Então, a ação coletiva, fundada em contrato de transporte, deverá ser proposta no foro da capital do Estado ou no Distrito Federal.

A lei não impõe o foro da capital do Estado, para os danos de âmbito regional, e o do Distrito Federal, para os de âmbito nacional. Pode, pois, o autor optar pelo foro da capital de seu Estado ou propor a ação no Distrito Federal.

No caso de a mesma ação ser proposta por diferentes autores, em foros diversos da mesma ou distinta Justiça Estadual, a competência fixar-se-á por prevenção.

8. Liminar.
Salvo na ação cominatória regulada pelo art. 84, a obtenção de liminar, em ação coletiva, exige a propositura de específica ação cautelar (v. art. 83).

Assim já era no regime da Lei n. 7.347/85, cujo art. 2°, § 2°, já evidenciava que a previsão, aí, era de liminar em ação cominatória.

Há, em nossos Pretórios, uma tendência a se dispensar específica ação cautelar, preconizando-se a ampliação dos casos de tutela cautelar, por decisão incidente, no processo de conhecimento. Devemos resistir a essa tendência, porque não se trata, aí, de mero formalismo. A medida cautelar é concedida sem prova plena dos requisitos de procedência da ação principal. Não raro é concedida à luz de simples alegações do autor. Ora, concedida a liminar, não há, no processo principal, lugar para a produção, pelo réu, de provas tendentes a demonstrar a inexistência de fumus boni juris ou de periculum in mora. Corre-se, então, o risco de sofrer o réu, por todo o tempo de duração do processo principal, os efeitos de uma liminar injusta, sem poder produzir provas, isto é, sem a observância do princípio do contraditório ou da ampla defesa. Substitui-se, assim, a sentença final, proferida com audiência e produção de provas de ambas as partes, pelo palpite do Juiz, ao despachar a inicial. Essa preocupação é também do legislador, tanto que a própria multa, cominada liminarmente, só é exigível após o trânsito em julgado da sentença de procedência (Lei n. 7.347, art. 12, § 2°).

As cautelas que o Juiz pode deferir, em ação coletiva pró-interesses individuais homogêneos, não são diversas das que as partes poderiam obter em ações individuais. Segue-se, daí, uma conseqüência importante: não se poderá conceder arresto, para garantir indenizações ilíquidas, por força do disposto no criticável art. 841, I, do CPC (sobre as tentativas de superação do obstáculo legal, veja-se A Ação Cautelar Inominada no Direito Brasileiro, de OVÍDIO A. BAPTISTA DA SlLVA, 3 a ed., Forense, 1991, § 35).

9. Despesas processuais e honorários advocatícios.
O art. 87 do Código do Consumidor estabelece: ‘Nas ações coletivas de que trata este código não haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé, em honorários de advogado, custas e despesas processuais. Parágrafo único — Em caso de litigância de má-fé, a associação

autora e os diretores responsáveis pela propositura da ação serão solidariamente condenados em honorários advocatícios e ao décuplo das custas, sem prejuízo da responsabilidade por perdas e danos’.

Despesas processuais é expressão ampla, que abrange a taxa judiciária, as custas referentes aos atos dos servidores da Justiça, a indenização de viagem, diária de testemunha e remuneração dos peritos (cfe. art. 20, § 2°, do CPC). Não abrange os honorários advocatícios (cfe. art. 20, caput, do CPC).

No que se refere ao adiantamento das despesas, cabe repetir aqui a observação da realidade forense, feita por HUGO NIGRO MAZZILLI, comentando análogo dispositivo da Lei n. 7.347/85: ‘O dispositivo, bem intencionado mas muito teórico, não resolve o problema prático de não se poder exigir, por exemplo, que peritos particulares custeiem ou financiem, de seus próprios bolsos, as caras perícias que poderão ser necessárias ...

‘Na verdade, se for público o órgão que deva fazer a perícia, a requisição ministerial ou judicial deverá resolver o problema, seja expedida no inquérito civil, seja no curso da ação judicial. Mesmo assim, no Estado de São Paulo, por falta de verbas, não se conseguem superar os óbices decorrentes do alto custo de perícias, mesmo requisitadas a institutos oficiais ... Vale como exemplo o que tem sucedido nas ações investigatórias de paternidade, que correm sob os benefícios da assistência judiciária. São custos e difíceis de realizar os exames do tipo HLA (human leucocyte antigens)’ (MAZZILLI, Hugo. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, 2 a ed., São Paulo, Rev. dos Tribs., 1990).

Há que se distinguir adiantamento de despesas processuais e pagamento de despesas processuais e honorários advocatícios. Qualquer que seja o autor da ação coletiva, não se exige que adiante numerário correspondente a despesas processuais (custas, emolumentos, honorários periciais, etc.). Julgada improcedente a ação, há condenação do autor nas despesas processuais e em honorários advocatícios, sendo ele o Ministério Público, a União, Estado, Município, o Distrito Federal, entidade ou órgão da administração pública, direta ou indireta. A sucumbência do Ministério Público ou de outro órgão da administração pública, sem personalidade jurídica, acarreta a condenação da pessoa jurídica em que se integra (União, Estado, Município, Distrito Federal). Julgada improcedente ação proposta por associação, não há condenação dela no pagamento de despesas processuais e honorários advocatícios, salvo no caso de litigância de má-fé, tal como ocorria no sistema do CPC de 1939, por força do seu art. 63.

O Código do Consumidor não cogita da eventual má-fé do agente do Ministério Público ou de outro órgão da administração pública. A condenação somente é imponível, e ex officio, à associação autora e aos diretores responsáveis.

Quanto à responsabilidade por perdas e danos: a) não há que se distinguir entre associações e órgãos públicos; o poder público responde pelos atos de seus agentes; b) há que se exigir ação (ou reconvenção), porque a responsabilidade por perdas e danos supõe alegação de prejuízos, e não cabe ao Juiz fazer alegações, ato que é restrito às partes.

10. Litispendência.
‘Observe-se e retifique-se, antes de mais nada, um erro de remissão contido no art. 104: a referência do dispositivo aos ‘efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incs. II e lll do artigo anterior’ deve ser corrigida como sendo à coisa julgada ‘a que aludem os incs. I e II do artigo anterior’: e isto porque é evidente que a coerência interna do dispositivo exige a relação entre a primeira e a segunda remissão, qual seja a referência às ações coletivas dos incs. I e II do parágrafo único do art. 81, e o regime da coisa julgada que Ihes diz respeito (incs. I e II do art. 103). Ademais, a própria ordem de enumeração da coisa julgada (erga omnes e ultra partes) seguida pelo dispositivo claramente indica que a remissão é inquestionavelmente aos incs. I e II, do art. 103’ (GRINOVER, Ada Pellegrini. Da Coisa Julgada no Código de Defesa do Consumidor, Revista Jurídica, Porto Alegre, (162): 9-21, abr., 1991).

Temos, então, que as ações coletivas pró-interesses difusos ou coletivos não induzem litispendência em relação a ações individuais, o que é lógico, porque não há identidade de objeto: interesses individuais não se confundem com interesses coletivos ou difusos.

Já as ações coletivas pró-interesses individuais homogêneos induzem litispendência em relação a ações individuais, porque há continência (CPC, art. 104). De regra, não haverá vantagem na reunião dos processos, facultada pelo art. 105 do CPC, sendo preferível a solução preconizada por GRINOVER: suspensão das ações individuais (CPC, art. 265, IV, a), pelo prazo máximo de um ano (§ 5°, ibid.).

11. Coisa julgada.
A coisa julgada impede a renovação da mesma ação (mesmas partes, mesmo pedido, mesma causa de pedir). Mas não só. Também impede ação contrária, de modo que, julgada procedente ação de cobrança, não pode o réu propor ação declaratória da inexistência do débito, nem tampouco, após o pagamento, propor ação de repetição de indébito.

Razão, pois, tem VICENTE GRECCO FILHO, ao repelir a idéia da existência de vínculo necessário entre o instituto da coisa julgada e a identidade de ações. Argumenta: ‘Qual o defeito da sentença de liquidação em desacordo com a sentença do processo de conhecimento? A ofensa à coisa julgada, sem que o pedido de liquidação mantenha a tríplice identidade com a ação que gerou a sentença.

‘Qual o defeito da sentença que viola o que foi decidido entre as mesmas partes em sentença transitada em julgado relativa à relação jurídica prejudicial?

A ofensa à coisa julgada, sem que haja no caso a tríplice identidade’ (in OLI-VEIRA. Coments. ao Código de Proteção ao Consumidor, São Paulo, Saraiva, 1991, p. 362).

Outro caso ainda em que há coisa julgada sem a tríplice identidade é o da sentença condenatória penal, que torna certa a obrigação de indenizar o dano (CP, art. 91, I; CPP, art. 63; CPC, art. 584, II).

O fenômeno tornou-se agora mais saliente, com as ações coletivas. Efetivamente, a sentença de procedência, proferida nessas ações, produz coisa julgada em prol dos autores de ações individuais (Código de Defesa do Consumidor, art. 103), embora inexista identidade entre ação coletiva e ação individual.

É equivocada, pois, a concepção de que a coisa julgada somente impede a renovação da mesma ação: a tríplice identidade refere-se à identidade de ações e não à coisa julgada.

Não se trata, nesses casos, de ampliação ope legis do objeto do processo, como sustenta ADA GRINOVER (Da Coisa Julgada no Código de Defesa do Consumidor, Revista Jurídica, Porto Alegre, (162): 9-21, abr., 1991). O fato de uma questão de fato ou de direito, que constitui premissa necessária da conclusão, tornar-se indiscutível em outro processo é efeito anexo da sentença. Não há alteração do objeto do processo, porque permanecem o mesmo pedido e a mesma causa de pedir.

Limites subjetivos da coisa julgada.

A eficácia da sentença pode atingir terceiros, com maior ou menor intensidade. O sublocatário é despejado; o credor do réu perde a garantia do bem de que este foi desapropriado.

A autoridade de coisa julgada, porém, é, de regra, restrita às partes (incluído aí o substituto processual, parte em sentido material) e aos seus sucessores.

Há, todavia, exceções importantes: 1. nas ações de estado, a autoridade de coisa julgada é erga omnes (CPC, art. 472); 2. a condenação penal do preposto torna certa a obrigação do preponente de indenizar o dano (CP, art. 91, I; CPP, art. 63; CPC, art. 584, ll); 3. nas ações coletivas, a sentença, conforme sua conclusão (secundum eventum litis), faz coisa julgada erga omnes ou ultra partes (Código de Defesa do Consumidor, art. 103).

No que se refere às ações coletivas, é oportuno lembrar que os dispositivos processuais do Código de Defesa do Consumidor ‘se aplicam, no que couber, a todas as ações em defesa de interesses difusos, coletivos, ou individuais homogêneos, coletivamente tratados’ (GRINOVER, Ada Pellegrini. Da Coisa Julgada no Código de Defesa do Consumidor, Revista Jurídica, Porto Alegre, (162): 9-21, abr., 1991).

Nas ações coletivas, cabe distinguir as seguintes situações: a) Em se tratando de interesses difusos ou coletivos, há coisa julgada erga omnes ou ultra partes, nos casos de procedência do pedido ou de improcedência por falta de fundamento. No caso de improcedência por insuficiência de provas, a ação coletiva pode ser renovada, por qualquer dos legitimados, inclusive pelo que intentou a primeira demanda. O titular de direito individual pode, em qualquer caso, propor ação individual, tendo em seu prol coisa julgada, havendo a ação coletiva sido julgada procedente.

b) Em se tratando de ação coletiva pró-interesses homogêneos, há coisa julgada, qualquer que seja o resultado da ação. Em outras palavras, a ação coletiva não pode ser renovada. Contudo, a improcedência da ação não impede que os interessados que não intervieram no processo, como litisconsortes, proponham ação de indenização a título individual. Julgada procedente a ação coletiva, há coisa julgada em prol dos titulares de direitos individuais.

Limites objetivos da coisa julgada.

Nas ações individuais, a coisa julgada é restrita ao pedido, não se estendendo à motivação da sentença, nem à apreciação de questão prejudicial (CPC, art. 469).

Questão prejudicial é a pertinente à existência ou inexistência de relação jurídica (CPC, art. 5°), que poderia ser objeto de outro processo e cuja resolução predetermina, no todo ou em parte, a solução a ser dada ao pedido formulado pelo autor na inicial (v. FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. A Ação Declaratória Incidental, Rio de Janeiro, Forense, 1976, p. 77).

A coisa julgada pode-se estender à questão prejudicial, havendo pedido nesse sentido, isto é, se proposta ação declaratória incidental.

Nas ações coletivas, a eficácia erga omnes ou ultra partes vincula-se a uma questão de fato ou de direito, que constitui premissa necessária da conclusão, que é coberta pela autoridade de coisa julgada, como efeito anexo da sentença.

12. Ação cominatória.
Lê-se no art. 1.056 do CC que, ‘não cumprindo a obrigação, ou deixando de cumpri-la pelo modo e no tempo devidos, responde o devedor por perdas e danos’.

A partir desse dispositivo havia, entre nós, um preconceito arraigado, contra a execução específica das obrigações. Em se tratando, por exemplo, de promessa de compra e venda não registrada, entendia-se que o promitente comprador não tinha ação para haver a própria coisa (embora permanecendo o promitente vendedor com sua propriedade e posse); devia contentar-se com perdas e danos.

A legislação processual civil, porém, já desde o código de 1939, admitia a execução específica, mesmo das obrigações de prestar declaração de vontade.

O Código do Consumidor rompe de vez com o preconceito, estatuindo o princípio da prioridade da execução específica (art. 84). Sendo ela impossível, busca-se resultado prático equivalente. A conversão em perdas e danos somente ocorre por opção do autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente (parágrafo único).

Na mesma linha de idéias, dispõe o art. 48: ‘As declarações de vontade constantes de escritos particulares, recibos e pré-contratos relativos às relações de consumo vinculam o fornecedor, ensejando inclusive execução específica, nos termos do art. 84 e parágrafos’.

O Código de Defesa do Consumidor faz reviver, entre nós, como ação especial, a cominatória, caracterizada a especialidade pela possível emissão de medida liminar, de natureza cautelar.

A liminar importa em adiantamento da eficácia da sentença, podendo ou não ter caráter cautelar. Tem caráter cautelar, quando o que se adianta é a tutela cautelar. Esta supõe periculum in mora e fumus boni juris. Não tem caráter cautelar, quando o que se adianta é algum ou todos os efeitos da sentença definitiva, independentemente de perigo da demora, mas com razoável certeza da existência do direito. Assim, não tem caráter cautelar a liminar em ação de reintegração de posse. Pelo contrário, têm caráter cautelar os alimentos provisórios, ainda quando concedidos como liminar da própria ação de alimentos, porque supõem periculum in mora, isto é, o risco de dano decorrente da demora da sentença definitiva.

A liminar, nas ações cominatórias do Código do Consumidor, tem caráter cautelar, porque subordinada a justificado receio de ineficácia do provimento final (art. 34, § 3°).

No código de 1939, a ação cominatória estava assim regulada: ‘Art. 303. O autor, na petição inicial, pedirá a citação do réu para prestar o fato ou abster-se do ato, sob a pena contratual ou a pedida pelo autor, se nenhuma tiver sido convencionada.

‘§ 1°. Dentro de dez dias poderá o réu contestar; se o não fizer ou não cumprir a obrigação, os autos serão conclusos para a sentença.

‘§ 2°. Se o réu contestar, a ação prosseguirá com o rito ordinário’.

Como se observa, o preceito emitido liminarmente tornava-se ineficaz, sobrevindo contestação. Havia, contudo, casos de execução imediata da liminar, apesar de contestado o pedido. Eram os casos dos arts. 304 e 305: ‘Art. 304. Na ação cominatória intentada pelo proprietário, com fundamento nos incs. Vll e VlIl do art. 302 (para impedir que o mau uso da propriedade vizinha prejudique a segurança, o sossego ou a saúde dos que habitam o seu prédio; para exigir do dono do prédio vizinho, ou do condômino, demolição, reparação ou caução pelo dano iminente), ou pelo inquilino, com fundamento no inc. Vll do mesmo artigo, o autor poderá, em caso de perigo iminente, requerer em qualquer tempo que o réu preste caução ao dano eventual, indicando desde logo o valor que deva ser caucionado.

‘§ 1°. Se, dentro de 24 horas, contadas da notificação, o réu não impugnar o pedido, o Juiz mandará que preste a caução.

‘§ 2°. Impugnado o pedido, o Juiz decidirá, depois de ouvir perito, se necessário. Da mesma forma procederá se o réu não for encontrado na comarca para a notificação.

‘§ 3°. Deferido o requerimento, o réu terá 24 horas, contadas da intimação do despacho, para efetuar a caução. Se o não fizer, poderá o autor requerer a execução do ato objeto do pedido principal, observado o disposto no art. 305, § 3°, sem prejuízo do prosseguimento da ação.

‘Art. 305. Se na inicial ou no curso de ação cominatória que intentar, a União, ou o Estado ou o Município alegar urgência, verificada por perito, executar-se-á incontinenti a providência requerida, ressalvando-se ao réu, na sentença final, o direito à indenização’.

Com o advento do CPC de 1973, a ação cominatória deixou de ser especial, nela não havendo, pois, lugar para a concessão de medida liminar, sem prejuízo de eventual ação cautelar, se cabível.

Com o Código do Consumidor, reaparece a ação cominatória como ação especial, com a previsão de possível medida liminar, de natureza cautelar, com eficácia imediata. Efetivamente, dispõe o Código: ‘Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o Juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

‘§ 3°. Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao Juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu.

‘§ 4°. O Juiz poderá, na hipótese do § 3° ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.

‘§ 5°. Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o Juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial’.

Como decorre do art. 12, § 2°, da Lei n. 7.347/85, a multa cominada liminarmente só é exigível após o trânsito em julgado da sentença de procedência, mas é devida desde o dia em que se configurou o descumprimento.

A propósito das liminares em ações possessórias, observa ADROALDO FURTADO FABRÍCIO: ‘A doutrina tem convergido para o entendimento de que ao demandado é lícito se fazer representar por advogado na audiência (de justificação) e dela participar ativamente, seja reinquirindo as testemunhas do autor, seja contraditando-as quando ocorra algum dos correspondentes motivos legais. Não Ihe é reconhecida, porém, a faculdade de arrolar testemunhas, pois isso seria incompatível com a índole da justificação’ (Coments. ao CPC, Rio de Janeiro, Forense, 1980, VII/554, Tomo III). A lição é aplicável aqui também. Efetivamente, ou se obtém presteza à custa do contraditório, ou a decisão liminar perde a própria razão de ser, porque, colhidas todas as provas, a própria sentença definitiva pode ser desde logo proferida.

O § 4° do art. 84 repete, com outras palavras, a norma do art. 11 da Lei n. 7.347/85: ‘Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o Juiz determinará o cumprimento da prestação da atividade devida ou a cessação da atividade nociva, sob pena de execução específica, ou de cominação de multa, se esta for suficiente ou compatível, independentemente de requerimento do autor’.

A norma terá mais freqüente aplicação na ação civil pública, voltada ou não à defesa do consumidor. Mais rara deverá ser sua aplicação em ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos. É que esta tem caráter indenizatório (Código do Consumidor, art. 91), visando, de regra, à condenação em dinheiro. Não é de se excluir, todavia, a possibilidade de ação coletiva para o cumprimento de obrigação de fazer, como a intentada com vistas à condenação do fornecedor a substituir peça defeituosa de uma linha de produção.

O que mais chama a atenção, na norma em exame, é a dispensa de pedido, o que põe em cheque princípios processuais fundamentais, em especial o da ação e o da imparcialidade do Juiz. Pode-se, porém, sustentar o enunciado legal, a partir da consideração de que a imposição da multa se poderá apresentar, em muitos casos, como um minus em relação ao pedido de tutela específica ou de obtenção do resultado prático correspondente. Em vez, por exemplo, da substituição da peça por terceiros à custa do réu (execução específica), a fixação, pelo Juiz, de um prazo razoável, para o cumprimento voluntário da obrigação, sob cominação de multa. No caso da ação civil pública, que visa à tutela de interesses transindividuais, de natureza indivisível, ainda que se poderá argumentar com o interesse público que envolve o exercício da ação.

No caso da ação coletiva, voltada para a tutela de direitos individuais, poder-se-á, talvez, justificar o dispositivo, com a consideração de que a ação, se, não é exercida pelos próprios titulares dos direitos individuais, mas por órgãos ou pessoas, que assim exercem função pública. Seja como for, não devemos nos regozijar demasiadamente com esse abandono do princípio da demanda que, é certo, entendido com demasiada rigidez, freqüentemente impede uma solução razoável da lide ou mesmo a sua própria composição. Contudo, o princípio é de inestimável valor, para o resguardo dos direitos individuais e atende, por outro lado, a uma inafastável consideração de ordem psicológica: ninguém, melhor do que os próprios interessados, sabe o que Ihes convém.

Embora embutida no Capítulo lIl, a ação do art. 102 não é de responsabilidade civil. É cominatória, proponível apenas contra a União, pois que se destina a obter proibição para todo o território nacional. O fabricante do produto cuja circulação se quer proibir é litisconsorte passivo necessário, pois é em face dele que se formula o pedido.

A sanção, para o descumprimento da sentença pela União, não é, evidentemente, a de multa. Não pode, pois, ser outra senão a de importar em proibição o simples trânsito em julgado da sentença, nos termos do art. 641 do CPC.

Não há nisso invasão da competência do Poder Legislativo pelo Poder Judiciário, mas simples atividade de substituição, o que, conforme Chiovenda, caracteriza o ato jurisdicional (contra, negando a possibilidade, no caso, de execução específica, VICENTE GRECCO FILHO, in OLIVEIRA, Comentários, 1991, p. 358). Haverá, de qualquer forma, a dificuldade de se tornar efetiva a proibição, contra a vontade do Poder Executivo.

13. Ação pública de nulidade e ações individuais de modificação de cláusula contratual.
O art. 51 do Código de Defesa do Consumidor declara nulas as cláusulas contratuais que impliquem renúncia ou disposição de direitos, que estabeleçam obrigações iníquas ou abusivas, que coloquem uma das partes em desvantagem exagerada, as incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade, as que estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo de uma das partes, as que

determinem a utilização compulsória de arbitragem, as que imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico, as que autorizem uma das partes a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, as que restringem direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato e as excessivamente onerosas para uma das partes.

O § 4° faculta a qualquer consumidor ou entidade que o represente requerer ao Ministério Público que ajuíze a competente ação para ser declarada a nulidade de cláusula contratual que contrarie o disposto no Código, ou que de qualquer forma não assegure o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes.

Conforme RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO, essa ação é constitutiva e somente pode ser proposta pelo Ministério Público (in OLIVEIRA. Comentários, p. 293).

Parece-nos que, pelo contrário, essa ação é declaratória (declaratória de nulidade), como decorre do art. 51, caput (‘são nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais ...’) e que pode ser proposta por qualquer dos legitimados do art. 82. A faculdade, também concedida à associação, de requerer ao Ministério Público o ajuizamento de ação coletiva declaratória não é incompatível com a legitimação, concorrentemente concedida à mesma associação, para propor, ela própria, a ação.

Trata-se, sob certo aspecto, de ação coletiva pró-interesses individuais homogêneos, não se justificando, pois, ação do Ministério Público, órgão de defesa de interesses públicos e difusos. Cada interessado pode propor ação individual, para obter a declaração de nulidade da cláusula inserta em seu contrato, o que mostra que não nos encontramos em face de interesses coletivos de natureza indivisível.

Sob outro aspecto, porém, podem as cláusulas dos contratos de adesão ser visualizadas como verdadeiras normas jurídicas abstratas, sobretudo se pensamos nas pessoas indeterminadas que podem vir a contratar, aceitando oferta pública. Pode-se, então, enquadrar a hipótese no art. 81, parágrafo único, I, do Código de Defesa do Consumidor, justificando-se, assim, a ação do Ministério Público para essa ação.

O art. 6°, V, do Código de Defesa do Consumidor prevê duas outras ações, de natureza diferente, porque constitutivas: a de modificação de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais e a de revisão em decorrência de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.

São constitutivas essas ações porque representam exercício de direitos formativos. Supõe-se, pois, declaração de vontade, necessariamente individual, de cada interessado. Tais ações serão, pois, inelutavelmente individuais. Por ação pública poder-se-á tão-só obter declaração da desproporcionalidade das prestações ou da onerosidade excessiva decorrente de fato superveniente.

É incomensurável o valor dessas normas de Direito Material (arts. 51 e 6°, V). Efetivamente, deixamos definitivamente para trás o pacta sunt servanda, substituído pelo princípio da normatividade justa.

14. Ação individual de responsabilidade civil do fornecedor.
Os arts. 91 a 100 do Código do Consumidor regulam as ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos. O art. 101 refere-se às ações de responsabilidade do fornecedor de produtos e serviços. Como as ações dos arts. 91 e 100 também são ações de responsabilidade do fornecedor, surge certa perplexidade, que se resolve com a consideração de que o art. 101 se refere às ações individuais dos consumidores.

Temos, pois, que a opção pelo foro do domicílio do autor é restrita às ações individuais, discordando, nessa parte, de ARRUDA ALVIM, que estende a regra às ações coletivas, verbis: ‘Esta regra de competência do art. 101, I, aplica-se ao litigante individual. Refere-se o texto a ‘autor’, ao passo que, quando se refere aos legitimados do art. 82, utiliza-se, sempre, dessa dicção ou equivalente (arts. 102, 100, 91, entre outros). Parece, pois, que esse texto se aplica, precipuamente, ao litígio individual, o que se justifica diante do significado protetor do Código do Consumidor.

‘Conquanto se haja fixado a interpretação de que esse texto se refere ao autor de ação individual, à luz dos propósitos do Código do Consumidor, que não descurou do indivíduo-consumidor, há que se conferir ao texto dimensão maior. Efetivamente, tendo em vista a ação coletiva (a qual, muito mais do que o litígio individual, foi prestigiada, curialmente), deve ele ser aplicado, também, para as ações coletivas, mormente porque, em ultima ratio, o que nessa se realiza reflui para o bem do consumidor. Desta forma, exemplificativamente, poderá uma ação mover a ação coletiva, no seu domicílio civil. Da mesma forma, parece-nos, se os integrantes ou membros de uma classe, categoria ou grupo são domiciliados num dado lugar e o fornecedor em outro (ainda que tais membros não sejam partes processuais), dever-se-á promover a ação no domicílio daqueles’ (ARRUDA ALVIM, Código do Consumidor Comentado, São Paulo, Rev. dos Tribs., 1991, p. 101).

O art, 101, II, prevê o chamamento ao processo do segurador. A rigor, a hipótese seria de denunciação da lide. Preferiu-se o chamamento ao processo para estabelecer regra de solidariedade do segurador, até o limite do seguro. Regra, pois, de Direito Material, sob as roupagens de norma processual.

‘Evidencia-se’, escreve ARRUDA ALVIM, que, conquanto se servindo o legislador do chamamento ao processo, em verdade, por ato do réu (fornecedor), logra colocar, perante o consumidor, mais um responsável ‘à sua disposição, o que, sob este ângulo, condiz com os propósitos do Código’ (ibid., p. 217)

VICENTE GRECCO FILHO assim se pronuncia: ‘O chamamento ao processo tem por base uma relação de solidariedade, ao passo que a denunciação da lide uma relação subordinada de garantia, mais adequada, pois, às relações entre segurado e seguradora. Todavia, indicado o chamamento ao processo, ele deve ser o instituto utilizado, isso porque o Código deseja que a sentença condene o réu (no caso os réus, porque o segurador passou a sê-lo com o chamamento), nos termos do art. 80 do CPC, ou seja, condenação solidária (...).

‘É isso que o Código quer, a condenação solidária, sendo evidente, porém, que a condenação da seguradora será até o limite do valor segurado’ (in OLIVEIRA, Juarez. Coments. ao Código do Consumidor, São Paulo, Saraiva, 1991, p, 354).

15. Ação coletiva de responsabilidade civil do fornecedor.
A ação coletiva pró-direitos individuais homogêneos, regulada pelos arts. 91 a 100 do Código de Defesa do Consumidor, deverá ter extraordinária difusão e importância. Mais do que nenhuma outra, representa a emergência do coletivismo, após séculos de acendrado individualismo. Acerca da legitimação ativa e da competência para essa ação já se falou acima. Focam-se, aqui, os temas do litisconsórcio (art. 94), da condenação genérica (art. 95), da liquidação e da execução (arts. 97 a 100).

O art. 94 do Código de Defesa do Consumidor dispõe: ‘Proposta a ação, será publicado edital no órgão oficial, a fim de que os interessados possam intervir no processo como litisconsortes, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de comunicação social por parte dos órgãos de defesa do consumidor’.

Não se trata de citação, motivo porque é inaplicável o art. 232 do CPC.

Não é, pois, de rigor, a exigência de dupla publicação do edital em jornal local. Sobre a forma de comunicação pelos meios de comunicação social decidirá, discricionariamente, mas não arbitrariamente, o Juiz.

Tem-se o afluxo de um número muito grande de litisconsortes, v. g., em hipóteses de vendas em grande quantidade de produtos defeituosos (automóveis, fogões, etc.). O risco não parece grande, no Direito brasileiro, porque a intervenção no processo não se apresenta conveniente. É que a sentença de procedência da ação coletiva beneficia o legitimado a intervir como litisconsorte, independentemente do fato da intervenção (Código de Defesa do Consumidor, art. 103, III), ao passo que a sentença de improcedência somente o prejudica se interveio no processo (Código de Defesa do Consumidor, art. 103, § 2°).

A pendência de ação individual não impede, como é evidente, a propositura de ação coletiva. Tampouco a pendência de ação coletiva impede a propositura de ação individual, por quem não haja intervindo naquela, como litisconsorte.

A ação individual, porém, deverá ser suspensa, se o autor se quiser beneficiar da sentença a ser prolatada na ação coletiva (art. 104).

Parece perfeito o sistema traçado pelo legislador brasileiro. Contudo, para um juízo definitivo, precisamos aguardar os resultados da prática forense.

‘Em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados’ (Código de Defesa do Consumidor, art. 95).

A regra, no CPC, é que se profira sentença certa ou determinada, em resposta a pedido certo ou determinado. ‘É lícito, porém, formular pedido genérico:

I — nas ações universais, se não puder o autor individuar na petição os bens demandados; II — quando não for possível determinar, de modo definitivo, as conseqüências do ato ou do fato ilícito; lIl — quando a determinação do valor da condenação depender de ato que deva ser praticado pelo réu’ (CPC, art. 286).

A regra do art. 95 do Código de Defesa do Consumidor ajusta-se à previsão do art. 95, II, do CPC. Houve, por hipótese, a venda em massa de remédio nocivo. Relembre-se, a propósito, a talidomida, que gerou crianças defeituosas.

Na ação coletiva estabelece-se o nexo causal entre o produto nocivo ou defeituoso e os danos sofridos por seus consumidores. Aqui, uma das maiores vantagens da ação coletiva, porque nela se pode levar a efeito perícias caras e complexas, cujo custo poderia ser insuportável ou desproporcional para o prejuízo sofrido por um consumidor individual. Sobrevém a sentença, individualizando o responsável (ou responsáveis). O an debeatur está fixado. Há necessidade, porém, de que cada lesado alegue e prove sua condição de adquirente do produto condenado, bem como a extensão dos danos sofridos. Para isso, a ação de liquidação de sentença.

Esta ação pode ser movida na pendência do recurso especial ou extraordinário, pois o art. 497 do CPC (com a redação da Lei n. 8.038/90) estabelece que tais recursos não impedem a execução da sentença. No sistema desse Código, a liquidação da sentença integra a execução. Trata-se, no caso, de execução provisória (CPC, art. 587), podendo-se chegar até a penhora e avaliação dos bens penhorados, mas não até a arrematação ou adjudicação (CPC, art. 588).

O fato de o art. 103 do Código de Defesa do Consumidor referir-se à coisa julgada nada tem a ver com a execução provisória da sentença que ainda não transitou em julgado (contra: ARRUDA ALVIM: ‘... a liquidação deve ser procedida a contar do trânsito em julgado da sentença condenatória genérica, prevista neste art. 95’) (Código do Consumidor Comentado, São Paulo, Rev. dos Tribs., 1991, p. 206).

O parágrafo único do art. 97, vetado, dispunha: ‘A liquidação de sentença, que será por artigos, poderá ser promovida no foro do domicílio do liquidante, cabendo-lhe provar, tão-só, o nexo de causalidade, o dano e seu montante’.

Fundamentou-se o veto, dizendo-se que ‘esse dispositivo dissocia, de forma arbitrária, o foro dos processos de conhecimento e de execução, rompendo o princípio da vinculação quanto à competência entre esses processos, adotado pelo CPC (art. 575) e defendido pela melhor doutrina. Ao despojar uma das partes da certeza quanto ao foro de execução, tal preceito lesa o princípio de ampla defesa assegurado pela Constituição (art. 5°, LV)’.

Não obstante o veto, a possibilidade de o foro da liquidação ser diverso do foro da condenação permanece. É que o art. 98, § 2°, estabelece: ‘É competente para a execução o juízo: I — da liquidação da sentença ou da ação condenatória, no caso de execução individual; II — da ação condenatória, quando coletiva a execução’. Tem-se, então, que o foro da condenação e da execução coincidem necessariamente só quando coletiva a execução; no caso de execução individual, o que se exige é a coincidência do foro da execução com o da liquidação, mas não o desta com o da condenação.

No mesmo sentido, a lição de TUPINAMBÁ MIGUEL CASTRO DO NAS-CIMENTO:

‘Desconhecemos, no momento em que escrevemos estes comentários, se o veto presidencial foi mantido ou rejeitado. Enfrentamos, porém, a questão porque entendemos que o resultado da votação do Congresso não alterará a solução processual. Artigo não vetado e eficaz diz que ‘é competente para a execução o juízo: I — da liquidação da sentença ou da ação condenatória, no caso de execução individual; II — da ação condenatória, quando coletiva a execução’ (art. 98, § 2°, do Código). Assim, se a execução é individual, a promovida pelas vítimas e seus sucessores, o foro da ação de conhecimento (ação condenatória) e da liquidação da sentença podem ser diferentes, cabendo ao liquidante optar. Isto está escrito na lei, foi votado e sancionado, sendo norma eficaz. Assim, se a escolha for pelo foro da liquidação, é aplicável, por analogia e eqüidade, a regra do art. 101, I, do Código, que indica o foro do domicílio do autor, na hipótese, do liquidante’ (Coments. ao Código do Consumidor, Rio de Janeiro, Aide, 1991, p. 109).

Não nos parece, porém, que o foro da liquidação possa ser o do domicílio do autor, por aplicação do art. 101, I. Tratando-se de ação individual, aplicam-se as regras do CPC e, porque há regras expresses sobre a competência, não há lugar para a analogia e, menos ainda, para a invocação da eqüidade.

A vinculação do foro da execução ao da condenação, estabelecida pelo CPC, não atende a nenhuma imposição de ordem constitucional e, em particular, não é decorrência do princípio da ampla defesa. Trata-se de regra editada por meras razões de conveniência, que o legislador ordinário pode tranqüilamente afastar, sem com isso violar a Constituição.

Também permanece, não obstante o veto do parágrafo único do art. 97, a exigência de que a liquidação se faça por artigos, porque há fatos novos, que precisam ser alegados e provados na liquidação.

No sistema do Código de Defesa do Consumidor, a liquidação é individual; a ação e a execução podem ser coletivas. A uma ação coletiva podem seguir-se, pois, liquidações e execuções individuais, ou liquidações individuais e execução coletiva.

A execução coletiva somente pode abranger as vítimas cujas indenizações já tiverem sido fixadas em sentença de liquidação (art. 98).

A pendência de execução individual não impede execução coletiva em prol das demais vítimas. Esta, por outro lado, vindo a ser proposta, não afetará a execução individual. Como observa RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO, a execução coletiva ‘não exerce uma vis attractiva sobre as execuções individuais, nem instaura um concurso universal (como se dá nas execuções por quantia certa contra devedor insolvente — CPC, art. 751, III)’ (OLIVEIRA, et alii, Coments. ao Código do Consumidor, São Paulo, Saraiva, 1991, p. 338).

A pendência de execução coletiva impede execução individual dos créditos por ela abrangidos; não, é claro, dos demais.

Salvo assentimento do interessado, a execução coletiva não pode abranger crédito declarado por ação condenatória individual. É o que decorre dos arts. 97 e 104, in fine, que ressalvam as ações individuais dos que não queiram ficar jungidos à ação coletiva. O autor da execução coletiva não tem poderes para receber e dar quitação de créditos individuais.

Dispõe o art. 99 do Código de Defesa do Consumidor que as indenizações por prejuízos individuais têm preferência, no pagamento, sobre os créditos decorrentes de condenação prevista na Lei n. 7.347/85.

Supõe-se, aí, a existência de duas ou mais condenações em decorrência do mesmo evento danoso: uma, em prol do Fundo, por ação civil pública, e outra(s) em prol do(s) lesado(s), por uma ou mais ações individuais ou por ação coletiva fundada no art. 81, III, do Código de Defesa do Consumidor. Não há óbice à execução pertinente à ação civil pública. Todavia, a entrega do produto ao Fundo fica sustada, em garantia dos créditos individuais, pendentes de decisão no primeiro ou segundo graus de jurisdição (art. 99, parágrafo único).

Na verdade, em sua expressão literal, o parágrafo único do art. 99 não determina a sustação da entrega do dinheiro ao Fundo, mas sim a destinação pelo Fundo da importância a ele recolhida, e a pendência que se prevê é a de apelação (decisão de segundo grau) e não de sentença. Havemos de entender, porém, que se susta a própria entrega do numerário e que basta, para isso, a pendência de ação, ainda que no primeiro grau de jurisdição.

Claro, nada impede a propositura de ação individual posterior à apropriação do dinheiro pelo Fundo. A execução, porém, deverá recair sobre outros bens do devedor.

O art. 100 contempla hipótese diferente. Supõe-se, aí, uma ação coletiva, fundada no art. 81, III, do Código de Defesa do Consumidor. E basta essa única ação para que a hipótese possa ocorrer. Houve a condenação genérica e não mais do que isso. Apenas uns poucos lesados propuseram ação de liquidação, para a apuração de prejuízos sofridos individualmente. Tratou-se, por exemplo, de condenar o fornecedor de azeite pela venda de latas com menor quantidade do produto do que a declarada (o exemplo é de JOSÉ GERALDO BRITO FILOMENO, citado por MANCUSO, op. cit., p. 349). É pouco provável que se habilitem, isto é, que proponham ação de liquidação, um número significativo de pessoas lesadas, interessadas em indenização. A condenação genérica tenderá, pois, a cair no vazio. Nesse caso, decorrido um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, ocorre uma transformação importante. Já não se buscará a reparação dos danos individuais, mas se liquidará e executará a sentença com vistas ao recolhimento, ao Fundo criado pela Lei n. 7.347/85, de uma importância correspondente à soma dos presumidos prejuízos sofridos pelos consumidores indeterminados, lesados pelo ato danoso. Uma espécie de multa, executada para dissuadir o condenado, para que a impunidade não faça nascer a tentação da reincidência. Nessa hipótese, do art, 100, o decurso do prazo de um ano gera a decadência dos direitos individuais, porque os créditos correspondentes passam presumidamente a integrar a importância recolhida ao Fundo.