sábado, 24 de setembro de 2016

Servidão por dívida ainda é forma comum de escravidão moderna, alerta especialista da ONU

Relatora especial da ONU fez o alerta durante sessão do Conselho de Direitos Humanos. Segundo estimativa da Organização Internacional do Trabalho (OIT), 21 milhões de pessoas sofrem com o trabalho forçado.
Foto: Darrell Miller/Flickr/CC
Foto: Darrell Miller/Flickr/CC
A servidão por dívida continua sendo uma das formas mais comuns de escravidão moderna em todas as regiões do mundo, apesar de ser proibida pelo direito internacional e pela maioria das jurisdições nacionais, advertiu na semana passada (15) a relatora especial das Nações Unidas sobre formas contemporâneas de escravidão, Urmila Bhoola.
“Mesmo ocorrendo em todo o mundo, em diversos setores da economia, e sendo uma forma de escravidão, com raízes históricas profundas, a servidão por dívida não é universalmente compreendida”, disse Bhoola, durante aapresentação de seu último relatório ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Atualmente, não há uma estimativa confiável a respeito do número de pessoas escravizadas nessa condição em todo o mundo.
No entanto, a especialista apontou para uma estimativa de 21 milhões de pessoas sofrendo com o trabalho forçado, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
“Essa conjuntura fornece uma indicação da extensão do trabalho forçado, dada a estreita relação entre os dois fenômenos que afetam as vítimas de várias formas de discriminação.”
A pobreza, a falta de alternativas econômicas, o analfabetismo e a discriminação que as pessoas pertencentes a grupos minoritários sofrem fazem com que elas acabem solicitando um empréstimo ou adiantamento de empregadores ou recrutadores, a fim de satisfazer as suas necessidades básicas. Em troca, essas pessoas oferecem o próprio trabalho ou o trabalho familiar.
“Os pobres e marginalizados, os migrantes, traficados ou discriminados – incluindo mulheres, crianças, povos indígenas e pessoas de castas afetadas em suas comunidades – são os mais impactados, e acabam entrando nessa forma de escravidão por não terem como pagar as suas dívidas”, observou a especialista em direitos humanos.
De acordo Bhoola, as pessoas em servidão por dívida muitas vezes trabalham sem receber salário ou, por vezes, recebem rendimentos inferiores ao mínimo adequado, a fim de pagar as dívidas contraídas ou adiantamentos recebidos – mesmo quando o valor do trabalho realizado excede o montante de suas dívidas.

Ciclo de pobreza e exploração

Segundo a relatora especial, trabalhadores forçados são frequentemente submetidos a diferentes formas de abuso, incluindo longas horas de trabalho, violência física e violência psicológica.
Alguns dos fatores que empurram as pessoas e as famílias para esse tipo de escravidão incluem a desigualdade estrutural e sistêmica, a pobreza, a discriminação e a migração laboral precária. Marcos regulatórios financeiros fracos ou inexistentes, a falta de acesso à justiça, a falta de aplicação da lei e governança, bem como a corrupção são alguns dos fatores que impedem a liberação do trabalho forçado e a reabilitação de famílias e indivíduos presos neste ciclo de pobreza.
Em seu relatório, Bhoola pede que mais seja feito para compreender a servidão por dívida, e descreve o modo como os Estados-membros da ONU devem tomar uma abordagem variada com base nos direitos humanos universais, a fim de erradicar o fenômeno.
“Para erradicar eficazmente e prevenir essa prática, os Estados devem desenvolver programas abrangentes e integrados de ação com base nas normas internacionais de direitos humanos, que atendam às necessidades das pessoas afetadas e eliminam as causas de tais práticas”, ressaltou.
“As abordagens devem ser multidisciplinares e incluir medidas legislativas e políticas que sejam eficazes, devidamente aplicadas e que forneçam proteção, prevenção e reparação de violações de direitos”, destacou a especialista no relatório.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Direito Penal. Teoria do Crime 5/5. Erro de Tipo e Proibição

Direito Penal. Teoria do Crime 1/5. Fato Típico: conduta e resultado

Direito Penal. Teoria do Crime 2/5. Nexo Causal e Tipicidade

Direito Penal. Teoria do Crime 3/5. Ilicitude: excludentes

Direito Penal. Teoria do Crime 4/5. Culpabilidade: excluentes

Exigência de valor da causa em ação de dano moral é inconstitucional

OPINIÃO

Exigência de valor da causa em ação de dano moral é inconstitucional


A Lei 13.105/15 — o novo Código de Processo Civil, em seu artigo 292, que trata do valor da causa, estabelece em seu inciso V[i] que o valor da causa constará da petição inicial ou da reconvenção e será na ação indenizatória,inclusive a fundada em dano moral, o valor pretendido. Assim, na ação em que se pleiteia alguma indenização por danos morais, deve o postulante estipular o valor da indenização que entende fazer jus, fazendo constar o montante dessa pretensão no valor a ser dado à causa. Sobre referido artigo, alguns doutrinadores[ii] passaram a elogiar a inserção do inciso V no novo CPC, uma vez que assim o legislador estaria dando um golpe contra a chamada “indústria do dano moral.”[iii] [iv]
Sob esse viés sustentam, aqueles que elogiam (e defendem) a inserção do mencionado inciso V, que dessa forma haverá uma limitação no número de ações indenizatórias, considerando que, agora, os postulantes deverão especificar o quantum que pretendem receber a título de indenização, implicando diretamente nas custas processuais, pagas no início do processo, na forma do que disciplina os artigos 82 e 84 do novo CPC[v] e ainda a possibilidade de arcarem com honorários sucumbenciais, caso a ação seja julgada improcedente, ou mesmo tenha sido arbitrado um valor inferior ao pleiteado, segundo os critérios que o magistrado entender mais adequados[vi].
Nesse diapasão, aquele que se sentir ofendido moralmente, para poder socorrer-se do Judiciário, tem por obrigação mensurar qual o valor do dano moral que pretende receber, arcando com as custas processuais e ficando à mercê da interpretação do magistrado que, ao invés de ter que mensurar o valor dos danos, terá apenas que definir se a indenização é devida e se o valor pleiteado é exorbitante ou não. Caso haja condenação em um valor menor do que o indicado pelo autor da ação, corre este o risco de, além das custas pagas antecipadamente, ter ainda que arcar com honorários sucumbenciais.
Entendo, com os argumentos adiante expostos, que há flagrante inconstitucionalidade no citado artigo 292, V, do novo CPC.
Em primeiro lugar devo lembrar de que a Constituição Federal de 1988 trouxe o direito à indenização por danos morais como um Direito Fundamental[vii], na forma do seu artigo 5, X[viii], e ao tratar-se como tal há a necessidade de que haja uma proteção integral, não podendo o legislador ordinário, de forma alguma, mitigar a sua aplicabilidade.  
Não se pode esquecer que os Direitos Fundamentais correspondem aos Direitos Humanos em nível interno[ix], e se estão positivados nesse grau é por que se revestem de uma importância ímpar, sobrepondo-se inclusive sobre outros direitos. Na verdade, os Direitos Fundamentais cumprem um papel fundamental na própria “concretização do moderno Estado Democrático de Direito”[x].
O inciso V, em comento, ao meu olhar, dificulta e até mesmo impede que as pessoas tenham a oportunidade de se socorrer do Judiciário quando entender tiveram seus direitos da personalidade violados, o que fere o princípio constitucional do acesso à justiça, que é também um Direito Fundamental, insculpido no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988, bem como também atenta contra a própria Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica)[xi].
O argumento de que há o socorro dos benefícios da justiça gratuita aos que não possam arcar com as custas ou mesmo honorários advocatícios é muito frágil, mas deixo para rebater este argumento em outra oportunidade por suscitar outras reflexões.
Mais uma observação que reputo oportuna, e sobre a qual não vi ninguém enfrentar ainda o tema, é que a indenização por dano moral tem por objetivo não só satisfazer a vítima, minimizando a dor ou o sofrimento desta, mas também tem por objetivo desestimular o autor a praticar novamente o ato inquinado de ilegal ou ilegítimo. Há mais, na fixação da indenização por danos morais deve ser levada em consideração a capacidade econômica do agente causador do dano. Nesse toar, há questões muito técnicas e complexas (vide as divergências de julgados, inclusive nos próprios tribunais superiores[xii] [xiii]) que o cidadão não está obrigado a conhecer.
Assim, quando se diz que o artigo 292, V do novo CPC, inibirá o ajuizamento de ações temerárias, aventureiras, esquece-se que também inibirá o ajuizamento de ações viáveis, sendo verdadeiro empecilho para o ajuizamento dessas ações e, via de consequência, um estímulo para que aumente o desrespeito em face aos direitos da personalidade. O inciso reveste-se, pois, de inconstitucionalidade por ferir dois preceitos constitucionais, dois preceitos que são também Direitos Fundamentais, o que é mais grave!

[i] Lei 13.105/15 - Novo Código de Processo Civil – NCPC - “Art. 292. O valor da causa constará da petição inicial ou da reconvenção e será:
(...)
V - na ação indenizatória, inclusive a fundada em dano moral, o valor pretendido;”
[ii] Ver, dentre outros, o artigo do prof. Doutor Luiz Dellore. Em http://jota.uol.com.br/novo-cpc-e-o-pedido-de-indenizacao-fim-da-industria-do-dano-moral. Acesso em 08.07.16.
[iii] Segundo o “Justiça em Números”, Relatório do CNJ sobre os números de ações em 2014, tem-se que foram ajuizadas 2.039.288 (4,01%) ações decorrentes das relações de consumo (Direito do Consumidor - Responsabilidade do Fornecedor/Indenização por Dano Moral), 1.258.733 (2,48%) ações decorrentes de responsabilidade civil (Direito civil - Responsabilidade Civil/Indenização por Dano Moral).  O mencionado Relatório aponta, assim, que as ações de Indenização por Dano Moral constam entre os dois principais assuntos dos juizados especiais, no âmbito do direito do consumidor e do direito civil, correspondendo a 20,41% das ações. Acesso em: http://s.conjur.com.br/dl/relatorio-justica-numeros-2015-final-web.pdf
[iv] Já disse em outra oportunidade que quando se sedimentou no STJ a possibilidade de fixação pelos magistrados de indenizações por danos morais, começou-se a se fixar indenizações mais que vultosas, desarrazoadas, o que fez surgir a indústria dos danos morais e o número de ações sobre o tema terminou por crescer vertiginosamente. Era o enriquecimento sem causa superando o interesse social. De repente, a sociedade, a imprensa e a própria doutrina passaram a demonstrar o quão absurdo eram aqueles valores, carecendo de parâmetros objetivos e claros para que se pudesse quantificar esse tipo de dano. O que aconteceu, então? Passou-se de um extremo a outro. As indenizações se tornaram aviltantes, inexpressivas, e as indenizações por ofensa aos direitos da personalidade passaram a ter valores irrisórios, o que terminou por incentivar o cometimento de danos morais de toda ordem, pois os causadores não eram apenados adequadamente. Por que as operadoras de telefonia celular, planos de saúde, bancos e diversos outros setores da economia continuam a tratar os clientes do modo como tratam? É porque compensa, pois o Judiciário, nas demandas que lhes são afeitas, termina por desestimulá-los a uma melhor prestação de serviços, quando deveria ser o oposto, ou seja, deveriam ser inibidos ao cometimento de nova conduta que atentasse contra o interesse da sociedade.
[v] Lei 13.105/15 - Novo Código de Processo Civil – NCPC - Art. 82.  Salvo as disposições concernentes à gratuidade da justiça, incumbe às partes prover as despesas dos atos que realizarem ou requererem no processo, antecipando-lhes o pagamento, desde o início até a sentença final ou, na execução, até a plena satisfação do direito reconhecido no título.
Art. 84. As despesas abrangem as custas dos atos do processo, a indenização de viagem, a remuneração do assistente técnico e a diária de testemunha.
[vi] Não está em debate, no momento, os critérios de fixação dos danos morais pelo juiz, os quais vêm sendo objeto de discussão em diversos estudos, inclusive nos próprios Tribunais. Sugiro, como leitura sobre o tema: XXXX.
[vii] A expressão “Direitos Fundamentais” surgiu em 1770, segundo Perez Nuno, na França, por ocasião do movimento político e cultural que conduziu à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Cf. PÉREZ LUNO, Antônio Henrique. Derechos Humanos, Estado de Direito e Constituição. 10ª ed., Tecnos. Madri, 2010, p. 32.
[viii] Art. 5º - (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
[ix] PÉREZ LUNO aponta parte da doutrina defende que os direitos fundamentais seriam aqueles princípios que resumem a concepção do mundo e que informam a ideologia politica de cada ordenamento jurídico. Aduz ainda que a concepção de que os direitos fundamentais não necessariamente decorrem de uma positivação constitucional, considerando-os como a resultante das exigências da filosofia dos direitos humanos com su plasmación normativa em el derecho positivo. “En todo caso, se puede advertir uma certa tendência, no absoluta como lo prueba el enunciado de la mencionada Convención Europea, a reservar la denominación “derechos fundamentales” para designar los derechos humanos positivados a nível interno, em tanto que la fórmula “derechos humanos” es la más usual em el plano de las declaraciones y convenciones internacionales”. Ob. Cit. p.33.

[x] Ver artigo de Gilmar Mendes, Proteção judicial efetiva dos direitos fundamentais. In Direitos Fundamentais e Estado Constitucional – Estudos em homenagem a J. J. Canotilho. Revista dos Tribunais. pp. 372 e ss.  

[xi] CF/88 - art. 5.º, XXXV – “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”;
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas (ONU), em 10.12.1948, tem disposição expressa no sentido de que: “VIII. Todo homem tem direito a receber, dos tribunais nacionais competentes, remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei”.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22.11.1969, estabelece no art. 8.1 que: “Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”

[xii] As divergências são tantas que o STJ editou a Súmula n. 420 - Incabível, em embargos de divergência, discutir o valor de indenização por danos morais. Ver ainda: https://ww2.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2014_40_capSumula420.pdf
[xiii] DANO MORAL. INDENIZAÇÃO. RAZOABILIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO NO STJ. SÚMULA 7. - Em recurso especial somente é possível revisar a indenização por danos morais quando o valor fixado nas instâncias locais for exageradamente alto, ou baixo, a ponto de maltratar o Art. 159 do Código Beviláqua. Fora desses casos, incide a Súmula 7, a impedir o conhecimento do recurso. - A indenização deve ter conteúdo didático, de modo a coibir reincidência do causador do dano sem enriquecer injustamente a vítima. (...) (STJ - REsp: 633105 MG 2004/0005249-0, Relator: Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, Data de Julgamento: 25/09/2006,  T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 27.11.2006 p. 275). (Grifei)


 é advogado, mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (RS). Membro da Comissão Nacional de Educação Jurídica do Conselho Federal da OAB. Professor da Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí (ESMEPI).

Revista Consultor Jurídico, 23 de setembro de 2016, 6h05