quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Em carta de despedida, promotor critica postura do Ministério Público





[Carta de despedida de Roberto Tardelli, depois de 31 anos no Ministério Público de São Paulo. Tardelli foi o responsável pela acusação no caso de Suzane von Richthofen. Com sua aposentadoria — publicada no Diário Oficial de sexta-feira (19/9) —,  ele voltará a advogar.]
Estou indo, peguei meu boné.
Quero dizer a cada um que foram os melhores trinta anos de minha vida esses que passei no MP.
Ter sido promotor de justiça foi um grande barato. Descobri e continuo descobrindo que podemos melhorar a vida das pessoas, que somos protagonistas e seremos protagonistas da construção republicana e democrática do Brasil. Não somos apenas indispensáveis, somos parte do DNA de uma nação que ainda se percebe e ainda se conhece.
Ao contrário do que gostaria de dizer, se pudesse, não faria tudo da mesma forma que fiz. Teria a mão menos pesada quando a tive pesada (faz tempo isso), soltaria mais a alma e a voz e prenderia menos pessoas. Seria menos formal nas solenidades protocolares. Ouviria mais axé, comeria mais carne ainda do que já tenho comido e beberia mais vinho e menos cerveja. Iria mais ao cinema e pouco me lixaria com prazos de réus de bobagens que sequer justificariam nossos processos.
Dirigiria mais cuidadosamente meu carro e, quando fosse aumentar a música, eu o fizesse com maior determinação, para espalhar mais João Gilberto pela cidade. Não precisaria ser autoridade o tempo todo e faria questão de me sentar na arquibancada. Nem por decreto, por nada nesse mundo subiria nos malditos elevadores privativos. Jamais.
Na audiência, chamaria a todos pelo nome, inclusive e principalmente o réu e a vítima. Chamar as pessoas pelo nome lhes dá a humanidade que essas expressões consagradas retiram: réu e vítima, sem nome ou rosto e procuraria deles me lembrar, pois que sempre existem coincidências: passeando no parque, encontro o réu e seu filhinho. Ele, um pai exemplar e amava mesmo o filho, deficiente mental profundo; num dia de fúria, arrancou a orelha de um balconista.
Pediria mais absolvições (no fim da reta, eu pedia; deveria ter feito mais isso desde o início), sorriria mais, escreveria de forma menos catastrófica e atenderia a todos. Serviria café à tia do café.
Deveríamos usar menos ternos, porque nada há de terno em nosso terno preto, vetusto, de risca de giz. Respeitaria menos quem exigisse ser respeitado pelo cargo, função, idade ou possibilidade de nos prejudicar. Ignoraria corregedores e procuradores, fossem de justiça, fossem os gerais, fossem aqueles que usassem o brega e horroroso anel de grau, tantos destinos a um rubi e ele foi parar no dedo de um bocó. Não respeitaria o silêncio grave dos corredores forenses. Talvez distribuísse apitos.
Escreveria mais coisas da vida e menos coisas da lei nos processos ou inquéritos. Citaria menos autores, principalmente aqueles que todos citam, os consensuais, quase sempre burocratas e que conseguem acertar o fácil. Iria atrás daqueles que prezassem a imprecisão, os que cultuassem a dúvida e nunca, nunca, permitiria que certezas se instalassem em minha mesa de trabalho.
Jogaria fora, poria no lixo, os carimbos. Diria apenas, ok e seguiria o filme. Temos carimbos demais, carimbamos demais.
Nunca os suportei e talvez os suportasse ainda menos, aqueles que dizem que vivemos uma Guerra Contra O Crime ou aqueles super-heróis, cuja missão a eles passada na Sala de Justiça os fizessem proteger a sociedade ordeira. Não existe guerra alguma e estamos prendendo irmãos iguais e sociedade alguma é ordeira, principalmente a que espanca crianças, mata homossexuais, mulheres e tem sua polícia a executar pretos e pobres na periferia.
Afundaria em um lago distante quem dissesse que a lei confere direitos demais aos criminosos. Pregaria na testa de quem dissesse Humanos Direitos um adesivo: estúpido. Nenhum respeito teria por quem defendesse a pena de morte e sugeriria que quem a defendesse começasse a praticá-la como um direito pessoal em si mesmo e nos poupasse.
Abraçaria mais as mulheres do busão e atenderia quem tivesse os filhos presos com mais atenção, toda a atenção e não mediria esforços para que não fossem humilhados nas visitas. Defenderia o meio ambiente e o consumidor.
Não leria a Veja.
Teria medo de superpoderes e os guardaria onde estivessem protegidos de mim.
Ter sido promotor foi a possibilidade mágica de “estar no fundo de cada vontade encoberta”, que aproveitei o quanto pude, mudando sempre, aprendendo sempre, diariamente. Vi até gêmeos de pais diferentes, vi assassinos e vi a solidão que traziam nos olhos. Vi pessoas que cruzaram os oceanos todos para adotar uma criança a quem pudessem amar incondicionalmente.
Vi meninos de rua morrerem de AIDS. Um, muito perto de mim, mudou minha forma de ver o mundo e tudo o mais que ocorresse à minha volta.
Um processo muito peculiar e um caso único que agitou o país me jogou para fora do que até então houvera vivido e me fez em contato com a população, de forma tão viva que eu deixei de ser apenas um promotor de justiça e me tornei um falador e contador de história e aprumador de realidades, algumas vividas outras nem tanto.
Ter me tornado conhecido das pessoas será uma das coisas que jamais pagarei ao Ministério Público e a esse ofício de Promotor de Justiça. Andei pelo Brasil e descobri um país que nunca imaginei existir, seja por seus contrastes, seja por sua pujança, pelos seus defeitos e pelos seus encantos, mais encantos que defeitos. Pude externar minha opinião, que é apenas minha, mas que foi ouvida mais do que eu supunha. Falei e falei no sertão, nas caatingas e nos gerais. Em Sampa e no meu estado de São Paulo, penso que fui a quase todas as faculdades. As que ainda não fui, que me aguardem.
Fui paraninfo de jovens que me deram essa enorme honra. Tenho isso no coração.
Dentro do Ministério Público, vi meus filhos, Fernanda e Brenno, crescerem; conheci a Carla, a doce Carla, somente porque era promotor de justiça. Dificilmente eu a teria visto ou seria por ela notado se fosse astronauta ou sorveteiro, até isso o MP me proporcionou.
Fiz bons amigos. Tenho bons amigos. No Ministério Público e nas pontes que o MP constrói, na advocacia e na magistratura. Sempre que preciso de um vinho, encontro comparsaria à altura. Há trinta anos que não bebo sozinho e, vamos lá, admitam, isso é um feito.
Ficamos chatos, chatinhos. Ficamos aqueles pentelhinhos sociais. Sou muito cobrado por isso, mas fazer o quê?, são inflexões históricas, inevitáveis, diante de nossa forma burguesinha de aquisição de talentos. Sérios demais. Gente jovem que está deixando de sorrir para franzir o cenho e não cumprimentar porteiros: o vento vira, creiam, como vira… Estamos condenatórios e sei que haverá quem, chegando até aqui, ao ler esse texto há de pensar que eu surtei e que não era mesmo de confiança. Não nos damos conta que essa fúria condenatória nos custará caro em breve, brevíssimo. Uma nação não se constrói com condenações em série, pelo contrário.
Mas, isso é assunto para outro dia. Agora, só quero dizer a todos que valeu. Gostaria de beijar a todos, abraçar a todos. Quem não quiser, não precisa me abraçar porque eu abraço sozinho, pronto. Abraçar é o que importa e todos os amigos e amigas foram fundamentais nessa caminhada, que adorei fazer, curti ao máximo fazer e sempre fiz, dando o máximo de mim. Minhas mãos e minhas pernas, minha esperança. Meu amor pela vida.
Essa uma que me empurra para novas aventuras.

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