O Rio de fevereiro
Sergio Ricardo do Amaral Gurgel e Henrique Nelson Calandra
Intervenção federal cheia de enganos mil.
terça-feira, 6 de março de 2018
Não
há lugar do planeta tão reverenciado pela beleza quanto a cidade do Rio
de Janeiro. O litoral contornado por morros como o Pão-de-Açúcar, que
dão vista para o infinito do Atlântico, fazem do carioca um povo feliz
por natureza. Entretanto, qualquer pessoa que resida ou venha visitar a
região não tardará em perceber os inúmeros contrastes da terra de São
Sebastião. As contradições, que começaram desde o período pré-colonial,
agora saltam aos olhos do mundo com o decreto de intervenção federal.
Na primeira metade do século XVI, o desinteresse da
Coroa Portuguesa por suas conquistas ultramarinas permitiu a formação da
França Antártica, que acabou sendo desmantelada pelos legítimos
possuidores, em virtude das constantes investidas militares conhecida
como Expedição Guarda-costas. O incidente bélico já era uma prévia do
que iria ocorrer nos séculos posteriores, em que pessoas unidas pelos
mesmos laços culturais passariam a se enfrentar em luta de morte, assim
como fizeram as nações indígenas associadas ao homem branco europeu, em
uma guerra com objetivos completamente estranhos aos seus interesses.
Desde então, o espaço físico que hoje compreende o município Rio de
Janeiro jamais perdeu a sua posição de destaque na historiografia
nacional. Por suas praias vieram os jesuítas carregando a cruz do
Redentor, que hoje assiste a tudo do alto do Corcovado; dos seus campos
partiram os bandeirantes para envergar a linha de Tordesilhas; e em seu
terreno tomado de pedras ergueram-se os prédios que abrigaram a
Monarquia; o primeiro Banco do Brasil; a Biblioteca Nacional; o Teatro
Municipal; o Forte de Copacabana; e o Palácio do Catete, onde as
decisões governamentais eram proferidas em última instância para as
demais unidades da federação.
Em razão de o grande capital ter ficado concentrado
no Rio de Janeiro, inevitavelmente, todo o resto a ele agregado não
poderia deixar de se ambientar ao redor, sem qualquer possibilidade de
triagem quanto aos respectivos efeitos de cunho sociológico. Assim, em
paralelo ao grandioso parque industrial, implantado sem a mínima
infraestrutura no setor de habitação e transporte, foram germinando as
favelas. Os anos foram passando, e o inchaço populacional, agravado pela
intensa imigração de todas as regiões do país, transformou rios, praias
e lagoas em verdadeiros esgotos a céu aberto; nas proximidades dos
grandes hotéis, proliferou-se a prostituição; e em virtude da ausência
de políticas públicas para proporcionar o mínimo de oportunidade para a
maioria da população, veio, sorrateiramente, a violência.
A omissão dolosa dos governantes em todas as esferas
do poder transferia para as polícias a responsabilidade de promover a
segurança pública. Obviamente, o máximo que poderia ser realizado a base
de ferro e fogo era a tarefa de colocar o pobre - sempre visto como
bandido em potencial - em seu devido lugar, em nome de uma suposta paz
social. Há de convir que, em uma cidade onde a maior favela do mundo
fica ao lado de um clube de golfe, e apenas uma rodovia de mão dupla a
separa dos luxuosos condomínios com vista para o mar (onde até
governadores e presidentes da república já fixaram residência), o papel
da polícia, indubitavelmente, por muito tempo, foi desempenhado com
maestria.
Ocorre que, nos dias atuais, os antigos métodos não
produzem mais os efeitos esperados. A crise econômica, somada ao saque
das riquezas do povo fluminense orquestrado pelas organizações
criminosas extraídas das urnas, antecipou o inevitável. O caos tomou
conta das ruas, e não há mais lugar onde a integridade física do cidadão
não fique sob dano iminente, independente da hora e do dia. Quem anda
com a janela do carro aberta, por exemplo, ou atende ao comando do sinal
vermelho, se revela como um ingênuo forasteiro que acaba de chegar à
cidade para uma estreia inesquecível; e aquele que se atreve a utilizar o
celular enquanto caminha pelas ruas, se não foi o próprio autor da
subtração do aparelho, talvez padeça de alguma anomalia que mereça ser
avaliada em minucioso exame clínico.
Foi nesse clima que o povo carioca passou a clamar
por socorro, de preferência advinda das Forças Armadas. A população do
Rio de Janeiro, assim como a do resto do país, não tinha a menor ideia
de como tal providência poderia ser tomada de modo a envolver os
militares em um projeto emergencial de segurança pública. Com o
baixíssimo grau de instrução e escolaridade, obviamente não era de se
esperar que a multidão tivesse ciência a respeito dos dispositivos
constitucionais relativos a um problema jurídico e social de alta
complexidade. Por esse motivo, até hoje há quem denomine de "intervenção
militar" o conjunto de medidas em andamento.
O certo é que o Presidente Temer atendeu ao
chamamento perante a cúpula do governo estadual que, diante das câmeras,
e sem qualquer constrangimento, admite o colapso, embora se esquive do
debate sobre as relações de causa e efeito. Depois de dois anos de
assassinatos de policiais militares na proporção de um a cada dois dias,
quem poderia esperar um carnaval de ordem e paz? Talvez apenas o
prefeito do Rio de Janeiro, que estava na Suécia, em suposta missão
cultural, no intuito de importar dos nórdicos a tecnologia para lidar
com a miséria, entre outros problemas tipicamente europeus, como
ausência de área disponível para a construção de camelódromos, desfiles
de escola de samba, febre amarela, desabamento de ciclovias etc. Ironias
à parte, de fato deveríamos ao menos ter aprendido com o Primeiro Mundo
como planejar e executar medidas extremas de restauração da ordem
pública com seriedade e competência.
Como o instituto da intervenção federal ainda não
tinha sido aplicado sob a égide da atual Constituição da República, o
procedimento adotado pelo governo para responder às gravíssimas questões
de segurança vem causando perplexidade. O primeiro passo foi dado pelo
Presidente ao anunciar em rede nacional o conteúdo do seu decreto. Neste
aspecto, o Brasil inovou na arte da guerra, pois antes de invadir a
área de conflito, pediu, gentilmente, para que o inimigo o esperasse,
pois havia uma burocracia a cumprir, "coisa e tal" (só faltava
distribuir senha para os bandidos e pedir para que retornassem em nova
data, como de costume na administração pública). Em seguida, foi dado
início ao processo legislativo que o crime organizado teve a
oportunidade de acompanhar pela televisão, com direito a um resumo
exibido pelo Fantástico. Como se não bastasse, foi preciso enviar um
relatório para o Tribunal de Contas da União, outro para a
Advocacia-Geral da União, outro para o Ministério Público, e outro para o
Ministério dos Direitos Humanos, até que as tropas, finalmente,
fizessem a inserção nas áreas de risco. Porém, como os ajustem ainda não
tinham sido concluídos, os combatentes, para não fugir ao estilo,
passaram alguns dias elaborando relatórios sem nada poder fazer. Fazer o
quê?
Pelas estradas que ligam o Rio de Janeiro aos estados
vizinhos, é bem provável que os delinquentes tenham transitado
tranquilamente. Em um país, onde diariamente passam toneladas de drogas e
armas pelas rodovias estaduais e federais, não é de se espantar que
também atravessem pessoas, até porque, até agora não se sabe exatamente
quem estão procurando. Diziam que um dos marginais atende pelo apelido
"cabelo duro". Isso ajuda? Talvez um pouco, mas a imprensa informou que
esse indivíduo integrava o PCC, facção criminosa que opera em São Paulo.
Tudo é tão confuso que os soldados receberam a ordem para tirar fotos
dos moradores exibindo a respectiva carteira de identidade, ou seja, uma
"inovação" de improviso no tocante à legislação referente à
identificação criminal. Depois de anos lutando para a regulamentação da
matéria instituída pela lei 12.037/13,
visando garantir que os métodos de identificação não fossem utilizados
inutilmente, sem fundado receio, ou que servissem de cruel instrumento
para humilhar o cidadão, voltamos à estaca zero. Porém, quem sabe um
desses perigosos traficantes, andando com o um saco de pão francês na
mão, e portando uma carteira de identidade autêntica, não tire uma self com um soldado?
Em meio ao esfacelamento do Direito Processual Penal,
que começou a agonizar com a deflagração da Lava Jato, voltou-se a
questionar sobre a possibilidade de se expedir mandado de busca
domiciliar coletivo ou itinerante. Há anos o assunto vem sendo debatido
pela doutrina e jurisprudência, e a conclusão sempre foi muito simples:
não se encontra previsto em lei, e não poderia ser diferente. A casa é
asilo inviolável, e as hipóteses excepcionais que autorizam à entrada a
força estão elencadas na Lei Maior. Por sua vez, o Código de Processo Penal
estabelece o procedimento para a consecução do ato, quando exercido
pelo agente público, exigindo, entre outras medidas, que seja indicada,
"o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência
e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca
pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a
identifiquem; mencionar o motivo e os fins da diligência." (art. 242, I,
II, do CPP). Em que pese muitas casas serem de difícil acesso, ou por
terem comunicação entre elas, ou pelos tradicionais "puxadinhos" que
fazem com que se perca de vista o limite de uma e outra, devemos lembrar
que tais construções foram edificadas sob aplausos do poder público,
que nada fez para impedir as inúmeras irregularidades, e que colocam a
comunidade em risco constante. Se na tomada do Complexo do Alemão pelos
agentes de segurança, em conjunto com as Forças Armadas, a legislação
pátria foi respeitada, por que não haveria de ser agora?
Claro que o tamanho da polêmica tinha de ser
proporcional à magnitude da operação. Antes mesmo de ser iniciada, houve
quem sustentasse a legalidade em atirar em qualquer um que estivesse
ostentando um fuzil. Embora a proposta possa parecer razoável,
principalmente para quem é obrigado a conviver com esta triste
realidade, nenhuma adequação guarda com o ordenamento jurídico em vigor.
Considerando que o Brasil não se encontra em estado de guerra declarada
(ainda), os agentes públicos só podem atirar, inclusive para matar, na
salvaguarda de direito próprio ou alheio, apenas nos casos de legítima
defesa, conforme o disposto nos artigos 25 do Código Penal e 44 do Código Penal Militar. A conduta de portar arma de fogo de uso proibido está prevista no art. 16 da lei 10.826/13
(Estatuto do Desarmamento), cuja sanção, imposta por um magistrado,
pode chegar a seis anos de reclusão, e jamais à pena capital, muito
menos aplicada por um soldado ou policial. Deveria ser diferente? Muitos
vão concordar. Então que seja convocada nova Assembleia Constituinte!
Claro que o Governo Federal não espera resolver o
problema da violência no Rio de Janeiro por intermédio da força bruta.
Nem mesmo o mais ignorante cidadão chegaria a crer no engodo da
onipotência estatal, mesmo porque não precisa ser um gênio para entender
que a selvageria brota na estufa da desordem e da miséria material e
intelectual. A intervenção decretada em fevereiro apenas se mostrou
necessária, não só pelos episódios de barbárie difundidas no mundo
inteiro, como também pelo fato de as próprias autoridades locais
admitirem a incompetência para resolvê-los. Entretanto, diante dos
métodos que estão sendo utilizados, o que se espera agora é que ao menos
as Forças Armadas, que heroicamente conseguiram manter a imagem
imaculada, gozando de grande prestígio perante a sociedade, não venham
se contaminar com as mazelas políticas que nos levaram ao presente
estado de degeneração total.
______________________
*Sergio Ricardo do Amaral Gurgel é advogado da banca Amaral Gurgel Advogados, autor da Editora Impetus, professor de Direito Penal e Processo Penal.
*Henrique Nelson Calandra
é desembargador. Especialista em Direito Empresarial, presidente da AMB
- Associação dos Magistrados do Brasil nos anos de 2011-2013,
ex-presidente da APAMAGIS - Associação Paulista de Magistrados e
professor emérito da Escola Paulista da Magistratura.
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