Os rins recebem sangue através das artérias renais, ramos da aorta que vem diretamente do coração. Depois que circulou pelo grande número de vasos existentes nesses órgãos, livre das toxinas, o sangue sai pelas veias renais rumo ao coração e a urina desce pelos ureteres até cair na bexiga.
É função dos rins filtrar o sangue para eliminar substâncias nocivas ao organismo, como a amônia, a ureia e o ácido úrico. Mas eles não funcionam apenas como simples filtro, que prende em suas malhas os produtos que não interessam ao organismo. Eles também agem ativamente, secretando substâncias importantes para nossa saúde.
Quando as inúmeras unidades que compõem os rins ficam comprometidas, a pessoa entra num processo chamado de insuficiência renal que pode tornar-se crônico e que, ao atingir determinados limites, exige diálise ou transplante de rim como solução terapêutica.
Transplante de rim é uma alternativa bastante eficaz para o tratamento da insuficiência renal crônica. Quando ele se faz necessário, o paciente recebe um rim novo, uma artéria para nutri-lo, uma veia que serve de escape para o sangue venoso e um ureter para excretar a urina.
DOAÇÃO INTERVIVOS
Drauzio – Como é feito o transplante renal?
Elias David Neto – Obviamente, para fazer um transplante renal, necessita-se de um doador, que pode ser uma pessoa viva – um parente, um irmão ou o pai – que doe o órgão para a pessoa que dele precisa. Nesse caso, as cirurgias do doador e do receptor são feitas ao mesmo tempo. Uma equipe cirúrgica retira o rim do doador com parte de uma artéria, de uma veia e um ureter numa sala, enquanto em outra sala a equipe de transplante prepara o receptor para receber esse rim tão logo ele seja extraído. A seguir, emendam-se a artéria e a veia do doador na artéria e na veia do receptor e o ureter em sua bexiga. Feito isso, está terminado o transplante.
Drauzio – Os rins que não funcionavam mais ficam no corpo do receptor?
Elias David Neto – Ficam, pois o novo rim é implantado bem pertinho da bexiga, na parte baixa da pélvis. Isso se faz necessário porque é retirado um pedaço pequeno do ureter do doador e porque o cirurgião trabalha longe dos rins antigos. Na verdade, eles só precisam ser removidos se o paciente tiver uma doença que causou muitas infecções ou a formação de inúmeras pedras.
Drauzio – Mesmo porque o pouquinho que os rins comprometidos conseguem filtrar pode ainda servir de alguma ajuda…
Elias David Neto – Só servem enquanto o rim novo não funciona adequadamente, porque depois ele não deixa nada para os outros fazerem.
PREOCUPAÇÃO DOS DOADORES
Drauzio – Muitos candidatos à doação ficam com medo de não viver bem com um rim só. Esse temor tem fundamento?
Elias David Neto – As pessoas precisam pensar no seguinte. Suponhamos que um exame revele um pequeno tumor no rim e que a melhor conduta seja retirá-lo. Ninguém pergunta se vai conseguir viver bem com um rim só. Simplesmente retira o rim em que está o tumor. Já o candidato a doador faz sempre essa pergunta, embora a situação seja praticamente a mesma.
Os dois rins juntos exercem 100% da função renal, mas ainda conservam uma reserva funcional que entra em ação quando solicitada. A retirada aguda de um deles faz com que essa função caia para 50%. No entanto, passados três meses da doação, o rim remanescente atinge de 70% a 80% da função, o que já é suficiente para alcançar a faixa de normalidade. É tão tranquilo que, cinco dias depois da cirurgia, o doador recebe alta definitiva.
Como a mulher que dá à luz não retorna ao hospital depois do nascimento do filho, porque não está doente, a pessoa que doa um rim também não volta, porque não está doente. Se lhe acontecer alguma coisa, certamente não será por causa da doação.
Drauzio – Você disse que em três meses praticamente o rim remanescente recuperou a função integral. Nesse período, que cuidados o doador deve tomar?
Elias David Neto – Com o rim propriamente dito, nenhum cuidado especial. No primeiro mês, não deve fazer ginástica. Depois pode retomar todas as atividades, não importa se lutava boxe, judô ou pulava de paraquedas.
REJEIÇÃO AGUDA E CRÔNICA
Drauzio – O receptor recebe um rim de uma pessoa com quem tem histocompatibilidade, ou seja, uma compatibilidade de tecidos próxima a dele. Nós sabemos que o corpo humano reage contra qualquer tecido estranho que apareça no organismo. Portanto, a tendência é rejeitar o órgão transplantado. Quantos dias o paciente fica no hospital e que cuidados devem ser tomados para inibir a rejeição?
Elias David Neto – Em geral, ele fica de sete a dez dias no hospital. Para inibir a rejeição, assim que é internado começa a tomar imunossupressores, ou seja, drogas que diminuem as defesas imunológicas não só contra o novo órgão, mas contra agressões de agentes externos. Atualmente, os remédios são muito mais específicos contra a rejeição e podem ser dosados no sangue de tal forma que, com a menor quantidade possível, consegue-se suprimir a resposta de agressão contra o órgão transplantado e manter a defesa contra vírus, bactérias ou tumores. E não para nisso: a cada ano, surgem drogas novas para combater a rejeição e que agem menos sobre as células que defendem o organismo contra agentes infecciosos.
Drauzio – As drogas do passado deprimiam a imunidade como um todo. Por isso, os doentes ficavam muito mais sujeitos a infecções.
Elias David Neto – Além disso, nossa capacidade de monitorar a dosagem dessas drogas no sangue – ”Olhe, a dosagem está alta ou baixa demais para esse paciente” – era muito limitada. Atualmente, conseguimos acertar as doses de tal forma que a pessoa recebe exatamente a quantidade necessária. Por isso, o risco de rejeitar o órgão logo depois do transplante não existe mais.
É raríssimo alguém perder o rim por rejeição aguda. A perda pode ocorrer a longo prazo, dez, quinze, vinte anos depois do transplante, por um processo de rejeição crônica, caracterizado pela agressão contínua e vagarosa do organismo que obriga a fazer novo transplante. Esse processo, infelizmente, a ciência ainda não conseguiu interromper.
Drauzio – Qual é a porcentagem de pacientes que perdem o órgão transplantado a longo prazo?
Elias David Neto – A última estatística indica que a sobrevida média de um rim está em torno de quinze anos. O que quer dizer sobrevida média? Quer dizer que, no fim de quinze anos, 50% dos órgãos transplantados não estarão funcionando e que 50% estarão funcionando, não se sabe, porém, por quanto tempo. O que se sabe é que a sobrevida vem aumentando: era de cinco anos, passou para sete, para dez, para doze e agora está em quinze anos. O cálculo mais recente foi feito com pacientes transplantados na última década. Provavelmente, com a evolução da drogas atuais, a sobrevida já esteja maior.
COMPLICAÇÕES ASSOCIADAS
Drauzio – Quais as complicações mais frequentes associadas ao transplante de rim?
Elias David Neto – Quando a pessoa recebe um transplante de rim, não vira atleta de olimpíada. Continua sendo a pessoa que sempre foi, só que agora é transplantada e precisa cuidar da saúde como todas as outras deveriam fazer, porque o transplantado também tem doença no coração, nas artérias, diabetes e envelhece. No seu caso específico, o transplante e as drogas fazem com que essas doenças tenham um desenvolvimento um pouco mais acelerado do que nas pessoas normais; portanto, eles têm de se cuidar mais.
É um erro o indivíduo com 55 anos achar que fez um transplante e se transformou num garoto de dezoito. Ele só recebeu um rim. Não pode fumar, precisa fazer exercícios físicos, tem que controlar o colesterol, a glicemia, a obesidade e cuidar das coronárias, porque a doença coronariana agride mais rapidamente os transplantados.
ADESÃO AO TRATAMENTO
Drauzio – Esses medicamentos para inibir a rejeição precisam ser tomados por toda a vida. Isso impõe limitações aos transplantados?
Elias David Neto – Nós não indicamos o transplante, porque achamos bonito. Indicamos, porque o indivíduo precisa dele para continuar vivendo. É a única alternativa e ele tem de tomar remédios pela vida inteira ou até que a ciência descubra uma fórmula de manter o rim transplantado sem medicamentos. Para usufruir esse benefício e aqueles que virão com a descoberta de novas drogas com menos efeitos colaterais, o transplantado precisa estar vivo, com o rim funcionando e tomando os remédios de que dispomos no momento.
Drauzio – Quais são os efeitos colaterais mais comuns dessa medicação?
Elias David Neto – Essas drogas diminuem a imunidade como um todo. Portanto, aumentam os casos de infecções e de tumores de pele que obrigam o transplantado a proteger-se do sol mais do que as outras pessoas. Outro efeito colateral importante é a doença aterosclerótica que tem evolução um pouco mais rápida nesses indivíduos.
Drauzio – Nós todos enfrentamos dificuldades com doentes submetidos a tratamentos pelo resto da vida. Os hipertensos constituem um exemplo clássico. Tomam remédio, a pressão baixa para 12/8 e, depois de um tempo nesse patamar, eles decidem que não precisam mais de medicação. Isso acontece também com os transplantados?
Elias David Neto – Acontece, e muito. A não aderência às drogas é responsável por 20% das perdas de enxertos. O indivíduo acha que o rim já está incorporado – “Estou com esse órgão aqui há dez anos” –, para de tomar o remédio e, em um ou dois meses, o rim deixa de funcionar. Por isso, insistimos em que a medicação não seja suspensa sob nenhum pretexto. “Você está bem, porque está tomando remédios. Se parar de tomar, a rejeição agride o órgão transplantado e ele será perdido”.
Abandonar a medicação é, especialmente, muito comum nos adolescentes que requerem atenção redobrada nesse sentido.
Drauzio – Quem foi transplantado pode ter dieta normal, praticar esportes, levar vida normal, enfim?
Elias David Neto – Existem olimpíadas com todas as modalidades de esportes –corrida, basquete, futebol, vôlei, maratona, etc. – para transplantados. Para ter uma ideia da recuperação, o vice-campeão mundial de slalo na neve em recentes jogos de inverno foi um transplantado de fígado. Isso prova que essas pessoas são absolutamente normais. Depois do transplante, voltam a ser o que eram antes. Se eram atletas, voltam a ser atletas; se eram sedentários, provavelmente não mudarão os hábitos de vida.
É preciso encarar o transplante como uma contribuição à saúde. Se a pessoa é operada e extrai a vesícula, sofreu uma agressão. No transplante, porém, recebe o órgão que lhe fazia falta, não retira nada e isso lhe permite levar vida praticamente normal.
DOAÇÃO DE CADÁVER
Drauzio – Você abordou a doação de órgãos de um parente ou amigo para uma pessoa doente, mas temos também a possibilidade de transplantar rins de cadáveres. Qual é a diferença entre um tipo e outro de doação?
Elias David Neto – Primeiro, vamos definir o que é um cadáver. Cadáver, por exemplo, é o indivíduo que sofreu um acidente ou teve derrame cerebral, está internado na UTI com o coração batendo, respirando através de aparelhos, recebendo nutrição por uma sonda, só que seu cérebro está morto. É como se ele tivesse sido decapitado. Tudo funciona, menos a cabeça.
Segundo a lei brasileira, a morte do cérebro é sinal definitivo de que não há mais vida, mesmo que o coração ainda esteja batendo à custa de aparelhos. Esse é o doador cadáver e é para sua família que se pede a doação de órgãos.
Drauzio – Qual a diferença entre o órgão doado por um vivo e o extraído de um cadáver?
Elias David Neto – Exceto no caso de irmãos em que é possível encontrar um doador absolutamente idêntico, a maioria das pessoas não é idêntica. Isso não tem muita importância, porque as drogas atuais são mais potentes e mais importantes do que as incompatibilidades. É claro que se doador e receptor forem idênticos, o resultado será melhor.
Drauzio – Quais as exigências a cumprir para encontrar um órgão compatível com o receptor?
Elias David Neto – A primeira exigência é que tanto o cadáver quanto o doador vivo pertençam ao mesmo grupo sanguíneo (A, B, AB, O) que o receptor. O fator RH não importa. Depois, é feito um teste imunológico. Encontrar o doador mais compatível é mais um critério de distribuição justa do que um critério científico que vai exercer impacto sobre o transplante. Por isso, hoje se leva muito em conta a compatibilidade A, B, O e uma pequena compatibilidade no sistema HLA para selecionar o melhor rim para determinado receptor.
Do ponto de vista da qualidade de órgãos, o doador vivo e o cadáver deveriam ser iguais, mas não são, porque o cadáver sofreu um acidente ou foi operado e ficou dias na UTI e o órgão doado vai para a geladeira por 24 horas, esperando a seleção do receptor. O doador é sofrido, o órgão é sofrido. Isso não acontece com o doador vivo, que vai para a cirurgia com hora marcada e dia certo. Como num casamento, tudo é combinado antes: o dia que os noivos preferem, que a igreja está vaga e o padre, disponível.
Drauzio – Qual é o tempo máximo para transplantar os órgãos do cadáver?
Elias David Neto – Tenta-se transplantar em menos de 24 horas. É preciso dizer que, passado o período inicial em que o rim do cadáver está em piores condições do que o rim do doador vivo, a longo prazo, eles são semelhantes desde que o paciente tome as drogas imunodepressoras e que esteja atento aos cuidados gerais de saúde.
LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
Drauzio – Os órgãos de uma pessoa morta, descerebrada, mas com o coração ainda batendo pode ajudar outra pessoa a sobreviver. Como a legislação brasileira se pronuncia nesse sentido?
Elias David Neto – A cidade e o estado de São Paulo são divididos em organizações de procura de órgãos. Cada hospital está sob a responsabilidade de uma dessas organizações que são notificadas quando existe um doador. Aí, uma equipe que nada tem a ver com os transplantadores vai até o local, identifica o doador, constata que ele não é portador de tumores ou infecções que possam contaminar o receptor e se está realmente em morte cerebral. Só então a família é procurada para autorizar a remoção dos órgãos.
Dessa autorização, que deve ser dada por escrito por um parente do doador (existe um grau de parentesco a ser respeitado), consta a relação dos órgãos que podem ser doados. Por exemplo: se a família quiser que só a córnea seja doada, só ela será removida. No entanto, se quiser, pode doar além da córnea, rins, coração, pâncreas, artérias, ossos, etc. Os órgãos permanecem no hospital e o corpo é devolvido à família para o sepultamento. Nesse ínterim, a Secretaria de Saúde recebe amostra de sangue do doador e inicia o processo de seleção do receptor.
CRITÉRIO DE SELEÇÃO
Drauzio – Qual é o critério para a seleção do doador?
Elias David Neto – O critério é a ordem de inscrição numa fila única de possíveis receptores no Estado de São Paulo. Os órgãos são encaminhados para as equipes transplantadoras a fim de serem transplantados no receptor que a Secretaria de Saúde determinou. Não pode ser em outro. Se ele estiver gripado, por exemplo, comunica-se o fato e a Secretaria chama o segundo da fila e assim sucessivamente. O processo de seleção é extremamente transparente.
Drauzio – Essa estrutura se repete em todos os estados da federação?
Elias David Neto – Não. Ela existe em São Paulo, porque o estado tem trinta e seis milhões de habitantes, na verdade, população e tamanho maior do que muitos países. Nos outros estados, não existem tantas equipes transplantadoras,.A seleção é um pouco mais fácil, mas os critérios são os mesmos, porque a legislação brasileira é regida pelo Sistema Nacional de Transplantes que coordena o serviço em todos os estados da federação.
À medida, porém, que os outros estados crescem, seja em número de equipes transplantadoras, seja em população, vão sendo criadas organizações para a doação de órgãos seguindo o modelo paulista que é altamente sofisticado.
Drauzio – Pode acontecer de um órgão que sobrou em São Paulo ser utilizado em outro estado?
Elias David Neto – Pode, mas em geral é o contrário que acontece, porque São Paulo tem muitas equipes transplantadoras e muitos receptores à espera de transplante. Pode acontecer que um coração removido no Nordeste não tenha receptor compatível naquela região e seja enviado para ser transplantado em São Paulo. As equipes centrais de transplante se comunicam com muita eficiência e decidem com presteza o destino que será dado ao órgão.
TRÁFICO DE ÓRGÃOS
Drauzio – Algumas vezes, os jornais veiculam notícias sobre o tráfico de órgãos. Isso de fato acontece?
Elias David Neto – O governo americano comandou uma investigação em vários países do mundo para averiguar casos de rapto de crianças e adultos para a remoção de órgãos que culminou num documento chamado “Rapto de Crianças para Transplante – Uma Lenda Urbana Moderna”.
Nesse documento, o investigador do FBI relata que a mesma história é repetida igualzinho em todos os países. Alguns jornalistas sequer mudam o nome das personagens. O João brasileiro é o John americano e o Juan espanhol; a Maria do Brasil é a Mary dos Estados Unidos e a Marie da França. O rapto de pessoas para extrair seus órgãos é a lenda urbana moderna.
Denúncias sem comprovação sobre o trafico de órgãos geram desconfiança na população e espalham o medo de que o sistema não funcione. O Sistema de Transplante Brasileiro é transparente e um dos mais confiáveis do mundo. Nunca houve em nenhuma delegacia do País relato, notificação ou registro de alguém que tivesse sido raptado e devolvido depois sem um órgão.
Fala-se muito em tráfico de órgãos. Isso não existe, como não existe a possibilidade de furar o sistema de lista única. Desafio um jornalista investigativo a demonstrar que pode furá-la. Desafio-o também a tornar público o resultado de sua investigação, qualquer que seja ele. Por certo, isso incentivaria e muito a doação de órgãos.
Drauzio – Há uma CPI em andamento sobre o tráfico de órgãos no Brasil.
Elias David Neto – No Brasil, está instalada uma CPI sobre o tráfico de órgãos que na verdade investiga o tráfico de pessoas. Se alguém sai do País para doar um órgão em outro lugar em troca de vantagens não é responsabilidade do Sistema Nacional de Transplante. Foi uma decisão individual e particular, embora faça parte do tráfico que corrompe as pessoas.
Minha esperança é que essa CPI investigue fundo e, se a conclusão for que não há tráfico de órgãos, a imprensa seja convocada para divulgar os resultados, porque assim estará contribuindo positivamente para a transplantação brasileira de órgãos .