Zilton Andrade
(1924)
Entrevista concedida a Caio Castilho (Instituto de Física, UFBA e representante de Ciência Hoje, em Salvador); Eliane Elisa Azevedo (UFBA e ex-vice-presidente da SBPC); Othon Jambeiro, (Faculdade de Comunicação, UFBA); e Marta Cury Maia (jornalista).
Um dos pioneiros nas pesquisas sobre males endêmicos do país, como a doença de Chagas e a esquistossomose, com trabalhos publicados nas principais revistas científicas do mundo, o patologista baiano Zilton Andrade, 73 anos, ajudou a formar várias gerações de médicos e cientistas em seu Estado. Praticamente fundou, ajudou a estruturar e depois dirigiu os primeiros laboratórios científicos instalados na Bahia, tanto na Universidade Federal da Bahia quanto em institutos de pesquisa, e por muito tempo atuou nas agências de financiamento à pesquisa do país. Andrade defende o regime de dedicação exclusiva para professores universitários, a avaliação dos cursos superiores e o retorno do mérito acadêmico como exigência básica para a ascensão na carreira docente e para o exercício do poder nas instituições de ensino superior, criticando o que chama de "democratismo" na universidade.
Podemos começar com uma auto-apresentação...
Nasci na cidade de Santo Antônio de Jesus, no interior da Bahia, em 14 de maio de 1924. Fiz o curso primário ali e o ginasial no Colégio Ipiranga, em Salvador. A decisão de estudar medicina foi motivada principalmente por minhas leituras pré-universitárias sobre ciência e sobre a vida de grandes cientistas. Lembro-me bem da impressão que me causou o livro Caçadores de micróbios, de Paul de Kruiff, grande sucesso na época. Tive certa decepção de início, porque na época o curso era muito discursivo, praticamente não havia pesquisas.
E quando essa situação mudou?
A chance de trabalhar em laboratório surgiu quando Otávio Mangabeira Filho fundou, em Salvador, um instituto de pesquisa semelhante ao Instituto Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro. Já estudante de medicina, candidatei-me a um concurso para técnico do laboratório. Fui aprovado nos testes, assumindo meu primeiro emprego. Quase como passo inicial para estabelecer o instituto, houve um curso de formação de pesquisadores. Entre os professores desse curso, iniciado em 1949, estava Samuel Pessoa. Assistir a suas aulas e seu trabalho foi algo definitivo na minha formação. Com ele, participei de minha primeira pesquisa, sobre a ocorrência de filariose em Salvador. Saíamos juntos à noite para coletar sangue dos moradores de um bairro da cidade. Aprendi muito nesse convívio. Vi seu entusiasmo, dedicação à pesquisa e seriedade, sua visão global do que é ciência, a noção de que deve ser feita em benefício do povo, e senti suas preocupações com problemas sociais. Vi em Samuel Pessoa um dos "caçadores de micróbios" . Eu teria sido parasitologista, não fosse a necessidade do novo instituto de formar um patologista. Fui encarregado de preparar o laboratório que seria usado pelo professor Paulo Dacorso Filho, vindo do Rio de Janeiro, que daria o curso de patologia. Foi com ele que comecei a descobrir e a me maravilhar com a patologia.
O senhor foi pouco depois para o exterior...
Formei-me em 1950. Logo depois, Dacorso e Mangabeira Filho decidiram que eu deveria fazer um curso no exterior. Fui para a Universidade de Tulane, em New Orleans (Estados Unidos), onde fiz residência em patologia por quase dois anos. Na volta, encontrei o instituto em situação precária, com brigas internas. Aconselhado por Dacorso, transferi-me para a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, onde passei um ano (1956) e defendi minha tese de doutorado. Voltei à Bahia no início de 1957, a convite de Edgar Santos, e encontrei condições relativamente boas de trabalho, porque praticamente passei a chefiar o serviço de patologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina, hoje Hospital Edgar Santos, e logo fui efetivado na função. Pude estabelecer uma rotina e linhas de pesquisas, com material humano e experimental. Fiz concursos para livre-docente em 1959 e para professor titular em 1974.
Entrevista concedida a Caio Castilho (Instituto de Física, UFBA e representante de Ciência Hoje, em Salvador); Eliane Elisa Azevedo (UFBA e ex-vice-presidente da SBPC); Othon Jambeiro, (Faculdade de Comunicação, UFBA); e Marta Cury Maia (jornalista).
Um dos pioneiros nas pesquisas sobre males endêmicos do país, como a doença de Chagas e a esquistossomose, com trabalhos publicados nas principais revistas científicas do mundo, o patologista baiano Zilton Andrade, 73 anos, ajudou a formar várias gerações de médicos e cientistas em seu Estado. Praticamente fundou, ajudou a estruturar e depois dirigiu os primeiros laboratórios científicos instalados na Bahia, tanto na Universidade Federal da Bahia quanto em institutos de pesquisa, e por muito tempo atuou nas agências de financiamento à pesquisa do país. Andrade defende o regime de dedicação exclusiva para professores universitários, a avaliação dos cursos superiores e o retorno do mérito acadêmico como exigência básica para a ascensão na carreira docente e para o exercício do poder nas instituições de ensino superior, criticando o que chama de "democratismo" na universidade.
Podemos começar com uma auto-apresentação...
Nasci na cidade de Santo Antônio de Jesus, no interior da Bahia, em 14 de maio de 1924. Fiz o curso primário ali e o ginasial no Colégio Ipiranga, em Salvador. A decisão de estudar medicina foi motivada principalmente por minhas leituras pré-universitárias sobre ciência e sobre a vida de grandes cientistas. Lembro-me bem da impressão que me causou o livro Caçadores de micróbios, de Paul de Kruiff, grande sucesso na época. Tive certa decepção de início, porque na época o curso era muito discursivo, praticamente não havia pesquisas.
E quando essa situação mudou?
A chance de trabalhar em laboratório surgiu quando Otávio Mangabeira Filho fundou, em Salvador, um instituto de pesquisa semelhante ao Instituto Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro. Já estudante de medicina, candidatei-me a um concurso para técnico do laboratório. Fui aprovado nos testes, assumindo meu primeiro emprego. Quase como passo inicial para estabelecer o instituto, houve um curso de formação de pesquisadores. Entre os professores desse curso, iniciado em 1949, estava Samuel Pessoa. Assistir a suas aulas e seu trabalho foi algo definitivo na minha formação. Com ele, participei de minha primeira pesquisa, sobre a ocorrência de filariose em Salvador. Saíamos juntos à noite para coletar sangue dos moradores de um bairro da cidade. Aprendi muito nesse convívio. Vi seu entusiasmo, dedicação à pesquisa e seriedade, sua visão global do que é ciência, a noção de que deve ser feita em benefício do povo, e senti suas preocupações com problemas sociais. Vi em Samuel Pessoa um dos "caçadores de micróbios" . Eu teria sido parasitologista, não fosse a necessidade do novo instituto de formar um patologista. Fui encarregado de preparar o laboratório que seria usado pelo professor Paulo Dacorso Filho, vindo do Rio de Janeiro, que daria o curso de patologia. Foi com ele que comecei a descobrir e a me maravilhar com a patologia.
O senhor foi pouco depois para o exterior...
Formei-me em 1950. Logo depois, Dacorso e Mangabeira Filho decidiram que eu deveria fazer um curso no exterior. Fui para a Universidade de Tulane, em New Orleans (Estados Unidos), onde fiz residência em patologia por quase dois anos. Na volta, encontrei o instituto em situação precária, com brigas internas. Aconselhado por Dacorso, transferi-me para a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, onde passei um ano (1956) e defendi minha tese de doutorado. Voltei à Bahia no início de 1957, a convite de Edgar Santos, e encontrei condições relativamente boas de trabalho, porque praticamente passei a chefiar o serviço de patologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina, hoje Hospital Edgar Santos, e logo fui efetivado na função. Pude estabelecer uma rotina e linhas de pesquisas, com material humano e experimental. Fiz concursos para livre-docente em 1959 e para professor titular em 1974.
O hospital foi criado em 1948?
Exato. O primeiro chefe do serviço de patologia foi Raphaele Stigliani, que veio da Itália. Em seguida veio do México Franz Lichtenberg, que ficou pouco tempo e, ao sair, deixou em seu lugar Clarival Valadares. Quando voltei de Ribeirão Preto, ele praticamente me deu a chefia do serviço. Embora nominalmente eu não fosse chefe, tive toda a liberdade para estabelecer a rotina e a estrutura do serviço, em excelente convivência com Clarival e outro patologista, Jorge Studart. O titular de patologia era o professor José Coelho dos Santos, que curiosamente não chefiava o serviço do setor. O catedrático ficava na faculdade do Terreiro e eu chefiava o serviço no hospital. Meu contrato com a universidade era renovado todo ano. Para trabalhar em tempo integral, eu tinha dois empregos no hospital: como professor de ensino superior e como médico, contratado por Edgar Santos.
Na época, não existia a figura da dedicação exclusiva. Isso foi criado para permitir que o senhor se dedicasse à pesquisa? Era uma espécie de arranjo?
Sim. Uma folha de pagamento saía pela reitoria e outra pelo Ministério da Educação. Fui um dos primeiros professores com dedicação exclusiva. Continuo achando a dedicação exclusiva indispensável, se quisermos restaurar a universidade. Pelo menos nas cadeiras básicas, todos os professores precisam ter tempo integral. Passei toda a minha vida sem outra atividade particular ou remunerada. Não me arrependo. Outros, que trabalhavam fora, às vezes tinham que se sacrificar muito mais do que eu. Recebiam mais dinheiro, mas não tinham a mesma facilidade de trabalho, de paciência e de calma para pesquisar e preparar as aulas. Sou partidário do tempo integral.
O senhor voltou outras vezes ao exterior?
Várias. Em 1960 e 1961 estive no Hospital Mount Sinai, em Nova York, com bolsa do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, trabalhando com um grande cientista, Hans Popper. Foi uma época muito produtiva, porque Popper era realmente um homem de ciência. Tenho voltado ao Mount Sinai para visitas curtas, e estive no Hospital New York, da Universidade de Cornell, por três meses. Depois acertamos um intercâmbio com a França e fui várias vezes, por curtos períodos, ao Instituto Pasteur, em Lyon. Esse intercâmbio continua até hoje.
E como surgiu o Centro de Pesquisas Gonçalo Muniz?
O centro é um núcleo regional da Fundação Oswaldo Cruz, do Ministério da Saúde, assim como o René Rachou, em Belo Horizonte, e o Aggeu Magalhães, em Recife, anteriores ao Gonçalo Muniz. Fui o primeiro diretor desse centro, de 1981 a 1990. No início, o centro era da Fiocruz, da Universidade da Bahia e do governo estadual. Depois, a Fiocruz assumiu a administração. Agora, está em fase de renovação física e científica. Novas pessoas foram contratadas, alunos de pós-graduação que estavam no exterior começam a voltar. O objetivo do centro é a pesquisa de doenças regionais, com grupos que trabalham no interior do Estado e nos laboratórios. Está envolvido com o ensino através da UFBA. Seu curso de pós-graduação em patologia humana é nível A, na avaliação da Capes, desde sua fundação. O Gonçalo Muniz também faz parte de um dos centros de excelência do Pronex (Programa de Núcleos de Excelência), do governo federal, que apoia os grupos de pesquisa científica mais destacados do país.
senhor era aluno da Faculdade de Medicina. Como via a universidade e o próprio Edgar Santos?Vivi um período em que havia grupos favoráveis e desfavoráveis a ele, e eu não pertencia a nenhum. Sempre tive grande admiração por Edgar Santos e pelo que realizou. Foi uma grande vantagem para a Bahia ter na época um homem de seu porte. Desenvolveu não só a área médica, mas também áreas como música, teatro, dança. Por isso foi muito criticado. Diziam que era absurdo gastar dinheiro pondo pessoas para dançar e tocar flauta, que ele era megalomaníaco. Mas sua obra é extraordinária, idealista. Lutou por ela toda a vida, com capacidade de trabalho, inteligência e habilidade política.
Exato. O primeiro chefe do serviço de patologia foi Raphaele Stigliani, que veio da Itália. Em seguida veio do México Franz Lichtenberg, que ficou pouco tempo e, ao sair, deixou em seu lugar Clarival Valadares. Quando voltei de Ribeirão Preto, ele praticamente me deu a chefia do serviço. Embora nominalmente eu não fosse chefe, tive toda a liberdade para estabelecer a rotina e a estrutura do serviço, em excelente convivência com Clarival e outro patologista, Jorge Studart. O titular de patologia era o professor José Coelho dos Santos, que curiosamente não chefiava o serviço do setor. O catedrático ficava na faculdade do Terreiro e eu chefiava o serviço no hospital. Meu contrato com a universidade era renovado todo ano. Para trabalhar em tempo integral, eu tinha dois empregos no hospital: como professor de ensino superior e como médico, contratado por Edgar Santos.
Na época, não existia a figura da dedicação exclusiva. Isso foi criado para permitir que o senhor se dedicasse à pesquisa? Era uma espécie de arranjo?
Sim. Uma folha de pagamento saía pela reitoria e outra pelo Ministério da Educação. Fui um dos primeiros professores com dedicação exclusiva. Continuo achando a dedicação exclusiva indispensável, se quisermos restaurar a universidade. Pelo menos nas cadeiras básicas, todos os professores precisam ter tempo integral. Passei toda a minha vida sem outra atividade particular ou remunerada. Não me arrependo. Outros, que trabalhavam fora, às vezes tinham que se sacrificar muito mais do que eu. Recebiam mais dinheiro, mas não tinham a mesma facilidade de trabalho, de paciência e de calma para pesquisar e preparar as aulas. Sou partidário do tempo integral.
O senhor voltou outras vezes ao exterior?
Várias. Em 1960 e 1961 estive no Hospital Mount Sinai, em Nova York, com bolsa do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, trabalhando com um grande cientista, Hans Popper. Foi uma época muito produtiva, porque Popper era realmente um homem de ciência. Tenho voltado ao Mount Sinai para visitas curtas, e estive no Hospital New York, da Universidade de Cornell, por três meses. Depois acertamos um intercâmbio com a França e fui várias vezes, por curtos períodos, ao Instituto Pasteur, em Lyon. Esse intercâmbio continua até hoje.
E como surgiu o Centro de Pesquisas Gonçalo Muniz?
O centro é um núcleo regional da Fundação Oswaldo Cruz, do Ministério da Saúde, assim como o René Rachou, em Belo Horizonte, e o Aggeu Magalhães, em Recife, anteriores ao Gonçalo Muniz. Fui o primeiro diretor desse centro, de 1981 a 1990. No início, o centro era da Fiocruz, da Universidade da Bahia e do governo estadual. Depois, a Fiocruz assumiu a administração. Agora, está em fase de renovação física e científica. Novas pessoas foram contratadas, alunos de pós-graduação que estavam no exterior começam a voltar. O objetivo do centro é a pesquisa de doenças regionais, com grupos que trabalham no interior do Estado e nos laboratórios. Está envolvido com o ensino através da UFBA. Seu curso de pós-graduação em patologia humana é nível A, na avaliação da Capes, desde sua fundação. O Gonçalo Muniz também faz parte de um dos centros de excelência do Pronex (Programa de Núcleos de Excelência), do governo federal, que apoia os grupos de pesquisa científica mais destacados do país.
senhor era aluno da Faculdade de Medicina. Como via a universidade e o próprio Edgar Santos?Vivi um período em que havia grupos favoráveis e desfavoráveis a ele, e eu não pertencia a nenhum. Sempre tive grande admiração por Edgar Santos e pelo que realizou. Foi uma grande vantagem para a Bahia ter na época um homem de seu porte. Desenvolveu não só a área médica, mas também áreas como música, teatro, dança. Por isso foi muito criticado. Diziam que era absurdo gastar dinheiro pondo pessoas para dançar e tocar flauta, que ele era megalomaníaco. Mas sua obra é extraordinária, idealista. Lutou por ela toda a vida, com capacidade de trabalho, inteligência e habilidade política.
Edgar Santos foi um marco na formação da universidade, mas curiosamente quem fez a reviravolta foi seu filho Roberto, não exatamente por vontade própria, mas por causa da reforma universitária de 1968. Como o senhor viu essa mudança?
Eu trabalhava em tempo integral e Roberto Santos era um dos estimuladores desse regime. Por isso, eu tinha muito contato com ele e com o grupo à sua volta. Mas ele se confundiu muito com os militares que haviam tomado o poder no país, o que deixava a gente um pouco paranóico, achando que em toda mudança existia o dedo de um militar. Para ser honesto, não posso comparar Roberto com Edgar, pois acho a obra do pai muito maior. Mas Roberto deu uma boa contribuição à universidade: estabeleceu o programa de residência e estimulou o tempo integral em uma época em que poucas pessoas falavam sobre isso. Também fazia pesquisa, e de bom nível. Mas sua atuação como reitor não pode ser comparada com o trabalho pioneiro e decisivo do pai.
Nesses 40 anos, que problemas de patologia humana mais o atraíram, e que idéias ou soluções surgiram desses trabalhos?
Meu interesse sempre esteve ligado às doenças parasitárias. Nas autópsias que fazia no Hospital das Clínicas predominavam casos da doença de Chagas e da forma grave da esquistossomose. Esses males monopolizaram minha atenção porque surgiam no dia-a-dia do trabalho e eram pouco conhecidos: muitas vezes eu procurava detalhes a respeito da patologia e não encontrava. Já existiam bons estudos, mas era necessária uma revisão profunda, com novos instrumentos e novas técnicas, para determinar a patologia dessas doenças. Aplicamos, por exemplo, técnicas de imuno-fluorescência e de microscopia eletrônica para estudar essas doenças e obtivemos resultados muito interessantes. Isso possibilitou a publicação de vários trabalhos e um intercâmbio com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Por quase 10 anos trabalhei associado à OMS, integrando o comitê de doenças parasitárias. O intercâmbio que isso permitiu com cientistas de várias partes do mundo foi valioso não só como estímulo pessoal, mas como aprendizado. Acredito que esse estudo das doenças parasitárias, na época, era prioritário e precisava ser feito.
Entre suas publicações, quais considera mais relevantes para o entendimento do processo patológico dessas doenças?
Se eu tivesse que citar algum, começaria pelo estudo da modulação do granuloma na esquistossomose, que fiz com o norte-americano Kenneth Warren, quando ele estava na Bahia. Esse tema gerou enorme quantidade de trabalhos na literatura. Até hoje se estuda esse problema da modulação imunológica. Na esquistossomose, a reação ao ovo do Schistosoma mansoni (parasita causador da esquistossomose) é de início extensa e destrutiva para o próprio hospedeiro. Com o tempo, a reação torna-se menor, mais econômica, e essa modulação protege mais o hospedeiro. É parecido com o que ocorre na tuberculose, em que a reação do indivíduo à primeira infecção é, digamos, "desastrada" e prejudicial. Depois, o organismo aprende a modular a lesão, a localizá-la, a torná-la mais fibrosante e mais lenta. Feito sem maiores pretensões, esse trabalho provoca até hoje um número impressionante de publicações a respeito dos fatores que atuam na modulação.
E qual a conseqüência desse trabalho para o controle da doença?
O estudo não visou controlar a doença. O controle depende de medidas socioeconômicas, de decisões políticas. Quando a qualidade de vida melhora, a esquistossomose tende a desaparecer, assim como qualquer doença parasitária. O uso de inseticidas contra o barbeiro, inseto transmissor da doença de Chagas, ilustra bem isso. Em áreas endêmicas, onde antes eram encontrados mil barbeiros em uma casa, hoje é preciso procurar em mil casas para achar um barbeiro! O impacto disso na transmissão da doença é extraordinário.
Eu trabalhava em tempo integral e Roberto Santos era um dos estimuladores desse regime. Por isso, eu tinha muito contato com ele e com o grupo à sua volta. Mas ele se confundiu muito com os militares que haviam tomado o poder no país, o que deixava a gente um pouco paranóico, achando que em toda mudança existia o dedo de um militar. Para ser honesto, não posso comparar Roberto com Edgar, pois acho a obra do pai muito maior. Mas Roberto deu uma boa contribuição à universidade: estabeleceu o programa de residência e estimulou o tempo integral em uma época em que poucas pessoas falavam sobre isso. Também fazia pesquisa, e de bom nível. Mas sua atuação como reitor não pode ser comparada com o trabalho pioneiro e decisivo do pai.
Nesses 40 anos, que problemas de patologia humana mais o atraíram, e que idéias ou soluções surgiram desses trabalhos?
Meu interesse sempre esteve ligado às doenças parasitárias. Nas autópsias que fazia no Hospital das Clínicas predominavam casos da doença de Chagas e da forma grave da esquistossomose. Esses males monopolizaram minha atenção porque surgiam no dia-a-dia do trabalho e eram pouco conhecidos: muitas vezes eu procurava detalhes a respeito da patologia e não encontrava. Já existiam bons estudos, mas era necessária uma revisão profunda, com novos instrumentos e novas técnicas, para determinar a patologia dessas doenças. Aplicamos, por exemplo, técnicas de imuno-fluorescência e de microscopia eletrônica para estudar essas doenças e obtivemos resultados muito interessantes. Isso possibilitou a publicação de vários trabalhos e um intercâmbio com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Por quase 10 anos trabalhei associado à OMS, integrando o comitê de doenças parasitárias. O intercâmbio que isso permitiu com cientistas de várias partes do mundo foi valioso não só como estímulo pessoal, mas como aprendizado. Acredito que esse estudo das doenças parasitárias, na época, era prioritário e precisava ser feito.
Entre suas publicações, quais considera mais relevantes para o entendimento do processo patológico dessas doenças?
Se eu tivesse que citar algum, começaria pelo estudo da modulação do granuloma na esquistossomose, que fiz com o norte-americano Kenneth Warren, quando ele estava na Bahia. Esse tema gerou enorme quantidade de trabalhos na literatura. Até hoje se estuda esse problema da modulação imunológica. Na esquistossomose, a reação ao ovo do Schistosoma mansoni (parasita causador da esquistossomose) é de início extensa e destrutiva para o próprio hospedeiro. Com o tempo, a reação torna-se menor, mais econômica, e essa modulação protege mais o hospedeiro. É parecido com o que ocorre na tuberculose, em que a reação do indivíduo à primeira infecção é, digamos, "desastrada" e prejudicial. Depois, o organismo aprende a modular a lesão, a localizá-la, a torná-la mais fibrosante e mais lenta. Feito sem maiores pretensões, esse trabalho provoca até hoje um número impressionante de publicações a respeito dos fatores que atuam na modulação.
E qual a conseqüência desse trabalho para o controle da doença?
O estudo não visou controlar a doença. O controle depende de medidas socioeconômicas, de decisões políticas. Quando a qualidade de vida melhora, a esquistossomose tende a desaparecer, assim como qualquer doença parasitária. O uso de inseticidas contra o barbeiro, inseto transmissor da doença de Chagas, ilustra bem isso. Em áreas endêmicas, onde antes eram encontrados mil barbeiros em uma casa, hoje é preciso procurar em mil casas para achar um barbeiro! O impacto disso na transmissão da doença é extraordinário.
No Brasil, qual é a situação da esquistossomose?
E de melhoria. A incidência diminuiu muito e as formas graves estão sumindo. A doença de Chagas teve redução fantástica. Por outro lado, vemos surgir aqui e ali doenças como a leishmaniose. Com as populações pobres deixando o interior, por falta de reforma agrária, e formando cinturões de miséria em torno das cidades, aumenta a possibilidade de aparecer dengue, malária, febre amarela. Houve casos de calazar periurbano. Se pensarmos em casos isolados, a situação do Brasil é contraditória. No panorama geral, porém, a situação melhorou bastante, mas não através de campanhas sanitárias, apesar da nossa grande tradição (desde os tempos de Oswaldo Cruz, passando pela erradicação da malária no Nordeste e da poliomielite nos dias atuais).
Como o senhor vê a universidade hoje e há 40 anos?
Na época em que eu trabalhava na universidade havia mais disciplina e hierarquia. O programa que os estudantes recebiam, no primeiro dia de aula, era cumprido. Da época da ditadura para cá houve um afrouxamento na universidade, algo que tenho chamado, e às vezes não causa uma impressão muito boa em quem me ouve, de "democratismo" . A universidade é feita de pessoas desiguais e Rui Barbosa já dizia: "Tratar os desiguais com igualdade é desigualdade flagrante e não igualdade real. Os desiguais têm que ser tratados com desigualdade e à medida que se desigualam." Alguns dizem, por exemplo, que muitos fazem pesquisa porque têm dinheiro, vindo até do exterior, e que a universidade não dá nada. A universidade não tem que dar dinheiro diretamente para a pesquisa, mas deve dar o básico: biblioteca, biotério, oficina de reparos, bons laboratórios. O dinheiro para fazer pesquisa tem que ser batalhado, através da competição, como se faz na Capes, no CNPq etc. Hoje, o sistema dentro da universidade é distributivo. Não costuma ser seletivo, porque lá todos são "democraticamente" iguais. Há professores que não dão muitas aulas e há professores que faltam muito, mas na hora de considerar a categoria professor todos são iguais. É isso que chamo de "democratismo".
Esse modo de pensar encontrou muita resistência?
Em certa época eu publicava artigos na Tribuna da Bahia. Uma vez publiquei um artigo chamado Democracia e democratite. Fui convocado pela Associação dos Servidores da Universidade Federal da Bahia (ASSUFBA) para esclarecimentos e no início da sessão o ambiente era de grande animosidade. Quando a sessão terminou fui aplaudido, porque eles compreenderam meu ponto de vista: deve haver oportunidade igual para todos, mas não a distribuição das benesses, digamos assim, para os que querem produzir e os que não querem fazer nada. Escrevi um artigo sobre a avaliação na universidade muito antes que o problema surgisse. Sempre achei absurdo não existir avaliação sequer nos departamentos. As pessoas não querem ser avaliadas, associam avaliação com punição. Mas na universidade a avaliação é necessária.
Em sua volta, em 1957, a universidade tinha onze anos, mas a faculdade de medicina era bem mais antiga, de 1808. Ainda hoje, na UFRA, há áreas com mais tradição de pesquisa que outras. Naquele tempo, só a faculdade de medicina tinha tradição de pesquisa?
Também na faculdade de medicina havia pouca pesquisa. Alguns grupos faziam alguma coisa, mas a grande maioria não pesquisava. Na época dizia-se que a faculdade existia para formar profissionais para cuidar de doentes, não para fazer pesquisa, não para saber se o mosquito tal tem asa azul ou vermelha. Achava-se que o fundamental era ensinar os estudantes e que para isso não era preciso pesquisar, que essa "diversão" caríssima era para países ricos. Eles não pensavam que, onde não há pesquisa, o professor se cansa em poucos anos de repetir a mesma coisa. Ele não renova seus conhecimentos e fica muito resistente ao novo. Fica reacionário, o que prejudica a formação dos jovens, porque o professor não aceita o novo se não estiver habituado a procurar o novo todo o tempo. Um laboratório que não faz pesquisa, só rotina, também fica em poucos anos com boa cota de obsolescência. Não se percebe que a pessoa que estuda um mosquito de asa azul ou vermelha não está diletantemente perdendo tempo. O fato de descobrir algo novo interessa pessoas à distância. Tais pessoas comunicam-se com ele para saber detalhes, iniciando a troca de informações. Essa troca se dá entre iguais: não há intercâmbio se um indivíduo está parado aqui e outro produz ciência lá fora. Quero dizer que a pesquisa vale não só pelo que descobre. Seus subprodutos interessam muito à universidade. Com a pesquisa vem a renovação, o interesse pelo que outros estão fazendo, o interesse maior no ensino, a renovação dos métodos, e até o desejo de ser avaliado e saber o que é preciso corrigir.
A institucionalização da pesquisa, com a reforma universitária de 1968, representou uma transformação?
Acho que sim. Antes, a pesquisa era procurada por quem tinha uma vocação especial, uma tendência. Hoje, com os cursos de pós-graduação, há um estímulo geral à pesquisa. Às vezes o estudante vai pouco a pouco entendendo o que é a pesquisa e se dedicando mais. Nesse sentido, a situação melhorou, mas isso não deve nos satisfazer. Ainda hoje há pessoas que perguntam: quem deve fazer pesquisa? Dizem que a universidade não reconhece quem dá assistência aos doentes, quem dá aulas ou faz a rotina laboratorial, enquanto quem "se diverte" na pesquisa é comentado, fica em evidência, viaja, faz conferências. É uma visão deturpada. Todos os envolvidos em atividades universitárias devem fazer pesquisa. Tratar de doentes não impede que se faça pesquisa. Qualquer atividade, se o indivíduo tiver mentalidade de pesquisa, pode gerar pesquisa. Estamos na era da ciência, tudo está impregnado de medologia científica. A universidade deve ser a matriz geradora dessa mentalidade.
E de melhoria. A incidência diminuiu muito e as formas graves estão sumindo. A doença de Chagas teve redução fantástica. Por outro lado, vemos surgir aqui e ali doenças como a leishmaniose. Com as populações pobres deixando o interior, por falta de reforma agrária, e formando cinturões de miséria em torno das cidades, aumenta a possibilidade de aparecer dengue, malária, febre amarela. Houve casos de calazar periurbano. Se pensarmos em casos isolados, a situação do Brasil é contraditória. No panorama geral, porém, a situação melhorou bastante, mas não através de campanhas sanitárias, apesar da nossa grande tradição (desde os tempos de Oswaldo Cruz, passando pela erradicação da malária no Nordeste e da poliomielite nos dias atuais).
Como o senhor vê a universidade hoje e há 40 anos?
Na época em que eu trabalhava na universidade havia mais disciplina e hierarquia. O programa que os estudantes recebiam, no primeiro dia de aula, era cumprido. Da época da ditadura para cá houve um afrouxamento na universidade, algo que tenho chamado, e às vezes não causa uma impressão muito boa em quem me ouve, de "democratismo" . A universidade é feita de pessoas desiguais e Rui Barbosa já dizia: "Tratar os desiguais com igualdade é desigualdade flagrante e não igualdade real. Os desiguais têm que ser tratados com desigualdade e à medida que se desigualam." Alguns dizem, por exemplo, que muitos fazem pesquisa porque têm dinheiro, vindo até do exterior, e que a universidade não dá nada. A universidade não tem que dar dinheiro diretamente para a pesquisa, mas deve dar o básico: biblioteca, biotério, oficina de reparos, bons laboratórios. O dinheiro para fazer pesquisa tem que ser batalhado, através da competição, como se faz na Capes, no CNPq etc. Hoje, o sistema dentro da universidade é distributivo. Não costuma ser seletivo, porque lá todos são "democraticamente" iguais. Há professores que não dão muitas aulas e há professores que faltam muito, mas na hora de considerar a categoria professor todos são iguais. É isso que chamo de "democratismo".
Esse modo de pensar encontrou muita resistência?
Em certa época eu publicava artigos na Tribuna da Bahia. Uma vez publiquei um artigo chamado Democracia e democratite. Fui convocado pela Associação dos Servidores da Universidade Federal da Bahia (ASSUFBA) para esclarecimentos e no início da sessão o ambiente era de grande animosidade. Quando a sessão terminou fui aplaudido, porque eles compreenderam meu ponto de vista: deve haver oportunidade igual para todos, mas não a distribuição das benesses, digamos assim, para os que querem produzir e os que não querem fazer nada. Escrevi um artigo sobre a avaliação na universidade muito antes que o problema surgisse. Sempre achei absurdo não existir avaliação sequer nos departamentos. As pessoas não querem ser avaliadas, associam avaliação com punição. Mas na universidade a avaliação é necessária.
Em sua volta, em 1957, a universidade tinha onze anos, mas a faculdade de medicina era bem mais antiga, de 1808. Ainda hoje, na UFRA, há áreas com mais tradição de pesquisa que outras. Naquele tempo, só a faculdade de medicina tinha tradição de pesquisa?
Também na faculdade de medicina havia pouca pesquisa. Alguns grupos faziam alguma coisa, mas a grande maioria não pesquisava. Na época dizia-se que a faculdade existia para formar profissionais para cuidar de doentes, não para fazer pesquisa, não para saber se o mosquito tal tem asa azul ou vermelha. Achava-se que o fundamental era ensinar os estudantes e que para isso não era preciso pesquisar, que essa "diversão" caríssima era para países ricos. Eles não pensavam que, onde não há pesquisa, o professor se cansa em poucos anos de repetir a mesma coisa. Ele não renova seus conhecimentos e fica muito resistente ao novo. Fica reacionário, o que prejudica a formação dos jovens, porque o professor não aceita o novo se não estiver habituado a procurar o novo todo o tempo. Um laboratório que não faz pesquisa, só rotina, também fica em poucos anos com boa cota de obsolescência. Não se percebe que a pessoa que estuda um mosquito de asa azul ou vermelha não está diletantemente perdendo tempo. O fato de descobrir algo novo interessa pessoas à distância. Tais pessoas comunicam-se com ele para saber detalhes, iniciando a troca de informações. Essa troca se dá entre iguais: não há intercâmbio se um indivíduo está parado aqui e outro produz ciência lá fora. Quero dizer que a pesquisa vale não só pelo que descobre. Seus subprodutos interessam muito à universidade. Com a pesquisa vem a renovação, o interesse pelo que outros estão fazendo, o interesse maior no ensino, a renovação dos métodos, e até o desejo de ser avaliado e saber o que é preciso corrigir.
A institucionalização da pesquisa, com a reforma universitária de 1968, representou uma transformação?
Acho que sim. Antes, a pesquisa era procurada por quem tinha uma vocação especial, uma tendência. Hoje, com os cursos de pós-graduação, há um estímulo geral à pesquisa. Às vezes o estudante vai pouco a pouco entendendo o que é a pesquisa e se dedicando mais. Nesse sentido, a situação melhorou, mas isso não deve nos satisfazer. Ainda hoje há pessoas que perguntam: quem deve fazer pesquisa? Dizem que a universidade não reconhece quem dá assistência aos doentes, quem dá aulas ou faz a rotina laboratorial, enquanto quem "se diverte" na pesquisa é comentado, fica em evidência, viaja, faz conferências. É uma visão deturpada. Todos os envolvidos em atividades universitárias devem fazer pesquisa. Tratar de doentes não impede que se faça pesquisa. Qualquer atividade, se o indivíduo tiver mentalidade de pesquisa, pode gerar pesquisa. Estamos na era da ciência, tudo está impregnado de medologia científica. A universidade deve ser a matriz geradora dessa mentalidade.
O senhor diz que estamos na era da ciência, mas o chamado neo-obscurantismo parece estar ganhando força. Como o senhor vê isso?
Os extremos se tocam, não é? O Carl Sagan, em um de seus livros, fala dos demônios que andam à solta e faz uma defesa firme do conhecimento científico, mostrando que em todas as épocas o obscurantismo tenta conseguir adeptos. Hoje, por causa da ignorância a que as pessoas são relegadas, do grande número de analfabetos e semi-analfabetos, há uma tendência de o obscurantismo atrair esses indivíduos. Mas na minha opinião o que predomina, o que faz o mundo ir pra frente, o que está à frente de todo o progresso da humanidade, o que faz com que as pessoas vivam hoje 100 anos e mais ainda no futuro, o que diminui a mortalidade infantil são os conhecimentos científicos.
No período da ditadura militar, o senhor foi de algum modo atingido, embora fosse um cientista com preocupações principalmente acadêmicas?
Não. Não fui particularmente atingido, apesar de coisas como o fato de meu nome ter sido vetado, em certa ocasião em que professores da faculdade iriam ser homenageados pelos médicos. Também tive um laboratório vasculhado. Em geral, não tive maiores problemas.
O senhor descobriu que um organismo invadido por algo estranho reage de forma violenta e só depois entra em fase de modulação. O "democratismo" vigente hoje na universidade seria uma fase de modulação resultante da agressão da ditadura? A universidade ainda não voltou a um equilíbrio?
É um ponto de vista interessante, e possível. Realmente, o princípio de que a toda ação corresponde uma reação contrária também se aplica às áreas biológica, social e política. Com a diferença de que a reação contrária muitas vezes é mais forte que a ação que a desencadeou. Mas o que analisei foram os prejuízos trazidos por esse "democratismo" e não por que ele surgiu. Em certos momentos, tive a impressão de que era estimulado pela ditadura. Dizia-se que a ditadura não queria a democracia no país, mas estimulava essa democracia esdrúxula na universidade. Os catedráticos, que assim ou assado conseguiram passar em concursos públicos e mandavam e desmandavam, como barões feudais, foram substituídos por professores titulares. Estes pensavam ter todos os direitos c deveres dos catedráticos, mas não eram senhores absolutos, não eram os chefes. Vieram as eleições para chefe de departamento e em muitos casos foi eleito o mais simpático, o que bate no ombro do outro, que dá bom dia a todo mundo, mesmo não tendo às vezes competência para chefiar ou estruturar um bom departamento. Acho que, na universidade, o que deve contar é a competência, demonstrada por uma escala de valores que inclua etapas, títulos, publicações etc. Essa estrutura não é novidade. Existe no mundo todo. Na universidade brasileira é que se decidiu pelo "democratismo".
Os extremos se tocam, não é? O Carl Sagan, em um de seus livros, fala dos demônios que andam à solta e faz uma defesa firme do conhecimento científico, mostrando que em todas as épocas o obscurantismo tenta conseguir adeptos. Hoje, por causa da ignorância a que as pessoas são relegadas, do grande número de analfabetos e semi-analfabetos, há uma tendência de o obscurantismo atrair esses indivíduos. Mas na minha opinião o que predomina, o que faz o mundo ir pra frente, o que está à frente de todo o progresso da humanidade, o que faz com que as pessoas vivam hoje 100 anos e mais ainda no futuro, o que diminui a mortalidade infantil são os conhecimentos científicos.
No período da ditadura militar, o senhor foi de algum modo atingido, embora fosse um cientista com preocupações principalmente acadêmicas?
Não. Não fui particularmente atingido, apesar de coisas como o fato de meu nome ter sido vetado, em certa ocasião em que professores da faculdade iriam ser homenageados pelos médicos. Também tive um laboratório vasculhado. Em geral, não tive maiores problemas.
O senhor descobriu que um organismo invadido por algo estranho reage de forma violenta e só depois entra em fase de modulação. O "democratismo" vigente hoje na universidade seria uma fase de modulação resultante da agressão da ditadura? A universidade ainda não voltou a um equilíbrio?
É um ponto de vista interessante, e possível. Realmente, o princípio de que a toda ação corresponde uma reação contrária também se aplica às áreas biológica, social e política. Com a diferença de que a reação contrária muitas vezes é mais forte que a ação que a desencadeou. Mas o que analisei foram os prejuízos trazidos por esse "democratismo" e não por que ele surgiu. Em certos momentos, tive a impressão de que era estimulado pela ditadura. Dizia-se que a ditadura não queria a democracia no país, mas estimulava essa democracia esdrúxula na universidade. Os catedráticos, que assim ou assado conseguiram passar em concursos públicos e mandavam e desmandavam, como barões feudais, foram substituídos por professores titulares. Estes pensavam ter todos os direitos c deveres dos catedráticos, mas não eram senhores absolutos, não eram os chefes. Vieram as eleições para chefe de departamento e em muitos casos foi eleito o mais simpático, o que bate no ombro do outro, que dá bom dia a todo mundo, mesmo não tendo às vezes competência para chefiar ou estruturar um bom departamento. Acho que, na universidade, o que deve contar é a competência, demonstrada por uma escala de valores que inclua etapas, títulos, publicações etc. Essa estrutura não é novidade. Existe no mundo todo. Na universidade brasileira é que se decidiu pelo "democratismo".
O senhor defende que o mérito acadêmico determine o exercício do poder acadêmico?
Exatamente. É a "meritocracia". Acho que a restauração da universidade passa pelo regime de dedicação exclusiva e pelo mérito.
Como o senhor avalia a história das agendas brasileiras de financiamento à pesquisa, estaduais e federais?
Acho que, das fundações estaduais, a Fapesp é a única que ficou bem estruturada. Tem um grande sucesso porque apenas 5% do dinheiro fica para a administração e o resto vai para a ciência. Sobre outras agências estaduais eu sei pouco. Na Bahia, o governo ainda não decidiu criar alguma fundação de amparo à pesquisa. Espero que um dia isso ocorra. Quanto às instituições federais, sempre fui beneficiado pelo CNPq. Solicitei auxílio para meus estudos e bolsas para meus orientandos e participei de comitês assessores. Mesmo durante a ditadura o CNPq teve atuação muito positiva — na minha área, inclusive, criou o Programa Integrado de Doenças Endêmicas (Pide). O programa visava estudar as doenças tropicais de alta incidência no Brasil, era dirigido por pessoas de alta qualificação e mudou o nível da pesquisa nessa área. Depois, como tudo no Brasil, parou. A fundação do CNPq trouxe muitos benefícios, mas muita coisa poderia ser corrigida. Talvez seja gasta uma verba excessiva em administração. Outro problema é a falta de avaliação das bolsas e de outros programas. Às vezes quem recebe bolsa ou auxílio manda apenas um relatório pró forma. Esse relatório é arquivado e a comunidade não fica sabendo o que está ocorrendo. A burocracia também é um obstáculo. Temos agora o Pronex, programa que pretende criar 150 grupos de excelência no país, de mais alta qualificação. A seleção tem sido muito rigorosa e os projetos apresentados muito bons. Há um estímulo muito grande. Espero que não falte dinheiro. Ter centros de referência em pesquisa científica é uma idéia muito positiva, mesmo que de início eles fiquem um pouco concentrados no Rio, em São Paulo e em Minas Gerais. Acho que esse é um projeto vitorioso, embora tenha pouco tempo de funcionamento. A Capes também tem tido um papel positivo.
desigual ou não?Na época em que trabalhei nos comitês assessores, nunca percebi isso. Mas é preciso ver que a ciência tem uma relação positiva com o desenvolvimento econômico. As áreas mais ricas produzem melhor ciência, estão mais bem estruturadas. Por exemplo: os projetos elaborados em São Paulo, onde a Fapesp representa um estímulo muito grande, são mais bem elaborados, são feitos por indivíduos que já têm publicações, que já atuam há muito na área. A competição, portanto, é difícil, mas não é criada pelo Pronex ou pelo CNPq. Ela existe porque o país é assim. Em toda parte existe uma relação direta entre ciência e dinheiro: países mais ricos fazem ciência melhor. A ciência do Nordeste reflete a maior pobreza da região. Muitos grupos, exceto os mais experientes, apresentam projetos que parecem, digamos, ingênuos. No CNPq, um bom projeto apresentado por instituições nordestinas causava um misto de admiração e simpatia nos comitês assessores.
Como o senhor vê, nos aspectos científicos e éticos, realizações como a clonagem de uma ovelha, especialmente em face da possibilidade de clonagem do ser humano?
Exatamente. É a "meritocracia". Acho que a restauração da universidade passa pelo regime de dedicação exclusiva e pelo mérito.
Como o senhor avalia a história das agendas brasileiras de financiamento à pesquisa, estaduais e federais?
Acho que, das fundações estaduais, a Fapesp é a única que ficou bem estruturada. Tem um grande sucesso porque apenas 5% do dinheiro fica para a administração e o resto vai para a ciência. Sobre outras agências estaduais eu sei pouco. Na Bahia, o governo ainda não decidiu criar alguma fundação de amparo à pesquisa. Espero que um dia isso ocorra. Quanto às instituições federais, sempre fui beneficiado pelo CNPq. Solicitei auxílio para meus estudos e bolsas para meus orientandos e participei de comitês assessores. Mesmo durante a ditadura o CNPq teve atuação muito positiva — na minha área, inclusive, criou o Programa Integrado de Doenças Endêmicas (Pide). O programa visava estudar as doenças tropicais de alta incidência no Brasil, era dirigido por pessoas de alta qualificação e mudou o nível da pesquisa nessa área. Depois, como tudo no Brasil, parou. A fundação do CNPq trouxe muitos benefícios, mas muita coisa poderia ser corrigida. Talvez seja gasta uma verba excessiva em administração. Outro problema é a falta de avaliação das bolsas e de outros programas. Às vezes quem recebe bolsa ou auxílio manda apenas um relatório pró forma. Esse relatório é arquivado e a comunidade não fica sabendo o que está ocorrendo. A burocracia também é um obstáculo. Temos agora o Pronex, programa que pretende criar 150 grupos de excelência no país, de mais alta qualificação. A seleção tem sido muito rigorosa e os projetos apresentados muito bons. Há um estímulo muito grande. Espero que não falte dinheiro. Ter centros de referência em pesquisa científica é uma idéia muito positiva, mesmo que de início eles fiquem um pouco concentrados no Rio, em São Paulo e em Minas Gerais. Acho que esse é um projeto vitorioso, embora tenha pouco tempo de funcionamento. A Capes também tem tido um papel positivo.
desigual ou não?Na época em que trabalhei nos comitês assessores, nunca percebi isso. Mas é preciso ver que a ciência tem uma relação positiva com o desenvolvimento econômico. As áreas mais ricas produzem melhor ciência, estão mais bem estruturadas. Por exemplo: os projetos elaborados em São Paulo, onde a Fapesp representa um estímulo muito grande, são mais bem elaborados, são feitos por indivíduos que já têm publicações, que já atuam há muito na área. A competição, portanto, é difícil, mas não é criada pelo Pronex ou pelo CNPq. Ela existe porque o país é assim. Em toda parte existe uma relação direta entre ciência e dinheiro: países mais ricos fazem ciência melhor. A ciência do Nordeste reflete a maior pobreza da região. Muitos grupos, exceto os mais experientes, apresentam projetos que parecem, digamos, ingênuos. No CNPq, um bom projeto apresentado por instituições nordestinas causava um misto de admiração e simpatia nos comitês assessores.
Como o senhor vê, nos aspectos científicos e éticos, realizações como a clonagem de uma ovelha, especialmente em face da possibilidade de clonagem do ser humano?
Do ponto de vista da técnica científica, ainda há um grande caminho a ser percorrido até se pensar em clonagem humana. A dificuldade é imensa, mas pode-se acreditar que um dia isso será possível. A questão que nasce daí deve ser debatida à medida que os resultados tornem mais próxima essa possibilidade, mas não acho que esse tipo de pesquisa traga malefícios para a humanidade. Sempre que a ciência progride, mesmo com uma face ruim, como no caso da bomba atômica, muitos aspectos positivos podem ser explorados para o bem da humanidade. Medidas que proíbam pesquisas sobre clonagem seriam extremamente prejudiciais.
O senhor acha que não deve haver limites para a experimentação?
Pessoas engajadas em ciência, que procuram fazer ciência e vencer etapas em uma área complexa e delicada como essa, já têm — da minha parte — um crédito de confiança. Desconfio da idéia de proibir alguma coisa: a emenda pode sair pior do que o soneto. Acho que a ciência deve ser livre.
Permitir total liberdade de experimentação não põe as pessoas a serviço do conhecimento e não, como deve ser, o conhecimento a serviço das pessoas?
Talvez nosso ponto de vista coincida, no sentido de que a ciência deve ser feita com ética, principalmente quando se trata de seres humanos. Isso está fora de dúvida. O que me preocupa é a idéia de proibir alguma coisa na área científica. As perguntas principais seriam: Quem vai proibir? Proibir o que? Essa decisão pode envolver os piores instintos humanos, como inveja, obscurantismo, perseguição política, racial ou religiosa. Há muitos exemplos na história da ciência.
O senhor acha que não deve haver limites para a experimentação?
Pessoas engajadas em ciência, que procuram fazer ciência e vencer etapas em uma área complexa e delicada como essa, já têm — da minha parte — um crédito de confiança. Desconfio da idéia de proibir alguma coisa: a emenda pode sair pior do que o soneto. Acho que a ciência deve ser livre.
Permitir total liberdade de experimentação não põe as pessoas a serviço do conhecimento e não, como deve ser, o conhecimento a serviço das pessoas?
Talvez nosso ponto de vista coincida, no sentido de que a ciência deve ser feita com ética, principalmente quando se trata de seres humanos. Isso está fora de dúvida. O que me preocupa é a idéia de proibir alguma coisa na área científica. As perguntas principais seriam: Quem vai proibir? Proibir o que? Essa decisão pode envolver os piores instintos humanos, como inveja, obscurantismo, perseguição política, racial ou religiosa. Há muitos exemplos na história da ciência.