05/03/2013
Quando um psicanalista como Calligaris lida com pacientes, ele não se diverte. Mas quando ele lida conosco, supostamente sadios, ele Peter Singertem o direito de se divertir. Ele jogou a isca esperando pegar intelectuais. Não deu outra: Marcelo Coelho, Safatle e, agora, Helio Schwartsman vieram com o beiço caído pelo anzol para o balde de Calligaris. Os dois primeiros procuraram invalidar o exemplo-limite de Calligaris, qualificando-o como artificial. Marcelo Coelho usou uma saída válida: se a proposta é cinematográfica, então eu mudo de canal. Safatle tropeçou no marxismo que, enfim, impede muito filósofo de filosofar: desqualificou toda a filosofia moral que trabalha com o que ele chamou de postura “infantil”, o uso da situação-limite (talvez por isso não tenha citado Calligaris!). Por sua vez, Schwartsman tentou fazer diferente e enfrentar o problema, reconhecendo (como eu já havia feito também) que situações extremadas como a evocada por Calligaris não são ilegítimas, elas são posições filosóficas que talvez possam nos ajudar a resolver dramas da vida real (Debate sobre a tortura revela qão pouco sabemos sobre nós mesmos, Folha de S. Paulo, 03/03/2013).
O que Schwartsman fez pode parecer comum e correto, todavia, tem os problemas detectados por Nietzsche em relação ao que este chamou de “sobretudo burguês” em suas Extemporâneas: quando lidamos com filosofia não temos mais posições nossas, como os gregos faziam, e então vestimos erudição histórica como quem veste um capote com o qual se enfrenta o frio da rua – eis nossa saída moderna. Em parte, é assim que a academia tem ensinado que é a filosofia. Ninguém mais pode ser filósofo uma vez que todos viraram professores de filosofia ou “pesquisadores em filosofia”. Em ambos os casos a tarefa cabível não é enfrentar dramas filosóficos, mas expor o que outros disseram. Estes “outros”, em geral mortos ou estrangeiros, são os que ganharam o título de filósofos exatamente porque não quiseram ficar na condição exclusiva de comentadores, mas que são vistos aqui entre nós como contendo um dom a mais, que nós não poderíamos ter (porque falamos o português – é por isso que não somos deuses-filósofos?).
Também mordi a isca de Calligaris. Mas eu não sou Bill Clinton, se eu fumo maconha eu trago e seu eu faço sexo não é só nas coxas. Muito menos sou Fernando Henrique, eu não experimentei coisas na faculdade, tudo que tenho de experimentar eu só experimento depois da faculdade, na vida mesmo. Tenho mais experiências que experimentos! Sendo assim, fiz o meu texto em resposta ao de Calligaris de um modo que outros talvez não possam fazer, ou seja, de modo corajoso. A coragem é uma virtude do filósofo. Não me coloco como professor, mas como filósofo, por isso tive de aceitar o desafio de Calligaris não mordendo a isca, mas engolindo-a. Afinal, a consulta com o Calligaris é cara e, então, já que ele deu de bandeja uma sessão pública gratuita, eu não poderia perder tal oportunidade. Fui para o divã. Deixar de lado uma promoção dessas seria tolice.
Escrevi então, em resposta a Calligaris (Calligaris, eu torturaria), que a questão toda deve começar por diferenciar ética de moral. Moral nós temos, é impossível viver sem uma. Mas ética é diferente, nem sempre podemos, individualmente, seguir com ela. Nem sempre as regras sociais que expressam o ethos de um povo ao qual pertencemos podem comandar todos os nossos atos individuais, mas nem por isso eles não são nossos mores. Todavia, isso não resolve o problema, pois o modo como Calligaris colocou o drama golpeia a ética e a moral. Vejamos.
Nossa ética não tem como admitir a tortura como alguma coisa legítima. A ética comanda a política e as leis. De forma alguma temos como fazer valer eticamente uma lei que permita a tortura, mesmo que tal prática seja permitida somente ao estado e em situações excepcionais, levada adiante debaixo de vários cuidados médicos e jurídicos. Assim, nesse plano, assumimos a posição de Kant. No entanto, se não somos kantianos e, sim, utilitaristas, podemos usar Mill para dizer que em nome de salvar mais pessoas podemos sacrificar menos pessoas. Ou seja, no “dilema da bomba relógio”, mais ou menos o que Calligaris colocou, se temos que penalizar um culpado para salvar um inocente, a qualidade substitui a quantidade. Assim, que a tortura seja feita. Mas isso resolve as coisas? Claro que não!
De uma maneira ou de outra, o dilema posto por Calligaris não deixa saída para a filosofia moral moderna: se somos kantianos somos pegos pela ética e pela moral: não devemos torturar em hipótese alguma, pois não podemos usar o homem sem tomá-lo como um fim em si mesmo; e se somos utilitaristas somos pegos pelo conflito entre ética e moral. Nesse segundo caso, podemos imaginar que, ficando só no campo moral, optaríamos por torturar o sequestrador, mas então, pela mesma regra, logo ficaríamos tentados a ir para o campo da ética e, então, sugeriríamos transformar nosso ato de exceção em uma lei. Deixaríamos o estado, em nome de um maior número, infringir tortura a um menor número, sendo estes os suspeitos? (culpados eles seriam só depois do julgamento, o que não é o caso). Ora, fica fácil ser adepto de Mill, nesse caso, se não somos nós os que estão sendo torturados, postos na prisão por falsa pista ou falsa acusação, o que não é difícil de ocorrer quando se está querendo encontrar culpados para crimes tomados como bárbaros ou para situações onde o tempo corre de modo perverso.
Bem, mas então vamos ou não torturar o sequestrador do garoto para salvar o garoto que está preso em um lugar cujo ar está se extinguindo?
Coelho, Safatle e Schwartsman não entraram no problema. Cada um deles, por questões de método próprio, procurou fugir da filosofia e, consequentemente, do divã. Eu não. Eu disse claramente que minha moral valeria, e que a ética teria de esperar, se fosse alguém de minhas relações íntimas que estivesse no cativeiro. Eu disse que torturaria não só para obter informações! Talvez eu pudesse torturar também depois de salvar a criança, apenas pelo prazer da vingança. Caso fosse o Pitoko o raptado, aí eu torturaria eternamente. Tendo condições eu faria como fez o marido que prendeu o assassino da esposa uma vida toda, no belíssimo filme argentino O segredo de seus olhos (El Secreto de Sus Ojos , Juan José Campanella, 2009).
Depois da tortura, eu olharia no espelho como os nazistas se olhavam? Ou seja, eu teria aquelas justificativas pouco justificadoras? Por exemplo, a de dizer que sou um soldado convocado ou a de bradar que estou apenas exterminando ratos? Ou eu faria como a maioria dos nazistas fazia, não teria justificativa nenhuma porque espelhos não são pessoas e não pedem justificativas?
Sendo filósofo, mesmo que eu estivesse aparentemente tranquilo após ter barbarizado o sequestrador, eu teria comigo o dilema de Sócrates: como viver sob o mesmo teto que abriga um torturador? Afinal, como diz Sócrates no Hipias Maior, e bem notado por Hannah Arendt em A vida do Espírito, o problema todo é voltar para casa e encontrar lá, morando com você, alguém que faz coisas terríveis. Tenho de morar comigo mesmo, o torturador, e, nesse caso, conversar com ele, pedir conselhos, fazer perguntas e seguir suas respostas! Ora, meu interlocutor era uma pessoa sem ações tão selvagens nas costas até então e, agora, tendo se transformado em um terrível torturador, poderia continuar sendo amigo, sendo um conselheiro? Eu não iria me dar mal não? Como ficar com tal pessoa em casa, inclusive na mesma cama? (no mesmo corpo!). Eu poderia não ser vítima da facada literal desse torturador, mas será que seus conselhos, daí por diante, não me poriam numa fria?
Há duas observações aqui, que valem a pena ser retomadas. Uma é a do Coringa representado por Heath Ledger no Batman, o Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, Christopher Nolan, 2008), e que é mais ou menos a mesma do meu amigo também já falecido, o filósofo norte-americano Richard Rorty: as pessoas são solidárias enquanto estão em bonança e calmaria, mas em situações difíceis viram bestas que se devoram, poupando outras somente segundo um grau decrescente em uma onda circular indo do centro para a periferia. Desse modo, eu até poderia não usar da tortura caso a criança presa não fosse “um dos nossos”, considerando aí o “nossos” segundo círculos de proximidade: filhos e esposa, família, amigos, compatriotas, terrestres etc. Mas sendo o sequestrado “um dos nossos”, o que determinaria mesmo a opção minha pela tortura viria da consideração do círculo. O círculo chamado “filhos e esposa” ou mesmo “família” seria, certamente, aquele pelo qual não somente eu, nessa nossa sociedade, torturaria alguém.
Haveria chance de salvar aqueles filósofos que louvaram a natureza humana (1) como sendo próxima da dos anjos, mesmo quando estamos em um clima de alta pressão? Para um filósofo pragmatista, em geral adepto de éticas consequencialistas, posso pensar de modo semelhante ao que o filósofo Peter Singer fez com o “caso do terrorista”. Em uma palestra em Michigan, ele foi perguntado por um estudante sobre se poderíamos ou não torturar, com alguma legitimidade, um terrorista que teria colocado uma bomba em Manhattan, tentando assim descobrir o local da bomba e desarmá-la. Resumindo ao máximo, sua resposta foi a seguinte: temos de separar ficção de realidade, temos leis que proíbem a tortura porque se não for assim haverá certamente danos a inocentes sem que ninguém seja responsabilizado por isso, mas, se a situação ficcional é a real mesmo, como filósofo ou professor de filosofia eu direi a você para quebrar as regras, torturar o terrorista e salvar Manhattan, mas deve fazer tudo isso sabendo muito bem das consequências. Caso a informação sobre a bomba seja verídica você será um herói e a questão da tortura não será evocada ou, se evocada, não o levará a receber punições. No entanto, caso seja falsa, você terá de arcar com responsabilidades que surgirão e várias pessoas, inclusive as da lei, irão querer punir você.
Creio que posso pensar como Singer, principalmente se eu acrescento o modo como Rorty dissertou sobre os círculos segundo os quais alguém pode ser tomado ou não como “um dos nossos”. Creio que essa posição pode não definir, logo de início, uma ética, mas define uma moral, sem a qual viveríamos, realmente, amedrontados por aquele homem que assombrava Sócrates, aquele que, tendo se transformado em uma pessoa terrível, ainda iria morar na casa dele.
Como é a costura que faço então, entre Singer, Rorty e os meus propósitos?
Em Pragmatismo e política (Martins, 2005), há textos de Richard Rorty que traduzi e que me ajudam a resolver o meu medo que, enfim, se aproxima ao de Sócrates, uma vez que eu sei que posso torturar alguém. Trata-se da ideia de não definir o que é moral e eticamente legítimo ou não, definindo então a justiça, como alguma coisa “menos ou mais racional”. A ideia básica é não criar uma contraposição estanque entre a justiça (as regras éticas que podem ser “leis para todos”, sendo assim, expressão da razão) e a lealdade (as regras morais que dizem que temos de proteger primeiro “os nossos”, e que podem ser tomadas não como expressão da razão, mas dos sentimentos). O que digo é que, assim pensando, levo em conta o que me é caro, a moral da lealdade. Afinal, para todos nós essa moral é cara. Ficamos com ela em situação de pressão. Mas não precisamos tomar essa lealdade como o que negaria a justiça. Pois, enfim, poderíamos pensar como “nossos” não só a criança sequestrada, ou a população de Manhanttan. Temos a capacidade de ir ampliando os círculos de lealdade e, mesmo sob pressão, imaginarmos círculos bastante amplos que incluam até mesmo o próprio sequestrador. De certo modo é isso que fazemos quando nos damos conta de que dificilmente poderemos ter certeza de que não estamos torturando um inocente. Fazemos isso quando a ficção criada não é a posta por Calligaris, motivada pelo filme A hora mais escura (Zero Dark Thirty, Cathrin Bigelow, 2012), mas aquela de O suspeito (Rendition, Gavin Hood, 2007).
Esse filme, também baseado em fatos reais, mostra uma esposa americana, casada com um homem de nome árabe, desesperada ao ver seu marido desaparecer na volta de uma conferência na África. No filme, ao final o inocente é solto por meio de uma decisão pessoal de um agente da CIA, que resolve bancar o feito contra a própria organização e a partir de suas conjecturas. Em um determinado momento, o agente da CIA, interpretado por Jake Gyllenhaal, começa a ampliar o seu círculo de “nossos”, ao se imiscuir na vida do prisioneiro torturado. Também nós que estamos vendo o filme tendemos a nos deslocar em favor do torturado não só pela sua dor e inocência, mas pela maneira como o enredo nos mostra que ele é muito mais “um dos nossos” do que poderíamos imaginar ao vermos a peregrinação da esposa. À medida que a esposa bate de frente com pessoas do governo que se dizem defensores da justiça e do “interesse de todos”, vamos ficando sozinhos na cadeira do cinema como ela está sozinha em sua procura, se sentindo abandonada por todos aqueles que ela pensava ser “um dos nossos”, as autoridades americanas. Sua lealdade para com todos os americanos, e inclusive para com a questão da segurança da nação, não diminui, mas ela (e nós) percebe que ou o círculo dos “nossos” se amplia ou não se terá nenhuma justiça. Enfim, a justiça não pode ser outra coisa senão a ampliação dos círculos de lealdade, até caber aquele que é torturado. Não há nenhuma regra kantiana aí. Nem há utilitarismo. Mas há um tipo de consequencialismo citado por Singer e definido por Rorty. A justiça, a regra para a nação, mesmo em situações extremas, não precisa se opor à lealdade que temos para com “os nossos”. O problema todo é o de ver como que a justiça pertence ao espectro da lealdade, não sendo um elemento de oposição a ele.
Volto então ao drama da bomba relógio, de Calligaris, ou melhor, ao drama da criança que vai morrer asfixiada enquanto eu tenho, nas mãos, o sequestrador. Devo ou não torturá-lo? Dado que Marcelo Coelho, Safatle e até mesmo Schwartsman correram para casa, dizendo que o sequestro não era problema deles, tudo sobrou em minhas mãos. Estou somente eu e o sequestrador, e ele está amarrado em minha frente, disponível. Ora, posso imaginar que ele seja inocente e vê-lo, assim, no círculo que cabe “um dos nossos”. Posso ter certeza de que ele é o sequestrador, mas ainda assim, vê-lo como “dos nossos”, pois não é difícil imaginá-lo como uma boa pessoa em sua cidade, alguém que também tem filhos e que os ama, e que tais filhos o estão esperando. Posso apelar verbalmente a ele, de modo que ele também pense empaticamente, mesmo que um de seus filhos tenha sido morto pelo meu povo. Mesmo sob a pressão do tempo, isso poderia fazer efeito, tanto quanto a tortura – é uma incógnita a essa altura da situação saber, de antemão, “o que faz efeito”. Caso nada surta efeito, e eu vá decidir pela tortura porque o tempo está se acabando, devo saber que isso não anulará da minha consciência, mesmo depois, a consequência: darei um passo sem volta, dali para diante serei um torturador, sendo ou não herói, depois, aos olhos de muitos. Em outras palavras: minha vitória será a minha derrota, pois, ao final, tornar-me-ei senão um covarde, ao menos uma pessoa que se aproveitou da fraqueza do outro. Caso isso não pese, pesará sobre mim a questão de saber se não terei ali adquirido o que disse, aqui mesmo, já possuir: o desejo de torturar o sequestrador mesmo depois de salvar a criança, principalmente se o sequestrado for o Pitoko (meu cachorro, que é meu filho). É o peso dessas consequências, bem medidos, que me dará as chances de ver a lealdade se abrir menos ou mais de modo que a justiça possa ser vista como alguma coisa que não lhe é oposta.
© 2013 Paulo Ghiraldelli Jr. filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
(1) A expressão “natureza humana” é tomada aqui como peça do linguajar comum, e não como uma expressão de quem não compartilha a posição de que não vale a pena uma teoria sobre a natureza humana. Nesse caso específico, explicado isso, o leitor não deve estranhar vê-la na boca de um pragmatista.
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