Günther Jakobs
As críticas emanadas da classe jurídica são, em regra, acertadas, principalmente diante das experiências históricas catastróficas que tivemos, em que muitos estados, após tacharem de "inimigos" alguns (milhares de) indivíduos, deixaram de considerá-los como pessoas, dando, assim, ensejo aos mais insanos dos terrores.
INTRODUÇÃO
Jakobs menciona alguns precedentes jusfilosóficos. Primeiramente Rousseau, para quem "qualquer ‘malfeitor’ que ataque o ‘direito social’ deixa de ser ‘membro’ do Estado, posto que (sic) se encontra em guerra com este, como demonstra a pena pronunciada contra o malfeitor" [02].No que concerne a Rousseau, mais nos parece que esse mestre da filosofia política iluminista se refere ao inimigo nos estritos limites da guerra, e não de modo tão amplo como afirma o autor:
A guerra não é pois uma relação de homens, porém de Estado a Estado; só acidentalmente nela são inimigos os particulares, não como homem ou mesmo cidadãos, mas como soldados, não como membros da pátria, mas como defensores dela. Cada Estado, enfim, só pode ter por inimigo outro Estados, e não homens, visto que entre coisas de diversa natureza não há verdadeira relação.Assim, entendemos que, embora Rousseau dispense ao inimigo um tratamento diferenciado, não o faz de maneira tão ampla quanto Jakobs. Aquele se restringe aos limites de uma guerra formalmente declarada. Todavia, Jakobs afirma que sua proposta é muito menos ampla do que a desse pensador contratualista. Não nos parece que assim o seja, haja vista que Jakobs admite essa aplicação até mesmo fora do estado de guerra formalmente declarada, bastando a periculosidade do indivíduo.
Até esse princípio está de acordo com as máximas estabelecidas em todos os tempos e com prática constantes de todos os povos civilizados. As declarações de guerra são mais advertências aos vassalos que às potências. O estranho que furta, mata ou prende os vassalos sem declarar guerra ao príncipe, ou seja rei, ou particular, ou povo, não é um inimigo, mas um ladrão [...] Sendo o alvo da guerra a destruição do país contrário, há direito de matar seus inimigos, enquanto tiverem na mão as armas; apenas se as depõem e se rendem, cessam de ser inimigos, ou instrumentos do inimigo, tornando-se meramente homens, e já não se tem direito sobre sua vida [03] (grifos nossos).
Hobbes, Fichte e Kant também entram nesse rol de precursores do conceito de inimigo. Hobbes, no mesmo sentido de Kant (mutatis mutandis), afirma que o cidadão não pode ser retirado desse status que lhe é conferido, mas, sim, em casos de prática de crime de alta traição. "Pois a natureza deste crime está na rescisão da submissão [04], o que significa uma recaída no estado de natureza... E aqueles que incorrem em tal delito não são castigados como súditos, mas como inimigos" [05].
O autor traça um paralelo entre esse dois pensadores. Haja vista que, para Kant, esse inimigo não merece ser tratado como pessoa quando se recusa a integrar um "estado comunitário-legal", da mesma forma que Hobbes "despersonaliza o réu de alta traição" [06]. Ambos reconhecem um Direito Penal do cidadão e um "Direito" Penal do inimigo. "Este exclui e aquele deixa incólume o status de pessoa" [07].
2.FUNDAMENTOS DO "DIREITO" PENAL DO INIMIGO
O Direito Penal destinado a tutelar a norma [08] é o que Jakobs chama de Direito Penal do cidadão, que não perde seu status de pessoa em face dos delitos que comete. O "Direito" Penal aqui analisado (do inimigo) não se trata de um Direito propriamente dito, mas de uma coação contra aquele que põe em perigo a paz e a segurança social, persistindo na reiteração dessa quebra de princípios [09].Nas palavras de Jakobs, "Direito Penal do cidadão mantém a vigência da norma, o Direito Penal do inimigo (em sentido amplo: incluindo o Direito das medidas de segurança) combate perigos; com toda certeza existem múltiplas formas intermediárias" [10]. Como se vê, é negada ao inimigo a sua condição como pessoa.
A própria "despersonalização" do indivíduo já nos parece, em si mesma, uma sanção imposta a priori que nem sequer se reveste de um processo legitimador. Isto é, quer-se desconstituir a pessoa para afastá-la de suas garantias fundamentais, sem qualquer análise para uma fundamentação. Como se não bastasse sua ilegitimidade material, nem se fala em um processo cognitivo ou lógico-valorativo para essa desconstituição.
Além disso, praticamente administrativiza a decisão sobre a aplicação desse formato autoritário, vez que na maioria das vezes tal se operará desde a fase investigatória pré-processual. Mesmo quando alguma decisão judicial seja a que determine ou corrobore semelhante tratamento, é incontestável que tratar-se-á invariavelmente de uma escolha arbitrária como uma petição de princípio ou uma profecia que se auto-realiza. Ora, se o Juiz ou uma Autoridade Administrativa atribuem ao réu ou investigado a pecha de "inimigo" ou lhe impõem por quaisquer critérios um "Direito Penal de Terceira Velocidade" [11], suprimindo-lhe garantias básicas, inclusive referentes à sua ampla defesa, como poderá, a partir de então, ser tal decisão eficazmente combatida? Todo o raciocínio torna-se circular (um círculo vicioso): és inimigo; portanto, não há para ti garantias defensivas; portanto, és inimigo... [12].Essa construção se dirige a coibir os perigos à segurança da comunidade. Até 1985, a abrangência dada a essa teoria punitivista era ainda maior. Após 1999, Jakobs restringiu seu ângulo de abertura, valendo-se sobremodo do terrorismo para exemplificar sua aplicabilidade. Mas não se presta a coibir apenas estes, dirige-se também aos crimes sexuais, à criminalidade econômica, ao tráfico de drogas, ao terrorismo, ao racismo e outros.
Essa concepção punitivista foge de vários axiomas básicos de Direito Penal. Traduz um Direito Penal de autor, tão rechaçado pelas doutrinas do pós-guerra até as atuais. Assim, em delitos dessa natureza, muitos ordenamentos têm equiparado, e.g., a participação à autoria, os atos preparatórios à consumação [13] etc. Dessa forma, não se pune por que se cometeu um delito, mas "por fazer parte’ de alguma maneira, ‘ser um deles" [14]. Isso se dá porque ao inimigo é negada a aplicação do postulado da proporcionalidade, além de muitas outras normas de ordem constitucional.
O Direito Penal do Fato, que é o constitucionalmente legitimado, dá lugar a uma política repressiva que pune o indivíduo pelo que ele é, e não pelo que ele fez ou deixou de fazer. Tenta-se, com essas proposições, o reconhecimento de dois pólos: "o tratamento com o cidadão, esperando-se até que exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade [...], o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade" [15].
Nesse diapasão, o homicida comum é punido somente após a realização da conduta, e como pessoa, com todos os direitos a ela inerentes. Já o chefe de uma organização criminosa é punido pelo fato de sê-lo. Na Alemanha atual, a pena do homicida pode variar de 5 a 15 anos de pena privativa de liberdade; já ao chefe de uma organização terrorista, varia de 3 a 15 anos. Veja que o tipo pode chegar a alcançar a cogitação, e ter uma pena assemelhada à consumação.
Esse pensamento teve forte precedente no Reich alemão, quando um assassino potencial se disse disposto a matar Bismark. Logo após, em 1933, foi sancionado um projeto que punia atos desse natureza (cogitação) com maior ou igual severidade do que se fazia aos crimes consumados, para punir quem "planejasse" matar membros do governo. Em 1935 passou-se a punir também quem cogitasse insurgência contra membros do partido.
O "Direito" Penal do inimigo não se limita, porém, ao direito substantivo. Abarca também o direito processual. Admite, por exemplo, a prisão preventiva independentemente do perigo concreto, factível, que o processado possa representar, baseando-se na periculosidade instintiva do "inimigo".
E mais: a) não se fala em igualdade processual; b) o Poder Executivo pode intervir em desfavor do acusado, podendo interrogá-lo inclusive (recentemente foram divulgadas as técnicas de tortura, mediante simulação de afogamento, utilizadas nos interrogatórios dos "inimigos" nos EUA); c) as interceptações das comunicações são ilimitadas; d) a incomunicabilidade do imputado se legitima etc.
O imputado não é tido como um sujeito processual, que participa do processo, mas como um indivíduo perigoso. Como lembra Meliá, "De novo, como no Direito material, as regras mais extremas do processo penal do inimigo se dirigem a eliminação dos riscos terroristas" [16].
Jakobs analisa o Poder punitivo internacional, no âmbito do Tribunal Penal Internacional e dos instrumentos que visam a defender os Direitos Humanos. Argúe que não se trata de uma preservação de um ordenamento normativo, e, sim, de uma tutela de sua própria criação.
O autor afirma que esse sistema punitivo internacional tem normas que estão em consonância com o "Direito" Penal do inimigo, o que não o torna ilegítimo. Sua posição conflita com o escopo dessas instituições, que, na ótica de inúmeros pensadores, visam a tutelar bens inerentes aos indivíduos e a toda humanidade, todavia, se porventura essas normatizações contiverem "fórmulas" dessa natureza, estas devem ser extirpadas desses ordenamentos.
Em suma, o "Direito" Penal do inimigo se dirige à eliminação de um perigo, o que não exclui a possibilidade de que sejam excluídos aqueles que o Estado assim considere. Nessa vereda, defende-se uma ampla antecipação da punibilidade no curso do iter criminis, ocupando-se de punir fatos futuros, eventuais, e não atual ou passado como se espera.
Conclui-se, portanto, que a antecipação dessa barreira punitiva não se presta a reduzir a pena, pois a proporcionalidade é incompatível com esse sistema [17] e, por derradeiro, que as garantias processuais são afastadas [18]; tudo isso em nome de um "Direito da sociedade".
CONCLUSÃO: CRÍTICAS A ESSE PUNITIVISMO EXACERBADO
Como ocorre com a maioria das teorias desenvolvidas no campo das Ciências Humanas (e também com inúmeros dispositivos legais que são introduzidos no ordenamento jurídico), as interpretações podem tanger para o bem ou para o mal [19]. Como bem expõe Zaffaroni, "O poder instrumentaliza as ideologias na parte em que estas lhe são úteis e as descarta quanto ao resto", e a isso ele dá o nome de manipulação ideológica[20].Há inúmeros exemplos históricos. O Poder soviético, de Lênin e Stalin, abriu os caminhos trilhados por Marx, no que conduzia a uma ditadura do proletariado, de certa forma carregado de positivismo. Contudo, escondeu até o quanto pode os Manuscritos de Marx, que poderiam levar os opositores a outra interpretação dentro da própria doutrina. Depois de virem à tona esses Manuscritos, passou-se a afirmar que havia "dois Marx": um evoluído e outro imaturo. Nessa esteira, os delitos mais graves eram os que tinham por fim restabelecer o poder da burguesia [21].
O fascismo, na Itália, aproveitou todo conteúdo de "exaltação ao Estado" de Hegel (o que limitou de certo modo a irracionalidade daquele poder), porém, jamais mencionou o continente liberal do pensamento hegeliano. O nazismo, na Alemanha, por sua vez, não se baseava no fundamento de Estado (isto é, fora da concepção neo-hegeliana), mas num conceito de "comunidade de sangue e solo", que se pretendia "purificada", sob uma visão racial, e que buscava exterminar todas as outras "raças" que, ao seu juízo, eram impuras, logo, inimigas da comunidade. Ainda que se diga que o nazismo aplicou com rigor o positivismo de Kelsen, foi pior, pois essa afirmação não leva em conta as aplicações da analogia in mallan partem que foram utilizadas em prol dos interesses da ideologia defendida, mesmo antes da legislação alemã a prever expressamente [22], o que não a tornaria menos absurda.
Isso não é diferente com a teoria do "Direito" Penal do inimigo, embora ainda não tenhamos vislumbrado interpretações defensáveis que pudessem conduzi-lo com preponderância ao caminho do "bem", é dizer, que pudessem retirá-la das margens da arbitrariedade ou das mãos daqueles que visam a esse método de poder, isso no sentido de se buscar uma redução de danos, pois nos parece que os prejuízos que essa teoria pode nos trazer são desmensuravelmemte maiores do que os danos que ela propõe evitar.
Portanto, no nosso sentir, eis "um prato cheio" para os ditadores contemporâneos e para aqueles que vêem na "guerra" (oficializada ou não) uma fonte de poder e mercado para sustentar seus governos e, para tanto, buscam um "inimigo" para tergiversar essas suas tendências (não menos terroristas que aqueles que eles próprios dizem sê-lo).
Atualmente, o "Direito" Penal do inimigo faz ressoar seus efeitos por muitos países. Na América Latina inclusive. Para citar um exemplo trazido por Meliá, na Colômbia, o Presidente tem adotado várias medidas que convergem com essa teoria – e segundo esse autor, "essa aproximação teórica não é ‘ideologicamente inocente". Não obstante, a Corte Constitucional colombiana vem declarando-as inconstitucionais [23].
Nos Estados Unidos, a repressão tem se mostrado um forte instrumento para angariar votos em campanhas eleitorais. Um bem sucedido candidato a governador exibia a foto de um criminoso, prometendo vingança. Outro político, um prefeito de Nova Iorque (Rudolph Giuliani) exaltou a repressão sobre a classe marginalizada [24], representada por negros e imigrantes, num esquema esdrúxulo chamado tolerância zero, e, como se não bastasse "explica idiotices a executivos latino-americanos que lhe pagam cifras astronômicas para ouvir suas incoerências publicitárias" [25].
Jakobs tem falado muito dos ataques de 11 de setembro de 2001, como se fosse um sustentáculo bem vindo para a teoria da coerção ao inimigo (creio que só para a teoria e não para o teórico, evidentemente). Mas, ainda com esse acontecimento, dentre outros, essa tese não se tem mostrado convincente. Um trecho do texto de Zaffaroni talvez reforce o que dissemos:
Os crimes de destruição maciça e indiscriminada ocorridos em 11 de setembro de 2001 e em 11 de maio de 2004 são expressões de violência brutal que, na opinião dos internacionalistas, configuram crimes de lesa-humanidade, os quais, por sua vez, são respostas a outras violências e assim poderíamos continuar até Adão e Eva ou até o primeiro golpe que um hominídeo desferiu contra outro, sem chegar a nenhuma solução com vistas a uma convivência racional no futuro.A história ensina que os conflitos que não terminaram em genocídio se solucionaram pela negociação, que pertencem ao campo da política. Porém, a globalização, ao debilitar o poder de decisão dos Estados nacionais, empobreceu a política até reduzi-la à sua expressão mínima. As decisões estruturais atuais assumem, na prática, a forma pré-moderna definida por Carl Schmitt, ou seja, limitam-se ao mero exercício de designar o inimigo para destruí-lo ou reduzi-lo à impotência total. Qualquer pessoa que lê um jornal enquanto toma seu café da manhã – se não limitar a leitura às notícias de esportes – vai se inteirando dos passos que o poder mundial toma rumo aos genocídios, ou seja, rumo ao aniquilamento total daqueles a quem considera seus inimigos.
[...]
Como resultado desta sensação de minimização da política da negociação, duas frentes vão sendo delineadas no mundo do pensamento, com seu natural impacto no mundo político: a dos direitos humanos e da negociação, por um lado e, por outro, a da solução violenta que arrasa os direitos humanos e, mais cedo ou mais tarde, acaba no genocídio. A consciência desta disjuntiva é maior onde as experiências do terrorismo de Estado permanecem na memória coletiva, como na Europa e na América Latina, porém não é assim nos Estados Unidos, onde existiram outros abusos repressivos, mas sua população não sofreu, em seu território, nem a guerra nem o terrorismo [26].
Dessa perspectiva de tratar o outro como hostis [27],daninho ou inimigo constrói-se um Direito Penal preventivo. Esse sistema penal encontrou seu inimigo no terrorismo, após os atentados de 11 de setembro de 2001. O caráter preventivo foi emprestado à guerra contra o Iraque. "Como nunca antes, fica evidente a identidade do poder bélico com o poder punitivo na busca desesperada do inimigo" [28].
Na lição de Luigi Ferrajoli, às normas que sigam essa linha dá-se o nome de leis penais constitutivas, ou, nas doutrinas mais freqüentes, direito penal de autor. De tal sorte, são, com efeito, repelidas pela teoria do garantismo, anunciada por este autor: "as normas penais constitutivas, bem se sabe, não vedam, mas, sim, castigam imediatamente. Ou, se preferirmos, não proíbem atuar, senão ser" [29].
Por conseguinte, somos levados a raciocinar que esses atos lesivos à coletividade (o que se chama hoje por terrorismo) não servem de fundamento para que se retire de alguém o status de pessoa, que é inerente a qualquer indivíduo humano (viva ou não como ser de uma sociedade). Em verdade, nem se sabe ao certo, ao menos juridicamente, como se conceituar um ato terrorista [30].
Na Itália, por exemplo, a legislação, de certa forma, também se norteou por essa vereda. Os partidários de grupos terroristas passaram a receber da lei um tratamento diferenciado. E, só para citar um exemplo de como esse tipo de idéia pode ser um imprudente e perigoso instrumento de regozijo político, diante de uma empobrecida capacidade de reflexão desses setores, lembraremos o que aconteceu naquele país após o dia 11 de novembro de 2007.
Naquele dia, o torcedor de um time de futebol, Gabriele Sandri, morreu ao ser baleado por um policial que tentava conter um tumulto. Muitos torcedores se rebelaram, pedindo para que os jogos fossem suspensos em razão do luto. A confusão se expandiu, acarretando saques, confrontos com a polícia e mortes. Isso fez com que a Ministra dos Esportes da Itália, Giovanna Melandri, pedisse urgência na aprovação de projetos que visam a aumentar a pena de torcedores que assim se comportam e que lhes fosse dado tratamento de terroristas.
Ademais, a Procuradoria de Roma anunciou na segunda-feira (dia 12/11/2007) que irá processar por terrorismo os quatro torcedores presos no dia anterior na capital italiana. Aí é que nos perguntamos: quem são os inimigos? Quem os define? No interesse de quem serão assim considerados? Para confortar e trazer a sensação de segurança? Isso traduz um "Direito" Penal simbólico" [31]? Até que ponto um torcedor, um grevista, um sindicalista, um membro de um movimento universitário, ou qualquer outro cidadão pode ser considerado um inimigo ou terrorista? Não se tem resposta mais ou menos alicerçada que satisfaça a qualquer dessas questões, o que dirá definir um inimigo.
Na legislação espanhola, também a título de exemplo, introduziu-se a figura do "terrorista individual", uma tipificação que, de acordo com Meliá, "não se encaixa de nenhum modo com a orientação da regulação espanhola neste setor, estruturada à especial periculosidade das organizações terroristas" [32].
O autor faz essa referência ao apontar o "Direito" Penal do inimigo como um Direito Penal de autor. Ainda nessa direção, Meliá sustenta que "Direito Penal do inimigo" não é Direito e que todo Direito Penal é do cidadão, de modo que "Direito Penal do cidadão’ é um pleonasmo; ‘Direito Penal do inimigo’ uma contradição em seus termos" [33].
No Brasil, há vozes ali e acolá, de alguns setores, que sustentam essa idéia; embora muitas vezes com fundamentação raquítica, o que não a torna menos preocupante [34].
Por isso, não é difícil nos convencermos de que despersonalizar um indivíduo humano é dar azo a despersonalização de toda uma sociedade, podendo-se chegar ao cúmulo da despersonalização, isto é, a despersonalização de toda HUMANIDADE. Exagero? Não.
Imaginemos que a humanidade se dividisse em dois grandes grupos em conflito e que ambos resolvessem considerar o outro como inimigo, despersonalizando-se reciprocamente e trazendo para si a prerrogativa de poder exterminar um ao outro – restariam todos despersonalizados, portanto, desprotegidos pelo Direito.
É por isso que entendemos que o conceito de pessoa não é um conceito de Estado, mas conceito de Direito inerente ao ser humano, que transcende a qualquer soberania. Uma sociedade é formada por pessoas (que se revestem de todos os direitos e garantias a elas inerentes); se uma pessoa pode deixar de ser pessoa, logo uma sociedade pode deixar de ser sociedade, conseqüentemente, humanidade pode deixar de ser humanidade tutelada pelo Direito; tal discurso legitima o genocídio. Isso é inconcebível.
De tal sorte, não se pode afastar o que preceitua o art. 6° da Declaração Universal dos Direitos Humanos: "Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei". Veja que a Declaração nem sequer vislumbra a hipótese de dar outro nome à pessoa senão aquele que realmente traduz aquilo que ela é e deve ser: "pessoa".
São muitos os esforços críticos que têm sido feitos para deixar claro que um "Direito" que despersonaliza o ser humano, privando-o dos direitos que lhes são intrínsecos, não é um Direito e nem sequer pode ser aceito por este.
A nosso ver, esse trabalho de rechaço não se torna tão difícil em razão da sustentabilidade técnica da corrente criticada (que beira ao despotismo global), mas, sim, por sua conveniência política, que muito aproveita àqueles aos quais ela possa satisfazer. A crítica em nada diminui o seu autor, que é um dos grandes penalistas da atualidade, mas, especificamente nesse ponto, sua teoria não nos induz a felicitações.
Diante da velha frase de Jean Carcagne – A qualidade do Direito é inversamente proporcional à quantidade dos argumentos –, pode parecer desnecessário (chegar ao ponto de) ter que defender os Direitos Humanos e afastar um "Direito" Penal que desconsidere a personalidade, mas não o é, sobremodo frente ao panorama que se apresenta no contexto globalizado.
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