domingo, 20 de abril de 2014

Descartes: o nascimento da “metafísica da subjetividade”




Crânio de Descartes no Museu do Homem, na FrançaO químico sueco Berzelius andou por Paris e ficou sabendo que no túmulo de Descartes não havia nenhum crânio. Isso o impressionou. Quando de volta para a Suécia, vagueando pelas ruas de Estolcomo, foi avisado de um leilão em que uma das peças era o crânio de Descartes. Berzelius foi ter com o comprador e conseguiu o crânio. Entregou-o ao governo francês. Foi assim que o crânio de Descartes chegou à sua terra natal. Isso foi em 1821. Descartes faleceu em 1650, na Suécia. Quase dois séculos de separação entre “corpo” e “cabeça”. Eles foram unidos, depois disso?
Quando os ossos de Descartes foram transferidos da Suécia para a França, houve a separação. Para comodidade da viagem, de modo a sobrar espaço, colocaram a cabeça em uma caixa e esqueleto na urna, e um capitão resolveu ficar com o crânio. Roubo – é claro. Mas bem intencionado, disse o homem. Era para preservar o crânio! Hoje este crânio contém o nome dos seus vários proprietários, e outras inscrições esquisitas. Está no Museu do Homem, em Paris. Fica lá, ao lado do crânio marcado como “Cro-magnon, idade 100 mil anos”. Nunca mais conseguiu voltar para junto do resto do esqueleto.
Caso possamos – de modo grosseiro – dizer que o crânio abriga o cérebro e este é o “lugar” da mente, então eis aí a separação mente-corpo de Descartes. A única plausível. Pois, ao contrário do que os estudantes (e até professores) de Ciências Cognitivas imaginam, Descartes não “separou corpo e mente”. Aliás, é horrível escutar esse enunciado. É coisa de quem ouviu o galo cantar, mas não sabe onde.
Nas Meditações, Descartes deixou claro que o homem “não é um piloto em seu navio”, não é uma mente comandando um barco, mas um todo coeso. A consideração que Descartes fez, apontando para uma dupla substância, a res cogitans e a res extensa, era puramente metodológica. O mental não ocuparia espaço e o não mental ocuparia espaço, e isso deveria implicar em alguma coisa a mais, pensou ele. Eis aí o “dualismo cartesiano” – não mais que isso. De modo algum Descartes quis dizer que poderíamos entender o homem por meio de uma separação entre “corpo” e “mente”. Poderíamos fazer pesquisas metafísicas com tal dualismo, mas não pesquisas filosóficas e antropológicas a respeito do homem.
O projeto de Descartes, ao menos no campo filosófico em sentido estrito, isto é, metafísico, nãoDescartes com a Rainha Christina, da Suécia era o de “entender o homem”. No campo metafísico seu projeto era o de mostrar a inconsistências de posições relativistas e, enfim, céticas – um projeto tradicional em filosofia, portanto. Um projeto herdeiro daquele que o próprio Platão se fez porta voz, depois de Parmênides e Heráclito: o de encontrar e bloquear os mecanismos pelos quais nós nos enganamos e tomamos o falso pelo verdadeiro. Como bloquear isso? Conseguindo uma primeira verdade indubitável. Bastaria uma, as outras poderiam ser tiradas por dedução, por silogismos corretos. Isso deveria, talvez, lhe dar um critério, um modo de saber quando se estaria diante de um enunciado ou pensamento verdadeiro, isto é, certo. E, para tal, ele começou pelo mesmo ponto de Platão: na discussão com a conversa do cético. E o que dizia o cético?
O que diz um cético profissional? O cético não duvida da verdade. Ele duvida do conhecimento. Ele nos fustiga dizendo que o conhecimento não é possível. Conhecimento, lá em Platão, é “crença verdadeira justificada”. E assim também no tempo de Descartes e, de certo modo, ainda hoje utilizamos (em parte) tal definição.[1] O cético não vai dizer que a verdade não existe, pois isso tornaria essa sua frase uma auto-refutação. Ele diz que não conseguimos lhe dar uma boa justificação do que afirmamos ser verdadeiro e, então, o conhecimento é que é o ponto sobre o qual recai a dúvida. Explico isso com um exemplo. E eis aí a oportunidade para uma visita de volta a Platão.
A sofística e, no seu interior, a retórica, foram os inimigos eleitos por Platão para serem alvejados. Sua pesquisa em torno do que seria o ponto fraco dos sofistas resultou na sua célebre distinção entre “crença verdadeira” e “conhecimento”. Platão tratou da distinção entre conhecimento e crença verdadeira principalmente no Teeteto (e no Menon). A questão posta no Teeteto é exemplificada com o caso cotidiano da investigação sobre um crime e de como que um júri pode chegar a responsabilizar ou não o apontado como culpado. Podemos imaginar que estamos assistindo um júri (de tipo americano) em que Joana é a vítima de um assalto levado a cabo por José, que está presente e é réu. Tudo que Joana conta sobre o episódio do roubo é bastante plausível e, embora não existam testemunhas, a carteira de Joana é encontrada com José e ele não tem qualquer álibi, nenhuma história plausível para se safar da acusação e, o que é pior, sabe-se que ele já cometeu outros roubos. Por tudo que ouvimos, estamos convencidos de que a verdade está com Joana: ela reconheceu José como assaltante e descreveu o evento do assalto com detalhes, enquanto que José não conseguiu desmenti-la. O júri parece que concorda com nossa opinião. O advogado de José tem o semblante carregado, pois ele não consegue disfarçar sua preocupação, como se ele admitisse que o que Joana diz é verdade e que não há maneira de amenizar a situação de José. A partir disso, podemos dizer que sabemos que Joana foi roubada por José? DescartesNão há razão para acreditar que Joana não esteja falando a verdade, e temos a crença, então, de que o que diz é verdadeiro. No entanto, apesar de nossa crença, não podemos afirmar que sabemos que Joana foi assaltada por José. Não podemos dizer que temos conhecimento disso – não no sentido correto do termo “conhecimento” ou do termo “saber”. Em um júri, não estaria Joana com outras intenções e, José, apesar de já ter cometido crimes, não poderia estar calado por causa de ameaças de alguém ligado a Joana, ainda que não tenhamos qualquer indício de que ela se liga a esse tipo de prática? Joana, afinal, não seria uma mestra da retórica, capaz de dar várias vezes descrições idênticas, e enfáticas, de um evento que não ocorreu, ou que não ocorreu nos termos que ela insiste em dizer que ocorreu? Nesse tipo de caso, Platão diz (usando Sócrates) que a crença verdadeira que temos não é conhecimento. Da crença verdadeira, uma vez assim definida – verdadeira – não há o que duvidar. Se a qualificamos como verdadeira, o caso está encerrado (quando digo “eu acredito em X”, é claro que estou tomando que é X é um enunciado verdadeiro). Todavia, quanto ao conhecimento, caberia a dúvida. Caso tivéssemos visto o assalto bem de perto e reconhecido José e Joana, então poderíamos dizer: “sabemos que José assaltou Joana” ou “temos conhecimento do assalto e este assalto foi praticado por José contra Joana”. Do conhecimento, como Platão o toma, cabe duvidar, pois não conseguimos, só com o que acreditamos e assumimos como verdadeiro, dizer que sabemos o que o ocorreu. A dúvida do cético recai sobre o conhecimento.
Sendo assim, para escapar do cético, o filósofo deve mostrar que “crença verdadeira bem justificada” é possível, insistindo, então, que a justificação é algo realizável ou alcançável. Descartes entendia, portanto, que precisava apenas de uma única e primeira verdade, e essa verdade deveria ser irrefutável, isto é, não haveria qualquer justificação contra ela melhor do que a que estivesse a seu favor. Ela viria com suas justificações e traria a “clareza e distinção”. Tais justificações deveriam se tornar, elas próprias, o critério de verdade – a régua infalível pela qual poderíamos dizer que sabemos algo. Uma régua que não precisaria, ela mesma, de outra régua para avaliá-la – pois é esse o problema que aparece quando queremos critérios.
Caso Descartes fosse um antigo, ele procuraria esse critério em qualquer outro lugar, menos no âmbito do “eu”. Mas, sendo moderno, tendo passado por uma educação em que o “eu” foi construído e aperfeiçoado, tendo experimentado anos de cultura que trouxeram a alma como uma noção muito mais complexa do que era para os antigos, foi natural para Descartes jogar suas fichas no que veio a ser conhecido como sujeito.
Seu raciocínio começa pela aceitação da dúvida. O cético quer duvidar, não é? Pois então, que duvide, mas ele tem de duvidar com método. Descartes se põe na condição de cético e passa a mostrar com é que se duvida metodicamente. Não há como duvidar de tudo, pois isso seria um projeto infinito, então, devo duvidar de algo que, caso minha dúvida se mostre eficaz, todo o resto entrará automaticamente em dúvida, até mesmo as crenças e enunciados que desconheço. Descartes resolveu investigar, então, não o conhecimento, mas as faculdades que deveriam ter propiciado a ele ter em sua posse o que até então chamava de conhecimento. Colocou em dúvida, dessa maneira, as faculdades pelas quais o conhecimento é gerado: os sentidos, a imaginação e o intelecto.
Nas Meditações Descartes afirma que tudo que tem ou passou pelos sentidos ou lhe é inato. Então, duvidar de tudo que tem e tudo que um homem pode ter é duvidar dos sentidos e da razão (a imaginação estaria subordinada aos sentidos). O que veio pelos sentidos, teria sua primeira morada no exterior à sua alma. O que não veio pelos sentidos e, no entanto, está em sua alma, teria vindo junto com ele ao mundo – seria um conjunto de crenças inatas. As primeiras serviriam para as ciências empíricas, como a física, as segundas construiriam as ciências puramente intelectuais, como a matemática ou geometria. Sua idéia básica e, então, a de colocar tudo em dúvida – o que vem dos sentidos e o que já está, de modo inato, no intelecto. Como fazer isso?
Com os sentidos Descartes vê que a atuação é fácil. Os sentidos parecem já o ter enganado ao menos uma vez. Então, dali para diante, nada de confiar nos sentidos. Eles estariam na berlinda. Todavia, como colocar as crenças matemáticas e geométricas na berlinda? Como dizer que não confiamos que dois e dois são quatro ou que a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180 graus? Impossível. Isso é certo e indubitável, estando nós aqui acordados ou dormindo, estando nós aqui na Terra ou não. Dessa forma, para colocar verdades do tipo da matemática em dúvida, haveria de encontrar outra estratégia.
Descartes elaborou a estratégia da hipótese do “gênio maligno”. Haveria um gênio instalado em seu pensar, em sua cogitatio, de modo a fazer com que ele se enganasse todas as vezes que ele viesse a pensar, mesmo que pensasse coisas logicamente corretas. Ao assumir tal hipótese, Descartes consegue ampliar sua dúvida de modo irrestrito. Ela é uma dúvida hiperbólica nesse sentido: ocupa todo o espaço. Nada há que não esteja, agora, em dúvida. Mas, ao mesmo tempo em que ele imagina esse forma de duvidar de modo hiperbólico, surge a ele a primeira verdade: para ser enganado o gênio precisa acessá-lo o tempo todo, e isso só pode ser feito se ele, Descartes (ou o eu de qualquer um que se submeter a tal exercício), estiver pensando – cogitando. Eis aí que ele tem sua primeira verdade; e também o critério de verdade, que é a certeza produzida no Cogito: por mais errado que esteja eu pensando, devido à atuação do gênio, se estou errando, estou pensando. Pararei de errar se parar de pensar. Mas enquanto penso e me engano, estou pensando. Sendo assim, eis a certeza subjetiva: “penso, sou”.
Que ninguém se engane, aqui, como o “sou”. Descarte não está dizendo é alguma coisa – ainda não está. Ele diz que é “uma coisa pensante” depois. Mas não precisa de ir mais além para ter um enunciado certo e indubitável. E se quiserem entender melhor, podem ler o “penso, sou” como “penso, existo”. Isso não é a conclusão de um silogismo. É uma evidência, uma intuição intelectual. Mas, às vezes, a literatura o mostra na forma de conclusão: “penso, logo existo”.
Que ninguém diga (não em um primeiro momento) que para pensar é preciso existir. Pois isso não vale. Descartes começa as Meditações duvidando de tudo, dos sentidos e, depois, do intelecto. Portanto, ele não está certo de nada, nem mesmo, é claro, de sua existência.
O que é importante entender é que essa certeza (como toda certeza, pois o verbo certeza implica já remete para o sujeito) é subjetiva. E subjetiva, aqui, não quer dizer mais “só de um homem – Descartes”. Subjetiva, aqui, quer dizer: todo homem que quiser fazer esse exercício, ou melhor, todo ser dotado de razão que quiser meditar, irá chegar à mesma conclusão que eu – diz Descartes. Portanto, ele já está tomando a subjetividade como uma instância universal, e a certeza do cogito, que é seu critério de verdade agora, é o critério universal de verdade. “Penso, sou” é uma verdade todas as vezes que a enuncio, diz Descartes. Sim, correto. E eis que Descartes consegue mostrar algo que é uma crença verdadeira justificada corretamente: é impossível dar uma justificativa que derrube a justificativa arrumada por ele. Sua certeza é indubitável. E qualquer um de nós pode chegar à mesma evidência, à mesma intuição intelectual.
DescartesAssim, o projeto cartesiano é no âmbito da verdade. Mas, a partir dele, e incentivado por ele, as pesquisas filosóficas não serão somente sobre a verdade, mas também sobre o “eu”. A certeza é alguma coisa do âmbito subjetivo. E o trabalho dos filósofos será o de mostrar que o “eu” que apresentam é universal e, ao mesmo tempo, não uma figura estranha aos homens. Os filósofos passam a disputar para mostrar que cada um pode montar uma subjetividade mais abstrata, mais universal e, ao mesmo tempo, menos falha, menos não humana. O projeto moderno acaba, então, de certo modo, até desconsiderando a questão do conhecimento e da verdade, e volta-se para uma epistemologia mais articulada à psicologia ou a uma metafísica do eu. Crescem os estudos sobre os modelos de sujeito. A filosofia passa a ser uma fábrica de sujeitos. Todas as vezes que um filósofo critica o outro, em geral o faz apontando as falhas do sujeito montado pelo outro, e então, é fato, deve mostrar como é que é o seu modelo de sujeito – melhor, mais bem acabado.

Paulo Ghiraldelli Jr. pgjr23@gmail.com

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