domingo, 20 de abril de 2014

Virada Línguistica – Um verbete


05/11/2007

Wittgenstein
Ainda que possa ser encontrada em outras áreas, a expressão “virada lingüística” ou “giro lingüístico” (linguistic turn) é típica do campo filosófico. Designa o predomínio da linguagem sobre o pensamento como um dos objetos da investigação filosófica. De acordo com o filósofo estadunidense Donald Davidson (1917-2003), é uma expressão que nomeia um novo paradigma quanto ao modo de se fazer filosofia e que veio para ficar.
A virada lingüística, uma vez aceita como paradigma pelos filósofos, também alterou a periodização da historiografia da filosofia. Ou seja, uma boa parte dos historiadores da filosofia tem construído narrativas a partir de “viradas” ou “giros” – os “turns”.
Fala-se ao menos em três “viradas”, como uma maneira de estabelecer uma divisão entre a filosofia antiga e a moderna, uma outra divisão entre a moderna e a contemporânea e, por fim, uma divisão no interior da filosofia contemporânea. O filósofo alemão Jürgen Habermas tem adotado essa terminologia, falando em “virada epistemológica”, “lingüística” e “lingüístico-pragmática”. No que segue, a ênfase é sobre as duas primeiras “viradas”.
Apogeu e Queda da Virada Epistemológica
A filosofia antiga tem preocupações cosmológicas e ontológicas, por isso mesmo, pergunta sobre o mundo; e faz isso de um modo direto (intentio recta). A filosofia moderna, diferentemente, pergunta sobre o mundo de um modo indireto (intentio obliqua). Isto é, antes de perguntar sobre o mundo, pergunta sobre o conhecimento (do mundo). Antes de perguntar o que há de real e/ou existente no mundo, pergunta qual representação do mundo é válida; qual representação é verdadeira e, assim, se há ou não conhecimento do mundo. A pergunta sobre o conhecimento gera a filosofia enquanto teoria do conhecimento ou epistemologia. Explicar o conhecimento – o que ele é e como ocorre – leva os filósofos a elaborarem e testarem modelos do que seria o aparato cognitivo. Este aparato cognitivo, em parte, é denominado de “a mente” ou, mais ampliadamente, “a consciência”. Entendendo que a consciência produz reflexões, crenças, desejos, intenções e juízos, ela é também tomada, então, como sujeito. Criar e testar modelos de subjetividade se torna a tarefa do filósofo moderno, que a partir de meados do século XIX passa a dividir tal trabalho com o psicólogo.
De John Locke (1632-1704) a Friedrich Hegel (1770-1831) e Karl Marx (1818-1883) o modo como os filósofos construíram a noção de subjetividade ganhou várias especificidades, mas o resultado foi semelhante: “sujeito é aquele (ou aquela entidade) que é consciente de seus pensamentos e responsável pelos seus atos”. Colocaram como núcleo do sujeito ou como o seu melhor representante algo como “mente”, “pensamento”, “entendimento”, “consciência transcendental”, “Espírito”, “proletariado”, etc..
Na transição do século XIX para o XX e em meados deste os filósofos começaram a acreditar que era melhor elaborarem críticas do sujeito ou criarem “subjetividades” que saíssem do padrão até então estabelecido.
Arthur Schopenhauer (1788-1870) aliou o conhecimento ao corpo; para ele, haveria um conhecimento especial, para além do Entendimento, que seria fornecido por processos ligados à compaixão. Friedrich Nietzsche (1840-1900) disse que o sujeito era uma “ficção da linguagem”, isto é, apenas uma função gramatical que, por motivos sociais, se cristalizou ontologicamente na discurso da filosofia. Sigmund Freud (1856-1939) fez a consciência ficar tripartida e deu ênfase ao que seria o subconsciênte: Id e Superego controlariam o Ego e seriam, de certo modo, responsáveis por muito mais atos e falas do que se poderia imaginar. Os pragmatistas disseram que Charles Darwin (1809-1882) os havia ensinado a ver continuidade entre seres com consciência e seres sem consciência; desse modo, a idéia de sujeito deveria ser repensada, pois não se tratava de algo que não tivesse uma gênese – biológica e antropológica. Os frankfurtianos, no início do século XX, evocaram Marx e Freud para dizerem que o sujeito em nossa sociedade moderna é em verdade o objeto; ou seja, por questões econômicas e libidinais, estaríamos em uma sociedade onde o que é vivo se transforma no que é morto e vice-versa, de modo que o morto – no limite os objetos e o próprio Capital – passam a ser as instâncias de tomada de decisão, ou seja, o vivo.
Nessa crítica, mas já usando instrumentos da “virada lingüística”, Ludwig Wittgenstein (1889-1951) sugeriu que o núcleo da garantia da noção tradicional da consciência era algo como uma “linguagem privada”, mas esta, de fato, não poderia existir; pois uma linguagem privada não seria uma linguagem uma vez que a única linguagem possível é a social, e nosso próprio pensamento é a linguagem social ou uma estrutura muito semelhante a ela.
Willard Van O. Quine (1908-2000), na trilha de John Dewey (1859-1952) e Wittgenstein, afirmou que a “mente” não seria capaz de ter o que atribuíam a ela como seu núcleo duro, os significados – os substitutos, na filosofia contemporânea, das “essências” aristotélicas.
Martin Heidegger (1889-1976) afirmou que a acoplagem entre “homem” e “sujeito” não era legítima. “Sujeito” viria da noção de substrato, do que é que sustenta e/ou recebe e/ou põe o objeto. A doutrina do Humanismo, que teria imperado na modernidade, ao fazer do homem o substrato de tudo, fez tudo se transformar em objeto – o que é posto e, no limite, então, manipulado pelo homem. Nesse sentido, o projeto humanista e moderno seria o de domínio do mundo pelo homem. Esse domínio epistemológico encaminharia, cedo ou tarde, para o mundo em que vivemos, o do predomínio da tecnologia: a forma máxima de dominação. Uma vez que somos seres naturais, também nós seríamos os manipuláveis pela tecnologia. O tiro teria saído pela culatra: ao nos colocarmos como sujeitos, perdemos toda condição de ouvirmos a voz da filosofia, ou seja, a “voz do Ser”.
Portanto, em menos de cem anos, a filosofia moderna, ou seja, a “filosofia da consciência” ou a “filosofia do sujeito” ganhou mais críticas, talvez, do que qualquer outro tipo de paradigma filosófico dos vinte e cinco séculos anteriores.
Virada Lingüística – Contemporaneidade
Ao lado de tais críticas, alguns filósofos se voltaram para a idéia de que o melhor para a filosofia seria, mesmo, abandonar a “filosofia da consciência”, porque ela estava envolta a algo que mais era uma ciência empírica do que com a filosofia propriamente dita. Tal ciência era a psicologia. O melhor seria, então, se livrar de todo e qualquer psicologismo em filosofia. Husserl caminhou nesse sentido, mas com a noção de intencionalidade acabou voltando a dar ênfase na filosofia da consciência. Os filósofos de língua inglesa, em especial George Moore (1873-1958) e Bertrand Russell (1872-1970), e depois os “positivistas lógicos” do chamado Círculo de Viena, também advogaram o afastamento de todo e qualquer psicologismo, de um modo muito mais radical que o de Husserl. Surgiu, então, a filosofia analítica e, em certa medida, desenvolveu-se de fato um tipo de prática filosófica que bem mais tarde passou a ser denominado de o resultado da “virada lingüística”.
Russell deu ao panorama do que se produziu – ao menos inicialmente – no interior da “virada lingüística” algumas características especiais. Seu realismo epistemológico se fez contra os idealistas neohegelianos ingleses e também contra as tendências da tradição inglesa empirista, vinda principalmente de David Hume (1711-1776). Hume achava que a tarefa da filosofia era a de fazer a análise psicológica das idéias. Russell defendia a análise das idéias, sim, mas de modo a focalizar sua atenção sobre a lógica. Ele tomou a lógica como a sintaxe de uma linguagem “ideal”, ou seja, uma linguagem “logicamente perfeita”. Tal linguagem teria todos seus enunciados ordinários, já que significativos, contendo proposições com estrutura e relacionamento mútuo sob regras lógicas estritas. Então, o pensamento claro e correto sobre o mundo – a chamada conversação sem ruídos – deveria ser encontrado na lógica formal. Essa linguagem ideal espelharia o mundo exatamente como um mapa espelha o mundo por meio de símbolos. A identidade de estruturas entre os pontos do mapa e os pontos da Terra nos daria o mapa perfeito, tal como seria uma linguagem ideal. Assim, para todo nome próprio haveria uma propriedade correspondente. Quando corretamente usada, tal linguagem figuraria os fatos tais como eles são. Uma teoria da verdade derivada de tal concepção seria a teoria da verdade como correspondência.
Independentemente de lembrarmos os êxitos e fracassos da concepção de Russell, é possível ver nela como que há uma transição do trabalho filosófico de modo natural para a linguagem.
A expressão “virada lingüística” ou “giro lingüístico” já estava sendo utilizada quando, em 1966, Richard Rorty reuniu em um volume um número significativo de textos importantes a respeito de “filosofia lingüística”, com o título de The linguistic turn. A partir daí, a expressão ganhou popularidade. Na introdução desse livro, Rorty nos dá um parágrafo que equivale a uma definição:
“O propósito do presente volume é fornecer material de reflexão sobre a maior parte da revolução filosófica recente, a da filosofia lingüística. Com a expressão “filosofia ¨lingüística”, estarei entendendo aqui uma visão de que os problemas filosóficos são problemas que poderiam se resolvidos (ou dissolvidos) pela reforma da linguagem, ou por uma melhor compreensão da linguagem que usamos presentemente” (Rorty, 1992, p. 3).
Rorty, mais tarde, abandonou a idéia de que problemas de filosofia poderiam ser resolvidos ou dissolvidos. Ele assim agiu não por desencanto com a filosofia analítica, não ao menos como um estilo, mas sim por causa de que passou a desconfiar da facilidade com que a filosofia analítica circunscrevia o que deveria ser ou não um “problema filosófico”. Desistiu de conferir à filosofia analítica uma supremacia em relação a outras filosofias, a não ser como um estilo mais claro e elegante que outros tipos de filosofia. Mas essa mudança não alterou o fato dele e outros passarem a conferir à linguagem um novo status na investigação filosófica.
Mas a linguagem, aqui, já estava bem distante daquela concepção que integrou o realismo de Russell. Rorty, em um estágio bastante desenvolvido do cruzamento americano entre pragmatismo e filosofia analítica, passou a pensar na linguagem como “instrumento” natural de seres naturais para lidar com o mundo – se o tamanduá tem língua para comer formigas e se a formiga tem antenas para, talvez, lidarem umas com as outras e “informarem” sobre o tamanduá, nós humanos temos a linguagem para arcarmos com tamanduás, formigas, nós mesmos e todo o resto. Esse tipo de abordagem é, de certa forma, a continuidade de certos resultados da “virada lingüística” no interior da “virada pragmática”.
Paulo Ghiraldelli Jr, o filósofo da cidade de São Paulo. Veja também: Portal Brasileiro da Filosofia: www.filosofia.pro.br e TV Filosofia.

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