domingo, 20 de abril de 2014

Portal Brasileiro de Filosofia

Em 1913, o filósofo Ludwig Wittgenstein deixou as interrupções e distrações de Cambridge para viver como um ermitão na Noruega. Ninguém o conhecia lá, de modo que ele poderia se focar em seu trabalho sobre lógica, isolado. Funcionou. Ele ficou alojado durante algum tempo com o agente postal em Skjolden, uma vila remota a 200 milhas ao norte da cidade de Bergen e, depois, teve uma cabana construída com vista para o fiorde. Sozinho, ele lutou com as ideias que iriam se metamorfosear em seu Tractatus Logico-Philosophicus (1921). Qualquer um que tentasse passar algum tempo com ele não tinha lá muita atenção. “Vá embora! Agora vão me custar duas semanas para voltar ao ponto onde eu estava antes de você me interromper”, ele supostamente gritou para um morador local que cometeu o erro de cumprimentá-lo quando ele estava parado, pensando sobre o que não poderia ser dito. Da perspectiva de Wittgenstein, o ano que ele gastou na Noruega foi a fonte de muito da sua criatividade filosófica, algumas das ideias mais intensas que esse marcadamente intenso filósofo alcançou em sua vida. Na sua estada ali, ele fez pouco além de pensar, de andar, de assobiar e de sofrer de depressão.
Wittgenstein abrigado na sua “cabana” norueguesa (na verdade, uma casa de madeira de dois andares com uma varanda) é para muitos o modelo de um filósofo trabalhando. Aqui o gênio solitário procurou o isolamento que espelhava os rigores de sua própria filosofia austera. Sem distrações. Sem companhia humana. Apenas uma mente parecida com um laser a pensar sobre primeiros princípios, enquanto ele observava o fiorde ou caminhava sobre a neve. Wittgenstein não foi o único. Boécio, filósofo do século sexto d. C, escreveu sua Consolação da Filosofia confinado numa cela de prisão romana, com sua mente focada em sua execução iminente; Nicolau Machiavel produziu O Príncipe (1532) no exílio, em uma quieta fazenda nos arredores de Florença; René Descartes escreveu suas Meditações sobre filosofia primeira (1641) encolhido ao lado de uma fogueira. Jean-Jacques Rousseau foi mais feliz vivendo no meio de uma floresta, longe da civilização etc. Filosofia em suas formas mais elevadas parece intencionalmente solitária e frequentemente prejudicada pela presença de outras pessoas.
Ainda assim, esse esteriótipo do gênio trabalhando em completo isolamento é enganador, mesmo para Wittgenstein, Boécio, Machiavel, Descartes e Rousseau. A filosofia é eminentemente uma atividade social que prospera com a colisão de pontos de vista e raramente surge do monólogo interior incontestado. Um exame mais de perto do ano de Wittgenstein na floresta norueguesa revela sua correspondência com os filósofos de Cambridge, Bertrand Russell e G. E. Moore. Ele até mesmo convenceu Moore a viajar para Noruega — naqueles dias, em uma árdua viagem por trem e barco — e ficar por duas semanas. O objetivo da visita de Moore foi discutir as novas ideias de Wittgenstein sobre lógica. Na verdade, a ‘”discussão” se transformou no que Wittgenstein (que ainda era tecnicamente um aluno de graduação) disse e no que Moore (que era bem mais eminente à época) ouviu e anotou.
Ainda assim a presença de Moore foi de algum modo necessária para o nascimento dessas ideias: Wittgenstein precisava de uma audiência e de um ouvinte inteligente que pudesse criticá-lo e ajudá-lo a focar-se em seu pensamento, mesmo que essas críticas não fossem ouvidas. E ele não foi o único que precisou de uma audiência. Boécio, em sua cela, imaginou sua visita: a Filosofia personificada em uma mulher alta, com um vestido em que estavam desenhadas as letras de Pi a Teta. Ela o repreendeu por abandonar o estoicismo pregado por ela. O livro de Boécio foi uma resposta ao seu desafio.
Machiavel, entrementes, foi de fato exilado, arrancado das intrigas da vida da corte, um morador da cidade forçado a uma existência bucólica contra sua vontade. Mas, em uma carta ao seu amigo Francesco Vettori de 10 de dezembro de 1513, ele descreveu como passava suas tardes: retirava-se aos seus estudos, evocava grandes pensadores antigos e mantinha conversas imaginárias com eles sobre a melhor forma de governar. Essas conversas imaginárias foram o material bruto de O Príncipe. Descartes pode ter se retirado para escrever e evitado distrações realizando a maior parte de seu trabalho deitado na cama, mas quando ele publicou suas Meditações foi com inúmeros comentários críticos de outros filósofos, incluindo Thomas Hobbes, junto com respostas suas. Da mesma maneira, Rousseau amava a solidão, mas ele incluía diálogos na sua escrita e até escreveu o bizarro livro Rousseau, juiz de Jean-Jacques (1776), no qual ele apresenta duas versões de si próprio debatendo uma com a outra.
A filosofia ocidental teve suas origens na conversação, em discussões cara-a-cara sobre a realidade, o nosso lugar no cosmos e sobre como devemos viver. Começou com algo de mistério, maravilhamento, confusão e com o desejo poderoso de ir além das meras aparências para encontrar a verdade ou, se não, ao menos algum tipo de sabedoria ou ponderação.
Sócrates começou a conversação sobre conversação filosófica. Esse homem pobre e excêntrico que vagou pelo mercado da Atenas do séc. V a. C, abordando os transeuntes e questionando-os em seu célebre estilo, estabeleceu o padrão para o ensino e a discussão filosóficos. Seu pupilo Platão criou eloquentes diálogos socráticos que, nós supomos, capturam algo do que era ser arengado e instigado por seu mentor, embora eles sejam mais como um ato de ventríloquo. O próprio Sócrates, se acreditarmos no diálogo de Platão, Fedro, não tinha lá tanto respeito pela palavra escrita. Ele argumentava que ela era inferior à falada. Uma página escrita pode parecer inteligente, mas a qualquer questão que você lhe dirija ela responderá exatamente do mesmo modo todas as vezes que você a ler – exatamente como esta sentença aqui irá fazer, não importa quantas vezes você retorne a ela.
Além disso, por que um pensador lançaria sementes em solo estéril? Certamente é melhor semear onde mais elas estão propensas a crescer, compartilhar suas ideias de um modo mais adequado à audiência, adaptar o que você diz para quem quer que esteja na sua frente. Wittgenstein fez uma anotação similar em seus cadernos quando escreveu: “Dizer a alguém algo que ele não entenderá é sem propósito, até mesmo se você adicionar algo ele não vai entender”. As inflexões da fala permitiram a Sócrates exercer sua famosa ironia, a dar ênfase, a provocar, a persuadir, a jogar, a tudo que é suscetível de ser mal interpretado na página escrita. Sócrates sugeriu que um filósofo pode escrever algumas notas como lembrete de um pensamento que surge, porém para a comunicação filosófica a conversa era rei.
O uso dos diálogos por Platão refletiu a centralidade da discussão na filosofia. Infelizmente, com as exceções de David Hume nos seus Diálogos a respeito da religião natural (1779) e de Søren Kierkegaard em Ou isso ou aquilo: um fragmento de vida (1843), em que ele faz uso de personagens apresentando pontos de vista alternativos a partir de dentro, poucos filósofos tem conseguido tratar de múltiplas vozes tão bem. Alguns tentam representar o advogado do diabo contra suas próprias ideias, mas como reconheceu John Stuart Mill, críticos imaginários podem ser bem menos enérgicos e usar argumentos mais fracos que os reais.
Até mesmo agora, a filosofia é melhor ensinada fazendo-se uso do método socrático de pergunta e resposta. É verdade, a demanda por longas aulas faz com que seja difícil interagir, mas, como o professor de Harvard, Michael Sandel, tem mostrado com as suas conferências, intituladas Justiça, qual a coisa certa a fazer?, em discussões sobre bem público, até aqui a conversação e o diálogo são possíveis. Isso é de várias formas uma melhora no estilo de ensinar de Wittgenstein, que, de acordo com testemunhos contemporâneos seus, envolvia alunos assistindo a esse gênio atormentado enquanto ele lutava com a suas próprias ideias em desenvolvimento, de vez em quando parando por alguns minutos para olhar sua mão virada para cima, outras vezes amaldiçoando sua própria estupidez: “Que idiota que eu sou!” Cativante como dever ter sido e superior em muitos aspectos a um monólogo ensaiado, isso deve ter sido infligido ad nauseam sobre os graduandos, faltando-lhe o golpe e o impulso dos diálogos socráticos.
As novas tecnologias estão mudando a paisagem em que conversações filosóficas — e indiscutivelmente todas as conversas – acontecem. Isso tem permitido a filósofos contemporâneos atingir audiências globais com suas ideias e levar a filosofia além das salas de aula. Porém há mais desse ‘dito filósofo’ que simplesmente palavras proferidas e ideias discutidas. Aspectos audíveis não verbais da interação, tais como ouvir o sorriso na voz de alguém, um momento de impaciência, uma pausa (ou dúvida, talvez?) ou um insight — esses fatores humanizam a filosofia. Eles tornam impossível pensá-la como uma simples aplicação mecânica de lógica rigorosa e revelam tanto algo sobre o pensador quanto sobre a posição assumida. O entusiasmo expresso pela voz pode ser contagiante e inspirador.
Hobbes respondeu às Meditações de Descartes por escrito, porém imagine o quão fascinante teria sido ouvir e vivenciar os dois pensadores em um diálogo público gravado. De modo igual, se nós pudéssemos ouvir a uma gravação de Wittgenstein discutindo o seu “Tractatus” com Frank Ramsey, um de seus primeiros leitores mais perspicazes, isso poderia muito bem transformar nossos pontos de vista sobre ambos os pensadores. O equivalente dessas conversas imaginárias está sendo gravado agora, dentro e fora das universidades. Elas estão disponíveis livremente na internet: YouTube, iTunes e outros lugares, se você souber onde procurar.
Sem conversa e desafio, a filosofia rapidamente cai no dogma morto que Mill temia. Mas isso não significa que cada ponto de vista seja igualmente válido ou que nós devamos aceitar que cada pessoa encontre sua própria verdade. Todo grande filósofo foi guiado pelo esforço de ir além das aparências e dizer algo importante sobre como as coisas realmente são. A filosofia é uma matéria que põe posições na balança e não apenas as passa adiante. Conversa sem julgamento crítico se torna mera tagarelice e veiculação de opiniões diferentes – como William Empson escreveu em seu poema Let It Go (1949)1:
As contradições abrangem tal escala.
A conversa conversaria e seguiria tão oblíqua.
Você não quer um hospício e tudo o mais que está ali.
Entretanto, foi John Stuart Mill que cristalizou a importância de ter suas ideias desafiadas pelo compromisso com outros que discordam de você. No segundo capítulo de Sobre a Liberdade (1859), ele argumentou a favor do imenso valor de vozes dissonantes. São as dissonantes que nos forçam a pensar, que desafiam a opinião recebida, quem nos empurra para longe do dogma morto em direção às crenças que sobreviveram ao desafio crítico, da melhor maneira que podemos esperar. Dissonantes são de grande valor até mesmo quando elas estão largamente ou até totalmente erradas em suas crenças. Como Mill afirma: “Professores a estudantes vão dormir em seus postos, assim que não houver nenhum inimigo à vista no campo.”
Sempre que a educação filosófica cair no aprendizado de fatos sobre história e textos, regurgitando as posições do professor ou aprendendo de um compêndio, ela se afasta das suas raízes socráticas de conversação. Então isso se torna maléfico para a filosofia e para os estudantes que estão no lado extremo de quem recebe o que o educador radical Paulo Freire, em sua Pedagogia do Oprimido (1970), chamou pejorativamente de “banco” do conhecimento. O objetivo da filosofia não é possuir uma porção de fatos a sua disposição, embora isso seja útil, nem se tornar uma Wikipédia portátil: ao invés disso, ela serve para desenvolver habilidades e sensibilidade para que se seja capaz de argumentar sobre algumas das mais significativas questões que nós podemos perguntar a nós mesmos, questões sobre realidade e aparência, vida e morte, deus e sociedade. Como o Sócrates de Platão nos diz: “Essas questões que estamos discutindo aqui não são questões triviais, nós estamos discutindo como viver.”
Texto traduzido por Vitor Lima do CEFA. Estudante de Filosofia da UFRRJ.
Texto original: WARBUTON, Nigel. Talk with me. Aeon Magazine. Publicado em 23/09/13. Disponível em http://www.aeonmagazine.com/world-views/without-conversation-philosophy-is-no-better-than-dogma/ . Acesso em 05/10/13.

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