domingo, 20 de abril de 2014

Popozuda – de Heidegger a Rawls e Nozick


Popozuda - de Heidegger a Rawls e Nozick
Não foi Marx quem autorizou os filósofos a olharem para Valesca Popozuda e enxergarem ali filosofia. Paulo Freire não viu filosofia na cultura popular por causa de suas leituras marxistas, feitas tardiamente.
A base para Freire veio antes, quando da sua entrada na fenomenologia, sucesso para todos de sua época, uma vez que se tratava de uma postura associada ao existencialismo. É claro que Sócrates já teria autorizado Valesca Popozuda a se por como expressão filosófica, mas quem realmente chamou a atenção para isso, entre nós contemporâneos, foi Martin Heidegger.
A respeito de Popozuda ou, melhor dizendo, de expressões culturais e dos afazeres do homem comum, Heidegger escreveu:
  • “A questão é que não estamos de forma alguma ‘fora’ da filosofia; e isso não porque, por exemplo, talvez tenhamos uma certa bagagem de conhecimentos sobre filosofia. Mesmo que não saibamos expressamente nada sobre filosofia, já estamos na filosofia porque a filosofia está em nós e nos pertence; e, em verdade, no sentido de que já sempre filosofamos. Filosofamos mesmo quando não conhecemos nada sobre isso, mesmo que não ‘façamos filosofia’. Não filosofamos apenas vez por outra, mas de modo constante e necessário porquanto existimos como homens. (…) Ser homem já significa filosofar. (…) Como o ser-homem tem, contudo, diversas possibilidades, múltiplos níveis e graus de lucidez, o homem pode encontrar-se de diversas maneiras na filosofia. De modo correspondente, a filosofia como tal pode permanecer velada ou manifestar-se no mito, na religião, na poesia, nas ciências, sem que seja reconhecida como filosofia. E visto que a filosofia como tal também pode se constituir de modo efetivo e expresso, parece que aqueles que não tomam parte no filosofar expresso estão fora da filosofia” (Introdução à filosofia, São Paulo: Martins Fontes, pp. 3-4, 2009).
Quando Paulo Freire começou a trabalhar com educação, percebeu que esse tipo de visão filosófica ia lhe ajudar. Ele vinha de outras leituras, do pragmatismo americano de John Dewey, através de Anísio Teixeira. Dewey era um democratizador da cultura e entendia que a democracia, que ele amava, só poderia se construir se a educação fosse democratizada. Freire acreditava nisso, e viu que a questão básica da educação, quanto ao brasileiro “desenraizado”, não era o de falta de cultura, mas o de não receber consideração pelo que tinha como cultura. Ora, se Heidegger dizia que até o mito, tradicionalmente tomado como o polo oposto da filosofia, continha filosofia, então seria interessante ver o quanto a cultura popular abrigaria elementos filosóficos, já sofisticados, já abertos ao pensar e já frutos do pensar, e reaproveitá-los como ponto de partida na educação. Foi assim que tudo começou no percurso freireano.
Por outras vias, mas segundo cânones que não desmentiriam Heidegger, eu fiz incursões parecidas: arranquei questões metafísicas do sucesso do BBB da Globo, em um livro com o título de Filosofia, amores e companhia (Manole), e também mais recentemente no A filosofia como crítica da cultura (Cortez). Não escrevi sobre Valesca Popozuda, mas não é difícil ver o quanto há, no sentido que Heidegger aponta, de atividade de pensadora no seu trabalho. Mas aqui moram os equívocos fatais. Todo cuidado é pouco.
Heidegger não está dizendo que o homem que não é filósofo profissional filosofa do mesmo modo que o filósofo profissional, ele está informando que há filosofia no que o homem faz, nas suas várias expressões. Extrair questões filosóficas e atividades filosóficas da cultura popular? Sim, e isso de diversos modos, e contando ou não com a clareza do autor do trabalho. Valesca Popozuda pode dizer um verso que expressaria preocupação com a filosofia. Ela quer dizer algo, e quando diz isso e, com tal coisa, diz algo mais, não é ela que tem que afirmar que está em um campo filosófico. Seu papel como “pensadora” é o de quem diz a letra e canta a música; ora, extrair daí o elo entre a filosofia de Vanessa e a filosofia propriamente dita pode muito bem ser a de alguém que estuda filosofia, ajudado pelo filósofo.
Tudo isso parece ser tranquilo se estivéssemos falando de uma lírica de Chico Buarque ou até de outros com menos sofisticação. O que muitos não entendem é que o mesmo se dá com a lírica de Valesca Popozuda, além, é claro, o quanto se pode tirar de sua inserção comportamental na sociedade brasileira (que abordei brevemente em texto anterior).
Eu poderia aqui, a título de exemplo, fazer um exercício de interpretação da Popozuda e mostrar o elo do seu trabalho com a filosofia. Não há espaço para tal, mas dou uma das dicas, no caso de Beijinho no ombro. (1)
A questão filosófica interna da lírica de Valesca é uma das mais importantes da filosofia: a da inveja. Começa na nossa cultura com um caso estupendo: Caim e Abel. Chega à filosofia profissional contemporânea por meio dos debates da filosofia política, a polêmica entre Rawls e Nozick (trabalhada em meu livro Filosofia política para educadores, Manole). Esses dois filósofos discutiram a sociedade como um bom lugar de viver a partir de um termômetro: o da inveja social. Uma sociedade capaz de aumentar a inveja social entre grupos e indivíduos a partir de determinado grau saudável – e isso tem a ver com trabalho, sucesso e consumo –, não iria ela própria desencadear seus mecanismos de entrave da própria vida social? Ora, a la Mamonas Assassinas, ou seja, como o mesmo tom engraçado, não é isso que Valesca está cantando? Em Beijinho no ombro ela está dizendo que tem um “sensor de periguete”. Um radar que localiza a moça que quer aparecer a todo custo, mas não tem nada para mostrar senão o seu protoprojeto. Ela, Valesca, está dizendo que está por cima, e a outra, por baixo. Ela está apontando para o fato de que pode fazer um gesto – que ela mesmo criou – para colocar a piriguete (adversária) na distância cabível. E eis aí o “beijinho no ombro”. Mas está dizendo, também, que a distância pode se dar na base da “porrada” – não é exatamente a violência que preocupa os teóricos quando eles percebem que a sociedade, organizada como está, pode gerar a inveja para além do suportável?
Esse diálogo, o contido na lírica, deve existir em uma sociedade bem arrumada? Essa é a questão central da justiça social e dos graus de inveja que uma sociedade permite. É um problema central da filosofia, o da justiça (social). Começa com a própria filosofia – com Platão. Chega a Rawls e Nozick, o debate entre liberalismo igualitarista e liberalismo libertário. Agora, é claro que esse trabalho, para ser feito, já não depende de qualquer um. A mediação entre Valesca e Platão, Valesca e os contemporâneos, Brasil e filosofia, bem, aí é necessário o filósofo no corpo do professor de filosofia. Sem isso, tudo se perde. Sem isso o banal do qual se parte é apenas reiterado. Não é isso que se faz. Não é isso que Paulo Freire disse que se deveria fazer. O filósofo bem formado, que fez uma boa universidade, está apto a tal trabalho. Deveria estar. Pode estar sim.
© 2014. Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo.
(1) Beijinho no ombro de Wallace Vianna, André Vieira e Leandro Pardal

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