12/11/2007
Um dos melhores modos de responder à pergunta “o que é filosofia?” é mostrar como os filósofos fizeram filosofia. Escolho abaixo alguns nomes de filósofos e algumas escolas de pensamento. Penso que elas são representativas do pensamento ocidental enquanto matrizes paradigmáticas.
Ao escolher o que escolhi, pretendo mostrar qual a minha concepção de filosofia, e tentarei torná-la legítima para o leitor. O procedimento para tal será o de argumentar pela capacidade de minha definição de filosofia ser harmoniosa com a tarefa a que se propuseram as principais matrizes do pensamento filosófico ocidental.
Admiração e desbanalização: Platão e Aristóteles
Platão e Aristóteles deram à filosofia uma de suas melhores definições. Eles viram a filosofia como um discurso admirado e/ou espantado com o mundo.
Nessa linha de raciocínio, dizemos que quando falamos sobre o mundo e colocamos questões do tipo “o que é um raio?” (e “como acontece um raio?”), estamos propensos a adentrar no campo da ciência, enquanto que quando fazemos perguntas do tipo “o que é o que é?” estamos assumindo um tipo de discurso filosófico.
As perguntas da filosofia mostram uma atitude de máxima admiração, pois estampam inquietude com aquilo que até então era o mais banal. Se alguém pergunta “o que é que é?”, cria alguma coisa da ordem da desbanalização, pois traz à baila algo bastante corriqueiro, que é a condição de ser, o que até então não havia preocupado ninguém. Afinal, quem perguntaria “o que é que é?”. Para a maioria das pessoas, tudo que existe “está aí”, e por que não estaria? Então, quando alguém se espanta com o mundo e com tudo nele simplesmente porque o mundo está aí, acaba lançando um olhar para o que era banal e, se conquistar a si mesmo (e depois outros) para essa pergunta, estará desdobrando uma atitude filosófica. O mundo está aí. Sim, está – mas poderia não estar!
Estamos cotidianamente preocupados em saber coisas que não sabíamos. Agora, perguntar pelo ser das coisas que queremos saber o que são, isso nos parece fora de propósito – por que teríamos de perguntar pelo que é tão banal? Ora, o que a filosofia faz, na acepção tradicional que aparece em Platão e Aristóteles, é justamente o que, no meu jargão, pode ser dito assim: olhar o banal como não mais banal. Desse modo, na minha acepção, a filosofia é o vocabulário com o qual desbanalizamos o banal. Tudo com o qual estamos acostumados torna-se motivo para uma suspeita, tudo que é corriqueiro fica sob o crivo de uma sentença indignada, e então deixamos de nos aceitar como acostumados com as coisas que até então estão estávamos acostumados.
Em parte, adoto essa perspectiva para dizer “o que é a filosofia”. Eu a amplio para toda e qualquer banalidade, e imagino que do modo que, desse modo, trago para baixo do meu guarda-chuvas outras respostas ao “o que é filosofia?”, dadas por várias escolas filosóficas.
Por exemplo, penso que com o modo como adoto a perspectiva da filosofia como “desbanalização do banal”, não preciso deixar de fora a maneira como Sócrates via a filosofia. Nem a de outros.
2. O Saber Ignorante: Sócrates
Se fosse perguntado a Sócrates “o que é a filosofia?”, é possível dizer que ele não responderia como Platão, ainda que não desmentisse seu discípulo. Em boa medida, Sócrates esteve mais disposto a fazer filosofia do que erigir uma discussão meta-filosófica, isto é, uma discussão sobre a definição e os métodos da filosofia.
Estava disposto a fazer da filosofia um trabalho com conseqüências mais drásticas – para a vida prática cotidiana – que as assumidas por Platão. Ele não estava interessado na admiração ou no espanto com o que é banal no mundo, mas motivado a ver a desbanalização do que poderia ser tomado como banal para si mesmo e para outros homens: a condição de cada um a respeito do que sabe sobre o mundo e sobre si mesmo em relação à conduta na vida prática, a vida moral.
No jogo de perguntas e respostas para cada transeunte de Atenas, que caracterizava o elenkhós, Sócrates não tinha respostas para nada, ainda que tivesse um bom número de perguntas que terminava por conduzir seus interlocutores a perceber que o que sabiam da vida e de si mesmos (especialmente no campo das verdades morais) era muito pouco A condição de sábio, aquele que poderia se auto-conhecer, talvez fosse justificável apenas para os que sabiam que nada sabiam.
Essa forma de olhar para si mesmo, que Sócrates provocava nos homens de Atenas, e que o estimulava, também era uma maneira de desbanalização. Tanto é que, em um primeiro momento da conversação, os interlocutores respondiam suas perguntas com facilidade, achando-as ingênuas até. Mas, em um segundo momento, eles percebiam que não conseguiam uma definição ampla a respeito do que Sócrates perguntava – não estavam de posse do conceito do objeto da pergunta. Então, não sabiam o que até então lhes parecia banal.
3. O Cogito como fundamento último
Descartes não desmentiu Sócrates, Platão ou Aristóteles. Ele, como bom filósofo, realmente se espantava com o que os outros acreditavam como banal. Para sua época, não deveria ser banal encontrar tantos povos com tantos modos de pensar e de falar distintos uns dos outros e, ao mesmo tempo, serem todos tomados como “humanos e inteligentes”. Mas, na verdade, o contato dos povos europeus com outros, da maneira que se deu no período das grandes navegações, se tornou algo rapidamente banal. Ainda que houvesse estranhamento e guerras – inclusive guerras de religião e de todo tipo de intolerância – o estranhamento foi menor que a aceitação da tese de que cada povo tem sua vida e suas maneiras. Enfim, logo surgiu no cenário o ditador popular “cada cabeça uma sentença”. Era uma forma de legitimação da relativização das conclusões que cada um poderia chegar.
Descartes viu algo esquisito nisso. Ele não tomou tal relatividade de posições e condições como banal. Ele achou muito estranho essa forma.
Se cada cabeça tem sua sentença, então quem está com a verdade? Descartes estranhou o que, mais tarde, viemos a denominar de “relativismo” – no âmbito do conhecimento e em vários outros campos. Ele queria saber como, para além de nossas divergências de modos de pensamento, que caracterizava nossas diferenças culturais, étnicas, geográficas etc., poderíamos todos ter certezas ou não a respeito de enunciados que se punham como verdades. Para resolver isso, sua idéia foi simples: vamos aceitar somente o que não pudermos duvidar a partir de uma certeza cristalina.
Se eu tenho uma verdade cristalina, então, por dedução (silogística), posso tirar outras verdades – conjecturou ele. Descartes logo conseguiu sua primeira verdade e, junto, sua certeza. Qual? A de que se eu estiver enganado de tudo, se tudo que penso e digo é engano, é falso e ilusão, ainda assim é pensamento. Não poderia ser iludido de modo tão amplo se não pensasse. Desse modo, o Cogito – o pensamento – é o que não posso abrir mão; o pensamento e o que realmente está se dando – eis aí uma certeza. Daí o enunciado cartesiano célebre: “penso, existo”.
Descartes inaugurou a filosofia como a busca da certeza do Cogito, como ponto de partida para toda e qualquer outra investigação. Mas só agiu assim por causa de que soube desbanalizar o que era o banal, ou seja, levou a sério a dúvida cética para, então, jogá-la contra a parede.
4. A Critica da Razão e da Racionalidade: Kant, Hegel e Marx
Descartes colocou em dúvida tudo, mas não colocou em dúvida a própria capacidade de pensar de modo conscientemente racional. “Penso, logo sou” é uma certeza, mas só consigo dizer isso na medida em que estou de posse da razão.
Qualquer um de nós, que refaz a meditação cartesiana, chega ao “penso, logo sou” por conta própria, por causa de ser racional. Não acreditamos que algum ser não racional chegaria a tal certeza. Mas se a razão como capacidade de julgar se tornou isso, ou seja, algo banal, cabe ao filósofo desbanalizá-la. Um dos méritos da filosofia pós-cartesiana foi o de tentar questionar até mesmo aquilo que não havia sido questionado por Descartes. O propósito era tirar do banal aquilo que, apesar de tudo, se manteve banal mesmo com Descartes. Esse foi um dos méritos de Kant. Sua acepção de como fazer filosofia ficou conhecida como reflexão e discurso da razão que faz a crítica da razão.
Kant foi quem acreditou que o papel da filosofia era o de crítica de tudo aquilo que ela própria, e não só as ciências, poderiam dizer. Ele se propôs, então, a colocar a razão em um tribunal um tanto esquisito: o tribunal em que a razão estaria nele como ré e juíza ao mesmo tempo. Foi a época na qual a filosofia se transformou, basicamente, em epistemologia, perguntando não mais coisas a respeito do mundo (humano, social, físico), mas sim, especificamente, sobre o conhecimento; ou mais exatamente: sobre as condições do conhecimento e da normatividade, sobre os limites da razão na sua tarefa de produção do saber e de delimitação das normas de conduta,
Kant perguntou sobre as condições do conhecimento e da liberdade de agir e, assim, elaborou a crítica da razão; tanto da razão teórica – a que conhece – quanto da razão prática – a que julga e que é responsável pela conduta moral –, sendo que também esboçou algo semelhante em relação ao aparato capaz de fazer juízos estéticos. Mas Kant fez essa crítica, em grande medida, sem levar suficientemente a sério a história, ao menos se o compararmos com o que fizeram os que viveram no século XIX. Em outras palavras: a história era o seu banal que ele não desbanalizou.
O século XVIII, o de Kant, foi o século da razão; o XIX foi o século da história.
Tendo lido Hegel – o filósofo que racionalizou a história e historicizou a razão – Marx levou adiante a idéia da filosofia de Kant como uma busca pela crítica da razão, mas uma razão banhada na racionalidade dos homens no mundo histórico. Daí que a crítica de Marx não era somente uma crítica da razão, tomada em um sentido epistemológico restrito, mas a crítica da racionalidade da vida humana enquanto vida social e econômica.
Não à toa a obra máxima de Marx, O Capital, vinha com o subtítulo de “crítica da Economia Política”. A racionalidade humana enquanto impregnada no âmbito sócio-histórico havia sido descrita pelos teóricos da “Economia Política”, mas Marx achava que eles não haviam levado em conta um estudo crítico, ou seja, um estudo capaz de revelar limites, condições e pressupostos de suas próprias conclusões. O conhecimento da vida econômica e social dos homens deveria passar por uma atividade que, hoje, podermos chamar de epistemologia social crítica (um trabalho no qual a Escola de Frankfurt se esmerou). Os limites da razão não teriam de ser apontados nela própria, exclusivamente, mas na sua gênese no interior de situações históricas determinadas, situações estas que Marx nomeou a partir de “modos de produção”. Não à toa Marx insistiu que a psicologia do homem poderia ser vista pelos pensadores se eles abrissem a porta da fábrica (e não a porta dos cérebros).
Kant viu que a razão produzia ilusões necessárias por causa de sua própria maquinaria interna. “Deus”, “alma” e “mundo” eram idéias da razão a serviço da possibilidade do raciocínio humano; isto é, evitariam o pensamento conduzido ao regresso infinito em esquemas explicativos – seriam o ponto de chegada para perguntas do tipo “ovo e galinha”. Mas, ao definir “Deus”, “alma” e “mundo” como idéias da razão, e somente idéias, Kant as determinou não apenas como o que não poderíamos apreender pela faculdade dos conceitos, ele também mostrou que esses elementos criavam ilusões – eles próprios nada seriam senão ilusões necessárias. Acreditaríamos em Deus para poder dar fim a uma seqüência explicativa do tipo da gerada por perguntas “o que criou X?”. Quando respondemos que (X) foi criado por (X-1) e (X-1) foi criado por (X-2) e assim por diante, o regresso infinito só é eliminado se temos um ponto de chegada do raciocínio. Deus é uma idéia para tal. Mas só uma idéia – uma ilusão, sim, mas necessária para o funcionamento da maquinaria racional. Jamais o entendimento poderia mostrar factualmente Deus (como “alma” e “mundo” e outras idéias da razão).
Marx poderia concordar facilmente com Kant a respeito dessas idéias serem mecanismos da maquinaria racional, mas preferia ver toda e qualquer ilusão necessária não como intrínseca a um aparato “interno”. Preferia ver a modernidade como geradora de outro tipo de ilusão (necessária, ao menos no interior de um “modo de produção”). A modernidade teria criado a fetichismo da mercadoria e a reificação dos seres humanos. Fetichismo e reificação foram tomados por Marx como faces de uma mesma moeda, que em geral ganhou o nome de “ideologia” – um modo de pensar que não poderia deixar o homem não ver a mercadoria como sujeito, e ele próprio como objeto. O morto (o produzido) agiria como vivo, impondo sua vontade ao vivos (os produtores e agentes), que apenas obedeceriam tais vontades externas. Uma vez não mais donos de suas vontades, não poderiam ser considerados sujeitos.
É fácil entender o fenômeno da reificação e do fetichismo, ou seja, a ideologia. Uma moça entra em uma loja para comprar uma calça jeans. A calça não serve. E então ela não pensa em levar a calça para ajustes. A calça (o morto, o produzido) é que cria vida na medida em que ordena a moça que vá para academia ou para a mesa de um cirurgião plástico e, uma vez lá, corte a si mesma. A velha prática de cortar a calça fica afastada. E a moça obedece. Uma vez esculpida (pelo bisturi laser ou pela “malhação”) a moça é sugada para a loja pela vontade da calça, e chegando lá compra a calça. Na prática, foi a calça que levou a moça. O morto cria vida e realiza seus desejos sobre os que estavam vivos (os agentes, os produtores ou sujeitos), e que então se portam como mortos – sem vontade. Ir para academia ou para a mesa de cirurgia pode parecer um ato de vontade forte, mas nesse tipo de análise, não é, pois não houve vontade deliberativa, apenas a vontade da calça se impôs. A mercadoria é fetichizada, cria vida, e o vivo é reificado, vira coisa – objeto morto. A ilusão é evidente: a moça acredita que agiu por sua vontade, mas agiu por vontade da mercadoria, a calça jeans.
Eis aí uma simples compra de calça, algo banal, sendo desbanalizado por Marx. Também aí a filosofia funcionou como desbanalização do banal. A ideologia moderna do fenômeno fetichismo-reificação seria algo banal, olhado, mas não enxergado, e só realmente visto depois do tratamento de Marx, que delimitou o acontecimento recortando-o teoricamente.
Mas o que Marx (e os filósofos de sua geração) não percebeu é que talvez esses mecanismos de ilusão não pudessem existir se eles não fizessem parte da teia semântica. Afinal, nós menos vemos as coisas do que conversamos sobre elas. E só vemos, ou melhor, só enxergamos aquilo para o qual damos significação, sentido, aquilo que trazemos para o âmbito da nossa linguagem.
O século de Marx foi o século da história, sem dúvida, e o século XX, então, pode ser chamado de o século da linguagem. Os filósofos que ficaram atentos para a linguagem ganharam destaque. No final do século XIX ninguém poderia imaginar que só dois filósofos daquele período continuariam a ser interessantes no final do século XX: Nietzsche e Frege. Ambos deram atenção à linguagem.
5. A Terapia da Linguagem: o movimento analítico e Nietzsche
A investigação de Frege não começou nem terminou como ele queria, uma vez inserida na história da filosofia. Ela começou como um projeto sobre filosofia da matemática e, em parte, terminou com uma proposta metafísica, platônica. Mas a filosofia não vive dos resultados alcançados pelos filósofos – ela parece escolher por si mesma os passos dos filósofos que quer aproveitar para ampliar o caldo de seu leito Assim, desterritorializa os elementos que quer e os coloca a serviço de seu destino.
O que Frege fez e que realmente gerou mudanças de comportamento filosófico se encerra em suas observações sobre semântica.
Não raro, até Frege os filósofos – e quase todos os outros pensadores – haviam banalizado a linguagem. Somos seres falantes – e daí? Qual a importância há nisso? A linguagem era tomada apenas como um “dom”, um meio pela qual poderíamos expressar pensamentos. Assim, nossa linguagem teria a função de fazer referência a objetos nomeados por ela, e tal referência daria o sentido para os nossos enunciados. Esse tipo de compreensão da linguagem era uma forma de manutenção do banal. Frege desbanalizou isso quando lançou o desafio de ponderar que “sentido” e “referência” poderiam não ser a mesma coisa.
Ora, mas sentido e referência não são a mesma coisa? Quando damos a referência de um enunciado, de uma frase nossa, não estamos dando o sentido da frase? Ou, ao menos em princípio, ao dar a referência não estamos colaborando em muito para mostrar o sentido? As perguntas “a que você se refere?” e “qual o sentido do que disse?” não são intercambiáveis em muitas situações? Acreditamos que sim. Os filósofos antes de Frege também acreditavam que sim. Eles ontem, como nós hoje, banalizamos a linguagem.
Frege mostrou que sentido e referência não eram tão parentes quanto poderiam nos parecer. E fez isso a partir de um exemplo fácil. Ele partiu de três elementos de nomeação: a Estrela da Manhã (M), a Estrela da Tarde (T) e Vênus (V). (M) refere-se a um corpo celeste que aparece no céu um pouco antes do nascer do Sol. Durante séculos essa informação foi importante, básica para marinheiros, que se guiaram por tal informação; se localizavam logo ao acordarem cedinho por meio de tal informação. (T) também se refere a um corpo celeste, que aparece ao pôr-do-Sol, e justamente em um lugar oposto ao de (M). Isso também foi informação que deu guia para marinheiros. (V) refere-se ao planeta Venus, aquele que nós, terrestres, vemos com o mais brilhante, e segundo o que sabemos hoje ele é o segundo planeta a contar do Sol. Isso é uma informação empírica, e junto com ela temos outra, disponível para qualquer pessoa hoje em dia, a de que a chamada Estrela da Manhã é a conhecida Estrela da Tarde e, enfim, trata-se do Planeta Vênus. Assim, graças a uma descoberta empírica, temos hoje que (M)=(T)=(V). Se pudermos dizer – e podemos – que X é o objeto nomeado, então temos que X=X, de fato X (é assim que os filósofos dizem). O que é isso? Ora, uma tautologia. Uma tautologia não transmite nenhuma informação. Por definição uma tautologia não dá informação, pois apenas reitera como predicado o que é o sujeito e vice-versa. Todavia, nesse caso, se observarmos bem, há sim uma informação.
Fica fácil ver isso. Basta notar que quem sabe hoje a respeito de que (M) é (T) e é (V), sabe mais do que os homens do passado sabiam (os marinheiros, por exemplo). Quando Frege percebeu isso, ele passou a desconfiar de que haveria muito mais coisa no significado do que a simples relação de ligar um nome a um objeto, ou seja, dar a idéia banal de “referência”. Ele passou a fazer distinção entre sentido e referência.
Sua pesquisa seguiu por um caminho (platônico). Mas esse passo em que ele viu a distinção entre sentido e referência serviu para outros propósitos. Os filósofos estabeleceram teorias de referência e teorias semânticas separadamente. E a linguagem, até então um campo sem problemas, banal, passou a gerar todo tipo de problema – e a filosofia no século XX quase que se transformou totalmente em filosofia da linguagem.
Mais ou menos na mesma época de Frege, Nietzsche também estava olhando para a linguagem, mas de uma forma distinta, com outros instrumentos.
Nietzsche e os filósofos analíticos, dentre estes últimos os positivistas lógicos do Círculo de Viena, fizeram uma revolução na filosofia. Eles se espantaram com a própria filosofia. Acharam que fazer filosofia é que havia se tornado banal. Então, eles tentaram desbanalizar a própria filosofia.
Para eles, as atividades de adquirir o saber ignorante ou de encontrar certezas e, enfim, a atividade crítica, só tinham algum sentido se fosse levado em conta que todas essas atividades estavam impregnadas da idéia de que a filosofia, desde sempre, procurou por algo que, talvez, não fosse lá muito correto de se procurar: um ponto arquimediano, ou seja, uma âncora que ligasse pensamento ou linguagem ao mundo. Mas tal âncora seria feita de pensamento ou de mundo?
Em outras palavras, a filosofia teria sido, desde sempre, uma metafísica, e a metafísica seria apenas um grosseiro erro provocado por uma linguagem excessivamente rebuscada – para alguns analíticos – ou uma linguagem originalmente maculada pela “doença”, “fraqueza”, “moral escrava” e outros males da decadência – como Nietzsche os qualificou.
Para alguns filósofos analíticos, em especial os positivistas lógicos, a filosofia, ao ter se dedicado à busca de fundamentos metafísicos que envolviam a criação de uma linguagem descuidada, teria se enredado em um grande número de problemas, todos eles, na verdade, pseudo-problemas, pois adviriam de confusões criadas por um uso indevido das palavras, sentenças, proposições etc.
Alguns desses filósofos acreditaram que a filosofia poderia ainda ser crítica, mas crítica da linguagem, de modo a revelar o que é que haveria de puro e realmente sólido por baixo de tantas frases meramente alusivas, metafóricas, etc., na nossa linguagem, tanto quando falamos no cotidiano quanto quando falamos cientificamente. Outro grupo, nunca achou que a atividade de análise da linguagem, que seria então a atividade par excellence da filosofia, deveria cumprir uma função crítica, desveladora, iluminista, mas que ela seria, sim, apenas uma terapia da linguagem: ela teria menos a ver com “resolver problemas” e mais a ver com “dissolver pseudo-problemas”.
Nietzsche, junto com os positivistas lógicos e certos filósofos analíticos do século XX, quis ver o fim da metafísica adotando uma postura que incidiu em colocar a linguagem na sala de cirurgia. Todavia, Nietzsche nunca acreditou que poderia tornar a linguagem mais clara, capaz de apreender o real, nem mesmo tentou achar uma âncora que pudesse ser mostrada como o que fixa a linguagem no mundo. Esse foi um projeto derivado do que fizeram os analíticos, em especial os positivistas lógicos.
Ao dizer que os homens ainda acreditavam em Deus por acreditarem na gramática, Nietzsche disse tudo a respeito do seu programa de desbanalização. A composição dos enunciados deveria ser o foco de atenção, principalmente a relação entre sujeito e predicado. Para servir de exemplo, ele pegou frases da linguagem comum e, ao mesmo tempo, da linguagem científica.
Ele nos lembrou de como que ao usarmos a frases sobre fenômenos naturais, geramos sempre um sujeito e um predicado, e então ontologizamos o predicado sem qualquer pudor. Achamos isso banal. Não percebemos que o sujeito é apenas uma partícula gramatical, que está ali como elemento da linguagem e não como elemento ontológico. Quando falamos sobre o que é que um raio ou um trovão fazem, temos mesmo de colocar um elemento ontológico para segurar em um ponto fixo a ação? Ou a ação é tudo que temos? Isso deveria valer para tudo, mas não vale. Nossa gramática nos força, na maioria dos casos, a colocar um agente responsável pela ação, e então, em um segundo passo, esquecemos que esse agente ou sujeito é mera peça gramatical, que está ali apenas para que a linguagem flua de maneira retoricamente melhor, e logo conferimos a tal elemento um estatuto metafísico e ontológico. Fazemos isso com tudo, e também com o “Eu” que está em nossas frases. Não à toa, então, começamos a achar que o eu do “eu penso” é um ponto fixo que merece receber algum estatuto ontológico, que o tal “eu” é uma “substância pensante”. O recebemos como uma “res cogitans” e, então, nos embrenhamos por uma mata metafísica por conta de correr para pegar um coelho que nada é que um coelho gramatical – não existe senão como partícula da linguagem.
A desbanalização da gramática colocou Nietzsche com boas armas para atacar a metafísica e, então, poder dizer que a própria filosofia estava cega.
Entramos no século XXI sob esse impulso de Frege e Nietzsche, dados no final do século XIX. O século XX não aproveitou todas as potencialidades dos projetos de desbanalização da filosofia pelas filosofias postas por esses dois pensadores. Às vezes, tudo que é para ser banalizado volta a ser banal, dentro da própria filosofia. Mas o trabalho nosso é o de retomar esses projetos.
No âmbito em que a filosofia olha para o próprio umbigo, a desbanalização se volta para os mecanismos que a própria filosofia não está dando atenção. Fora disso, no campo da filosofia aplicada, tudo que não é notado, ou que é notado demais a ponto de ser comum, são os melhores objetos da filosofia. A filosofia como desbanalização do banal, que é a minha concepção de filosofia, parece ter sido realmente a que todos os filosóficos adotaram quando se tratou de alterar paradigmas. Eles foram alterados, mas esse fio condutor, o da desbanalização do banal, permaneceu.
Paulo Ghiraldelli Jr. - pgjr23@yahoo.com.br
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