Perigo! Nossos filósofos alertam: estamos sendo invadidos por bruxos. Vassouras voadoras, feitiços e poções encantadas, eis a que se resume as manifestações que acontecem neste momento nas ruas do País. Há um confronto declarado: bruxos versus trouxas.
O trouxa (muggle), na saga Harry Potter de J.K. Rowling, é simplesmente o nascido não bruxo, aquele que não possui qualquer poder mágico. A intenção é se referir aos não bruxos como aqueles que são de fora do círculo mágico, dando a eles uma certa conotação do que seria o fool, i.e., o tolo, o que não sabe das coisas. Em contraste à escritora, nossos filósofos imaginam que tolos são os bruxos. Mas a quem me refiro quando digo filósofos e a quem me refiro quando digo bruxos?
Dois de nossos filósofos brasileiros mais afamados – e mais politizados, já que fazem questão de serem conhecidos por pertencerem ou à direita ou à esquerda – são Luiz Felipe Pondé e Marilena Chauí. Ambos tentam explicar as manifestações se utilizando do mesmo expediente, enquadrando-as em algo que estaria sob a égide de um “pensamento mágico” ou sustentado por uma “relação mágica”. É a eles que me refiro quando digo filósofos.
No caso da filósofa, o “pensamento mágico” é a ideia de que uma satisfação se dá de modo imediato e direto, bastando para isso somente que ela seja desejada [1]. No caso do filósofo, “relação mágica” é o tipo de noção que dá margem à crença de que uma solução, simples e única, dará conta dos problemas postos [2]. As duas posições surgem como tentativas de explicar, no caso de Chauí, os protestos de junho em São Paulo e, no caso de Pondé, os Black Blocs. “A bruxa está solta!”, posso imaginar nossos filósofos bradando.
Tanto Chauí quanto Pondé relutam em dar legitimidade ao que está acontecendo nas ruas. Ela acredita que pelo fato de não haver mediação institucional, as manifestações não tem autonomia política. Só de modo institucionalmente vinculado que as coisas não se dão de modo mágico, direto, imediato. No dicionário de Chauí parece que imediato, ao invés de ser aquilo que acontece sem intervalo, significa, única e exclusivamente, algo sem uma mediação (do Partido, talvez? Nunca saberemos…). Por seu turno, ele acredita que os atos levados a cabo pelos Black Blocs advém de um modo primitivo de pensar a política que considera que o povo detém uma aura redentora que, por isso mesmo, tem alguma legitimidade para praticar quaisquer atos em nome da justiça social, a violência inclusa. Para Pondé, nas atuais circunstâncias, os Black Blocs são o povo e eles só são violentos devido a uma “relação mágica” entre eles e a política considerada como redenção. Explico mais.
O texto de Pondé se baseia numa analogia do pensamento do mundo atual com o pensamento da Idade Média, de onde ele retira a noção de redenção. Para o filósofo, a redenção medieval em deus equivale à redenção contemporânea na política. Trocando em miúdos, Pondé diz que não há o que explique a violência dos Black Blocs e que qualquer tentativa de legitimá-los incorre no que ele chama de “fetichização do povo”. O fetichismo seria aquilo que apontaria uma entidade que traz uma resposta absoluta. Ter o povo como fetiche, então, é tê-lo como solucionador universal dos problemas políticos. O povo encarnado nos Black Blocs vem para nos redimir – diríamos nós outros na conta da explicação filosófica de Pondé.
Pondé é sardônico, e muito do que ele diz é direcionado mais aos que ele chama de “chatos e bregas” que a quem está comprometido de modo mais efetivo com mudanças politicas. Pondé funciona como um filósofo catarse, cujo propósito é lavar a alma de gente que quer dizer o que ele diz, mas que não possui nem o mesmo vocabulário, nem a mesma e bibliografia que ele carrega. Por isso mesmo, não é difícil encontrá-lo percorrendo caminhos que antes visam satisfazer a esse público que contribuir de modo mais imaginativo para um debate. É o que parece acontecer neste caso.
Dizer que os Black Blocs não passam de violência gratuita é tão ingênuo quanto defender a teoria da política como redenção. O que Pondé denuncia – dizer que tudo se resolve pela política – finda por ser o que ele mesmo defende – que os Black Blocs são meramente resultado da política. É necessário que se force muito a abstração filosófica para ignorar a relação entre a violência de grupos como os Black Blocs e fatos brasileiros (e cariocas) como i) desigualdades econômicas profundas ainda não resolvidas, ii) atitudes mesquinhas de governantes, iii) questões humilhantes na saúde e na moradia, iv) genocídio de pobres causado pelo confronto com a polícia (que cada vez mais consolida sua imagem de máquina de truculência, de tortura e de morte que pratica execuções extra-judiciais) etc. Diante disso, é preciso por a máscara do cinismo e naturalizar o horror e a barbárie para dizer que a violência que ai está é apenas violência causada por uma “relação mágica” e nada mais.
Atitudes explicativas como as de Chauí e de Pondé nos fazem rir de tão deslocadas do que se esperaria de intelectuais do porte de cada um deles. Elas parecem não passar do que Luiz Eduardo Soares chamou de “teatro farsesco do mesmo” [3], ao referir-se à atitude daqueles que defendem simplesmente o quadro da ordem e da legalidade. No caso da filósofa, a ordem é a institucional; no caso do filósofo, a legalidade é a patrimonial privada – eu diria. E já que se trata de uma farsa, volto à comparação com a obra de J.K. Rowling.
Sendo os acontecimentos das ruas sustentados por aquilo que, sinteticamente, podemos chamar de “aura mágica” a ser combatida pela filosofia, racional e científica, parece que tudo se resume não a um fenômeno social que deve ser equacionado, mas sim a uma alegórica batalha de bruxos versus trouxas. Num esforço imaginativo, Pondé e Chauí seriam os Dursley, tios não-mágicos de Harry Potter, e este seria interpretado pelos Black Blocs. É possível uma aproximação: na literatura, a atitude dos tios é de uma ignorância pré-conceituosa que não aceita os poderes mágicos do sobrinho. A vida toda vivendo sob repressões psicológica, material e afetiva, Harry estoura aqui e ali, sempre acompanhado da mesma embasbacada atitude dos tios: “Demos tudo a este garoto, comida, casa, escola… E ele ainda nos trata assim.” Enfim, se o bruxo são os Black Blocs, cabe aos filósofos que alcunha?
Vitor Lima
Estudante de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)e membro do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA)
[1] Chauí explica suas ideias em artigo publicado na revista Teoria e Debate, intitulado As manifestações de junho de 2013 na cidadede São Paulo, no dia 27/06/13. Disponível em http://www.viomundo.com.br/denuncias/marilenachaui-o-inferno-urbano-e-a-politica-do-favor-clientela-tutela-e-cooptacao.html. Acesso em 17/10/2013.
[2] Pondé defendeu essa tese em seu artigo Do mito ao fetiche, na Folha de São Paulo, do dia 14/10/2013. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2013/10/1356032-do-mito-ao-fetiche.shtml . Acesso em 17/10/2013.[3] A expressão é utilizada por Luiz Eduardo Soares em vídeo intitulado Mensagem ao governador Sérgio Cabral que eu estenderia a toda a sociedade brasileira. Disponível em http://vimeo.com/77130796. Acesso: 17/10/2013.
Nenhum comentário:
Postar um comentário