domingo, 20 de abril de 2014

Marx e Weber, românticos na contramão [somente para leitores inteligentes] 14/07/2008


14/07/2008

Marx e Engels escreveram o Manifesto Comunista ainda relativamente jovens. Quando o Manifesto foi publicado, em 1848, Marx tinha trinta anos de idade. Talvez o Manifesto seja o seu texto mais belo do ponto de vista literário, com metáforas surpreendentes e descrições sintéticas, próprias de um gênio. Mas isso não foi feito da noite para o dia. Engels deu as linhas mestras do texto, e Marx se responsabilizou pela organização do conteúdo e, principalmente, pelo estilo. Ele reescreveu o texto várias vezes, e por incontáveis tentativas de correção foi pinçando as melhores palavras e sentenças. Quando ele e Engels terminaram o texto, sabiam de antemão que haviam escrito um clássico da filosofia política.
Diferentemente de quando escreveram A ideologia alemã, que acabaram por não publicar, o Manifesto não foi feito com todo o humor que emergiu na outra ocasião. Não que Marx e Engels não se divertissem escrevendo. Sempre escreviam sem desprezar bons palavrões e gargalhadas, transformando-os, uma vez nos textos, em boa ironia. Os poderosos ficavam irritados com isso, pois sabiam que Marx tinha o dom de atingir pessoas simples, sem que para isso tivesse de escrever de modo simplório.
É fácil saber a razão pela qual Marx escrevia bem. Não era exclusivamente por ter tido uma boa educação. Sua verve literária veio por conta do pé que manteve no Romantismo. O Iluminismo do século XVIII trouxe para ele sua missão de militante político revolucionário. Trouxe também seu apego à idéia de fazer uma espécie de ciência com aquilo que, até então, era filosofia. Todavia, o seu lado de escritor poderoso, é certo, veio do campo romântico.
Em que Marx foi um romântico? Não foi romântico no sentido literário do termo, e sim no modo como trouxe preceitos românticos para a filosofia e, então, em forma de sentimento, os transmitiu para o texto do Manifesto. Dizendo de um modo mais correto: sua união de iluminismo e romantismo foi responsável pelo charme desse seu escrito.
A razão iluminista e finita. É a razão propriamente humana, de homens e mulheres, e em geral é a ela que atribuímos nossa capacidade de organizar o mundo à nossa volta ou mesmo de mudá-lo. A razão romântica é infinita. É a razão não humana, do Cosmos ou do Mundo, da Natureza ou de Deus. É uma razão maior que, enfim, está nas estruturas nas quais vivemos, e então nos organiza ou mesmo nos transforma. Marx nunca decidiu por uma ou outra. Ora manteve-se dúbio, ora tentou conciliá-las. Sua interpretação da história foi, sem dúvida, um dos momentos em que procurou a conciliação.
A interpretação da história de Marx, nos momentos em que buscou resumi-la, apareceu como uma teoria que dizia que o homem era o agente e construtor da história; mas, ao mesmo tempo, o homem não era o construtor da história ao seu bel prazer, tinha de levar em conta as “condições objetivas determinadas”. Esse enunciado de Marx exemplifica bem sua tentativa de dar a cada uma das concepções de razão a sua devida força. Que o seja o homem aquele que faz a história é uma idéia que concede à razão iluminista sua força transformadora; que a história seja feita sob condições objetivas determinadas é uma idéia que enxerga o poderio maior das coisas, ou seja, da razão romântica.
Marx foi exatamente este pensador – iluminista e romântico. No Manifesto Comunista, nos trechos em que as teses românticas prevalecem, a genialidade do Marx escritor salta aos olhos. É o que vemos no trecho em que expõe o papel do que denomina de burguesia.
É o trecho mais belo do Manifesto e, sem dúvida, uma das peças mais bem escritas de toda a literatura da filosofia política.
Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia calcou aos pés as relações feudais, patriarcais e idílicas. Todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus “superiores naturais” ela os despedaçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do “pagamento à vista”. Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal.
A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com piedoso respeito. Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio fez seus servidores assalariados.
A burguesia rasgou o véu de sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias.
A idéia básica desse parágrafo poderia ser resumida em uma frase também literariamente bela e profunda, escrita mais tarde pelo sociólogo alemão Max Weber: a modernidade é a época do “desencantamento do mundo”. Aliás, em termos de beleza e profundidade, Weber cunhou também outra frase, igualmente adaptável a esse parágrafo de Marx: o homem moderno é “o expert sem inteligência e o hedonista sem coração”.
Nos dois casos, tanto o de Marx quanto o de Weber, as sentenças para descrever e avaliar os tempos modernos deixam transparecer um irônico e paradoxal sentimento de nostalgia pelo mundo de antes da modernidade. A ironia é de dupla mão: é uma forma de fustigar o leitor que porventura se identifique com a burguesia, para Marx, ou que faça a apologia da modernidade, para Weber. Amantes da modernidade, Marx e Weber mostram que isso não os impede de serem seus críticos até mesmo nos acertos dessa nova época.
Marx escolhe as palavras que sabe que podem estar sendo idolatradas por aqueles mesmos burgueses que prezam o mundo medieval e feudal, e que não conseguem ainda admitir que foram eles mesmos que destruíram o velho mundo. Os burgueses de todo tipo, e mais ainda o que Marx chama de “pequenos burgueses”, vivem adorando o passado, o que seria idílico e com aura; então Marx mostra a eles que eles é que terminaram com esse mundo que, agora, parece a eles, como conservadores, algo que deveria ser preservado ou restaurado. Não é mais possível fazer voltar o que destruíram. Assim, o texto é um soco no estômago dos ricos e poderosos, e mais ainda da classe média, ao mostrar que todo conservadorismo moral deles é apenas hipocrisia. Duas frases com meias metáforas saltam aos olhos aqui, neste exato sentido: primeira, a burguesa destruiu as relações passadas, e deixou apenas “o laço do frio interesse, as duras exigências do ‘pagamento à vista´”; e segunda: “a burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com piedoso respeito”.
Que homem que pode surgir dessa situação senão aquele que se vangloria de ser não um sábio que fala sobre tudo e todos, mas um especialista, um expert. É assim o homem moderno. Ele não quer mais ser sacerdote ou filósofo; quer mostrar que de um determinado assunto, ele entende. Tem sua utilidade no mercado exatamente por saber daquilo que o dinheiro diz que ele deve entender. “Expert” ou especialista – eis um nome que a modernidade idolatra. Weber não o poupa: “expert sem inteligência”. E ao mesmo tempo, que homem que pode surgir de relações frias “do pagamento a vista” senão aquele que apenas quer o gozo, o hedonista? Todavia, não se trata do hedonista filosófico, e sim do hedonista vulgar, por isso Weber completa: “hedonista sem coração”. Sem coração, no caso, quer dizer: sem a devida harmonia de conduta do hedonista sábio, que mais do que ninguém sabe preencher seu peito com gozos aproveitados de modo correto. Sem coração quer dizer: sem espírito.
Marx deixou para Weber o enunciado que é o creme do bolo da avaliação da “revolução burguesa” e do “advento do mundo moderno”: “desencantamento do mundo”. É difícil não ver que este parágrafo do Manifesto Comunista pode ser batizado com tal frase weberiana. A perda da auréola e a emergência de relações que não são mais mascaradas por religião ou qualquer outro elemento similar é exatamente isso: o império de uma situação em que tudo pode ser tratado às claras. Em outras palavras: tudo pode ser considerado pela noção de explicação, que mostra relações de causa e efeito, ou pela compreensão, que mostra razões. Essas razões, para Weber, não são argumentos, são apenas descrições da racionalidade que adéqua meios a fins.
Marx e Weber estão como que dizendo de modernos ou burgueses: são homens que saem de casa sem consultar oráculos, astrólogos ou mesmo sem orar para qualquer deus, pois a única coisa que os possibilita saírem de casa é a consulta que fazem ao número de folhas de seus talões de cheque.
Essa é a possibilidade que o romantismo de cunho até mesmo conservador fornece a dois pensadores nada conservadores: o de ousarem estapear todos os ganhos da modernidade que eles não querem ver destruídos, e sim ampliados e melhorados. A crítica romântica, em geral, foi uma crítica conservadora. Ela surgiu em oposição às modificações introduzidas pelo iluminismo. Marx e Weber sabem incorporar em metáforas e alegorias surpreendentes o espírito dessa crítica, produzindo escritos que, sem isso, talvez viessem a soar apenas como panfletos iluministas e positivistas pouco agradáveis. Outros escritores da época, ao contrário de Marx e Weber, não souberam harmonizar iluminismo e romantismo, e produziram escritos progressistas, dogmáticos, pouco afeitos à beleza literária que encontramos nesses dois alemães.
© 2008 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo

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