quinta-feira, 24 de abril de 2014

Zilton Andrade (Cientista Santantoniense)

Zilton Andrade

(1924)

Entrevista concedida a Caio Castilho (Instituto de Física, UFBA e representante de Ciência Hoje, em Salvador); Eliane Elisa Azevedo (UFBA e ex-vice-presidente da SBPC); Othon Jambeiro, (Faculdade de Comunicação, UFBA); e Marta Cury Maia (jornalista).
Um dos pioneiros nas pesquisas sobre males endêmicos do país, como a doença de Chagas e a esquistossomose, com trabalhos publicados nas principais revistas científicas do mundo, o patologista baiano Zilton Andrade, 73 anos, ajudou a formar várias gerações de médicos e cientistas em seu Estado. Praticamente fundou, ajudou a estruturar e depois dirigiu os primeiros laboratórios científicos instalados na Bahia, tanto na Universidade Federal da Bahia quanto em institutos de pesquisa, e por muito tempo atuou nas agências de financiamento à pesquisa do país. Andrade defende o regime de dedicação exclusiva para professores universitários, a avaliação dos cursos superiores e o retorno do mérito acadêmico como exigência básica para a ascensão na carreira docente e para o exercício do poder nas instituições de ensino superior, criticando o que chama de "democratismo" na universidade.
Podemos começar com uma auto-apresentação...
Nasci na cidade de Santo Antônio de Jesus, no interior da Bahia, em 14 de maio de 1924. Fiz o curso primário ali e o ginasial no Colégio Ipiranga, em Salvador. A decisão de estudar medicina foi motivada principalmente por minhas leituras pré-universitárias sobre ciência e sobre a vida de grandes cientistas. Lembro-me bem da impressão que me causou o livro Caçadores de micróbios, de Paul de Kruiff, grande sucesso na época. Tive certa decepção de início, porque na época o curso era muito discursivo, praticamente não havia pesquisas.
E quando essa situação mudou?
A chance de trabalhar em laboratório surgiu quando Otávio Mangabeira Filho fundou, em Salvador, um instituto de pesquisa semelhante ao Instituto Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro. Já estudante de medicina, candidatei-me a um concurso para técnico do laboratório. Fui aprovado nos testes, assumindo meu primeiro emprego. Quase como passo inicial para estabelecer o instituto, houve um curso de formação de pesquisadores. Entre os professores desse curso, iniciado em 1949, estava Samuel Pessoa. Assistir a suas aulas e seu trabalho foi algo definitivo na minha formação. Com ele, participei de minha primeira pesquisa, sobre a ocorrência de filariose em Salvador. Saíamos juntos à noite para coletar sangue dos moradores de um bairro da cidade. Aprendi muito nesse convívio. Vi seu entusiasmo, dedicação à pesquisa e seriedade, sua visão global do que é ciência, a noção de que deve ser feita em benefício do povo, e senti suas preocupações com problemas sociais. Vi em Samuel Pessoa um dos "caçadores de micróbios" . Eu teria sido parasitologista, não fosse a necessidade do novo instituto de formar um patologista. Fui encarregado de preparar o laboratório que seria usado pelo professor Paulo Dacorso Filho, vindo do Rio de Janeiro, que daria o curso de patologia. Foi com ele que comecei a descobrir e a me maravilhar com a patologia.
senhor foi pouco depois para o exterior...
Formei-me em 1950. Logo depois, Dacorso e Mangabeira Filho decidiram que eu deveria fazer um curso no exterior. Fui para a Universidade de Tulane, em New Orleans (Estados Unidos), onde fiz residência em patologia por quase dois anos. Na volta, encontrei o instituto em situação precária, com brigas internas. Aconselhado por Dacorso, transferi-me para a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, onde passei um ano (1956) e defendi minha tese de doutorado. Voltei à Bahia no início de 1957, a convite de Edgar Santos, e encontrei condições relativamente boas de trabalho, porque praticamente passei a chefiar o serviço de patologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina, hoje Hospital Edgar Santos, e logo fui efetivado na função. Pude estabelecer uma rotina e linhas de pesquisas, com material humano e experimental. Fiz concursos para livre-docente em 1959 e para professor titular em 1974.
hospital foi criado em 1948?
Exato. O primeiro chefe do serviço de patologia foi Raphaele Stigliani, que veio da Itália. Em seguida veio do México Franz Lichtenberg, que ficou pouco tempo e, ao sair, deixou em seu lugar Clarival Valadares. Quando voltei de Ribeirão Preto, ele praticamente me deu a chefia do serviço. Embora nominalmente eu não fosse chefe, tive toda a liberdade para estabelecer a rotina e a estrutura do serviço, em excelente convivência com Clarival e outro patologista, Jorge Studart. O titular de patologia era o professor José Coelho dos Santos, que curiosamente não chefiava o serviço do setor. O catedrático ficava na faculdade do Terreiro e eu chefiava o serviço no hospital. Meu contrato com a universidade era renovado todo ano. Para trabalhar em tempo integral, eu tinha dois empregos no hospital: como professor de ensino superior e como médico, contratado por Edgar Santos.
Na época, não existia a figura da dedicação exclusiva. Isso foi criado para permitir que o senhor se dedicasse à pesquisa? Era uma espécie de arranjo?
Sim. Uma folha de pagamento saía pela reitoria e outra pelo Ministério da Educação. Fui um dos primeiros professores com dedicação exclusiva. Continuo achando a dedicação exclusiva indispensável, se quisermos restaurar a universidade. Pelo menos nas cadeiras básicas, todos os professores precisam ter tempo integral. Passei toda a minha vida sem outra atividade particular ou remunerada. Não me arrependo. Outros, que trabalhavam fora, às vezes tinham que se sacrificar muito mais do que eu. Recebiam mais dinheiro, mas não tinham a mesma facilidade de trabalho, de paciência e de calma para pesquisar e preparar as aulas. Sou partidário do tempo integral.
senhor voltou outras vezes ao exterior?
Várias. Em 1960 e 1961 estive no Hospital Mount Sinai, em Nova York, com bolsa do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, trabalhando com um grande cientista, Hans Popper. Foi uma época muito produtiva, porque Popper era realmente um homem de ciência. Tenho voltado ao Mount Sinai para visitas curtas, e estive no Hospital New York, da Universidade de Cornell, por três meses. Depois acertamos um intercâmbio com a França e fui várias vezes, por curtos períodos, ao Instituto Pasteur, em Lyon. Esse intercâmbio continua até hoje.
E como surgiu o Centro de Pesquisas Gonçalo Muniz?
O centro é um núcleo regional da Fundação Oswaldo Cruz, do Ministério da Saúde, assim como o René Rachou, em Belo Horizonte, e o Aggeu Magalhães, em Recife, anteriores ao Gonçalo Muniz. Fui o primeiro diretor desse centro, de 1981 a 1990. No início, o centro era da Fiocruz, da Universidade da Bahia e do governo estadual. Depois, a Fiocruz assumiu a administração. Agora, está em fase de renovação física e científica. Novas pessoas foram contratadas, alunos de pós-graduação que estavam no exterior começam a voltar. O objetivo do centro é a pesquisa de doenças regionais, com grupos que trabalham no interior do Estado e nos laboratórios. Está envolvido com o ensino através da UFBA. Seu curso de pós-graduação em patologia humana é nível A, na avaliação da Capes, desde sua fundação. O Gonçalo Muniz também faz parte de um dos centros de excelência do Pronex (Programa de Núcleos de Excelência), do governo federal, que apoia os grupos de pesquisa científica mais destacados do país.
senhor era aluno da Faculdade de Medicina. Como via a universidade e o próprio Edgar Santos?Vivi um período em que havia grupos favoráveis e desfavoráveis a ele, e eu não pertencia a nenhum. Sempre tive grande admiração por Edgar Santos e pelo que realizou. Foi uma grande vantagem para a Bahia ter na época um homem de seu porte. Desenvolveu não só a área médica, mas também áreas como música, teatro, dança. Por isso foi muito criticado. Diziam que era absurdo gastar dinheiro pondo pessoas para dançar e tocar flauta, que ele era megalomaníaco. Mas sua obra é extraordinária, idealista. Lutou por ela toda a vida, com capacidade de trabalho, inteligência e habilidade política.
Edgar Santos foi um marco na formação da universidade, mas curiosamente quem fez a reviravolta foi seu filho Roberto, não exatamente por vontade própria, mas por causa da reforma universitária de 1968. Como o senhor viu essa mudança?
Eu trabalhava em tempo integral e Roberto Santos era um dos estimuladores desse regime. Por isso, eu tinha muito contato com ele e com o grupo à sua volta. Mas ele se confundiu muito com os militares que haviam tomado o poder no país, o que deixava a gente um pouco paranóico, achando que em toda mudança existia o dedo de um militar. Para ser honesto, não posso comparar Roberto com Edgar, pois acho a obra do pai muito maior. Mas Roberto deu uma boa contribuição à universidade: estabeleceu o programa de residência e estimulou o tempo integral em uma época em que poucas pessoas falavam sobre isso. Também fazia pesquisa, e de bom nível. Mas sua atuação como reitor não pode ser comparada com o trabalho pioneiro e decisivo do pai.
Nesses 40 anos, que problemas de patologia humana mais o atraíram, e que idéias ou soluções surgiram desses trabalhos?
Meu interesse sempre esteve ligado às doenças parasitárias. Nas autópsias que fazia no Hospital das Clínicas predominavam casos da doença de Chagas e da forma grave da esquistossomose. Esses males monopolizaram minha atenção porque surgiam no dia-a-dia do trabalho e eram pouco conhecidos: muitas vezes eu procurava detalhes a respeito da patologia e não encontrava. Já existiam bons estudos, mas era necessária uma revisão profunda, com novos instrumentos e novas técnicas, para determinar a patologia dessas doenças. Aplicamos, por exemplo, técnicas de imuno-fluorescência e de microscopia eletrônica para estudar essas doenças e obtivemos resultados muito interessantes. Isso possibilitou a publicação de vários trabalhos e um intercâmbio com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Por quase 10 anos trabalhei associado à OMS, integrando o comitê de doenças parasitárias. O intercâmbio que isso permitiu com cientistas de várias partes do mundo foi valioso não só como estímulo pessoal, mas como aprendizado. Acredito que esse estudo das doenças parasitárias, na época, era prioritário e precisava ser feito.
Entre suas publicações, quais considera mais relevantes para o entendimento do processo patológico dessas doenças?
Se eu tivesse que citar algum, começaria pelo estudo da modulação do granuloma na esquistossomose, que fiz com o norte-americano Kenneth Warren, quando ele estava na Bahia. Esse tema gerou enorme quantidade de trabalhos na literatura. Até hoje se estuda esse problema da modulação imunológica. Na esquistossomose, a reação ao ovo do Schistosoma mansoni (parasita causador da esquistossomose) é de início extensa e destrutiva para o próprio hospedeiro. Com o tempo, a reação torna-se menor, mais econômica, e essa modulação protege mais o hospedeiro. É parecido com o que ocorre na tuberculose, em que a reação do indivíduo à primeira infecção é, digamos, "desastrada" e prejudicial. Depois, o organismo aprende a modular a lesão, a localizá-la, a torná-la mais fibrosante e mais lenta. Feito sem maiores pretensões, esse trabalho provoca até hoje um número impressionante de publicações a respeito dos fatores que atuam na modulação.
E qual a conseqüência desse trabalho para o controle da doença?
O estudo não visou controlar a doença. O controle depende de medidas socioeconômicas, de decisões políticas. Quando a qualidade de vida melhora, a esquistossomose tende a desaparecer, assim como qualquer doença parasitária. O uso de inseticidas contra o barbeiro, inseto transmissor da doença de Chagas, ilustra bem isso. Em áreas endêmicas, onde antes eram encontrados mil barbeiros em uma casa, hoje é preciso procurar em mil casas para achar um barbeiro! O impacto disso na transmissão da doença é extraordinário.
No Brasil, qual é a situação da esquistossomose?
E de melhoria. A incidência diminuiu muito e as formas graves estão sumindo. A doença de Chagas teve redução fantástica. Por outro lado, vemos surgir aqui e ali doenças como a leishmaniose. Com as populações pobres deixando o interior, por falta de reforma agrária, e formando cinturões de miséria em torno das cidades, aumenta a possibilidade de aparecer dengue, malária, febre amarela. Houve casos de calazar periurbano. Se pensarmos em casos isolados, a situação do Brasil é contraditória. No panorama geral, porém, a situação melhorou bastante, mas não através de campanhas sanitárias, apesar da nossa grande tradição (desde os tempos de Oswaldo Cruz, passando pela erradicação da malária no Nordeste e da poliomielite nos dias atuais).
Como o senhor vê a universidade hoje e há 40 anos?
Na época em que eu trabalhava na universidade havia mais disciplina e hierarquia. O programa que os estudantes recebiam, no primeiro dia de aula, era cumprido. Da época da ditadura para cá houve um afrouxamento na universidade, algo que tenho chamado, e às vezes não causa uma impressão muito boa em quem me ouve, de "democratismo" . A universidade é feita de pessoas desiguais e Rui Barbosa já dizia: "Tratar os desiguais com igualdade é desigualdade flagrante e não igualdade real. Os desiguais têm que ser tratados com desigualdade e à medida que se desigualam." Alguns dizem, por exemplo, que muitos fazem pesquisa porque têm dinheiro, vindo até do exterior, e que a universidade não dá nada. A universidade não tem que dar dinheiro diretamente para a pesquisa, mas deve dar o básico: biblioteca, biotério, oficina de reparos, bons laboratórios. O dinheiro para fazer pesquisa tem que ser batalhado, através da competição, como se faz na Capes, no CNPq etc. Hoje, o sistema dentro da universidade é distributivo. Não costuma ser seletivo, porque lá todos são "democraticamente" iguais. Há professores que não dão muitas aulas e há professores que faltam muito, mas na hora de considerar a categoria professor todos são iguais. É isso que chamo de "democratismo".
Esse modo de pensar encontrou muita resistência?
Em certa época eu publicava artigos na Tribuna da Bahia. Uma vez publiquei um artigo chamado Democracia e democratite. Fui convocado pela Associação dos Servidores da Universidade Federal da Bahia (ASSUFBA) para esclarecimentos e no início da sessão o ambiente era de grande animosidade. Quando a sessão terminou fui aplaudido, porque eles compreenderam meu ponto de vista: deve haver oportunidade igual para todos, mas não a distribuição das benesses, digamos assim, para os que querem produzir e os que não querem fazer nada. Escrevi um artigo sobre a avaliação na universidade muito antes que o problema surgisse. Sempre achei absurdo não existir avaliação sequer nos departamentos. As pessoas não querem ser avaliadas, associam avaliação com punição. Mas na universidade a avaliação é necessária.
Em sua volta, em 1957, a universidade tinha onze anos, mas a faculdade de medicina era bem mais antiga, de 1808. Ainda hoje, na UFRA, há áreas com mais tradição de pesquisa que outras. Naquele tempo, só a faculdade de medicina tinha tradição de pesquisa?
Também na faculdade de medicina havia pouca pesquisa. Alguns grupos faziam alguma coisa, mas a grande maioria não pesquisava. Na época dizia-se que a faculdade existia para formar profissionais para cuidar de doentes, não para fazer pesquisa, não para saber se o mosquito tal tem asa azul ou vermelha. Achava-se que o fundamental era ensinar os estudantes e que para isso não era preciso pesquisar, que essa "diversão" caríssima era para países ricos. Eles não pensavam que, onde não há pesquisa, o professor se cansa em poucos anos de repetir a mesma coisa. Ele não renova seus conhecimentos e fica muito resistente ao novo. Fica reacionário, o que prejudica a formação dos jovens, porque o professor não aceita o novo se não estiver habituado a procurar o novo todo o tempo. Um laboratório que não faz pesquisa, só rotina, também fica em poucos anos com boa cota de obsolescência. Não se percebe que a pessoa que estuda um mosquito de asa azul ou vermelha não está diletantemente perdendo tempo. O fato de descobrir algo novo interessa pessoas à distância. Tais pessoas comunicam-se com ele para saber detalhes, iniciando a troca de informações. Essa troca se dá entre iguais: não há intercâmbio se um indivíduo está parado aqui e outro produz ciência lá fora. Quero dizer que a pesquisa vale não só pelo que descobre. Seus subprodutos interessam muito à universidade. Com a pesquisa vem a renovação, o interesse pelo que outros estão fazendo, o interesse maior no ensino, a renovação dos métodos, e até o desejo de ser avaliado e saber o que é preciso corrigir.
A institucionalização da pesquisa, com a reforma universitária de 1968, representou uma transformação?
Acho que sim. Antes, a pesquisa era procurada por quem tinha uma vocação especial, uma tendência. Hoje, com os cursos de pós-graduação, há um estímulo geral à pesquisa. Às vezes o estudante vai pouco a pouco entendendo o que é a pesquisa e se dedicando mais. Nesse sentido, a situação melhorou, mas isso não deve nos satisfazer. Ainda hoje há pessoas que perguntam: quem deve fazer pesquisa? Dizem que a universidade não reconhece quem dá assistência aos doentes, quem dá aulas ou faz a rotina laboratorial, enquanto quem "se diverte" na pesquisa é comentado, fica em evidência, viaja, faz conferências. É uma visão deturpada. Todos os envolvidos em atividades universitárias devem fazer pesquisa. Tratar de doentes não impede que se faça pesquisa. Qualquer atividade, se o indivíduo tiver mentalidade de pesquisa, pode gerar pesquisa. Estamos na era da ciência, tudo está impregnado de medologia científica. A universidade deve ser a matriz geradora dessa mentalidade.
senhor diz que estamos na era da ciência, mas o chamado neo-obscurantismo parece estar ganhando força. Como o senhor vê isso?
Os extremos se tocam, não é? O Carl Sagan, em um de seus livros, fala dos demônios que andam à solta e faz uma defesa firme do conhecimento científico, mostrando que em todas as épocas o obscurantismo tenta conseguir adeptos. Hoje, por causa da ignorância a que as pessoas são relegadas, do grande número de analfabetos e semi-analfabetos, há uma tendência de o obscurantismo atrair esses indivíduos. Mas na minha opinião o que predomina, o que faz o mundo ir pra frente, o que está à frente de todo o progresso da humanidade, o que faz com que as pessoas vivam hoje 100 anos e mais ainda no futuro, o que diminui a mortalidade infantil são os conhecimentos científicos.
No período da ditadura militar, o senhor foi de algum modo atingido, embora fosse um cientista com preocupações principalmente acadêmicas?
Não. Não fui particularmente atingido, apesar de coisas como o fato de meu nome ter sido vetado, em certa ocasião em que professores da faculdade iriam ser homenageados pelos médicos. Também tive um laboratório vasculhado. Em geral, não tive maiores problemas.
senhor descobriu que um organismo invadido por algo estranho reage de forma violenta e só depois entra em fase de modulação. "democratismo" vigente hoje na universidade seria uma fase de modulação resultante da agressão da ditadura? A universidade ainda não voltou a um equilíbrio?
É um ponto de vista interessante, e possível. Realmente, o princípio de que a toda ação corresponde uma reação contrária também se aplica às áreas biológica, social e política. Com a diferença de que a reação contrária muitas vezes é mais forte que a ação que a desencadeou. Mas o que analisei foram os prejuízos trazidos por esse "democratismo" e não por que ele surgiu. Em certos momentos, tive a impressão de que era estimulado pela ditadura. Dizia-se que a ditadura não queria a democracia no país, mas estimulava essa democracia esdrúxula na universidade. Os catedráticos, que assim ou assado conseguiram passar em concursos públicos e mandavam e desmandavam, como barões feudais, foram substituídos por professores titulares. Estes pensavam ter todos os direitos deveres dos catedráticos, mas não eram senhores absolutos, não eram os chefes. Vieram as eleições para chefe de departamento e em muitos casos foi eleito o mais simpático, o que bate no ombro do outro, que dá bom dia a todo mundo, mesmo não tendo às vezes competência para chefiar ou estruturar um bom departamento. Acho que, na universidade, o que deve contar é a competência, demonstrada por uma escala de valores que inclua etapas, títulos, publicações etc. Essa estrutura não é novidade. Existe no mundo todo. Na universidade brasileira é que se decidiu pelo "democratismo".
O senhor defende que o mérito acadêmico determine o exercício do poder acadêmico?
Exatamente. É a "meritocracia". Acho que a restauração da universidade passa pelo regime de dedicação exclusiva e pelo mérito.
Como o senhor avalia a história das agendas brasileiras de financiamento à pesquisa, estaduais e federais?
Acho que, das fundações estaduais, a Fapesp é a única que ficou bem estruturada. Tem um grande sucesso porque apenas 5% do dinheiro fica para a administração e o resto vai para a ciência. Sobre outras agências estaduais eu sei pouco. Na Bahia, o governo ainda não decidiu criar alguma fundação de amparo à pesquisa. Espero que um dia isso ocorra. Quanto às instituições federais, sempre fui beneficiado pelo CNPq. Solicitei auxílio para meus estudos e bolsas para meus orientandos e participei de comitês assessores. Mesmo durante a ditadura o CNPq teve atuação muito positiva — na minha área, inclusive, criou o Programa Integrado de Doenças Endêmicas (Pide). O programa visava estudar as doenças tropicais de alta incidência no Brasil, era dirigido por pessoas de alta qualificação e mudou o nível da pesquisa nessa área. Depois, como tudo no Brasil, parou. A fundação do CNPq trouxe muitos benefícios, mas muita coisa poderia ser corrigida. Talvez seja gasta uma verba excessiva em administração. Outro problema é a falta de avaliação das bolsas e de outros programas. Às vezes quem recebe bolsa ou auxílio manda apenas um relatório pró forma. Esse relatório é arquivado e a comunidade não fica sabendo o que está ocorrendo. A burocracia também é um obstáculo. Temos agora o Pronex, programa que pretende criar 150 grupos de excelência no país, de mais alta qualificação. A seleção tem sido muito rigorosa e os projetos apresentados muito bons. Há um estímulo muito grande. Espero que não falte dinheiro. Ter centros de referência em pesquisa científica é uma idéia muito positiva, mesmo que de início eles fiquem um pouco concentrados no Rio, em São Paulo e em Minas Gerais. Acho que esse é um projeto vitorioso, embora tenha pouco tempo de funcionamento. A Capes também tem tido um papel positivo.
desigual ou não?Na época em que trabalhei nos comitês assessores, nunca percebi isso. Mas é preciso ver que a ciência tem uma relação positiva com o desenvolvimento econômico. As áreas mais ricas produzem melhor ciência, estão mais bem estruturadas. Por exemplo: os projetos elaborados em São Paulo, onde a Fapesp representa um estímulo muito grande, são mais bem elaborados, são feitos por indivíduos que já têm publicações, que já atuam há muito na área. A competição, portanto, é difícil, mas não é criada pelo Pronex ou pelo CNPq. Ela existe porque o país é assim. Em toda parte existe uma relação direta entre ciência e dinheiro: países mais ricos fazem ciência melhor. A ciência do Nordeste reflete a maior pobreza da região. Muitos grupos, exceto os mais experientes, apresentam projetos que parecem, digamos, ingênuos. No CNPq, um bom projeto apresentado por instituições nordestinas causava um misto de admiração e simpatia nos comitês assessores.
Como o senhor vê, nos aspectos científicos e éticos, realizações como a clonagem de uma ovelha, especialmente em face da possibilidade de clonagem do ser humano?
Do ponto de vista da técnica científica, ainda há um grande caminho a ser percorrido até se pensar em clonagem humana. A dificuldade é imensa, mas pode-se acreditar que um dia isso será possível. A questão que nasce daí deve ser debatida à medida que os resultados tornem mais próxima essa possibilidade, mas não acho que esse tipo de pesquisa traga malefícios para a humanidade. Sempre que a ciência progride, mesmo com uma face ruim, como no caso da bomba atômica, muitos aspectos positivos podem ser explorados para o bem da humanidade. Medidas que proíbam pesquisas sobre clonagem seriam extremamente prejudiciais.
senhor acha que não deve haver limites para a experimentação?
Pessoas engajadas em ciência, que procuram fazer ciência e vencer etapas em uma área complexa e delicada como essa, já têm — da minha parte — um crédito de confiança. Desconfio da idéia de proibir alguma coisa: a emenda pode sair pior do que o soneto. Acho que a ciência deve ser livre.
Permitir total liberdade de experimentação não põe as pessoas a serviço do conhecimento e não, como deve ser, o conhecimento a serviço das pessoas?
Talvez nosso ponto de vista coincida, no sentido de que a ciência deve ser feita com ética, principalmente quando se trata de seres humanos. Isso está fora de dúvida. O que me preocupa é a idéia de proibir alguma coisa na área científica. As perguntas principais seriam: Quem vai proibir? Proibir o que? Essa decisão pode envolver os piores instintos humanos, como inveja, obscurantismo, perseguição política, racial ou religiosa. Há muitos exemplos na história da ciência.

Felicidade...



domingo, 20 de abril de 2014

José ("E agora, José") - Poema, de Carlos Drummond de Andrade


  • Data de publicação

A partir de Sentimento do Mundo (1940), Carlos Drummond de Andrade parece se armar em relação a si próprio e ao mundo. E, se o individualismo evidente nos primeiros livros é mais util, não é por isso menor. O mesmo "eu-oblíquo" contempla-se a si e ao mundo; e, se muitas vezes o pronome na primeira pessoa desaparece, o poeta se desdobra em uma terceira pessoa:

- o impessoal "se": "Chega um tempo em que não se diz mais: 'Meu Deus'." (Sentimento do Mundo);
- o homem qualquer: "Ó solidão do boi no campo, / ó solidão do homem na rua!" ("O boi");
- a simples constatação do fato: "Lutar com palavras / é a luta mais vã" ("O lutador");

até chegar a um outro "eu", "José" - "E agora, José?" ("José"), que se pergunta sobre o significado da própria existência e do mundo. Mas este "José" não é outro senão o poeta. A personagem funciona, no poema, como o desdobramento da personalidade poética do autor, tanto quanto nas demais situações apontadas, atrás de quem o poeta se esconde e se desvenda.

O “não-ser” se faz presente neste poema por meio do modo verbal subjuntivo que torna a ação imprecisa:

“...Se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...”


José não dorme, não cansa, não morre, ele é duro, apenas segue. Sua dureza é o que existe e tudo mais é o “nada” no qual ele se funde. Chama-se atenção para o caráter construtivo que o Existencialismo dá à categoria “nada”, ele é o inexistente, mais traz em si o por fazer.

Escrito durante a Segunda Guerra Mundial e da ditadura de Vargas, José, apesar da dureza, ainda tem o impulso de continuar seguindo. Mesmo sem saber para onde: “...Você marcha, José! / José, para onde?

Leia o poema na íntegra:

JOSÉ

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama protesta,
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,

seu terno de vidro, sua incoerência,
seu ódio - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, pra onde?

"Teogonia", de Hesíodo

Teogonia, de Hesíodo


0118
Hesíodo e a Musa, 1891.
INIT Teogonia (lit. "o nascimento dos deuses"), é um poema épico (metro: hexâmetro dactílico) que detalha a origem e genealogia dos deuses gregos. Tradicionalmente atribuído a Hesíodo, a data de composição (c. -700) é tão imprecisa quanto a data em que o poeta deve ter vivido.
A idéia em si não é original, pois já havia sido desenvolvida pelos egípcios (sæc. -XXIV), pelos babilônios (-2000/-1500) e pelos hititas (-1400/-1200) muitos anos antes (ver Supplementa). Hesíodo, no entanto, foi o primeiro a sistematizar os antigos mitos da criação e a organizar os mitos gregos numa sequência lógica. De certa forma, a Teogonia é o mais antigo tratado de mitologia grega que chegou até nós.

Hipótese

Não há nenhuma intenção dramática ou enredo, e sim um plano expositivo. Hesíodo descreve a criação do mundo e a seguir relaciona, cronologicamente, cada uma das gerações divinas. O argumento gira em torno de três temas básicos:
  1. a criação do mundo, ou cosmogonia;
  2. genealogia das gerações divinas, ou teogonia propriamente dita;
  3. a ascensão de Zeus ao poder.
Segundo Timothy Ganz (1993), o poeta pretendia contrastar a "desordem" do cosmo durante o domínio dos deuses primordiais e dos titãs, com a "ordem" cósmica que imperava em seus dias, determinada por Zeus e pelos demais deuses olímpicos. Segundo a cronologia hesiódica, os deuses olímpicos pertenciam à 3ª geração e eram governados por Zeus, cuja história se desenvolve em boa parte do poema. Hesíodo, no entanto, vai além da simples enumeração e habilmente entremeia a árida sucessão de deuses e deusas com raros, curtos mas elucidativos trechos dos antigos mitos.

Resumo do poema

O poema tem 1022 versos hexâmetros e ocupa 39 páginas da edição de Evelyn-White (1920), na qual se baseia o resumo. O narrador é o próprio poeta.
Após uma invocação às Musas, Hesíodo relata como as deusas inspiraram seu canto ao cuidar de ovelhas perto do Monte Hélicon (1-35); a origem das musas, filhas de Zeus, é também contada (36-115).
Segue-se a origem dos primeiros deuses, que personificavam os elementos primordiais do Universo (116-153): Caos, o vazio primitivo; Gaia, a terra; Tártaro, a escuridão primeva; Eros, a atração amorosa. Os descendentes imediatos são também relacionados: Hemêra, o dia; Nix, a noite; Urano, o céu; Ponto, a água primordial.
Os mais notáveis descendentes de Urano e Gaia foram os titãs, como Crono, Oceano, a água doce, Jápeto e o gigantesco Ceos; as titânides, como Têmis, a lei, e Mnemósine, a memória; os ciclopes, que tinham um único olho; e os hecatônquiros, gigantes com cem braços e cinquenta cabeças.
Depois, o poeta descreve como Crono assumiu o poder (154-200) e inadvertidamente deu origem a Afrodite, deusa do amor sensual; relaciona os descendentes de Nix, entre eles Tânato, a morte, Hipno, o sono, e Oneiro, o sonho (211-232); os descendentes de Ponto (233-336), entre eles Nereu, o mais antigo deus do mar e pai das nereidas e Fórcis, progenitor de monstros como as Górgonas, Equidna, com tronco de mulher e cauda de serpente, e a Esfinge; os descendentes de Oceanos (337-403), entre eles os rios e fontes, as ninfas da terra firme, os ventos, Métis, a sabedoria, e Hélio, o sol; os descendentes de Ceos (404-452), especialmente Hécate, a dádiva.
A história de Zeus, filho de Crono, e como conseguiu destronar o pai é contada nos versos 453-506. A lenda de Prometeu, filho de Jápeto, e a criação da primeira mulher são relatadas nos versos 507-616. Nos versos 617-721 é descrita a titanomaquia, luta entre Zeus e os titãs pelo domínio do mundo. Auxiliado entre outros por seus irmãos Hades e Posídon, pelos ciclopes e pelos hecatônquiros, Zeus vence os titãs e os prende no Tártaro, descrito juntamente com o mundo subterrâneo nos versos 722-819.
Vencidos os titãs, Zeus teve ainda de enfrentar e vencer o monstruoso Tífon, filho de Gaia e Tártaro (820-880), mas logo depois consegue se tornar o soberano supremo dos deuses. Algumas de suas aventuras com deusas e mortais são descritas nos versos 881-964, e notável é a lenda da filha de Zeus e Métis, Atena, que ao nascer saiu da cabeça de Zeus. Nos versos 965-1020 são descritos os amores entre as deusas e os mortais.
Os dois últimos versos, 1021-1022, contêm uma nova invocação às Musas e ligam a Teogonia a um poema autônomo perdido, o Catálogo das Mulheres, do qual restam apenas alguns fragmentos. Os especialistas atribuem atualmente essa obra a um poeta anônimo do século -VI, e não a Hesíodo.

Manuscritos, edições, traduções

Numerosos manuscritos completos e diversos fragmentos significantes de papiros chegaram até nós. Os mais importantes manuscritos são o Laurentianus 32.16 (1280) e o Laurentianus conv. soppr. 158 (sæc. XIV), da Biblioteca Laurenciana de Florença; o Parisinus suppl. gr. 663 (c. 1200), da Biblioteca Nacional de Paris; o Casanatensis 356 (sæc. XIII/XIV), da Biblioteca Casanatense de Roma; e o Vaticanus gr. 915 (c. 1300), da Biblioteca do Vaticano.
A edição princeps é a Aldina, de 1495. As principais edicões modernas são as de Gaisford (1814/1820), Koechly e Kinkel (1870), a de Rzach (1902), a de Evelyn-White (1914, rev1936) e a de Mazon (1928). As mais utilizadas atualmente são a de Solmsen (1966) e a de Most (2006).
A primeira tradução completa da Teogonia para o português é a de JAA Torrano (1981, reeditada em 1991). Mais recentemente o texto foi traduzido por Pinheiro e Ferreira (2005) e por Christian Werner (2013).

O que é Política


Nietzche e a Filosofia do Martelo


Matou quatro pessoas e foi absolvido por ser rico



Publicado por Luiz Flávio Gomes - 3 dias atrás


O drama do castigo penal (ora barbaramente excessivo, ora escancaradamente leniente) sugere diariamente incontáveis capítulos novos. Vale a pena refletir sobre o tratamento vergonhosamente favorável dado ao jovem Ethan Couch. Ser absolvido de um crime por ser milionário não constitui nenhuma novidade. Que o diga a história da humanidade e da Justiça criminal. Os ricos (especialmente nos sistemas penais burgueses extremamente desiguais) gozam de muitos privilégios, ideologicamente perpetuados nas respectivas culturas. Eles fazem de tudo para não serem nem sequer processados (muito menos condenados).
Beccaria, já em 1764 (no seu famoso livro Dos delitos e das penas), deplorava esse tipo de tratamento desigual. Na época, em relação aos nobres; ele dizia que, sob pena de grande injustiça, os nobres deveriam ser punidos da mesma maneira que os plebeus. A medida da pena, ele afirmava, deve ser o dano causado à sociedade, não a sensibilidade do réu (sua honra, sua fama, sua carreira etc.).
Ethan Couch, um adolescente norte-americano de 16 anos, no Texas, conduzia seu veículo em estado de embriaguez (três vezes acima do permitido) quando matou quatro pessoas num acidente automobilístico. A prisão que seria a reação natural, sobretudo se se tratasse de um jovem negro e pobre. Sendo Ethan de uma família muito rica, a sentença do juiz foi espetacularmente “humanista”. Fundamentação do juiz: “os pais de Ethan sempre lhe deram tudo o que ele queria, e nunca lhe ensinaram que as ações têm consequências. Ocupados com o seu egoísmo e as suas próprias vidas, deixaram-no crescer entregue a si mesmo, sem lhe incutirem bons princípios - um problema típico desse tipo de famílias, segundo o tribunal. O menino foi desculpado, portanto” (expresso. Sapo. Pt/matou-quatro-pessoas-masojuiz-diz-que-naooprende-por-ser-rico=f846069#ixzz2yaUIvs5r).
No Brasil isso já ocorreu incontáveis vezes em relação aos menores ricos (para que destruir o futuro de uma criança ou de um adolescente do “bem”?). E vai ocorrer com mais intensidade se o legislador brasileiro (irresponsavelmente) não resistir à tentação de reduzir a maioridade penal (quando vamos entender que lugar de menores é na escola, não em presídios?). Já hoje praticamente não se vê nenhum menor rico cumprindo a “medida” de “internação”. A Justiça trata os menores milionários de forma diferente; apenas não costumam ser tão explícitos como foi o juiz norte-americano do caso Ethan.
Quando se trata de um pobre, por mínima que seja a infração, a família dele funciona como agravante - mães solteiras, pais ausentes, alcoolismo, dependência, irresponsabilidade, disfuncionalidade; “o menor pobre nasce para o crime”, é atavicamente mórbido etc. Tudo leva o juiz (“imparcial”) a deixá-lo preso (“internado”) um período, para se acalmar. Nem sempre ocorre o programado, mas o sistema penal burguês foi desenhado para discriminar os pobres e marginalizados. O tratamento não é apenas lenientemente desigual em relação ao rico, sim, é desigual da intensidade das sanções contra o pobre. A mesma infração ora é perdoada, ora é punida severamente: tudo depende quem a praticou (essa distinção, extraordinariamente difusa nos países socioeconomicamente muito desiguais, é que era criticada pela sensibilidade de Beccaria).

Luiz Flávio Gomes
Publicado por Luiz Flávio Gomes
Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz...

Quem foi Émile Durkheim


Émile Durkheim

Quem foi Émile Durkheim

Nascido no ano de 1858, Emile Durkheim era descendente de uma família judia e iniciou seus estudos filosóficos na Escola Normal Superior de Paris. Embora sua obra versasse muitas vezes a respeito dos fenômenos religiosos (assim como outros fenômenos com a criminalidade e o suicídio) pensados a partir de fatores sociais e não divinos isso não fez com que ele se afastasse da comunidade judaica.
Ainda que formado em filosofia sua obra inteira mostra-se voltada para a Sociologia, área onde de fato tornou-se amplamente reconhecido. A inexistência do ensino regular de Sociologia na França parecia dever-se ao fato de conceberem que a Sociologia era a forma científica do socialismo. Durkheim decide-se então por ir a Alemanha realizar seus estudos nessa área.
Emile Durkheim é um ícone quando o assunto é Sociologia e o próprio pensamento social. Sendo considerado um dos pais da Sociologia Moderna, Durkheim foi pioneiro também em combinar pesquisa empírica e teoria sociológica, fazendo com que seu nome figure também como fundador da escola francesa. Seu reconhecimento é bastante amplo também dado o prestígio adquirido enquanto teórico do conceito de coesão social.

Durkheim, a consciência coletiva e a

Teoria do Fato Social

Seu principal trabalho envolve a teoria de “consciência coletiva” onde ele busca defender que o homem é na verdade um animal selvagem, e que so pode tornar-se humano a partir do momento em que tornou-se social e sociável, aprendendo hábitos e costumes para poder viver coletivamente. Suas reflexões sobre esse processo de socialização resultam ainda naquilo que hoje é conhecido como teoria do “fato social”.

Uma de suas mais reconhecidas teorias parte da afirmação de que “os fatos sociais devem ser tratados como coisas”. Para Durkheim, a partir disso foi possível conceber uma definição do normal e o patológico em cada sociedade em temos de comportamento social. Dentro disso, fica claro que o normal é aquilo que é obrigatório e normatizado pela sociedade, de modo que a sociedade e os próprios padrões morais configuram-se enquanto uma entidade superior ao individuo.
Suas teses mais importantes e reconhecidas até hoje no campo da Sociologia iniciaram-se no doutorado, com escritos como “Da Divisão Social do Trabalho”. Posteriormente obras como “As regras do método sociológico”, “O suicídio” e “As regras elementares da vida religiosa” surgiram também, sempre muito marcadas pela concepção que Durkheim defendia sobre a vida e os fatos sociais e como estes delineavam o comportamento humano.

A importância de Émile Durkheim para a Sociologia

durkheimDurkheim foi ainda um nome importantíssimo para a constituição da Sociologia e para sua regularização enquanto ciência. Seu legado no campo metodológico com a obra “As regras do métodos sociológico” foram elementares nesse sentidos, uma vez que ele percebeu esse campo como uma ciência de fato e atentou-se para a necessidade do desenvolvimento de uma metodologia única e especifica que fosse respeitada pelos estudiosos desse campo. Através da análise de dados estatísticos e observações de diferentes meios e tipos sociais, os escritos de Emile Durkheim constituíram-se de fato como exemplos de como reflexões, trabalho e monografias da área de Sociologia deveriam ser escritos.
Os escritos de Durkheim são até hoje bibliográfica fundamental para estudos das mais diversas áreas das ciências sociais. Suas teorias são ainda muito atuais e importantes e dentro de sua obra podemos ter contato com o a criação e o desenvolvimento de conceitos caríssimos para a área da sociologia como “fato social” ,“anomia”, “solidariedade”, “coerção” e muitos outros.

Durkheim e as Instituições Sociais

Durkheim apresenta ainda interessantíssimas discussões acerca do que ele denomina instituições sociais. Essas instituições são por exemplo a família, escola, governo, policia, etc. Instituições consideradas conservadoras e que agem de forma a fazer forca contra as mudanças. Assim, Durkheim as aponta como instituições pela manutenção da ordem. Apesar dessa característica claramente conservados desse aparelhos da sociedade, Durkheim parte em defesa dos mesmos,  partindo do pressuposto que os homens necessitam sentir-se seguros e respaldados, e isso é oferecido por essas instituições.
O sociólogo faz essa defesa justamente por acreditar que o homem mantém sua humanidade a partir do momento em que torna-se sociável e que essa vida em sociedade só é possível em um ambiente onde existam regras claras, limites e valores. Caso contrario, ele acredita que os homens estariam entregues a um total estado de desespero . E é justamente a preocupação com esse estado de desespero que o leva a estudar temáticas como criminalidade, suicídio e religião.

Conclusão

É possível concluir que, após tamanho legado deixado em forma de teorias que ajudaram (e ajudam) a entender e a mudar o meio social, Émile Durkheim foi um dos principais protagonistas da Sociologia. Fique atento às próximas publicações neste site, iremos esmiuçar algumas das principais teorias elaboradas pelo pensador, além de continuar a fornecer maiores detalhes sobre quem foi este grande pensador.

Émile Durkheim – Teoria do Fato Social e a Teoria do Suicídio

Émile Durkheim – Teoria do Fato Social e a Teoria do Suicídio


Émile Durkheim e suas duas principais teorias

Enquanto sociólogo, Émile Durkheim é responsável pela formulação de inúmeras teorias estudadas até hoje. Dentre essas algumas merecem grande destaque devido a genialidade de suas observações, a validade metodológica das pesquisas e a complexidade das reflexões suscitadas. Dessa forma, destacaremos aqui duas das mais renomadas teorias deste estudioso: a teoria do fato social e a teoria do suicídio, de modo que possamos conhecer minimamente essas obras. Caso queira conhecer um pouco mais sobre este excepcional pensador não deixe de acessar este link antes de continuar a leitura deste artigo.

Durkheim e a Teoria do Fato Social

No que conhecemos hoje enquanto teoria do fato social, Durkheim parte do princípio de que os homens são animais selvagens, igualmente aos demais, e que aquilo que nos difere, dando-nos humanidade é nossa capacidade de tornarmo-nos sociáveis, ou seja, aprender hábitos e costumes capazes de nos inserir no convívio de determinada sociedade. Ele chama esse processo de aprendizado dessocialização, o que formaria nossa consciência coletiva, nos dando orientações em termos de moral e comportamento nessa vida em sociedade. A todas essas informações ele chamou “fatos sociais”, apontando-os como verdadeiros objetos da sociologia. Nosso comportamento, moral, noção de coletividade e sociedade, e tudo aquilo que aprendemos nesse processo de inserção na vida social.
No entanto, nem toda ação humana configura-se num fato social. Para tanto deve atender a três características apontadas pelo sociólogo: generalidade, exterioridade e coercitividade.
  • Generalidade relaciona-se a existência desse fato para o coletivo social, e não apenas ao individuo.
  • Exterioridade refere-se ao fato de esses padrões culturais serem exteriores ao individuo e independentes de sua consciência.
  • Coercitividade trata da força que esses padrões exercem , obrigando seu cumprimento.
Isso tudo então diz respeito a todo comportamento ou ação que independe da vontade do individuo, e que no entanto não lhe fora imposto de maneira particular. Assim, fato social é toda aquela ação que responde a normas sociais externas e muito anteriores a sua individualidade, vontade e consciência individual.
Desse modo, percebemos que as instituições sociais como a igreja, escola, polícia e etc. apenas servem como um aparelho para a constituição dessa consciência coletiva que mantem a ordem da sociedade. Durkheim aborda também essa questão, o papel dessas instituições na propagação das normas sociais e morais que regem o convívio, e inclusive defende suas ações dentro da sociedade uma vez que ele acreditava que de fato os homens necessitam sentir-se seguros, regidos e amparados, quando isso falta a uma sociedade certos fenômenos surgem com maior força, como por exemplo a criminalidade e o suicídio.

Teoria do Suicídio

suicidioamor1Essa inquietação pode ter sido o que impulsionou Émile Durkheim na criação daquilo que ficou conhecido como teoria do suicídio. Aos longo de seus estudos sobre o tema, o sociólogo busca provar a tese de que o que as estatísticas apresentam é insuficiente para compreender a ocorrência e os níveis de suicídio. Para Durkheim tudo que se tem de informações sobre os suicidas é insuficiente. Aquilo que figura no obituário, por exemplo, trata-se na verdade da opinião que se tem sobre o fato, a opinião de uma pessoa aleatória, de modo que não serve enquanto informação palpável para se compreender o fato.
Sua teoria embasa-se inclusive em observações do âmbito religioso, uma vez que ele percebe que o índice de suicídio entre protestantes é maior do que entre o católicos, independente da região do suicida. Assim, surge uma possível teoria de que há então um menor controle sobre os fieis, controle social que para ele é também o papel da igreja e da religião. Dessa forma ele busca demonstrar como a causa dos índices de suicídio podem ser sociais.
No que se refere ao estudo dessas causas o sociólogo a divide essas causas entre três tipos: egoísta, altruísta e anômico.
  • A compreensão dos motivos egoístas passa pela observação da integração dos indivíduos em sociedades religiosas, politicas e domesticas. Percebe-se que a taxa desuicídios varia inversamente ao nível de integração desses grupos, e quando se da essa desintegração os fins próprios do individuo tomam o lugar dos fins sociais. Para homens nessa situação pouco importa o fim de sua vida visto que ele já não se integra ao seu meio social.
  • A causa altruísta refere a insuficiência de individualização, ocorrendo mais frequentemente naquilo que o sociólogo chama sociedades primitivas, onde os indivíduos estão de tal forma sobrepostos pelo coletivo que por vezes tem o dever de se matar e o fazem, sendo imbuído inclusive de certo sentimento de heroísmo. Dentro dessa causa Durkheim estudo o alto índice de suicídio de militares, devido a sua alta integração em seu meio social e busca por esse heroísmo, no entanto isso não ocorre apenas em prol da pátria, dando-se muitas vezes por motivos banais.
  • Por último trata do suicido de causa anômica, se difere dos demais por dar-seno momento em que o individuo não encontra razão de existência em si ou mesmo exterior e nem mesmo as sociedade em seus diversos mecanismos é capaz de controla-lo. É chamado anômico por ocorrer em situações extremamente fora do comum como uma forte crise que toma o individuo e a sociedade. Dentro desse aspecto Durkheim analisa os índices de suicídio em períodos de grave crise econômica e conclui que tal contexto influi nesses números por serem perturbações da ordem social e coletiva e não necessariamente pelas consequências como pobreza, fomes, etc.
E você, o que acha destas duas teorias? Participe com um comentário, a sua opinião vale muito neste portal!

Tortura e Consciência


05/03/2013

Quando um psicanalista como Calligaris lida com pacientes, ele não se diverte. Mas quando ele lida conosco, supostamente sadios, ele Peter SingerPeter Singertem o direito de se divertir. Ele jogou a isca esperando pegar intelectuais. Não deu outra: Marcelo Coelho, Safatle e, agora, Helio Schwartsman vieram com o beiço caído pelo anzol para o balde de Calligaris. Os dois primeiros procuraram invalidar o exemplo-limite de Calligaris, qualificando-o como artificial. Marcelo Coelho usou uma saída válida: se a proposta é cinematográfica, então eu mudo de canal. Safatle tropeçou no marxismo que, enfim, impede muito filósofo de filosofar: desqualificou toda a filosofia moral que trabalha com o que ele chamou de postura “infantil”, o uso da situação-limite (talvez por isso não tenha citado Calligaris!). Por sua vez, Schwartsman tentou fazer diferente e enfrentar o problema, reconhecendo (como eu já havia feito também) que situações extremadas como a evocada por Calligaris não são ilegítimas, elas são posições filosóficas que talvez possam nos ajudar a resolver dramas da vida real (Debate sobre a tortura revela qão pouco sabemos sobre nós mesmos, Folha de S. Paulo, 03/03/2013).
O que Schwartsman fez pode parecer comum e correto, todavia, tem os problemas detectados por Nietzsche em relação ao que este chamou de “sobretudo burguês” em suas Extemporâneas: quando lidamos com filosofia não temos mais posições nossas, como os gregos faziam, e então vestimos erudição histórica como quem veste um capote com o qual se enfrenta o frio da rua – eis nossa saída moderna. Em parte, é assim que a academia tem ensinado que é a filosofia. Ninguém mais pode ser filósofo uma vez que todos viraram professores de filosofia ou “pesquisadores em filosofia”. Em ambos os casos a tarefa cabível não é enfrentar dramas filosóficos, mas expor o que outros disseram. Estes “outros”, em geral mortos ou estrangeiros, são os que ganharam o título de filósofos exatamente porque não quiseram ficar na condição exclusiva de comentadores, mas que são vistos aqui entre nós como contendo um dom a mais, que nós não poderíamos ter (porque falamos o português – é por isso que não somos deuses-filósofos?).
Também mordi a isca de Calligaris. Mas eu não sou Bill Clinton, se eu fumo maconha eu trago e seu eu faço sexo não é só nas coxas. Muito menos sou Fernando Henrique, eu não experimentei coisas na faculdade, tudo que tenho de experimentar eu só experimento depois da faculdade, na vida mesmo. Tenho mais experiências que experimentos! Sendo assim, fiz o meu texto em resposta ao de Calligaris de um modo que outros talvez não possam fazer, ou seja, de modo corajoso. A coragem é uma virtude do filósofo. Não me coloco como professor, mas como filósofo, por isso tive de aceitar o desafio de Calligaris não mordendo a isca, mas engolindo-a. Afinal, a consulta com o Calligaris é cara e, então, já que ele deu de bandeja uma sessão pública gratuita, eu não poderia perder tal oportunidade. Fui para o divã. Deixar de lado uma promoção dessas seria tolice.
Escrevi então, em resposta a Calligaris (Calligaris, eu torturaria), que a questão toda deve começar por diferenciar ética de moral. Moral nós temos, é impossível viver sem uma. Mas ética é diferente, nem sempre podemos, individualmente, seguir com ela. Nem sempre as regras sociais que expressam o ethos de um povo ao qual pertencemos podem comandar todos os nossos atos individuais, mas nem por isso eles não são nossos mores. Todavia, isso não resolve o problema, pois o modo como Calligaris colocou o drama golpeia a ética e a moral. Vejamos.
Nossa ética não tem como admitir a tortura como alguma coisa legítima. A ética comanda a política e as leis. De forma alguma temos como fazer valer eticamente uma lei que permita a tortura, mesmo que tal prática seja permitida somente ao estado e em situações excepcionais, levada adiante debaixo de vários cuidados médicos e jurídicos. Assim, nesse plano, assumimos a posição de Kant. No entanto, se não somos kantianos e, sim, utilitaristas, podemos usar Mill para dizer que em nome de salvar mais pessoas podemos sacrificar menos pessoas. Ou seja, no “dilema da bomba relógio”, mais ou menos o que Calligaris colocou, se temos que penalizar um culpado para salvar um inocente, a qualidade substitui a quantidade. Assim, que a tortura seja feita. Mas isso resolve as coisas? Claro que não!
De uma maneira ou de outra, o dilema posto por Calligaris não deixa saída para a filosofia moral moderna: se somos kantianos somos pegos pela ética e pela moral: não devemos torturar em hipótese alguma, pois não podemos usar o homem sem tomá-lo como um fim em si mesmo; e se somos utilitaristas somos pegos pelo conflito entre ética e moral. Nesse segundo caso, podemos imaginar que, ficando só no campo moral, optaríamos por torturar o sequestrador, mas então, pela mesma regra, logo ficaríamos tentados a ir para o campo da ética e, então, sugeriríamos transformar nosso ato de exceção em uma lei. Deixaríamos o estado, em nome de um maior número, infringir tortura a um menor número, sendo estes os suspeitos? (culpados eles seriam só depois do julgamento, o que não é o caso). Ora, fica fácil ser adepto de Mill, nesse caso, se não somos nós os que estão sendo torturados, postos na prisão por falsa pista ou falsa acusação, o que não é difícil de ocorrer quando se está querendo encontrar culpados para crimes tomados como bárbaros ou para situações onde o tempo corre de modo perverso.
Bem, mas então vamos ou não torturar o sequestrador do garoto para salvar o garoto que está preso em um lugar cujo ar está se extinguindo?
Coelho, Safatle e Schwartsman não entraram no problema. Cada um deles, por questões de método próprio, procurou fugir da filosofia e, consequentemente, do divã. Eu não. Eu disse claramente que minha moral valeria, e que a ética teria de esperar, se fosse alguém de minhas relações íntimas que estivesse no cativeiro. Eu disse que torturaria não só para obter informações! Talvez eu pudesse torturar também depois de salvar a criança, apenas pelo prazer da vingança. Caso fosse o Pitoko o raptado, aí eu torturaria eternamente. Tendo condições eu faria como fez o marido que prendeu o assassino da esposa uma vida toda, no belíssimo filme argentino O segredo de seus olhos (El Secreto de Sus Ojos , Juan José Campanella, 2009).
Depois da tortura, eu olharia no espelho como os nazistas se olhavam? Ou seja, eu teria aquelas justificativas pouco justificadoras? Por exemplo, a de dizer que sou um soldado convocado ou a de bradar que estou apenas exterminando ratos? Ou eu faria como a maioria dos nazistas fazia, não teria justificativa nenhuma porque espelhos não são pessoas e não pedem justificativas?
Sendo filósofo, mesmo que eu estivesse aparentemente tranquilo após ter barbarizado o sequestrador, eu teria comigo o dilema de Sócrates: como viver sob o mesmo teto que abriga um torturador? Afinal, como diz Sócrates no Hipias Maior, e bem notado por Hannah Arendt em A vida do Espírito, o problema todo é voltar para casa e encontrar lá, morando com você, alguém que faz coisas terríveis. Tenho de morar comigo mesmo, o torturador, e, nesse caso, conversar com ele, pedir conselhos, fazer perguntas e seguir suas respostas! Ora, meu interlocutor era uma pessoa sem ações tão selvagens nas costas até então e, agora, tendo se transformado em um terrível torturador, poderia continuar sendo amigo, sendo um conselheiro? Eu não iria me dar mal não? Como ficar com tal pessoa em casa, inclusive na mesma cama? (no mesmo corpo!). Eu poderia não ser vítima da facada literal desse torturador, mas será que seus conselhos, daí por diante, não me poriam numa fria?
Há duas observações aqui, que valem a pena ser retomadas. Uma é a do Coringa representado por Heath Ledger no Batman, o Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, Christopher Nolan, 2008), e que é mais ou menos a mesma do meu amigo também já falecido, o filósofo norte-americano Richard Rorty: as pessoas são solidárias enquanto estão em bonança e calmaria, mas em situações difíceis viram bestas que se devoram, poupando outras somente segundo um grau decrescente em uma onda circular indo do centro para a periferia. Desse modo, eu até poderia não usar da tortura caso a criança presa não fosse “um dos nossos”, considerando aí o “nossos” segundo círculos de proximidade: filhos e esposa, família, amigos, compatriotas, terrestres etc. Mas sendo o sequestrado “um dos nossos”, o que determinaria mesmo a opção minha pela tortura viria da consideração do círculo. O círculo chamado “filhos e esposa” ou mesmo “família” seria, certamente, aquele pelo qual não somente eu, nessa nossa sociedade, torturaria alguém.
Haveria chance de salvar aqueles filósofos que louvaram a natureza humana (1) como sendo próxima da dos anjos, mesmo quando estamos em um clima de alta pressão? Para um filósofo pragmatista, em geral adepto de éticas consequencialistas, posso pensar de modo semelhante ao que o filósofo Peter Singer fez com o “caso do terrorista”. Em uma palestra em Michigan, ele foi perguntado por um estudante sobre se poderíamos ou não torturar, com alguma legitimidade, um terrorista que teria colocado uma bomba em Manhattan, tentando assim descobrir o local da bomba e desarmá-la. Resumindo ao máximo, sua resposta foi a seguinte: temos de separar ficção de realidade, temos leis que proíbem a tortura porque se não for assim haverá certamente danos a inocentes sem que ninguém seja responsabilizado por isso, mas, se a situação ficcional é a real mesmo, como filósofo ou professor de filosofia eu direi a você para quebrar as regras, torturar o terrorista e salvar Manhattan, mas deve fazer tudo isso sabendo muito bem das consequências. Caso a informação sobre a bomba seja verídica você será um herói e a questão da tortura não será evocada ou, se evocada, não o levará a receber punições. No entanto, caso seja falsa, você terá de arcar com responsabilidades que surgirão e várias pessoas, inclusive as da lei, irão querer punir você.
Creio que posso pensar como Singer, principalmente se eu acrescento o modo como Rorty dissertou sobre os círculos segundo os quais alguém pode ser tomado ou não como “um dos nossos”. Creio que essa posição pode não definir, logo de início, uma ética, mas define uma moral, sem a qual viveríamos, realmente, amedrontados por aquele homem que assombrava Sócrates, aquele que, tendo se transformado em uma pessoa terrível, ainda iria morar na casa dele.
Como é a costura que faço então, entre Singer, Rorty e os meus propósitos?
Em Pragmatismo e política (Martins, 2005), há textos de Richard Rorty que traduzi e que me ajudam a resolver o meu medo que, enfim, se aproxima ao de Sócrates, uma vez que eu sei que posso torturar alguém. Trata-se da ideia de não definir o que é moral e eticamente legítimo ou não, definindo então a justiça, como alguma coisa “menos ou mais racional”. A ideia básica é não criar uma contraposição estanque entre a justiça (as regras éticas que podem ser “leis para todos”, sendo assim, expressão da razão) e a lealdade (as regras morais que dizem que temos de proteger primeiro “os nossos”, e que podem ser tomadas não como expressão da razão, mas dos sentimentos). O que digo é que, assim pensando, levo em conta o que me é caro, a moral da lealdade. Afinal, para todos nós essa moral é cara. Ficamos com ela em situação de pressão. Mas não precisamos tomar essa lealdade como o que negaria a justiça. Pois, enfim, poderíamos pensar como “nossos” não só a criança sequestrada, ou a população de Manhanttan. Temos a capacidade de ir ampliando os círculos de lealdade e, mesmo sob pressão, imaginarmos círculos bastante amplos que incluam até mesmo o próprio sequestrador. De certo modo é isso que fazemos quando nos damos conta de que dificilmente poderemos ter certeza de que não estamos torturando um inocente. Fazemos isso quando a ficção criada não é a posta por Calligaris, motivada pelo filme A hora mais escura (Zero Dark Thirty, Cathrin Bigelow, 2012), mas aquela de O suspeito (Rendition, Gavin Hood, 2007).
Esse filme, também baseado em fatos reais, mostra uma esposa americana, casada com um homem de nome árabe, desesperada ao ver seu marido desaparecer na volta de uma conferência na África. No filme, ao final o inocente é solto por meio de uma decisão pessoal de um agente da CIA, que resolve bancar o feito contra a própria organização e a partir de suas conjecturas. Em um determinado momento, o agente da CIA, interpretado por Jake Gyllenhaal, começa a ampliar o seu círculo de “nossos”, ao se imiscuir na vida do prisioneiro torturado. Também nós que estamos vendo o filme tendemos a nos deslocar em favor do torturado não só pela sua dor e inocência, mas pela maneira como o enredo nos mostra que ele é muito mais “um dos nossos” do que poderíamos imaginar ao vermos a peregrinação da esposa. À medida que a esposa bate de frente com pessoas do governo que se dizem defensores da justiça e do “interesse de todos”, vamos ficando sozinhos na cadeira do cinema como ela está sozinha em sua procura, se sentindo abandonada por todos aqueles que ela pensava ser “um dos nossos”, as autoridades americanas. Sua lealdade para com todos os americanos, e inclusive para com a questão da segurança da nação, não diminui, mas ela (e nós) percebe que ou o círculo dos “nossos” se amplia ou não se terá nenhuma justiça. Enfim, a justiça não pode ser outra coisa senão a ampliação dos círculos de lealdade, até caber aquele que é torturado. Não há nenhuma regra kantiana aí. Nem há utilitarismo. Mas há um tipo de consequencialismo citado por Singer e definido por Rorty. A justiça, a regra para a nação, mesmo em situações extremas, não precisa se opor à lealdade que temos para com “os nossos”. O problema todo é o de ver como que a justiça pertence ao espectro da lealdade, não sendo um elemento de oposição a ele.
Volto então ao drama da bomba relógio, de Calligaris, ou melhor, ao drama da criança que vai morrer asfixiada enquanto eu tenho, nas mãos, o sequestrador. Devo ou não torturá-lo? Dado que Marcelo Coelho, Safatle e até mesmo Schwartsman correram para casa, dizendo que o sequestro não era problema deles, tudo sobrou em minhas mãos. Estou somente eu e o sequestrador, e ele está amarrado em minha frente, disponível. Ora, posso imaginar que ele seja inocente e vê-lo, assim, no círculo que cabe “um dos nossos”. Posso ter certeza de que ele é o sequestrador, mas ainda assim, vê-lo como “dos nossos”, pois não é difícil imaginá-lo como uma boa pessoa em sua cidade, alguém que também tem filhos e que os ama, e que tais filhos o estão esperando. Posso apelar verbalmente a ele, de modo que ele também pense empaticamente, mesmo que um de seus filhos tenha sido morto pelo meu povo. Mesmo sob a pressão do tempo, isso poderia fazer efeito, tanto quanto a tortura – é uma incógnita a essa altura da situação saber, de antemão, “o que faz efeito”. Caso nada surta efeito, e eu vá decidir pela tortura porque o tempo está se acabando, devo saber que isso não anulará da minha consciência, mesmo depois, a consequência: darei um passo sem volta, dali para diante serei um torturador, sendo ou não herói, depois, aos olhos de muitos. Em outras palavras: minha vitória será a minha derrota, pois, ao final, tornar-me-ei senão um covarde, ao menos uma pessoa que se aproveitou da fraqueza do outro. Caso isso não pese, pesará sobre mim a questão de saber se não terei ali adquirido o que disse, aqui mesmo, já possuir: o desejo de torturar o sequestrador mesmo depois de salvar a criança, principalmente se o sequestrado for o Pitoko (meu cachorro, que é meu filho). É o peso dessas consequências, bem medidos, que me dará as chances de ver a lealdade se abrir menos ou mais de modo que a justiça possa ser vista como alguma coisa que não lhe é oposta.
© 2013 Paulo Ghiraldelli Jr. filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
(1) A expressão “natureza humana” é tomada aqui como peça do linguajar comum, e não como uma expressão de quem não compartilha a posição de que não vale a pena uma teoria sobre a natureza humana. Nesse caso específico, explicado isso, o leitor não deve estranhar vê-la na boca de um pragmatista.

Um filósofo imaginativo: o legado de W. V. Quine





Wilard van Orman Quine, o deão dos filósofos americanos, morreu aos 92 anos no dia de Natal. Exatamente a cinqüenta anos antes, em dezembro de 1950, ele leu um paper na Divisão Leste da Associação Filosófica Americana que fez a audiência girar nos calcanhares. “Dois dogmas do empirismo”, publicado no ano seguinte, tornou-se o artigo mais discutido e mais influente da história do século XX na filosofia anglófona. Poucas coisas de tamanha brevidade tiveram tal impacto no curso do pensamento filosófico. É um modelo de argumentação convincente e sucinta, um bom exemplo da elegância da prosa de Quine. Mas é, acima de tudo, um atalho imaginativo. Nele, Quine levantou uma nova e disposta forma da questão sobre a relação entre filosofia e investigação empírica.


Em “Dois Dogmas”, Quine questionou a distinção entre verdades necessárias e contingentes. A investigação empírica produz verdades do último tipo – afirmações que podem, em princípio, ser rescindidas à luz de outras observações ou experimentos (“Esquilos não hibernam” e “E=mc2”, por exemplo). A filosofia, Platão e Aristóteles nos ensinaram, deveria produzir verdades necessárias, exatamente como a matemática. Rudolf Carnap, mentor de Quine, e seus colegas ligados ao empirismo lógico (como Bertrand Russell e A. J. Ayer) concordavam com isso. Mas, eles diziam, verdades necessárias são verdades “analíticas” – enunciados que nada nos conta sobre a realidade, mas simplesmente refletem convenções lingüísticas. “Dois mais dois são quatro” é tornado verdadeiro pelo significado do “dois” e do “quatro” e do “mais”, tanto quanto “Todos os solteiros são não casados” é tornado verdadeiro pelos significados de seus termos componentes.


A filosofia, os empiristas lógicos concluíram, não deveria tentar nos contar algo sobre a natureza das coisas. Deveria confinar-se à clarificação dos significados de enunciados e exibir o que Carnap chamou de “a sintaxe lógica da linguagem”.


Até meados do século, muitos filósofos assumiram a oposição entre aquela visão modesta da filosofia e a visão mais velha, mais ambiciosa, como um resumo do contraste entre Carnap, um homem decente perfeitamente dentro da perspectiva da esquerda política, e Martin Heidegger, um ex-nazista megalomaníaco que punha questões como “O que é o Ser?” sem se importar em tornar claro como ele saberia se havia dado a resposta correta. Carnap queria filósofos para tornar seus critérios de êxito explícitos e, portanto, imitadores da honestidade intelectual dos investigadores empíricos. Heidegger tinha considerável desprezo pelas ciências naturais e pela lógica matemática desenvolvidas por Russell e outros, aquilo que Carnap viu como um indispensável instrumento do bom trabalho filosófico.


Quine, um jovem brilhante, que havia feito contribuições para a um tipo de lógica, tinha ido a Praga em 1933 para trabalhar com Carnap. Poucos anos depois, ajudou Carnap e seus amigos imigrantes a encontrar empregos nos Estados Unidos (o que rendeu um inestimável serviço à vida acadêmica americana). Assim, era natural esperar que sua fala em 1950 (em um simpósio “Tendências recentes da filosofia”) seria um manifesto do empirismo lógico. Ao invés disso, Quine veio a público com dúvidas com as quais ele havia pressionado Carnap, privadamente, por anos. Não há, Quine disse, nenhum teste para determinar onde termina o apelo à realidade empírica e onde começa o apelo às relações entre idéias, aos significados das palavras. Certamente, não há nenhum bom modo de classificar as verdades em necessárias e contingentes. Em lugar do antigo dualismo, ele sugeriu, deveríamos visualizar um espectro contínuo de crenças, aquelas que não poderíamos imaginar como sendo abandonadas e aquelas que poderíamos facilmente imaginar como desconfirmadas por observações futuras.


Muito influenciado por seu amigo B.F.Skinner, Quine estava preparado para traçar uma linha entre fato e linguagem – entre apelo à experiência sensível e apelo ao conhecimento de significados – unicamente se tal linha fosse traçada na base da observação do comportamento lingüístico. Mas, ele indicou, não há qualquer teste por meio do qual um lingüista aprendiz de uma nova linguagem pode contar como apelo que os nativos estão produzindo, quando estes lidam com a verdade de certas sentenças como incontroversas. Assim, os “Dois dogmas” virou o lado empirista do empirismo lógico contra o seu lado lógico. “Para todos os seus razoáveis a priori”, Quine disse, “uma fronteira entre enunciados analíticos e sintéticos [isto é, empiricamente confirmado e desconfirmado] simplesmente não havia sido traçada. Que tal distinção pode ser, em absoluto, traçada, é um dogma não empírico dos empiristas, uma artigo metafísico de fé”.


“Dois dogmas” levantou a questão: “como podemos ter filosofia analítica, o tipo de filosofia que Carnap e ele próprio, Quine, queriam fazer, se não havia nenhuma coisa tal como verdades analíticas? O golpe de Quine não somente lançou dúvidas sobre uma distinção que tinha parecido óbvia a Platão, Aristóteles, David Hume e Immanuel Kant, mas também pareceu frustrar a esperança recém adquirida de que filósofos pudessem alcançar resultados úteis, permanentes de uma vez por todas.


Quine compartilhou o costumeiro desgosto anglófone por Heidegger, e ele obviamente não quis trazer de volta o tipo de metafísica especulativa que tinha sido produzida, por exemplo, por F.H. Bradley e A. N. Whitehead. Mas ele não ofereceu um programa metafilosófico para substituir aquele que Russell e Carnap haviam levado adiante. Antes, ele simplesmente instigou os filósofos a trazer a filosofia para o contato com a ciência empírica. Tratava-se de estancar a tentação por verdades necessárias e, ao invés, incentivar a busca de modos claros de arrumar o material fornecido pelas ciências naturais. Ele visualizou, por exemplo, um futuro em que a epistemologia, o estudo filosófico do conhecimento, poderia ser “naturalizado”e, então, absorvido no que, agora, podemos chamar de “ciência cognitiva”. Este tipo de colaboração com a investigação empírica que, agora, parece a muitos dos filósofos anglófonos como o melhor modo de fazer avançar a sua disciplina.


Tal visão do seu papel cultural torna-os motivados a mover a filosofia para fora das humanidades e dar menos ênfase, do que no passado, na familiarização dos estudantes com os escritos dos filósofos mortos. Quine uma vez disse, satiricamente, que há dois tipos de pessoas que se tornam professores de filosofia: aqueles que estão interessados em filosofia e aqueles que estão interessados em história da filosofia. Quando seus colegas de Harvard (onde ele ensinou durante toda sua carreira) tentaram ganhá-lo para ensinar matérias históricas, ele resistiu. Uma vez ele deu um curso sobre Hume, mas observou em sua autobiografia de 1985, O tempo da minha vida, que “determinar o que Hume pensava e transmiti-lo aos estudantes era menos atrativo do que determinar a verdade e transmiti-la.” Sua observação fez eco a uma outra, supostamente dita por Carnap, quando foi solicitado a dar um curso sobre Platão: “Não ensinarei Platão. Não ensino nada, exceto a verdade”.


A tentativa feita por filósofos analíticos de deixarem a vizinhança dos departamentos de história e de literatura e se moverem para mais próximo dos laboratórios científicos contribuiu para a divisão analítico-continental dentro da disciplina. Em países não anglófonos, a repugnância a Heidegger é animadamente admitida, mas ele é, todavia, considerado por muitos professores de filosofia como o mais importante pensador do século XX. Essa opinião é compartilhada por bem poucos professores de literatura, teoria política e história intelectual americanos e britânicos – pessoas que não podem ver muito o que é a questão dos filósofos analíticos, e que suspeitam que a filosofia anglófona tem se tornado excessivamente técnica e intelectualmente estéril. A acusação de esterilidade, contudo, é injusta. Ao contrário, o desafio de Quine a Carnap (junto com os desafios complementares oferecidos por Thomas Kuhn e Ludwig Wittgenstein) abriu a porta para uma série toda de reconsiderações originais e frutíferas das abordagens tradicionais das relações entre linguagem e realidade, entre conhecimento e experiência dos sentidos, entre ciência e filosofia. Tais reconsiderações levantaram dúvidas concernentes à convicção, mantida por Quine, de que a ciência natural é a área da cultura em que a verdade sobre a realidade é mais clara e obviamente alcançada e na qual a racionalidade está mais claramente em evidência. Muitos filósofos que reconhecem um profundo débito para com Quine, se tornaram menos ávidos pelo prazer com as assim chamadas ciências duras enquanto paradigmas do conhecimento. À medida que Quine afirmou, de modo célebre, que “a filosofia da ciência é o suficiente em filosofia”, esses pensadores neo-quineanos se tornaram mais motivados a ver a investigação científica com menos diferença do resto da cultura do que Quine a havia tomado.


Quine nunca se desviou da afirmação de que os vocabulários da lógica e das ciências físicas, propriamente regidos pela filosofia, podiam revelar o que ele chamou de “a verdadeira e última estrutura da realidade”. Mas, muitos dos filósofos analíticos contemporâneos concordam com Nelson Goodman, um colega de Quine no departamento de filosofia de Harvard, que não existe tal estrutura – que não há, como Goodman colocou, qualquer modo de como o mundo é, mas há meramente várias descrições alternativas dele. Algumas descrições são úteis para certos propósitos, outras para outros propósitos, mas nenhuma deles está mais próxima ou mais distante do modo da realidade. A visão de Goodman é reminiscente da abordagem de John Dewey e, em particular, à motivação de Dewey em negligenciar as questões sobre a relação do pensamento com a realidade, no sentido de se concentrar sobre a utilidade pragmática dos modos alternativos de pensamento.


Muitos dos melhores estudantes de Quine (como Donald Davidson) e muitos de seus mais fervorosos admiradores (como Hilary Putnam) tentaram argumentar com Quine no sentido dele abandonar ou suavizar seu cientificismo, mas sem qualquer êxito. A doutrina de que enunciados sobre crenças e desejos humanos não representam qualquer coisa real, ao passo que enunciados sobre estrelas e moléculas representam, permaneceu central no pensamento de Quine. Davidson, Putnam e outros gastaram muitos anos tentando estender e radicalizar a visão de Quine, apontando para aparentes inconsistências e falhas em seu pensamento, criticando-o implicitamente (e em certas ocasiões, explicitamente) por não apreciar as implicações de seu próprio progresso. Deve-se crédito a Quine e a tais outros pelo fato de tais críticas, que foram certamente bem profundas, nunca terem conduzido a antagonismos pessoais ou a uma rachadura na filosofia analítica, criando duas escolas filosóficas. Ao contrário, o respeito, criado por um profundo sentido de gratidão, que Quine mostrou a Carnap, mesmo quando ele fez seu melhor demolindo algumas das mais queridas crenças de Carnap, foi equivalente à honra merecidamente paga a Quine por aqueles que tentaram demolir algumas de suas crenças.


A relação entre Quine e Davidson era particularmente próxima, e Davidson, ainda produzindo idéias originais e provocativas no ano de 1983, herdou a posição de deão de Quine. Davidson resumiu sua radicalização das dúvidas de Quine sobre a distinção entre linguagem e fato dizendo que “temos apagado a fronteira entre conhecer uma linguagem e conhecer o mundo ao nosso redor, em geral (...) Concluo que não há uma tal coisa como a linguagem, não se a linguagem é algo como o que muitos filósofos e lingüistas tem sustentado. Não há, portanto, nenhuma tal coisa a ser aprendida, controlada, ou inata. Devemos abandonar a idéia de uma estrutura claramente definida compartilhada, que usuários da linguagem adquirem e então a aplica a casos”.

O hiper quineanismo de Davidson não somente ofende Noam Chomsky (que considera tal coisa como um dogmatismo a priori, exibindo desprezo por lingüistas empíricos), mas causa consternação entre aqueles que pensam que a filosofia analítica iria à bancarrota se não pudesse estudar precisamente aquele tipo de estrutura lingüística compartilhada, definida claramente, que Davidson pensa que não existe. Essa posição de Davidson também não lembraria o próprio Quine. Quando Davidson sugeriu que lançássemos fora não somente a distinção analítico-sintética, mas todo resíduo da velha distinção lockeana-kantiana entre o caos fornecido pelos sentidos e a mente organizadora que torna o caos com sentido, Quine afundou nos calcanhares.


Em seu artigo de 1974 “Sobre toda idéia de um esquema conceitual”, Davidson incitou a se colocar de lado a distinção entre conceitos e dados sensórios, como aquela distinção entre nossos esquemas conceituais e o mundo não conceitualizado ao qual os esquemas são aplicados: “[o] dualismo esquema e conteúdo, o de um sistema organizador e algo esperando para ser organizado, não pode tornar-se inteligível e defensável.Ele próprio é um dogma do empirismo, o terceiro dogma. Uma terceiro, e talvez o último, pois se o abandonamos, então não mais é claro que há alguma coisa distinta a ser chamada de empirismo”.


Quine respondeu, em um ensaio bem humoradamente intitulado “A idéia toda de um terceiro dogma” (incluído em seu livro de 1981, Teorias e coisas), que o empirismo é muito importante para ser abandonado. Se o empirismo acabasse, Quine pensava, então assim também ocorreria com o projeto de naturalização da epistemologia – o de mostrar como os seres humanos sempre modelam mais quadros acurados do mundo na base de míseros imputs fornecidos pelos órgãos dos sentidos. A esperança de Quine nesse projeto, e para a confluência resultante de filosofia e investigação empírica, repousava na sua convicção de que o serviço da filosofia é servir de criada da ciência natural.


Na perspective de Davidson, contudo, as ciências duras não são assim tão especiais: ele está menos convicto do que Quine de que enunciados sobre partículas elementares estão mais proximamente relacionadas à realidade do que enunciados sobre valores morais e estéticos. Empirismo, sendo meramente a desajeitada tentativa de Locke de encontrar uma filosofia que se harmonizaria com a mecânica corpuscular de Boyle e Newton, talvez pudesse se permitir secar de uma vez.


Se amanhã os filósofos analíticos revoarem sob a liderança de Davidson, e se concordarem com Putnam sobre o cientificismo como tendo sido uma má influência sobre o pensamento filosófico do século XX, então a filosofia analítica terá se metamorfoseado em algo que Russell e Carnap teriam dificuldade em reconhecer. Historiadores da filosofia do século XX, provavelmente, estão aptos a identificar “Os dois dogmas” como o início dessa transformação, mas podem pensar sobre Quine como desmotivado para cruzar a terra que seus discípulos foram colonizar.


Se tal transformação ocorresse, haveria alguma chance (admitidamente fraca) de um fim ao que é, ainda, a bem azeda e contenciosa discordância sobre o papel da filosofia na cultura, o que divide filósofos analíticos e não analíticos. Os primeiros, tipicamente não enxergam a questão de Heidegger. Os últimos, que ainda dominam a profissão de filósofo na maior parte dos países anglófonos, pensam (como eu) que há muito a ser aprendido dele. A maioria dos filósofos não analíticos não considera as ciências como um modelo apropriado para a filosofia. Eles gostariam de manter a filosofia dentro das humanidades. Embora não compartilhem o desprezo de Heidegger pela ciência natural, eles acham que sua importância é super estimada pelos seus colegas analíticos.


Filósofos exteriores à tradição analítica, gastam a maior parte do tempo pensando, de um modo típico, sobre a história intelectual antes do que sobre ciência natural. Alguns de seus livros favoritos são narrativas abrangentes das histórias das idéias, histórias sobre como a Europa pensou, dos gregos até hoje. Estas são o tipo de histórias contadas, por exemplo, por Hegel, Nietzsche (no Nascimento da Tragédia), Heidegger, Hans Blumenger e Jurgen Habermas (em O discurso filosófico da modernidade). Lendo e escrevendo livros desse tipo, eles criam uma espécie bem diferente de ambiente intelectual daquele ligado aos estudos de artigos relativamente curtos, eficazes, de Quine, Davidson e Putnam e seus admiradores. Filósofos não analíticos premiam virtudes intelectuais como a ressonância histórica e a visão sinótica tanto quanto a acuidade argumentativa.


Deveria haver um espaço dentro de uma disciplina singular para ambos os tipos de pensamento e escritas. Infelizmente, muitos dos filósofos analíticos ainda têm o mesmo tipo de dúvida sobre seus colegas não analíticos que Carnap tinha sobre Heidegger em 1930. Suspeitam de seus colegas não analíticos como sendo frívolos, irracionalistas e moralmente dúbios para argumentar a partir de premissas enunciadas bem claramente até chegar a conclusões estabelecidas claramente.


Muitos dos filósofos não analíticos retaliam, então, com igual e infeliz acusação de decadente escolasticismo. Eles vêem os problemas para os quais os filósofos analíticos afirmam oferecer soluções como artefatos frágeis, periodicamente descartáveis e substituídos tanto quanto a fome analítica de uma geração ameaça a outra posta abaixo. Filósofos não-anglófonos com dificuldade de familiarizarem-se com a tradição analítica, algumas vezes zombam do fato dos filósofos de língua inglesa terem gasto cinqüenta anos, antes de o “Dois Dogmas”, marchando até o pico de saída da toupeira – e terem gasto mais cinqüenta marchando de volta.


Tal desprezo está tão equivocado quanto os muitos daqueles arremessados pelos filósofos analíticos. Os críticos não percebem que Quine abriu uma porta que levou a um mundo intelectual mais amplo. Insistindo que a filosofia poderia permanecer fiel ao espírito e aos resultados da ciência moderna – e ao mesmo tempo repudiando os dualismos herdados de Platão, Aristóteles, Hume e Kant –, ele abriu novos caminhos filosóficos. Tornou possível aos seus alunos irem a lugares que ninguém sabia que existiam. Ainda que a importância de “Dois dogmas” nunca venha a ser imediatamente evidente ao leigo (algo a mais do que a importância da Crítica da razão pura, de Kant), a maioria daqueles que fazem a leitura do background requisitado para se entender o desígnio contra o qual Quine estava reagindo, suspirarão de admiração diante do poder de sua imaginação esplendidamente iconoclasta.


A filosofia faz avanços, mas não de um modo linear. Ao contrário, o progresso é feito em várias e diferentes frentes ao mesmo tempo, esporadicamente. Leva tempo para que qualquer iniciativa seja consolidada, e mais tempo para que ela seja integrada com outras iniciativas. Nós, filósofos, estamos ainda deliberando não somente sobre que moral deveríamos tirar de “Dois dogmas”, mas quais lições podem ser aprendidas da Fenomenologia do Espírito, de Hegel. Em um livro recente, Articulating reasons, o filósofo da linguagem Robert Brandom faz bom uso tanto de Hegel quanto de Quine. Não acho (e aqui eu discordo de muitos de meus colegas filósofos) que o progresso é tipicamente feito pelo exame cuidadoso e rigoroso das implicações de argumentos alternativos. Ocasionalmente sim, mas mais freqüentemente é o resultado de alguém como Quine expondo o que Hegel teria chamado de contradição implícita no coração da sabedoria convencional, encarando como as coisas se pareceriam se uma distinção que parece intuitiva e de senso comum fosse colocada de lado, desarranjando todas as peças do tabuleiro. “Dois dogmas”, como observei acima, exibe grande habilidade argumentativa tanto quanto enorme poder imaginativo. Mas o último faz a maior parte do trabalho.


Esse é o tipo de poder, o extraordinário dos dons intelectuais, que é encontrado tanto em filósofos como Wittgenstein, Quine, Sellars e Davidson quanto em filósofos como Nietzsche, Dewey, Bergson, Heidegger e Derrida. O que tais figuras têm em comum – a habilidade de visualizar alternativas que ninguém mais havia vislumbrado – é de longe mais importante do que qualquer diferenças entre eles. Assim (para tirar a conclusão contra a qual Quine provavelmente resistiria com toda sua força) seria uma coisa boa se os estudantes de filosofia em todos os países fossem encorajados a estudar ambos os tipos de filosofia do século XX.


2001 © Richard Rorty
Trad. Paulo Ghiraldelli Jr.
Obituário de Quine: Chronicle of Higher Education
Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA)