terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Boa-fé objetiva e o combate à lesão contratual

George Newton Cysne Frota Junior[1]
Prof. José Vander Tomaz Chaves[2]

RESUMO

O presente trabalho busca formular uma análise bibliográfica sobre a inclusão da boa-fé objetiva e o retorno do instituto da lesão no atual Código Civil, relacionando ambos os institutos e sua implicação no Direito Contratual.
O artigo inicia com o tratamento do novo paradigma das relações contratuais no Estado Democrático de Direito para, num segundo tópico, versar acerca dos princípios norteadores de Direito Contratual, dedicando maior esmero à boa-fé objetiva. Logo em seguida, serão analisados os vícios de consentimento, especificamente o instituto da lesão para, na sequência, avaliar a sua consequência sobre a boa-fé esperada nas relações contratuais.
Palavras-chave: Boa-fé objetiva. Contratos. Lesão. Princípios.

ABSTRACT

This work makes a bibliographical analysis about the inclusion of the objective good-faith and the return of the institute of the injury in the present Civil Code, to relate them and their consequences in the Contractual Right. First, it is analyzed the treatment of the new paradigm in the contractual relations of the Democratic State of Right for, in following, to know the principles of Contractual Right, dedicating bigger care to the objective good-faith. Immediately afterwards, the assent vices will be analyzed, specifically the institute of the injury for, in the sequence, to evaluate how it hurts the good-faith of the contractual relations.
Keywords: Objective good-faith. Contracts. Injury. Principles.

Introdução

Um ordenamento jurídico pode ser mais solidarista ou individualista, conforme o espírito cultural de cada povo. O apego ao formalismo e à literalidade pode tornar o Direito, aquele que deve amparar a Justiça, coisa diversa do justo. O exercício da influência do Estado nas relações entre particulares deve, rigorosamente, ser mensurado e criticado, a fim de que se construa uma efetiva evolução e dinamicidade da ordem jurídica. É nisso que se justifica o presente estudo.
Os princípios libertários surgidos no contexto da Revolução Francesa defendem um Estado não interventor, o qual garantisse aos homens o direito de se auto-regulamentarem. Sair da ótica individualista, porém, voltando-se para uma visão solidarista que ampara o elo mais fraco quando prejudicado é o novo paradigma do Direito Contratual.
O presente trabalho busca trazer uma análise bibliográfica sobre a inclusão da boa-fé objetiva e o retorno do instituto da lesão no novo Código Civil, relacionar ambos os institutos e sua implicação no Direito Contratual. Busca-se, ainda, esclarecer qual o papel do instituto de lesão no Direito Civil e no que ele atinge o princípio da boa-fé objetiva.
A metodologia empregada foi a de proceder a uma revisão bibliográfica acerca da boa-fé objetiva e do instituto da lesão em seus contextos históricos, assim como da legislação e jurisprudência correlatas.
Inicialmente, será abordado o novo paradigma nas relações contratuais no Estado Democrático de Direito para, num segundo tópico, conhecerem-se os princípios norteadores de Direito Contratual, dedicando maior esmero à boa-fé objetiva. Logo em seguida, serão analisados os vícios de consentimento, especificamente o instituto da lesão para, na sequência, possibilitar a verificação do quanto este agride a boa-fé esperada nas relações contratuais, ao que se seguem as conclusões colhidas.

1) Código Civil de 2002: um novo paradigma nas relações contratuais

O Direito Civil é o Direito comum, o que rege as relações entre os particulares. Seu círculo de influência abrange desde a concepção até após a morte das pessoas. As pilastras que sustentam a Disciplina Cível remontam ao Direito Romano e, no referente a contratos, o instituto se fazia necessário para garantir segurança na circulação de riquezas. Segundo Caio Mário (2007, v. III, p. 11-12):
Enquanto o indivíduo admitiu a possibilidade de obter o necessário pela violência, não pôde apurar o senso ético, que somente veio ganhar maior amplitude quando o contrato o convenceu das excelências de observar normas de comportamento na consecução do desejado.
Como preleciona Agerson Tabosa, o Direito Romano, antes fechado ao mercado externo, passou, posteriormente, a disciplinar as relações com os estrangeiros, Jus Gentium, o que comprova o interesse romano em regulamentar a circulação de riquezas para poder ampliar seus negócios. Segundo o autor, “Roma sentiu necessidade de abrir as suas portas ao mercado exterior, a fim de vender seus excedentes de produção e expandir seu imperialismo” (2007, p. 25).
O Direito Antigo era caracterizado pelo formalismo, conservadorismo e inflexibilidade. Pode-se exemplificar esse período, referindo-se ao jurisconsulto Gaio, transcrito por Agerson Tabosa:
[...] perdia a ação quem, agindo por causa de videiras cortadas, mencionava videiras, pois a Lei das XII tábuas, na qual se fundava a ação, falava de árvores cortadas em geral (2007, p. 24)
Já se pode extrair uma lição desse período: o apego ao formalismo e à literalidade pode tornar o Direito, aquele que deve amparar a Justiça, coisa diversa do justo. Deve o Direito rastrear, valendo-se de todo o seu aparato, o que é jurídico – aquele direito que na relação realmente é conferida às partes; alinhando-o ao que é judicial – aquilo que o juiz, em face dos fatos e das provas, decide no caso concreto.
O Código Civil de 1916 recebeu direta influência do Direito Romano. Este, em seu início, caracterizava-se, segundo Agerson Tabosa (2007, p.18), pelo a) Individualismo, b) Positivismo e c) Conservadorismo.
O projeto da Obra Civil de 1916 é de autoria de Clóvis Beviláqua, reconhecido pandectista que espelhou esta visão romanista do direito, pautada no indivíduo. Nossa matéria cível, contudo, recebe também influência, principalmente no novel Código, do BGB – Código Civil Alemão, com caráter social.

1.1) Contratos: Definição e etimologia

Preleciona Agerson Tabosa que os contratos são de grande importância como fonte de obrigações, assim como os delitos na seara penal. Contrato vem de Contráhere: contrair, sugerindo constrangimento, coerção. Contráhere deriva de cum + tráher, que significa arrastar com. Segundo aquele autor, “contrato, em Direito Romano, é acordo formal e expresso de vontade, sobre determinado objeto, destinado a criar obrigações civis”(2007, p. 279)
Não possui a mesma conotação atual, sendo mais flexível e amplo contemporaneamente. A doutrina traz o conceito de contrato sem muitas divergências. Vejamos.
Para Caio Mário, “um acordo de vontades, na conformidade da lei, e com a finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos” (2007, v. III, p. 7).
Segundo lição de Fabio Ulhoa Coelho, “Contrato é o negócio jurídico bilateral ou plurilateral gerador de obrigação para uma ou todas as partes, às quais correspondem direitos titulados por elas” (2005, v. III, p. 22).
Na mesma linha, Maria Helena Diniz, para quem “O contrato constitui uma espécie de negócio jurídico, de natureza bilateral ou plurilateral, dependendo, para sua formação, do encontro de vontade das partes, por ser ato regulamentador de interesse privado” (2009, v. III, p. 11)
O fundamento ético do contrato é a vontade humana, desde que atue em conformidade com a ordem jurídica. Os novos paradigmas do Direito Contratual trazem a função solidarista, militando a favor da superação do individualismo do direito obrigacional clássico.

1.2) Estado absolutista

Em momento do absolutismo político vivido até o início do séc. XVIII, quando a vontade do monarca se confundia com a vontade do Estado, enfrentava-se um Direito voltado aos interesses individuais em detrimento da coletividade. Nesse sistema de governo, o Estado era interventor, ditador das diversas relações jurídicas. Como aduz Dallari (2006, p.278), “O Estado Moderno nasceu absolutista e durante alguns séculos todos os defeitos e virtudes do monarca foram confundidos com as qualidades do Estado”.
O mercado era de subsistência e o comércio sofria intervenção direta do Estado por cobranças tributárias desmesuradas e exploração da classe comerciante, a burguesia.
O desenvolvimento da ideia de Direitos Fundamentais, relacionados à dignidade da pessoa humana, princípio básico das relações contratuais, segundo George Marmelstein (2009, p.33), “somente ocorreu por volta do séc. XVIII, com o surgimento do modelo político chamado Estado Democrático de Direito, resultante das chamadas revoluções liberais burguesas”.
Uma corrente jurídica foi paulatinamente se fortalecendo, a que defendia um Estado de intervenção mínima e que deixasse o caminho livre para as relações de comércio, de contrato e outras relações.

1.3) Estado liberal

A classe burguesa ascendente ansiava por desenvolver a economia, sendo para isso imprescindível a redução da intervenção do Estado nas relações privadas.
Ponderando-se os benefícios e malefícios desse Estado Mínimo, constata-se que, embora tenha trazido inegáveis benefícios como o progresso econômico, a consciência da importância da liberdade humana entre outros paradigmas de liberdade; existiu, à mesma época, uma profunda desigualdade social decorrente do individualismo exacerbado da sociedade. O Estado amparava as relações de comércio, admitindo a livre concorrência sem proteger o elo mais fraco das relações. Valemo-nos de Icillio Vanni, quando afirma que “por um complexo de condições próprias da vida social, alguns podem, agindo com plena liberdade, receber mais ou menos do que a justiça queria que lhes fosse atribuída” (apud DALLARI 2006, p.281).
O pensamento da época era pautado no princípio da revolução francesa libertè, onde se fazia imperioso que a economia tivesse flexibilidade e segurança para crescer. Citando George Marmeilstein:
O recado dado pela burguesia para o governante [...] era bastante direto: projeta minha propriedade [...], cumpra a lei que meus representantes aprovarem [...] e não se meta em meus negócios, nem em minha vida particular, especialmente na escolha de minha religião (2009, p. 45).
Preleciona ainda o aludido autor que os Direitos Civis são resultado dessas declarações liberais, conhecidos como direitos de primeira geração, teoria de Karel Vasak.

1.4) Direito Civil no Estado Democrático de Direito

Os vícios do Estado Liberal estimularam os movimentos socialistas e, somados ao período de guerra no séc. XX, começou a ceder passo ao constitucionalismo social, cujo conteúdo, antes de primar por meras limitações à ação estatal, passa a reconhecer obrigações positivas ao Estado.
O Ordenamento Jurídico deve acompanhar as vicissitudes sociais para ser legítimo. Os objetivos fundamentais sacramentados na Constituição de 1988 devem ser respeitados nas relações entre particulares.

1.5) O que mudou?

A entrada em vigor, do Código Civil de 2002 trouxe um novo paradigma para o Direito Contratual. As principais mudanças no âmbito dos contratos foram implementadas pelas Cláusulas Gerais.
Não há dúvida de que o Código Civil de 1916 foi obra magnífica cujos dispositivos e estrutura foram contemplados no novel Código. Preleciona Sílvio de Salvo Venosa, sobre a codificação revogada, “que nosso Código representava em seu tempo o que de mais completo se conhecia no campo do Direito. Suas idéias eram, de fato, piegas e burguesas, como fruto da cultura da época”.(2010, v. III, p. 100)
No entanto, tratava-se de um código projetado ao final de séc. XIX e vigorado por todo séc. XX, imperioso era que se mudassem seus conceitos principalmente à luz da Constituição de 1988.
Fabio Ulhoa Coelho relata com precisão o que um paradigma distorcido do Direito Contratual pode acarretar:
Sob a perspectiva estrita da eficiência econômica. Pode não se justificar, por exemplo, a adaptação de prédios para facilitar o acesso para deficientes físicos. Mas terá em mira atender a um valor de justiça conquistado ao longo de séculos de evolução cultural. (2005, v. III, p. 17-18)
A aprovação do Código Reale, contemplando os princípios contemporâneos que influenciaram profundamente os conceitos do Direito Contratual, ampliou a intervenção do Estado na economia do contrato, o dirigismo contratual. O Estado far-se-á presente no negócio jurídico contratual para evitar manifestas desigualdades e a ruína dos elos mais fracos da relação, garantindo a ordem pública.
Um novo paradigma surge. O Direito Contratual afasta-se das concepções individualistas característicos do diploma anterior, seguindo o princípio de socialização. O sentido social representa-se pela: a) limitação do alcance da liberdade contratual; b) relativização da relatividade dos contratos; c) a ótica deste direito deixou de ser o indivíduo e passou a ser a coletividade e d) flexibilizou-se a obrigatoriedade quando o contrato se vê maculado por vícios seja na manifestação da vontade (vícios de consentimento) seja na conduta proba e reta que as partes devem buscar (boa-fé objetiva).

2) Princípios do Direito Contratual

2.1) Princípios Clássicos do Direito Civil

Os princípios clássicos do Direito Contratual abordam principalmente a liberdade nos contratos. São eles autonomia da vontade, pacta sunt servanda e relatividade dos contratos os quais serão tratados brevemente, como elementos para enriquecer a discussão a ser formulada mais à frente.

2.1.1) Autonomia da Vontade

Tal princípio reflete-se na ampla liberdade contratual, que difere da liberdade de contratar. Esta é espécie daquela, gênero. É amparada pelos art. 421 e 425 do Código Civil de 2002 que já encontra limite pela função social do contrato.
A liberdade contratual se segmenta na liberdade de escolher com quem contratar, pois às partes é dado o direito da escolha do outro contratante; liberdade para escolher o conteúdo do contrato, visto que as vontades são manifestadas por intermédio deste conteúdo; e a liberdade de contratar, pois têm as partes a liberdade de contratar ou não, visto que qualquer constrangimento que macule essa liberdade acarretará vício de consentimento, podendo ser o contrato revisado (Enunciado n. 149 III Jornada de Direito Civil) e até anulado (art. 171, II, CC).

2.1.2) Princípio da Obrigatoriedade nos Contratos (pacta sunt servanda)

Esse princípio expressa, segundo Carlos Roberto Gonçalves, a força vinculante das convenções (2009, v. III, p.28).
O Contrato representa o poder de auto-regulamentação dos particulares, regulamentação esta que faz lei entre as partes e que não pode ser desonrada ao seu bel-prazer.
Sem obrigatoriedade não haveria segurança jurídica, instaurando-se um caos econômico. Se é que faria sentido a existência do contrato. Preleciona o mencionado autor que a pacta sunt servanda fundamenta-se na necessidade de segurança nos negócios e na intangibilidade e imutabilidade dos contratos.

2.1.3) Relatividade Contratual

Refere-se ao círculo de influência dos contratos que, segundo este princípio, diz respeito somente às partes, não aproveitando nem prejudicando a terceiros (res inter alios acta). Fazendo alusão ao princípio da autonomia da vontade, não poderia um contrato vincular aquele que não se manifestou para assumir uma determinada obrigação.
A doutrina tem discutido o abalo que o princípio tratado sofreu com o atual Código Civil, que deixou de pensar o contrato somente nos limites dos interesses pessoais dos contratantes, colocando-o sob o olhar da função social do contrato.

2.2) Princípios Contemporâneos

Os novos princípios sacramentados no novel Codex trouxeram uma mudança de paradigma do Direito Contratual.

2.2.1) Função Social do Contrato

Conforme mencionado, o Código Civil de 2002 buscou nortear-se pelas concepções solidaristas que a sociedade já vivia e que já se contemplavam na Constituição de 1988. O individualismo do ancestral Código cedeu espaço para uma visão social. Antes, não se cogitava terceiro interferir em contrato cuja avença o atingia direta ou indiretamente. Agora, como expresso pelo art. 421 do novel diploma, a liberdade contratual poderá ser exercida com a condicionante da função social.
Segundo Caio Mário da Silva Pereira,
A função social do contrato é um princípio moderno que vem a se agregar aos princípios clássicos do contrato, que são os da autonomia da vontade, da força obrigatória, da intangibilidade do seu conteúdo e da relatividade de seus efeitos.(2007, v. III, p. 14)
Um contrato que tenha todos os requisitos contemplados pode sofrer impedimento, revisão ou anulação, em função do interesse da coletividade.
Ao lado da função social, também se coloca como novo princípio do Direito dos Contratos o da boa-fé objetiva, o qual, em se relacionando ao objeto do presente estudo, será doravante tratado mais pormenorizadamente.

3) Princípio da boa-fé objetiva nas relações contratuais

A boa-fé objetiva, na medida da evolução da doutrina e da interpretação de alguns juristas, foi ganhando grau cada vez mais expressivo. Parece que este princípio, quando consagrado no Código Civil de 2002, expressou o que há muito a doutrina já ansiava e o que a jurisprudência estava mostrando. Há de se registrar que aquele princípio já vinha positivado no art.  do Código de Defesa do Consumidor.

3.1) Conceito

A boa-fé exige das partes um comportamento correto, ético. Segundo Carlos Roberto Gonçalves, “impõe um padrão de conduta reta, com probidade, honestidade e lealdade, nos moldes do homem comum”. (2009, v. III, p.33)
Difere da função social do contrato. Enquanto esta limita a autonomia de vontade para proteger a sociedade dos efeitos do contrato, a boa-fé objetiva analisa a conduta e os efeitos internos do contrato, referindo-se à eticidade da conduta das partes.

3.2) Boa-fé Objetiva no Código Civil de 2002

Este princípio encontra guarida no novo diploma de acordo com a sua função nos negócios jurídicos. Há três funções amparadas pelo Diploma. Função interpretativa, art. 113; função de controle dos limites do exercício de direito, art. 187 e, segundo Carlos Roberto Gonçalves, a de maior repercussão, o art. 422 referente à função integrativa do negócio jurídico. Preleciona o aludido autor:
Cabe ao juiz estabelecer a conduta que deveria ter sido adotada pelo contratante, naquelas circunstâncias, levando em conta ainda os usos e costumes. Estabelecido esse modelo criado pelo juiz para a situação, cabe confrontá-lo com o comportamento efetivamente realizado. (2009, v. III, p. 36)
Pela boa-fé objetiva, passamos a ter um parâmetro, de forma que o comportamento não condizente com ele, independentemente do aspecto anímico do agente, viola o dever de atuação imposto e induz consequências práticas em favor do prejudicado.

3.3) Efeitos da Boa-fé nos Contratos

A boa-fé incide diretamente nas condutas manifestadas pelas diversas fases do contrato, segundo o enunciado n. 25 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal. A jurisprudência brasileira considera algumas regras limitadoras da autonomia da vontade que proíbem e punem abuso de posição jurídica. Algumas delas são: a) supressio, perda de um direito pelo seu não exercício no tempo; b) surrectio, surgimento do direito pelo costume ou comportamento de uma das partes; c) venire contra factum proprium, proteção contra abuso de direito em contradição com comportamento assumido anteriormente; e tu quoque, uma parte exige da outra algo, sem que haja cumprido a sua obrigação.

3.4) Deveres Anexos

São deveres anexos os que ultrapassam o cumprimento da prestação e derivam diretamente do princípio da boa-fé objetiva. A transgressão dos deveres anexos acarreta o que a doutrina moderna define violação positiva da obrigação ou do contrato.
A doutrina divide os deveres anexos em três grupos, a saber: a) deveres de lealdade e cooperação (não tomar proveito da outra parte, realizando contratos desproporcionais; afastar o negócio onde o credor ignora o estado de necessidade que aflige o seu devedor; protege a pessoa inexperiente no contrato realizado; desfaz o negócio cujo credor pretende exercitar seu direito de maneira abusiva; afasta o enriquecimento sem causa e protege a confiança depositada na relação contratual); b) deveres de proteção, de sigilo ou de cuidado (evita situações de perigo, exige sigilo em específicos negócios, pressupõe cautela de não prejudicar a outra parte); c) deveres de informação ou esclarecimento (informações de possíveis conseqüências do contrato; sobre o uso do bem alienado; limites do exercício do bem alienado; clareza de informações).

4) Vícios de consentimento: o instituto da lesão

No mercado, pessoas diferentes se relacionam a todo instante com necessidades e interesses diversos. A desigualdade entre as partes pode, indiferente de suas intenções, gerar vantagens maiores para um lado em detrimento do outro. Essas vantagens, porém, devem ser limitadas por um teto, visto que, nos contratos comutativos, a equiparação das prestações lhes é inerente.
Os vícios de consentimento representam, segundo Carlos Roberto Gonçalves, “um conflito entre a vontade manifestada e a real intenção do agente” (2008, v. I, p. 359).
O Código de 2002 previu como vício de consentimento o erro, o dolo, a coação, o estado de perigo e incluiu a lesão objetiva, que não era tratada pelo Código anterior.
O erro consiste na falsa apresentação da realidade. O agente engana-se sozinho. É levado a praticar ato ou realizar negócio que não celebraria se estivesse devidamente esclarecido. Difere do dolo, um artifício astucioso empregado para induzir alguém a praticar ato que o prejudica, aproveitando ao autor do dolo ou a terceiro. O dolo é provocado intencionalmente. Já a coação é toda ameaça ou pressão exercida sobre o indivíduo para forçá-lo a praticar um ato ou realizar um negócio que o prejudique, aproveitando ao autor da coação ou a terceiro. Não se confunde com o dolo, caracterizado pela astúcia. O estado de perigo, por seu turno, traduz situação de extrema necessidade que conduz uma pessoa a celebrar negócio desproporcional ou excessivo.

4.1) Lesão

A necessidade e o calor do impulso podem gerar contratos desarrazoados. A necessidade patrimonial pode influenciar diretamente alguém a realizar contrato mesmo sabendo da existência de manifesta desproporção entre a prestação e contraprestação, comprometendo a própria subsistência do contratante e de sua família.

4.1.1) Evolução Histórica

O especialista em Direito Civil Henrique Lima preleciona que a Lei das XII Tábuas trazia conceitos simples sobre este instituto, conferindo proteção aos direitos reconhecidos, mas que não estavam expressos na lei. Foi dessas construções que surgiu a figura da restituição (in integrum restitutio), semelhante ao Instituto da Lesão, pois em ambas se verifica a preocupação com a eqüidade (LIMA, 2010).
O mesmo autor relata que na Idade Média, com a forte influência da Igreja no Estado e no Direito, o Instituto da Lesão se desenvolveu com o acréscimo de mais dois requisitos de índole subjetiva, a existência do dolo de aproveitamento e a discrepância entre o justo e o combinado (LIMA, 2010).
Conforme visto, após a Revolução Francesa, o ambiente era de incerteza nos negócios, o sentimento de liberdade afastou o instituto da lesão.
Esse Instituto ressurge no Código Civil de 2002 ocupando lugar de destaque entre as ferramentas existentes para se coibir abusos de direito, enriquecimentos indevidos, confiante que o entendimento da Lesão colabora com a realização da Justiça.

4.1.2) Conceito de Lesão

A lesão decorre de ato praticado em situação de desigualdade volitiva para contratar, mesmo sem comprovação de dolo de aproveitamento na sua realização, por isso é objetiva.
É consagrado pelo Código Civil, em seu art. 157: “ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.”
A fim de auxiliar na definição do instituto da lesão, transcreve-se o conceito de Maria Helena Diniz, para quem:
Lesão é o prejuízo que uma das partes sofre na conclusão de um negócio, oriundo da desproporção existente entre as prestações dos contratantes, sendo que a outra, ante a premente necessidade ou inexperiência daquela, obtém lucro exorbitante ou desproporcional ao proveito resultante da prestação (2007, v. I, p.467).
A lesão ocorre, portanto, quando uma pessoa, numa condição de inferioridade decorrente de uma premente necessidade ou de inexperiência, pactua um contrato bilateral e oneroso em que sua prestação é manifestamente desproporcional ao valor da contraprestação pactuada.

4.1.3) Requisitos de aplicabilidade da lesão

São três requisitos de aplicabilidade da lesão: a) a lesão tenha ocorrido num contrato comutativo. Melhor é dizer que esse Instituto aplica-se aos contratos bilaterais, onerosos e, a princípio, comutativos, pois há corrente que sustenta sua aplicação também aos contratos aleatórios; b) desproporcionalidade, o elemento objetivo do Instituto da Lesão. Não é qualquer desproporção que tipificará o vício da lesão e caberá ao Juiz determinar se é o caso, ou não, de invalidar o contrato. Trata-se de uma cláusula geral, onde o julgador apurará o valor justo por meio de dados e elementos trazidos pelas partes; c) necessidade contratual ou a inexperiência da parte lesada. Essa premente necessidade deve ser entendida como a de contratar, e não como sinônimo de pobreza. A doutrina trata da impossibilidade de evitar o contrato, independentemente da condição financeira do lesado. A inexperiência se relaciona com a falta de habilidade para aquele negócio. O presente instituto é amparado na modalidade objetiva, pois, segundo o ministro Moreira Alves, “não se preocupa em punir a atitude maliciosa do favorecido, mas em proteger o lesado.” (apud LIMA, 2010)

5) Boa-fé objetiva: uma proteção contra a lesão contratual

Relacionando a boa-fé objetiva e a lesão objetiva, constata-se que ambos os institutos tratam de normas de conduta que devem ser analisadas independente de subjetividade. Foram amparados pelo Código de 2002 com a missão de dar ênfase à justiça contratual, impondo regras de conteúdo ético-jurídico que se contrapõem a eventuais explorações e desigualdades. A lesão possui fundo moral, através da boa-fé nos contratos, visando a ajustar os negócios aos seus devidos termos, eliminando-se distorções provocadas pelo aproveitamento da necessidade ou inexperiência de outrem.
O conteúdo axiológico da lesão encontra guarida exatamente no princípio da boa-fé objetiva (art. 422, CC), exigindo conduta reta e proba das partes no momento da celebração dos contratos. Mais especificamente nos deveres anexos de informação (quanto à inexperiência) e lealdade (quanto à necessidade).
O instituto da lesão desempenha papel importante ao lado da boa-fé objetiva na revisão dos contratos. A lesão pode se fazer presente no contrato, não só por valor de prestação desproporcional. A falta de paridade contratual pode decorrer, por exemplo, de uma cláusula abusiva ou de uma abdicação a direito, tornando o negócio desarrazoado.
Há três visões distintas de como a lesão atinge o contrato gerando sua revisão ou anulabilidade: a) formal (a lesão atinge o contrato por previsão legal nesse sentido); b) social (por contrariar a boa-fé e a equidade); c) material (por haver uma falha na própria estrutura do contrato, vício na vontade) (LIMA, 2010).
O Código de 2002 trouxe uma visão social do contrato, entendendo que, não só por estar tipificada, a lesão se faz mister por ferir a boa-fé objetiva do contrato, devendo haver lealdade entre as partes e o credor deve evitar prejudicar o devedor sempre que possível.

5.1) No que a lesão afeta o princípio da boa-fé?

Este instituto possui íntima relação com o princípio da boa-fé objetiva, dando uma visão social ao contrato entendendo que, não só por estar tipificada, a lesão é importante por atingir a boa-fé contratual, ampliando a Justiça e a equiparação nas relações entre particulares.
A lesão é prejuízo. Não um prejuízo comum, mas uma manifesta desproporção causada por circunstâncias que, na conduta correta e ética esperada das partes, não se poderia admitir. O contrato tem por objetivo a circulação de riquezas e não pode compactuar com o aproveitamento em cima da boa-fé. Não se preocupa em punir a atitude maliciosa do favorecido, mas em proteger o lesado.
O contrato pressupõe confiança, proibindo o credor de ignorar o estado que aflige o seu devedor. Há relação entre os institutos quando se exige revisão do contrato nos casos de proveito tomado por inexperiência do lesado. O mesmo ocorre quando o contrato se forma mediante necessidade de uma das partes e gera a mesma desproporção, não se imagina contrato de boa-fé, onde o credor toma proveito das fraquezas do devedor. Nota-se ainda que o Direito Civil, ao afastar o enriquecimento sem causa, buscou limitar as liberdades que pudessem gerar desproporção nas relações. Essa interpretação da Disciplina Cível encontra guarida na Constituição, em seu art. 173, § 4º, quando reprime o aumento arbitrário do lucro.

5.2) Lesão e boa-fé: uma proteção do elo mais fraco da relação contratual

O atual Código Civil procurou afastar-se da concepção individualista para seguir a orientação compatível com a socialização do direito contemporâneo, limitando o alcance dos princípios libertários do código ancestral. A inclusão de princípios como a função social do contrato, a boa-fé objetiva e o retorno do instituto da lesão, afastado pelo Diploma Beviláqua, apontam um novo cenário das relações entre particulares. Reflete a prevalência dos valores coletivos sobre os individuais.
Sair da ótica individualista, voltando-se para uma visão solidarista, que ampara o elo mais fraco prejudicado quando sua vontade for maculada por algum vício é o novo paradigma do Direito Contratual

Conclusão

A lesão tem por característica proteger o lesado que se encontra em inferioridade volitiva por premente necessidade ou inexperiência, valendo-se justamente da boa-fé para legitimar a revisão ou anulabilidade do negócio realizado.
O direito obrigacional existe com o intuito de estabelecer diretrizes ético-jurídicas para a auto-regulamentação dos particulares.
Por um complexo de condições próprias da vida social, alguns podem, agindo com plena liberdade, receber mais ou menos do que a justiça queria que lhes fosse atribuída e a chegada da exigência da boa-fé nas relações contratuais tem por função auxiliar no alinhamento do contrato às reais intenções para as quais foi realizado, segundo o dirigismo contratual.
A lesão é prejuízo. Não um prejuízo comum, mas uma manifesta desproporção causada por circunstâncias que a conduta correta e ética esperada das partes não poderia admitir. O contrato tem por objetivo a circulação de riquezas e não pode compactuar com o aproveitamento em cima da boa-fé. Não se preocupa em punir a atitude maliciosa do favorecido, mas em proteger o lesado.
Constata-se que a lesão possui fundo moral, através da boa-fé nos contratos, visando ajustar os negócios aos seus devidos termos, eliminando-se distorções provocadas pelo aproveitamento da necessidade ou inexperiência de outrem.
O conteúdo axiológico da lesão encontra guarida exatamente no princípio da boa-fé objetiva (art. 422, CC), exigindo conduta reta e proba das partes no momento da celebração dos contratos, mais especificamente nos deveres anexos de informação (quanto à inexperiência) e lealdade (quanto à necessidade).
O instituto da lesão desempenha papel importante ao lado da boa-fé objetiva na revisão dos contratos. A lesão pode se fazer presente no contrato, não só por valor de prestação desproporcional. A falta de paridade contratual pode decorrer, por exemplo, de uma cláusula abusiva ou de uma abdicação a direito, tornando o negócio desarrazoado.
O Código de 2002 trouxe uma visão social do contrato, entendendo que, não só por estar tipificada, a lesão se faz mister por ferir a boa-fé objetiva do contrato, devendo haver lealdade entre as partes e o credor deve evitar prejudicar o devedor sempre que possível.
O Estado não se pode coadunar com o aproveitamento de uns sobre outros por necessidade ou inexperiência ou, ainda, por qualquer circunstância de inferioridade entre as partes que acarrete desproporção nas relações contratuais e enriquecimento sem causa.

Referências

COELHO, Fábio Uchoa. Curso de Direito Civil . Volume III. Saraiva. 2005.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. Saraiva. 25ª Ed. 2006.
DINIZ, Helena Maria. Direito Civil Brasileiro. Volumes I e III, Saraiva. 24ª Ed. 2007.
GONÇALVES, Roberto Carlos. Direito Civil Brasileiro. Volumes I e III, Saraiva. 6ª Ed. 2009.
Lima, Henrique.O Instituto da Lesão no Código Civil. Investidura, 03 jan. 2009. Disponível em: http://www.investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/direito-civil/2288oinstituto-da-lesao-no-código-civil.html. Acesso em: 15 mai. 2010.
MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. Atlas. 2ª Ed. 2009.
MEZZOMO, Marcelo Colombelli. A boa-fé objetiva e seus institutos. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1212, 26 out. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9087>. Acesso em: 06 abr. 2010.
PEREIRA, Caio Mário Silva. Instituto de Direito Civil. Volume III, Editora Forense. 12ª Edição, 2007.
TABOSA, Agerson. Direito Romano. Fa7. 3ª Ed. 2007.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. Volumes I e III. Atlas. 10ª Ed. 2010.

[1]Advogado OAB: 28647, formado pela Faculdade Sete de Setembro - E-mail: georgencfrota@gmail.com.
[2] Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Professor de Direito Civil na Faculdade Sete de Setembro – FA7. E-mail: vanderchaves@hotmail.com.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

OS PERIGOSOS LAÇOS DA MEDICINA COM A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA – VITAMINA D COMENTADO

Por Celso Galli Coimbra

OS PERIGOSOS LAÇOS DA MEDICINA COM A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA – VITAMINA D COMENTADO

25/12/2012 — Celso Galli Coimbra
Acrescentamos ao texto, que os pacientes podem ser vítimas das doenças e dos remédios,tanto quantoda ausência de tratamento eficazpara doenças para as quais existemterapias de alta complexidade e custo fornecidas pela indústria farmacêutica [remédios não eficazes e que não curam] , QUANDO a eficácia do tratamento pode ser realizada a BAIXO CUSTO, tanto para o paciente como para o Governo, o maior pagador do SUS [o povo que paga o segundo mais alto índice de impostos do planeta e, em troca, vê e recebe o menor retorno social, nem saúde nem educação]. Soma-se a este fato aausência de prevenção à saúde, que é a providência de mais baixo custo ainda. Neste triângulo das bermudas criado pela indústria farmacêutica e aceito pela Medicina perdem-se recursos públicos, dinheiro dos pacientes e familiares, saúde e vidas. É neste triângulo da doença e da morte que funcionam os laços mercantis com a indústria de remédios e a medicina.
A subtração – no Brasil – em especial do valor preventivo e terapêutico do hormônio conhecido por Vitamina D de baixíssimo custo, é um perfeito exemplo disto. Os medicamentos de alto custo da indústria farmacêutica para as doenças autoimunes precisam de PACIENTES VÍTIMAS da ganância desenfreada e daomissão das autoridades. O desinteresse das pessoas ainda saudáveis em informar-se em tempo sobre o que ocorre neste meio médico-farmacêutico, também contribui para o desastre da saúde.
Por Celso Galli Coimbra

POR UM NOVO PARADIGMA DE CONDUTA E TRATAMENTO

POR UM NOVO PARADIGMA DE CONDUTA E TRATAMENTO


O Instituto de Investigação e Tratamento de Autoimunidade (“Instituto de Autoimunidade”) foi criado no primeiro semestre de 2011, a partir da iniciativa deste médico signatário e de ex-pacientes (atualmente seus amigos) que apresentavam manifestações autoimunitárias, e que foram beneficiados com o tratamento a eles oferecido. Atualmente essas pessoas possuem um nível normal de qualidade de vida, mantendo-se livres das agressões do sistema imunológico, ao ponto de considerarem-se ex-portadores da doença e participam da direção do Instituto de Autoimunidade, idealisticamente voltados para viabilizarem o mesmo benefício para outros pacientes, especialmente os mais carentes.

http://www.institutodeautoimunidade.org.br/novo-paradigma.html
Cícero Galli Coimbra
Médico Internista e Neurologista
Professor Associado Livre-Docente da Universidade Federal de São Paulo
Presidente do Instituto de Investigação e Tratamento de Autoimunidade

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

1º lugar de medicina da USP é uma menina pobre e negra

A adolescente Bruna Sena tem apenas 17 anos, mas já superou uma barreira de gente grande: foi a primeira colocada em medicina na USP de Ribeirão Preto, a carreira mais concorrida da Fuvest-2017, com 75,58 candidatos por vaga.
Negra, tímida, estudante de escola pública, criada apenas pela mãe – o pai abandonou a casa quando a menina tinha 9 meses – , Bruna é a primeira da sua família a cursar o ensino superior. Ela comemorou sua conquista pelo Facebook passando um recado: “A casa-grande surta quando a senzala vira médica”.

“Alguns se esquecem do passado, que foram anos de escravidão e sofrimento para os negros. Os programas de cota são paliativos, mas precisam existir. Não há como concorrer de igual para igual quando não se tem oportunidade de vida iguais.”
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Para enfrentar o vestibular, Bruna se preparou muito, ao longo de toda sua vida escolar. “Ela só tirava notas 9 ou 10. Uma vez, tirou um 7 e fui até a escola para saber o que tinha acontecido. Não dava para acreditar. Falei com o diretor e ele descobriu que tinham trocado a nota dela com um menino chamado Bruno”, conta a mãe, Dinália.
No último ano, a dedicação foi total: de manhã, Bruna ia para a escola estadual Santos Dumont, onde cursava o último ano do Ensino Médio, de tarde estudava sozinha em casa e à noite frequentava um cursinho popular tocado por estudantes da própria USP.
Leia também: “Como não existe racismo no Brasil?”
Com ajuda financeira de amigos e parentes, Bruna fazia kumon de matemática, mas o dinheiro não deu para seguir com o curso de inglês. “Tudo na nossa vida foi com muita luta, desde que ela nasceu, prematura de sete meses, e teve de ficar internada por 28 dias. Não tenho nenhum luxo, não faço minhas unhas, não arrumo meu cabelo. Tudo é para a educação dela”, declara Dinália.
Bruna ainda não sabe qual especialidade médica pretende seguir na carreira, mas sabe que quer atender pessoas de baixa renda. “Quero atender pessoas que precisam de alguém para dar a mão e de saúde de qualidade”, disse.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Em carta de despedida, promotor critica postura do Ministério Público





[Carta de despedida de Roberto Tardelli, depois de 31 anos no Ministério Público de São Paulo. Tardelli foi o responsável pela acusação no caso de Suzane von Richthofen. Com sua aposentadoria — publicada no Diário Oficial de sexta-feira (19/9) —,  ele voltará a advogar.]
Estou indo, peguei meu boné.
Quero dizer a cada um que foram os melhores trinta anos de minha vida esses que passei no MP.
Ter sido promotor de justiça foi um grande barato. Descobri e continuo descobrindo que podemos melhorar a vida das pessoas, que somos protagonistas e seremos protagonistas da construção republicana e democrática do Brasil. Não somos apenas indispensáveis, somos parte do DNA de uma nação que ainda se percebe e ainda se conhece.
Ao contrário do que gostaria de dizer, se pudesse, não faria tudo da mesma forma que fiz. Teria a mão menos pesada quando a tive pesada (faz tempo isso), soltaria mais a alma e a voz e prenderia menos pessoas. Seria menos formal nas solenidades protocolares. Ouviria mais axé, comeria mais carne ainda do que já tenho comido e beberia mais vinho e menos cerveja. Iria mais ao cinema e pouco me lixaria com prazos de réus de bobagens que sequer justificariam nossos processos.
Dirigiria mais cuidadosamente meu carro e, quando fosse aumentar a música, eu o fizesse com maior determinação, para espalhar mais João Gilberto pela cidade. Não precisaria ser autoridade o tempo todo e faria questão de me sentar na arquibancada. Nem por decreto, por nada nesse mundo subiria nos malditos elevadores privativos. Jamais.
Na audiência, chamaria a todos pelo nome, inclusive e principalmente o réu e a vítima. Chamar as pessoas pelo nome lhes dá a humanidade que essas expressões consagradas retiram: réu e vítima, sem nome ou rosto e procuraria deles me lembrar, pois que sempre existem coincidências: passeando no parque, encontro o réu e seu filhinho. Ele, um pai exemplar e amava mesmo o filho, deficiente mental profundo; num dia de fúria, arrancou a orelha de um balconista.
Pediria mais absolvições (no fim da reta, eu pedia; deveria ter feito mais isso desde o início), sorriria mais, escreveria de forma menos catastrófica e atenderia a todos. Serviria café à tia do café.
Deveríamos usar menos ternos, porque nada há de terno em nosso terno preto, vetusto, de risca de giz. Respeitaria menos quem exigisse ser respeitado pelo cargo, função, idade ou possibilidade de nos prejudicar. Ignoraria corregedores e procuradores, fossem de justiça, fossem os gerais, fossem aqueles que usassem o brega e horroroso anel de grau, tantos destinos a um rubi e ele foi parar no dedo de um bocó. Não respeitaria o silêncio grave dos corredores forenses. Talvez distribuísse apitos.
Escreveria mais coisas da vida e menos coisas da lei nos processos ou inquéritos. Citaria menos autores, principalmente aqueles que todos citam, os consensuais, quase sempre burocratas e que conseguem acertar o fácil. Iria atrás daqueles que prezassem a imprecisão, os que cultuassem a dúvida e nunca, nunca, permitiria que certezas se instalassem em minha mesa de trabalho.
Jogaria fora, poria no lixo, os carimbos. Diria apenas, ok e seguiria o filme. Temos carimbos demais, carimbamos demais.
Nunca os suportei e talvez os suportasse ainda menos, aqueles que dizem que vivemos uma Guerra Contra O Crime ou aqueles super-heróis, cuja missão a eles passada na Sala de Justiça os fizessem proteger a sociedade ordeira. Não existe guerra alguma e estamos prendendo irmãos iguais e sociedade alguma é ordeira, principalmente a que espanca crianças, mata homossexuais, mulheres e tem sua polícia a executar pretos e pobres na periferia.
Afundaria em um lago distante quem dissesse que a lei confere direitos demais aos criminosos. Pregaria na testa de quem dissesse Humanos Direitos um adesivo: estúpido. Nenhum respeito teria por quem defendesse a pena de morte e sugeriria que quem a defendesse começasse a praticá-la como um direito pessoal em si mesmo e nos poupasse.
Abraçaria mais as mulheres do busão e atenderia quem tivesse os filhos presos com mais atenção, toda a atenção e não mediria esforços para que não fossem humilhados nas visitas. Defenderia o meio ambiente e o consumidor.
Não leria a Veja.
Teria medo de superpoderes e os guardaria onde estivessem protegidos de mim.
Ter sido promotor foi a possibilidade mágica de “estar no fundo de cada vontade encoberta”, que aproveitei o quanto pude, mudando sempre, aprendendo sempre, diariamente. Vi até gêmeos de pais diferentes, vi assassinos e vi a solidão que traziam nos olhos. Vi pessoas que cruzaram os oceanos todos para adotar uma criança a quem pudessem amar incondicionalmente.
Vi meninos de rua morrerem de AIDS. Um, muito perto de mim, mudou minha forma de ver o mundo e tudo o mais que ocorresse à minha volta.
Um processo muito peculiar e um caso único que agitou o país me jogou para fora do que até então houvera vivido e me fez em contato com a população, de forma tão viva que eu deixei de ser apenas um promotor de justiça e me tornei um falador e contador de história e aprumador de realidades, algumas vividas outras nem tanto.
Ter me tornado conhecido das pessoas será uma das coisas que jamais pagarei ao Ministério Público e a esse ofício de Promotor de Justiça. Andei pelo Brasil e descobri um país que nunca imaginei existir, seja por seus contrastes, seja por sua pujança, pelos seus defeitos e pelos seus encantos, mais encantos que defeitos. Pude externar minha opinião, que é apenas minha, mas que foi ouvida mais do que eu supunha. Falei e falei no sertão, nas caatingas e nos gerais. Em Sampa e no meu estado de São Paulo, penso que fui a quase todas as faculdades. As que ainda não fui, que me aguardem.
Fui paraninfo de jovens que me deram essa enorme honra. Tenho isso no coração.
Dentro do Ministério Público, vi meus filhos, Fernanda e Brenno, crescerem; conheci a Carla, a doce Carla, somente porque era promotor de justiça. Dificilmente eu a teria visto ou seria por ela notado se fosse astronauta ou sorveteiro, até isso o MP me proporcionou.
Fiz bons amigos. Tenho bons amigos. No Ministério Público e nas pontes que o MP constrói, na advocacia e na magistratura. Sempre que preciso de um vinho, encontro comparsaria à altura. Há trinta anos que não bebo sozinho e, vamos lá, admitam, isso é um feito.
Ficamos chatos, chatinhos. Ficamos aqueles pentelhinhos sociais. Sou muito cobrado por isso, mas fazer o quê?, são inflexões históricas, inevitáveis, diante de nossa forma burguesinha de aquisição de talentos. Sérios demais. Gente jovem que está deixando de sorrir para franzir o cenho e não cumprimentar porteiros: o vento vira, creiam, como vira… Estamos condenatórios e sei que haverá quem, chegando até aqui, ao ler esse texto há de pensar que eu surtei e que não era mesmo de confiança. Não nos damos conta que essa fúria condenatória nos custará caro em breve, brevíssimo. Uma nação não se constrói com condenações em série, pelo contrário.
Mas, isso é assunto para outro dia. Agora, só quero dizer a todos que valeu. Gostaria de beijar a todos, abraçar a todos. Quem não quiser, não precisa me abraçar porque eu abraço sozinho, pronto. Abraçar é o que importa e todos os amigos e amigas foram fundamentais nessa caminhada, que adorei fazer, curti ao máximo fazer e sempre fiz, dando o máximo de mim. Minhas mãos e minhas pernas, minha esperança. Meu amor pela vida.
Essa uma que me empurra para novas aventuras.