terça-feira, 27 de junho de 2017

A judicialização da saúde: atuação do Poder Judiciário para efetivação de garantia constitucional

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RESUMO

A saúde pública brasileira não corresponde, na prática, às previsões legais. Esvaindo-se de seu dever, o Estado, repousando no argumento da carência orçamentária, omite-se de sua obrigação de prover assistência à saúde de sua população. Ante essa omissão, busca- se suporte ao Poder Judiciário, que encontra óbices em sua atuação impostos pela doutrina e, inclusive, jurisprudência, com fundamento, sobretudo, na tripartição dos poderes, e ainda, na reserva do possível. O presente trabalho busca analisar a situação da saúde pública no País, pontuando os aspectos constitucionais e infraconstitucionais que a revestem, e ainda os limites impostos ao Poder Judiciário a sua atuação nesses casos. No propósito de prestar a devida assistência à saúde à população, o Estado propõe políticas públicas com diretrizes desatualizadas aos programas de atenção a essa área, tanto em sede de prevenção como de tratamento. Diante dessa omissão do Poder Público em disponibilizar aos cidadãos tratamentos e assistência farmacêutica devidas, resta aos indivíduos buscar o amparo judicial.
Palavras-chave: Poder Judiciário, políticas públicas, saúde.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca analisar a situação da saúde pública no Brasil, ante a omissão do Poder Público, com enfoque na necessidade de intervenção do Poder Judiciário para garantir a prestatividade de serviços relacionados à saúde por parte do Estado, ponderando os limites existentes à atuação judicial nesses casos.
Justifica-se o presente estudo ante a relevância social do tema, tendo em vista o descaso suportado atualmente pela sociedade no que se refere à propicialidade de seus direitos e garantias básicas pelo Poder Público, especialmente no que tange ao essencial e melindroso direito à saúde.
Ao que pese a inegável necessidade, será discutida ainda a possibilidade de atuação judicial para a garantia do cumprimento das disposições legais referentes à saúde de competência do Estado, pontuando os limites existentes a esta atuação, impostos pela doutrina e delegados pela própria Administração Pública como esteio para prosseguir na omissão relatada.
Ao fim, almeja-se alcançar uma situação de solução para a situação que, sem a devida prestação do poder público, que ao menos seja possível ao Poder Judiciário garantir a eficácia, mesmo que mitigada, dos direitos garantidos constitucionalmente.

2 GARANTIA CONSTITUCIONAL DO DIREITO À SAÚDE

A Constituição Federal estabeleceu os fundamentos do direito à saúde no Brasil, garantindo o acesso universal e integral às ações de saúde a serem promovidas pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Neste sentido estabelece a Carta Maior:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção e recuperação (BRASIL, 1988).
Desta forma a Constituição de 1988 declarou expressamente o compromisso do Estado em propiciar a toda população um acesso pleno e igualitário à saúde. Ilustrando o dever do Estado de promover tal garantia, convém transcrever excelente ponderação feita por Marcos Salles, representante da Associação dos Magistrados Brasileiros, no primeiro dia da Audiência de Saúde Pública realizada pelo STF:
a busca da cura é uma das situações da condição humana em que por infelicidade se procura e por felicidade se encontra. Mas a vida, por mais fé que se tenha em alguma dogmática religiosa, não pode, no Estado democrático de Direito, ser entregue à própria sorte (SALLES, 2009).
Para o cumprimento desta imposição, a própria Constituição Federal traçou diretrizes a serem seguidas pelo poder público, estando estampadas nos incisos I a III do artigo 198 que assim previu:
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III – participação da comunidade (BRASIL, 1988).
O princípio básico da saúde, como bem expresso, é a sobrevalorização das medidas preventivas, todavia, sem prejuízo dos serviços assistenciais. Para tanto, o Estado instituiu entidades públicas, criando mecanismos de cooperação entre estas e o setor privado, visando uma execução de suas políticas voltadas à garantia da saúde de maneira mais igualitária e universal, observadas as diferenças regionais e sociais existentes no país.
Conforme evidenciado alhures, a Constituição Federal vigente abordou a saúde de maneira singular, figurando o rol dos direitos sociais e fundamentais, além de diversos dispositivos constitucionais espalhados por todo seu texto legal, que, ainda que indiretamente, aludem à saúde.
Ao tratar das competências de seus entes federados, a lei máxima informou a competência comum de todos esses para cuidar da saúde, podendo, inclusive, legislar sobre o assunto e, acima de tudo, prestar atendimento à população.
Nesta senda, percebe-se que são inúmeras as regras constitucionais que diretamente tratam sobre a saúde, contudo, sem apresentarem eficácia imediata e plena, independentemente de ações judiciais ou mesmo que administrativas, para que possam os cidadãos alcançar a consolidação de um direito tão superior que lhes foi conferido.
Todavia, há de ser evidenciado que a respeitável Lei Maior ditou o que é necessário para que cada ser humano viva adequadamente, mas não explicou como haveria de ser procedido para que fosse possível assegurar aos bilhões de brasileiros sua considerável lista de beneplácitos (GANDIN; BARIONE, SOUZA, 2008).
Destarte, não obstante os ensinamentos constitucionais e infraconstitucionais, é mais que conhecido por todos os operadores do Direito que, infelizmente, nem sempre, ou quase nunca, a aplicabilidade das normas existentes se dá literalmente como reza. E exemplo nítido desta infeliz realidade é o Sistema de Saúde adotado no Brasil, carente em seus atendimentos, cumprimento das diretrizes traçadas, e ainda na prestação da assistência farmacêutica devida.
Impende apontar os ensinamentos de Fontes (2003, p.193), sobre o tema:
esta consagração dos direitos sociais no texto constitucional, contudo, gerou uma contradição com a realidade social, na medida em que séculos de negligência estatal criaram um enorme contingente de marginalizados, que exigem cada vez mais políticas e serviços públicos, ao passo que os administradores não são capazes de dar efetividade ao texto constitucional e fazer frente a essa demanda por direitos.

2.1 LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL: LEI DO SUS (LEI N. 8.080/90)

A Lei n. 8.080 de 19 de setembro de 1990, Lei Orgânica da Saúde, foi criada a fim de regularizar os artigos 196 e seguintes da Constituição Federal, instituindo o Sistema Único de Saúde, dispondo sobre suas características, custeio entre outros. Seu artigo 2º, caput e §1º ratifica o dever do Estado em promover a devida assistência à saúde:
Art. 2°. A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
§1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1990b, p.1).
Apesar de por demais consolidado o dever do Estado em prover a assistência integral à saúde, a lei em tela solidariza esta responsabilidade com as demais pessoas, empresas, família e sociedade em geral, segundo disposto no §2° do mencionado artigo.
No mesmo sentido às disposições antes analisadas, da Lei 8.080/90, com regulamentação do sistema único de saúde e a reiteração do preceito de que:
a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício". Seu artigo 6º, inciso I, alínea "d", expressamente inclui, como parte desse atendimento, a execução de ações "de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica (BRASIL, 1990b).
Segundo Silva (2006, p.402):
a saúde é concebida como direito de todos e dever do Estado, que a deve garantir mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos. O direito a saúde rege-se pelos princípios da universalidade e da igualdade de acesso às ações e serviços que a promovem, protegem e recuperem. O sistema único de saúde, integrado de uma rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços de saúde, constitui o meio pelo qual o Poder Público cumpre seu dever na relação jurídica de saúde que tem no pólo ativo qualquer pessoa e comunidade, já que o direito à promoção e à proteção da saúde é também um direito coletivo.
Vê-se assim, que, igualmente tratado na Constituição Federal, a legislação infraconstitucional preocupou-se em delinear este consagrado direito à saúde, disciplinando sua maneira de execução, e ainda, majorando a responsabilidade do Poder Público por tal efetivação, não restando dúvidas que o dever de assistência do Estado engloba todas as ações preventivas e paliativas em relação à saúde, inclusive com o fornecimento gratuito das terapias medicamentosas indicadas até total restabelecimento do cidadão enfermo.

2.2 LIMITES DA ATUAÇÃO JUDICIAL NA CONCRETIZAÇÃO DA ASSISTÊNCIA À SAÚDE

Os direitos constitucionais fundamentais, especialmente o aludido direito à saúde, encontram atualmente sérias dificuldades em relação a sua efetividade, conforme explanado alhures, ante a não atuação necessária do Poder Público. Diante desta omissão por parte do poder elaborador e garantidor de políticas públicas, está ainda o óbice da discussão acerca da atuação do Poder Judiciário nestes casos de omissão, baseada em uma interpretação retrógada da teoria da Separação dos Poderes.
Esta vedação decorre da intenção prejudicada de defender o cidadão de intervenções abusivas do Poder Público, todavia, com a atuação do Judiciário nos casos expostos é que se estaria garantindo essa proteção.

2.2.1 A VEDAÇÃO AO JUIZ COMO LEGISLADOR POSITIVO NA CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

A alegação de impossibilidade de atuação do juiz como legislador positivo é constantemente invocada pelo Supremo Tribunal Federal em ações que visem a concretização de direitos constitucionais, em especial, o direito à saúde, pelo Poder Judiciário, fundada em uma visão extremista da Separação dos Poderes, que precisa ser relativizada nos dias atuais.
Clève (2005, p.7) apresentou alguns argumentos e contra-argumentos para esta legitimidade discutida:
se é certo que há um consenso no que diz respeito à atuação dos juízes enquanto legislador negativo, o mesmo não ocorre quando se está a falar numa atuação análoga à do legislador positivo. Ou, eventualmente, do administrador. De outro viés, cumpre verificar se, do fato de o Judiciário não dispor de um meio de legitimação como os demais poderes (o mecanismo eleitoral para a investidura de seus membros), não se poderia deduzir que está impedido de atuar a partir de determinado limite. Poder-se-ia, eventualmente, afirmar, para afastar o argumento, que o Judiciário atua como uma espécie de delegado do Poder Constituinte para a defesa da Constituição e, especialmente, dos direitos fundamentais. O contra-argumento seria no sentido de que, no contexto do regime democrático, é a maioria (princípio majoritário) que governa.
Objetivando a imposição de limites à democracia, conferiu-se aos juízes ou a entidades com características próprias de cortes de justiça, a função de controle da constitucionalidade das leis. Contudo, a atribuição desse poder sem paralelo aos juízes não afasta a prioridade do legislativo na formulação de políticas públicas (MORO, 2001).
Um dos mecanismos existentes ao Judiciário para controle do legislativo é a ação declaratória de constitucionalidade, conforme conclui Slaibi Filho (s.d, p.5):
evidente o conteúdo legislativo positivo da ação declaratória de constitucionalidade, pois através do provimento de procedência agrega-se ao ato normativo a qualidade ou eficácia de imunizá-lo ao controle incidental de constitucionalidade; isto é, a decisão da Suprema Corte na ação declaratória de constitucionalidade tem o impressionante efeito de impedir que juízes e administradores públicos neguem aplicação à norma infraconstitucional sob o fundamento de ser a mesma incompatível com a Lei Maior.
A própria Lei Maior não impõe expressamente este impedimento, não trazendo, todavia, a autorização expressa para a atuação legislativa positiva do juiz sendo os entendimentos construídos por juristas (MARTINS, 2008).
De certo modo, a Carta Maior confere aos juízes o controle da atividade legislativa, atribuindo, implicitamente, poderes de reparo, o que em casos de omissão, ensejaria a concretização judicial da norma constitucional (MORO, 2001). Assim, nos dizeres de Dworkin (1999, p.44), "o objetivo da decisão judicial constitucional não é meramente nomear direitos, mas assegurá-los, e fazer isso no interesse daqueles que tem tais direitos".
Sabiamente, conclui Moro (2001, p.104) a respeito do tema:
o portanto, base racional, não sendo, outrossim, decorrente de comando constitucional expresso. Admiti-lo por construção jurisprudencial vai de encontro ao principio da Supremacia da Constituição e ao princípio da efetividade deste decorrente, apenas representando abdicação indevida pelo Judiciário da função de controle atribuída pela Constituição.
Infere-se então, que não bastam os argumentos da discricionariedade e separação dos poderes no intuito de afastar o Poder Judiciário da efetivação de direitos constitucionais, devendo este, agindo em observância aos princípios impostos, ter uma maior atuação na sociedade, garantindo, ante a omissão estatal, maior prestatividade de políticas públicas, especialmente voltadas à saúde.

2.2.2 PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA

Não é incomum a constante utilização pelo Estado da alegação de necessidade inegável de previsão orçamentária para a execução de determinado direito garantido, primordialmente no âmbito de ações judiciais ajuizadas com o intuito de efetivação do direito à saúde, onde são conferidas liminares impositivas ao Poder Público. De fato, a Constituição Federal vigente, em seu artigo 167, veda, dentre outras medidas, o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual, a realização de despesas que excedam os créditos orçamentários, e ainda a transposição, remanejamento ou transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro, sem prévia autorização legislativa (BRASIL, 1988).
A proteção e efetivação de todos os direitos individuais, por óbvio, necessitam de recursos para que sejam efetivadas. Ilustrando o quadro, vê-se a atuação das polícias, do corpo de bombeiros e do próprio Poder Judiciário; a realização de eleições e todas as atividades administrativas de controle e fiscalização. Todos os direitos demandam custos para sua efetivação; os direitos de defesa, indiretamente; e os direitos sociais, diretamente (MÂNICA, 2007).
Apesar da preocupação do constituinte em planejar as despesas públicas oriundas da administração direta e indireta, esta necessidade de previsão orçamentária não deve servir como obstáculo à efetivação dos direitos fundamentais, mormente o acionado direito à saúde, quando buscados pelo Poder Judiciário. Isto não impede que o juiz ordene ao poder público que realize determinada despesa para fazer valer um dado direito constitucional, até mesmo porque diante do conflito de normas (previsão orçamentária e direito fundamental), vê-se que encontram-se no mesmo patamar, sobressaindo então, o direito fundamento, dada sua superioridade axiológica (GANDIN; BARIONE; SOUZA, 2008).
Nas palavras de Oliveira (2006, p.405):
evidente que não se inclui na órbita da competência do Poder Judiciário a estipulação nem a fixação de políticas públicas. No entanto, não se pode omitir quando o governo deixa de cumprir a determinação constitucional na forma fixada. A omissão do governo atenta contra os direitos fundamentais e, em tal caso, cabe a interferência do Judiciário, não para ditar política pública, mas para preservar e garantir os direitos constitucionais lesados.
Importante destacar a seguinte decisão do Ministro Celso de Mello, do Superior Tribunal Federal (Pet. 1.246-SC):
[...] entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5°, caput e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humana.
Neste sentido, a doutrina e a jurisprudência vêm se mostrando consolidadas ao ditar a supremacia dos direitos fundamentais em relação aos demais, com sua efetivação sobreposta a qualquer outro direito ou preceito fundamental.

2.2.3 TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL

Apesar da enorme quantia de impostos recolhidos, vivencia-se a constante escassez dos recursos públicos para a devida concretização de suas políticas públicas, e, em razão disto, trabalhando sempre com observância ferrenha a teoria da reserva do possível.
O conceito da reserva do possível é uma construção da doutrina alemã que dispõe, basicamente, que os direitos já previstos só podem ser garantidos quando há recursos públicos para tanto [01].
Nessa seara, Mendes, Coelho e Branco (2007, p.250-251), assim se manifestam acerca da efetivação dos direitos a prestação material:
a escassez de recursos econômicos implica a necessidade de o Estado realizar opções de alocação de verbas, sopesadas todas as coordenadas do sistema econômico do país. Os direitos em comento têm que ver com a redistribuição de riquezas – matéria suscetível às influências do quadro político de cada instante. A exigência de satisfação desses direitos é mediada pela ponderação, a cargo do legislador, dos interesses envolvidos, observado o estádio de desenvolvimento da sociedade.
Na medida em que a Constituição não oferece comando indeclinável para as opções de alocação de recursos, essas decisões devem ficar a cargo de órgão político, legitimado pela representação popular, competente para fixar as linhas mestras da política financeira e social. Essa legitimação popular é tanto mais importante, uma vez que a realização dos direitos sociais implica, necessariamente, privilegiar um bem jurídico sobre outro, buscando-se concretizá-lo com prioridade sobre outros. A efetivação desses direitos implica favorecer segmentos da população, por meio de decisões que cobram procedimento democrático para serem legitimamente formadas – tudo a apontar o Parlamento como a sede precípua dessas deliberações e, em segundo lugar, a Administração.
Diante da limitação dos recursos orçamentários e da consequente impossibilidade de efetivação integral de todos os direitos fundamentais sociais, passou-se a sustentar, como restrição à intervenção do Poder Judiciário no controle das políticas públicas, a teoria da reserva do possível.
De fato, os recursos da sociedade, incluindo-se aí a disponibilidade financeira, são escassos, o que significa que o Estado não pode atender a todos os anseios da sociedade. Surge, então, a necessidade de administrar de maneira adequada e eficiente os recursos escassos da sociedade para promover o maior bem social possível. Porém, como não é possível satisfazer todos os desejos sociais, o Estado, como administrador dos recursos, deve fazer escolhas acerca de quais necessidades atender e de quais necessidades abrir mão ou de atender de maneira deficiente (ORDACGY, 2009).
Apesar da teoria da reserva do possível ser uma limitação racional à efetivação dos direitos e garantias fundamentais, sob o ponto de vista de que os recursos são finitos, e as necessidades infinitas, o que se vêm observando é a banalização do discurso por parte do Estado em juízo e mesmo fora dele, sem, contudo, fazer prova de quaisquer das suas alegações. Ora, não é suficiente simplesmente alegar que não há o suficiente para a efetivação do direito, é preciso apresentar de maneira concreta essa carência.
Nesse cenário, ensina Lima (2008, p.3 ):
assim, o argumento da reserva do possível somente deve ser acolhido se o Poder Público demonstrar suficientemente que a decisão causará mais danos do que vantagens à efetivação de direitos fundamentais. Vale enfatizar: o ônus da prova de que não há recursos para realizar os direitos sociais é do Poder Público. É ele quem deve trazer para os autos os elementos orçamentários e financeiros capazes de justificar, eventualmente, a não-efetivação do direito fundamental.
Conforme assinalado por Barcelos (2003, p.237), "na ausência de um estudo mais aprofundado, a reserva do possível funcionou muitas vezes como o mote mágico, porque assustador e desconhecido, que impedia qualquer avanço na sindicabilidade dos direitos sociais".
Regulamentando esse uso, tem-se a seguinte decisão do Supremo Tribunal Federal:
[...]
É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico- financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.
Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.
Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível"
ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. [...] (STF, ADPF n. 45, Rel. Min. Celso de Mello, julg. 29.04.04, g.n.)
Dessa maneira, apresenta-se a teoria da reserva do possível como um contrapeso utilizado em decisões tanto administrativas como judiciais, que visem uma prestação material, devendo a decisão ser tomada mediante a ponderação dos interesses e disponibilidade financeira em questão; não cabendo o uso da reserva do possível apenas de apoio ao Poder Público na omissão social.

2.2.3.1 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

O princípio da proporcionalidade, inspirado em decisões da Corte Constitucional Alemã, insere-se na estrutura normativa da Constituição, ao lado dos demais princípios norteadores das regras constitucionais, ante a escassez de recursos de multiplicidade de necessidades sociais, impondo-se ao Estado a necessidade estabelecendo critérios e prioridades (SOUZA; PINHEIRO SAMPAIO, 2002).
Denota-se então a utilidade do princípio estudado não somente no âmbito das decisões da Administração Pública, mas também ao Judiciário, servindo como limite da atividade jurisdicional no que tange à aplicação da teoria da reserva do possível diante da efetividade dos direitos fundamentais constitucionais.
A respeito dessa proporcionalidade a ser empregada, tanto em decisões administrativas quanto jurisdicionais, quando conflitantes interesses indisponíveis, o Ministro Gilmar Mendes assim consagrou seu voto na decisão que julgou procedente pedido de intervenção federal no Estado de São Paulo, em face do não pagamento de precatórios judiciais:
em síntese, a aplicação da proporcionalidade se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou um conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o princípio da proporcionalidade. São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Tal como já sustentei (...) há de perquirir-se, na aplicação do princípio da proporcionalidade, se em face do conflito entre dois bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto é, apto para produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou seja, se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto). (Supremo Tribunal Federal, IF 139-1/SP; Órgão Pleno, Relator Ministro Gilmar Mendes, julgado em 19 de março de 2003).
A aludida ponderação, decorrente da aplicação da teoria da reserva do possível cumulada com o princípio da proporcionalidade, deve ser observada de forma ferrenha em todas as discussões que envolvam direitos constitucionais fundamentais, partindo sempre da premissa de que as necessidades são infinitas enquanto os recursos são limitados, servindo ainda de limite da atividade jurisdicional, adstrita à essa análise diferenciada, a fim de evitar o desrespeito à autonomia da Administração Pública em gerenciar seus recursos, e ainda ofensa aos direitos do cidadão consagrados constitucionalmente.
Abordando o tema, concluiu sabiamente Justen Filho (1998, p.118) que:
[...] a proporcionalidade se relaciona com a ponderação de valores. Não há homogeneidade absoluta nos valores buscados por um dado Ordenamento Jurídico, pois é inevitável atrito entre eles. Pretender a realização integral e absoluta de um certo valor significaria inviabilizar a realização de outros. Não se trata de admitir a realização de valores negativos, mas de reconhecer que os valores positivos contradizem-se entre si. Assim, por exemplo, a tensão entre Justiça e Segurança é permanente em toso sistema normativo. A proporcionalidade relaciona-se com o dever de realizar, do modo mais intenso possível, todos os valores consagrados pelo Ordenamento Jurídico, O princípio da proporcionalidade impõe, por isso, o dever de ponderar os valores.
Aplicando o estudo a casos concretos, verifica-se que na maior parte das vezes existe a adequação e a necessidade, consubstanciadas em relatórios médicos e demais atestados, porém, merece atenção especial a respeito da proporcionalidade em sentido estrito [02], que é a relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto, uma vez que, o direito a ser garantido ao paciente poderá ensejar detrimento à diversas ações de saúde que poderiam ser promovidas pelo ente público maior da população necessitada.

2.2.4 RESERVA DE CONSISTÊNCIA

Essa expressão foi extraída de Häberle (1997, p.42) que leciona:
colocado no tempo, o processo de interpretação é infinito, o constitucionalista é apenas um mediador (Zwischenträger). O resultado de sua interpretação está submetido à reserva da consistência (Vorbehalt der Bewährung), devendo ela, no caso singular, mostrar-se adequada e apta a fornecer justificativas diversas e variadas, ou ainda, submeter-se a mudanças mediante alternativas racionais.
Não obstante a atuação do Judiciário na concretização dos direitos constitucionais, este não está autorizado a determinar qualquer medida, estando sujeito aos limites da chamada ‘reserva de consistência’. Moro (2001, p.5):
no controle judicial de ato legislativo, cumpre ao julgador demonstrar com argumentos convincentes o acerto de sua interpretação da Constituição e o desacerto daquela que levou à edição do ato legislativo. [...] O limite da reserva de consistência impedirá, é certo, o Judiciário de concretizar normas fundamentais que demandam a adoção de políticas de certa complexidade.
Nesta senda, a reserva de consistência surge em um cenário em que ao julgador, é imputada determinada cautela ao decidir questões que ensejarem direitos a prestações materiais, no sentido de não determinar a efetivação de algum direito sem antes certificar-se acerca da disponibilidade de recursos e/ou meios para tanto, demonstrando-se assim a reserva de consistência meramente como um princípio, norteador da necessidade de fundamentação da decisão judicial:
ora, entendo que a denominada reserva de consistência nada mais é do que o princípio da necessidade de fundamentação das decisões judiciais, o qual obriga, inclusive como forma de legitimação, de que os juízes expliquem as razões de sua decisão, ou seja, o caminho lógico percorrido para a conclusão adotada naquele caso concreto (FREIRE JUNIOR, 2005, p.121).
Assim, não deve o Judiciário afastar-se da efetivação dos direitos constitucionais de 2ª dimensão [03], não servindo como óbice apenas a retrógada imputação da legislação positiva, todavia, deve ater-se aos limites já evidenciados, como a reserva do possível e a proporcionalidade, bem como também a reserva de consistência, fundamentando para tanto, suas decisões, a fim de garantir um procedimento mais justo, com menor onerosidade desnecessária à Administração Pública.
3. CONCLUSÃO
O presente estudo partiu da necessidade de melhor compreensão da realidade da saúde pública brasileira hodiernamente, ante o problema paradoxal entre a omissão do Estado, vezes por escassez de recursos, e a limitação imposta à atuação do Poder Judiciário nestes casos, em homenagem à tripartição dos poderes.
Como bem estudado, a saúde – e consequentemente o direito à vida – é o bem objeto de maior proteção constitucional, bem como por todo o sistema normativo vigente. Está assegurado na Constituição Federal o direito do cidadão à prevenção e proteção de sua saúde, e também o dever do Estado de prestar tal assistência. Nesse sentido, a Carta Magna não outorgou ao Estado o dever de apenas promover a saúde, tendo-lhe incumbido ainda a obrigação de proporcionar aos cidadãos outros direitos sociais.
Contudo, apesar de toda a garantia declarada, basta prestar atenção aos noticiários, e não muito longe, a seu cotidiano próprio para realizar que em um país onde faltam tantos direitos garantidos, como educação, moradia, saúde e emprego, é por demais pueril almejar uma eficácia plena da Lei Maior, inserindo-se a nação em uma incessante busca de aproximar o real do ideal.
A escassez dos recursos públicos é nítida e, segundo demonstrado, ao contrário das necessidades da população, os recursos são finitos. Diante dessa miserabilidade de orçamento, o Estado efetua escolhas, estabelecendo critérios e prioridades, e definindo políticas públicas a serem implementadas.
Entretanto, ao realizar suas escolhas, o Estado, por vezes, não considera a prioridade e sobre valência que revestem tais direitos, deixando muitas ações relativas à saúde à mercê da iniciativa privada, olvidando-se da existência de hipossuficientes, incapazes de prover-lhes a devida assistência. A vinculação do orçamento público aos objetivos constitucionais deveria ser estritamente observada.
Almejando preencher as lacunas deixadas pelo Poder Público, é que o Poder Judiciário intervém nessas relações, a fim de garantir ao cidadão, parte menos favorecida na relação, que o Estado cumpra com seu dever que lhe fora imposto constitucionalmente.
Nessa esteira, entretanto, o magistrado encontra óbices a sua intervenção com as alegações da discricionariedade da administração pública, a separação dos poderes e ainda o princípio da reserva do possível, utilizando o Poder Público estes argumentos como esteio para escusar-se de sua obrigação legal, que tem sido ainda confirmada via judicial.
Foi nesse momento que vieram à baila a teoria da reserva do possível, o princípio da proporcionalidade e ainda a reserva de consistência, apresentados como meio contundente a caminhar rumo a solução desse impasse sem ferir os ideais constitucionais.
As teorias e princípio aludidas, segundo estudado ao longo do trabalho, impõem limites razoáveis à decisão judicial, expandindo-se também às decisões administrativas, como maneira de buscar a proteção dos dois lados. Com isso, é forçada uma análise minuciosa da situação com o primordial fim de resguardar o direito à saúde sem abusos, por qualquer das partes, evitando que a decisão seja gravosa ao bem comum, em respeito ao individual.
Corroboram ainda a extrema importância de análise dessas teorias o fato de que a judicialização da saúde, por vezes, beneficia os mais abastados e esclarecidos, uma vez que muitos, mesmo que por falta de informação, não dispõem do fácil acesso à Justiça. É importante lembrar também que a falta de cuidado ao decidir pelo direito à saúde de quem está demandando individualmente, pode acarretar prejuízos à coletividade que igualmente dependem do sistema (SUS).
Desta maneira, depreende-se que, sendo o direito à saúde garantido constitucionalmente e imputado o dever de provê-lo ao Estado, este deve melhor ponderar os interesses em questão, promovendo a distribuição dos recursos de forma a atender satisfatoriamente essa garantia constitucional, elaborando políticas públicas eficientes que visem tanto a prevenção, quanto o tratamento.
Todavia, como é conhecido de todos, mesmo que hajam mudanças no sistema de saúde pública, os casos de omissão continuarão a existir, devendo o Poder Judiciário, analisando metodicamente a situação, ponderar entre a real necessidade, a disponibilidade de recursos públicos, aplicando-se ainda à análise a reserva do possível e proporcionalidade para, ao final, conceder uma tutela devidamente fundamentada, que não ocasione prejuízos futuros.
Ressalta-se ainda que as decisões que julgarem as demandas relacionadas aos direitos sociais, como no caso o direito à saúde, devem se pautar na reserva de consistência, demonstrando a motivação para tal decisão, com todos seus fundamentos jurídicos e fáticos.
Assim, ante o explanado no trabalho, percebe-se que, mesmo com as objeções à intervenção do Poder Judiciário na garantia da saúde pública, não deve ele afastar-se desse controle quando da omissão estatal, priorizando sempre, e em confronto com qualquer outra disposição constitucional, um dos direitos sociais mais importantes, senão o mais, qual seja o direito à saúde e à vida, como forma de fortalecimento da democracia, e não de afronta à separação dos poderes, como querem fazer ser.
Neste sentido tem sido o caminho percorrido pela jurisprudência dos tribunais superiores, que tende a buscar equilíbrio entre as partes envolvidas, preferindo o direito à saúde, sem, contudo, absolutizar toda e qualquer ação a ele relativa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

  1.  LIMA, Flávia Danielle Santiago. Em busca da efetividade dos direitos sociais prestacionais. Considerações acerca do conceito de reserva do possível e do mínimo necessário. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 51, out. 2001. Disponível em:<http://jus.com.br/artigos/2177>. Acesso em: 15 out. 2010.
  2.  Supremo Tribunal Federal, IF 139-1/SP; Órgão Pleno, Relator Ministro Gilmar Mendes, julgado em 19 de março de 2003.
  3.  "Os direitos de segunda dimensão são os direitos econômicos, sociais e culturais, bem como os direitos coletivos ou de coletividades. Foram consagrados a partir da influência da doutrina socialista e da teoria social da Igreja, como conseqüência da grave crise social advinda do período de industrialização, no século XIX. Partem das noções de igualdade e liberdade formais, trazidas pela primeira dimensão de direitos fundamentais, e traduzem primordialmente os direitos que, para serem concretizados, impõem ao Estado o dever de atuar positivamente, de modo a intervir na ordem econômica e social. Por isso são também denominados de direitos prestacionais, os quais são classificados pela doutrina em (i) direitos à proteção, (ii) direitos à organização e procedimento e (iii) direitos prestacionais em sentido estrito ou, simplesmente, direitos fundamentais sociais. (MÂNICA, Fernando Borges. Teoria da Reserva do Possível: Direitos Fundamentais a Prestações e a Intervenção do Poder Judiciário na Implementação de Políticas Públicas. Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, ano 5, n.18, p.169-186, jul./set.2007).

segunda-feira, 26 de junho de 2017

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Consumação e Tentativa – Desistência Voluntária e Arrependimento Eficaz








Consumação e Tentativa – Desistência Voluntária e Arrependimento Eficaz

Consumação e TentativaO Código Penal, em seu artigo 14, preocupou-se em conceituar o momento da consumação do crime, bem como quando o delito permanece na fase de tentativa (conatus), esclarecendo que o delito é tentado quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.
A ação é composta por duas fases: interna e externa. Na fase interna, o agente antecipa e representa mentalmente o resultado, escolhe os meios necessários a serem utilizados para o cometimento da infração, bem como considera os efeitos concomitantes que resultarão dos meios por ele escolhidos, e em seguida exterioriza a sua conduta, colocando em prática tudo aquilo que por ele fora elucubrado.
O iter criminis, assim, é composto pelas seguintes fases: a) cogitação (cogitatio); b) preparação (atos preparatórios); c) execução (atos de execução); d) consumação (summatum opus); e) exaurimento.
Cogitação é aquela fase do iter criminis que se passa na mente do agente. Aqui ele define a infração penal que deseja praticar, representando e antecipando mentalmente o resultado que busca alcançar.
Uma vez selecionada a infração penal que deseja cometer, o agente começa a se preparar com o fim de obter êxito em sua empreitada criminosa. Em seguida, depois da cogitação e da preparação, o agente dá início à execução do crime. Quando, efetivamente, ingressa na fase dos atos de execução, duas situações podem ocorrer: a) o agente consuma a infração por ele pretendida inicialmente; b) em virtude de circunstâncias alheias à sua vontade, a infração não chega a consumar-se, restando, portando, tentada.
Como a última fase do iter criminis, e somente em determinadas infrações penais, temos o chamado exaurimento. É a fase que se situa após a consumação do delito, esgotando-o plenamente.
Merece ser frisado que o iter criminis é um instituto específico para os crimes dolosos.
Segundo o inciso I do artigo 14 do Código Penal, diz-se consumado o crime quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal. A consumação, portanto, varia de acordo com a infração penal selecionada pelo agente. Podemos, dessa forma, dizer que ocorre a consumação nos crimes:
- materiais e culposos: quando se verifica a produção do resultado naturalístico, ou seja, quando há modificação no mundo exterior;
- omisssivos próprios: com a abstenção do comportamento imposto pelo agente;
- mera conduta: com o simples comportamento previsto no tipo, não se exigindo qualquer resultado naturalístico;
- formais: com a prática da conduta descrita no núcleo do tipo, independentemente da obtenção do resultado esperado pelo agente, que, caso aconteça, será considerado como mero exaurimento do crime;
- qualificados pelo resultado: com a ocorrência do resultado agravador;
- permanentes: enquanto durar a permanência.
A lei penal limitou-se a punição doa atos praticados pelo agente a partir de sua execução, deixando de lado a cogitação e os atos preparatórios. Em determinadas situações, o legislador entendeu por bem punir de forma autônoma algumas condutas que poderiam ser consideradas preparatórias, como nos casos dos crimes de quadrilha ou bando e a posse de instrumentos destinados usualmente à prática de furtos.
Essa punição somente acontece quando o legislador eleva à categoria de infração autônoma um ato que, por sua natureza, seria considerado preparatório ao cometimento de uma outra infração penal.
Dentre as inúmeras teorias que surgiram com a finalidade de definir a tentativa, podemos citar as seguintes:
- Teoria subjetiva: haveria tentativa quando o agente, de modo inequívoco, exteriorizasse sua conduta no sentido de praticar a infração penal. Essa teoria se satisfaz tão-somente com o fato de o agente revelar sua intenção criminosa através de atos inequívocos, não fazendo distinção entre atos preparatórios e atos de execução;
- Teorias objetivas:
. teoria objetiva-formal: segundo esse teoria, somente poderíamos falar em tentativa quando o agente já tivesse praticado a conduta descrita no núcleo do tipo penal. Tudo o que antecede a esse momento é considerado como ato preparatório. A teoria objetiva-formal indica a ação do tipo como elemento do início da execução. A tentativa se caracteriza pelo início da execução da ação do tipo: ações anteriores são preparatórias; ações posteriores são executivas;
. teoria objetiva-material: essa teoria busca ser um complemento da primeira, de natureza formal. Por intermédio dela se incluem ações que por sua necessária vinculação com a ação típica, aparecem como parte integrante dela, segundo uma natural concepção ou que produzem uma imediata colocação em perigo de bens jurídicos;
. teoria da hostilidade do bem jurídico: para se concluir pela tentativa teria de se indagar se houve ou não uma agressão direta ao bem jurídico.
Na verdade, não obstante os esforços expendidos por um grande número de doutrinadores a fim de demarcar a fronteira entre os atos preparatórios e os de execução, tal tarefa, mesmo nos dias de hoje, ainda não foi superado. Há atos que, com toda certeza, reputaríamos como preparatórios ao início da execução da infração penal, há outros também com absoluta certeza, entenderíamos como de execução.
Embora existam os atos externos, em que não há possibilidade de serem confundidos, a controvérsia reside naquela zona cinzenta na qual, por mais que nos esforcemos, não teremos a plena convicção se o ato é de preparação ou de execução. Ainda não surgiu, portanto, teoria suficientemente clara e objetiva que pudesse solucionar esse problema.
Se, no caso concreto, depois de analisar detidamente a conduta do agente e uma vez aplicadas todas as teorias existentes que se prestam a tentar distinguir os atos de execução, que se configurarão em tentativa, dos atos meramente preparatórios, ainda assim persistir a dúvida, esta deverá ser resolvida em benefício do agente. Segundo lição de Hungria, nos casos de irredutível dúvida sobre se o ato constitui um ataque do bem jurídico ou apenas uma predisposição para esse ataque, o Juiz terá de pronunciar non liquet, negando a existência da tentativa.
Para evitar que tais situações restassem impunes e também para não fugir à técnica legislativa de narrar, no tipo penal, como regra geral, a consumação da infração penal foram criadas as chamadas normas de extensão, como a prevista no inciso II do artigo 14 do Código Penal, fazendo com que se amplie a figura típica, de modo a abranger situações não previstas expressamente pelo tipo penal.
Entende-se, portanto, que nos casos de tentativa, quando a lei dela não fizer previsão expressa no tipo, haverá uma adequação típica de subordinação mediata ou indireta, pois que, para que se possa existir esta adequação, será necessário socorrer-se de uma norma de extensão.
Para que se possa falar em tentativa, é preciso que: a) a conduta seja dolosa, isto é, que exista uma vontade livre e consciente de querer praticar determinada infração penal; b) o agente ingresse, obrigatoriamente, na fase dos chamados atos de execução; c) não consiga chegar à consumação do crime, por circunstâncias alheias à sua vontade.
Se a tentativa é um tipo objetivamente incompleto, é, no entanto, do ângulo subjetivo, um tipo completo. De qualquer modo, para conceituar a tentativa, não basta o só desencadeamento do processo executivo de um fato, mas se exige também que de identifique a presença da vontade voltada na direção do resultado, que é a mesma do crime consumado.
Podemos distinguir a tentativa perfeita da imperfeita. Fala-se em tentativa perfeita, acabada ou crime falho, quando o agente esgota, segundo o seu entendimento, todos os meios que tinha ao seu alcance a fim de chegar à consumação da infração penal, que somente não ocorre por circunstâncias alheias à sua vontade. Diz-se imperfeita ou inacabada, a tentativa em que o agente é interrompido durante a prática dos atos de execução, não chegando, assim, a fazer tudo aquilo que intencionava, visando consumar o delito.
Não há possibilidade de falar-se em tentativa de contravenção penal, uma vez que a lei que rege a matéria, considerada especial em relação ao Código Penal, dispõe de modo diverso em seu artigo 4º, asseverando não ser punível a tentativa de contravenção.
Podemos falar que o crime admite tentativa toda vez que pudermos fracionar o iter criminis.
Crimes habituais: são delitos que, para se chegar à consumação, é preciso que agente pratique, de forma reiterada e habitual, a conduta descrita no tipo. Ou o agente comete a série de condutas necessárias e consuma a infração penal, ou o fato por ele levado a efeito é atípico. Embora seja essa a posição majoritária, não podemos descartar a hipótese de tentativa. Isso porque poderá o agente ter dado início à cadeia dos atos que, sabidamente, seriam habituais, quando é impedido de continuar a exercer o comportamento proibido pelo tipo, por circunstâncias alheias à sua vontade.
Crimes preterdolosos: fala-se em preterdolo quando o agente atua com dolo na sua conduta e o resultado agravador advém da culpa. Ou seja, há dolo na conduta e culpa no resultado; dolo no antecedente e culpa no conseqüente. Os crimes preterdolosos são delitos que, obrigatoriamente, para sua consumação, necessitam de um resultado naturalístico. Se não houver esse resultado, não há falar em crime culposo.
Crimes culposos: aqui o agente não atua dirigindo sua vontade a fim de praticar a infração penal, somente ocorrendo o resultado lesivo devido ao fato de ter agido com negligência, imprudência ou imperícia. Não se fala, portanto, em tentativa de crimes culposos, uma vez que se não há vontade dirigida à prática de uma infração penal não existirá a necessária circunstância alheia impeditiva de sua consumação. Não se cogita, não se prepara e não se executa uma ação dirigida a cometer um delito culposo. Contudo, a doutrina costuma excepcionar essa regra dizendo que na chamada culpa imprópria, prevista no § 1º do artigo 20 do Código Penal, que cuida das discriminantes putativas, pode-se cogitar de tentativa, haja vista que o agente, por questões de política criminal, responde pelas penas relativas a um delito culposo.
Há crimes nos quais a simples prática da tentativa é punida com as mesmas penas do delito consumado, v. g., artigo 352 do Código Penal – evasão mediante violência contra a pessoa.
Crimes unissubsistentes: são os crimes nos quais a conduta do agente é exaurida num único ato, não se podendo fracionar o iter criminis.
Crimes omissivos próprios: nessa modalidade de infração penal, ou o agente não faz aquilo que a lei determina e consuma a infração, ou atua de acordo com o comando da lei e não pratica qualquer fato típico.
Diz-se complexo o crime quando numa mesma figura típica há fusão de dois ou mais tipos penais. Pela definição podemos concluir que o latrocínio, sendo uma modalidade qualificada do delito de roubo, é um crime complexo.
Para Hungria, na subtração consumada e homicídio tentado, haveria aqui uma tentativa de homicídio qualificado. Fragoso e Noronha, analisando a mesma situação discordam, entendem que, havendo uma subtração consumada e um homicídio tentado, resolve-se pela tentativa de latrocínio.
Quando há homicídio consumado e subtração tentada surgem três correntes: a) a primeira delas (Frederico Marques) entende que houve um latrocínio tentado em virtude de ser um crime complexo; b) a segunda posição, encabeçada por Hungria, conclui que deve o agente responder tão-somente por homicídio qualificado, ficando afastada a punição pela tentativa de subtração; c) a terceira e majoritária posição, adotada pelo Supremo Tribunal Federal, basta que tenha ocorrido o resultado morte para que se possa falar em latrocínio consumado, mesmo que o agente não consiga levar a efeito a subtração patrimonial – Enunciado n.º 610 da Súmula da Corte Suprema: há crime de latrocínio quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima.
Fala-se em tentativa branca ou incruenta quando o agente, não obstante ter-se utilizado dos meios que tinha ao seu alcance, não consegue atingir a pessoa ou a coisa contra a qual deveria recair sua conduta.
Importante frisar que a tentativa branca, para que possamos concluir por alguma infração penal é preciso que se pesquise o dolo do agente. É necessário que, juntamente com a análise do conjunto probatório para identificação do dolo do agente, seja feita a seguinte indagação: a conduta do agente era dirigida finalisticamente a quê? Somente depois de respondida esta pergunta é possível imputar ao agente a prática de uma infração penal.
Para solucionar o problema da punição da tentativa, surgiram basicamente duas teorias: a subjetiva e a objetiva.
Segundo a teoria subjetiva, o agente que deu início aos atos de execução de determinada infração penal, embora, por circunstâncias alheias à sua vontade, não tenha alcançado o resultado inicialmente pretendido, responde como se a tivesse consumado. Basta, como se vê, que a sua vontade seja dirigida à produção de um resultado criminoso qualquer, não importando se efetivamente ele venha ou não ocorrer.
Já a teoria objetiva, adotada pelo Código Penal, entende que deve existir uma redução da pena quando o agente não consiga, efetivamente, consumar a infração penal. Tal regra, contudo, sofre exceções, como no caso em que o legislador pune a tentativa com as mesmas penas do crime consumado, prevendo-a expressamente no tipo. Não se fala em redução da pena nos moldes previstos no parágrafo único do artigo 14 do Código Penal, uma vez que a tentativa foi equiparada ao crime consumado. Por essa razão é que podemos concluir que o Código Penal adotou a teoria objetiva temperada, moderada ou matizada.
Em algumas ocasiões entendeu por bem o legislador punir a tentativa como se fora delito autônomo, deixando, assim, de ocorrer a adequação típica de subordinação mediata, como a aplicação da norma de extensão contida no artigo 14, inciso II do Código Penal, passando-se àquela de subordinação imediata ou direta.
Conforme redação do parágrafo único do artigo 14 do Código Penal, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços.
O percentual de redução não é meramente opção do legislador, livre de qualquer fundamento. Assim, visando trazer critérios que possam ser aferidos no caso concreto, evitando decisões arbitrárias, entende a doutrina que quando mais próximo o agente chegar à consumação da infração penal, menor será o percentual de redução; ao contrário, quando mais distante o agente permanecer da consumação do crime, maior será a redução.
Rogério Greco entende ser o dolo eventual completamente incompatível com a tentativa. Para o autor, a própria definição do conceito de tentativa impede de reconhecê-la nos casos em que o agente atua com dolo eventual. Acrescenta que quando o Código Penal, em seu artigo 14, inciso II, diz ser o crime tentado quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente, estar a induzir, mediante a palavra vontade, que a tentativa somente será admissível quando a conduta do agente for finalísitca e diretamente dirigida à produção de um resultado, e não nas hipóteses em que somente assuma o risco de produzi-lo, nos termos propostos pela teoria do assentimento. Defende que o artigo 14, inciso II do Código Penal adotou, para fins de reconhecimento do dolo, tão-somente a teoria da vontade.

Desistência Voluntária e Arrependimento Eficaz
Na primeira parte do artigo 15 do Código Penal encontramos a chamada desistência voluntária. A primeira ilação que se extrai desse artigo é que, para que se possa falar em desistência voluntária, é preciso que o agente já tenha ingressado na fase dos atos de execução. Caso ainda se encontre praticando os atos preparatórios, sua conduta será considerada um indiferente penal.
Na desistência voluntária o agente interrompe, voluntariamente, os atos de execução, impedindo, por ato seu, a consumação da infração penal, razão pela qual a desistência voluntária também é conhecida por tentativa abandonada.
Impõe a lei penal que a desistência seja voluntária, mas não espontânea. Isso quer dizer que não importa se a idéia de desistir no prosseguimento da execução criminosa partiu do agente, ou se foi ele induzido a isso por circunstâncias externas que, se deixadas de lado, não o impediriam de consumar a infração penal.
Muito embora satisfaça somente o requisito da voluntariedade para se caracterizar a desistência, é preciso saber exatamente como identificar a sua ocorrência.
Com o escopo de resolver esse problema, a fim de se distinguir quando do agente desistiu voluntariamente d quando não chegou a consumar o crime por circunstâncias alheias a sua vontade, deve-se aplicar ao caso concreto a chamada “Fórmula de Frank”. Na análise do fato, e de maneira hipotética, se o agente disse a si mesmo “posso prosseguir, mas não quero”, será o caso de desistência voluntária, porque a interrupção da execução ficará a seu critério, pois ainda continuará sendo o senhor de suas decisões; se, ao contrário, o agente disser “quero prosseguir, mas não posso”, estaremos diante de um crime tentado, uma vez que a consumação só não ocorrera em virtude de circunstâncias alheias à vontade do agente.
Depois que o agente desistiu de prosseguir na execução, deve-se verificar qual ou quais infrações penais cometeu até o momento da desistência, para que, nos termos da parte final do artigo 15 do Código Penal, por elas possa responder.
A finalidade desse instituto é fazer que com que o agente jamais responda pela tentativa. Isso quer dizer que se houver desistência voluntária o agente não responderá pela tentativa em virtude de ter interrompido, voluntariamente, os atos de execução que o levariam a alcançar a consumação da infração penal por ele pretendida inicialmente. Ao agente é dado do benefício legal de, se houver desistência voluntária, somente responder pelos atos já praticados, isto é, será punido por ter cometido aquelas infrações penais que antes eram consideradas delito-meio, para a consumação do delito-fim.
Situação sempre apontada pela doutrina é aquela que diz respeito ao agente que, possuindo um único projétil em sua arma de fabricação caseira, dispara-o, agindo com dolo de matar, contra o seu desafeto e, por circunstâncias alheias à sua vontade, atinge-o em região não letal. A pergunta que se faz, in casu, é: o agente poderia alegar desistência voluntária, respondendo somente pelas lesões por ele já praticadas?
Como se percebe, o agente, depois de efetuar seu único disparo possível, esgotou seus atos de execução, razão pela qual ficará afastada a possibilidade de ser alegada desistência voluntária, haja vista que este necessita, para ser argüida, que o agente ainda esteja praticando, ou, pelo menos, possa praticá-los.
Fala-se em arrependimento eficaz quando o agente, depois de esgotar todos os meios de que dispunha para chegar à consumação da infração penal, arrepende-se e atua em sentido contrário, evitando a produção do resultado inicialmente por ele pretendido.
Quanto à natureza jurídica da desistência voluntária e do arrependimento eficaz, Hungria entende serem causas de extinção da punibilidade não previstas no artigo 107 do Código Penal. Em sentido contrário, Frederico Marques concluiu que é o caso de atipicidade do fato, uma vez que o legislador retirou a possibilidade de ampliação do tipo penal com norma de extensão relativa à tentativa (artigo 14, inciso II do CP).
Para diferenciar os institutos da desistência voluntária e do arrependimento eficaz, deve-se observar que, na primeira, o processo de execução do crime ainda está em curso; por outro lado, no arrependimento eficaz, a execução já foi encerrada.
Embora o agente tenha voluntariamente desistido de prosseguir na execução ou, mesmo depois de tê-la esgotado, atua no sentido de evitar a produção do resultado, se este vier a ocorrer, o agente não será beneficiado com a desistência voluntária ou com o arrependimento eficaz.

Fonte: Curso de Direito Penal – Parte Geral. Rogério Greco.