Resistir não é barbárie
Resistir não é barbárie
A medida jurídica e policial de desocupação efetivada na noite fria do dia 14 de junho de 2017, no Centro Histórico de Porto Alegre/RS, revelou aos olhos de todos os gaúchos e as gaúchas a violência e o poder de repressão da mão Estatal, que triste, ilegal e arbitrariamente, lançou a rua pessoas, crianças, mulheres e idosos, mais de 65 famílias que habitavam um prédio público abandonado pelo Estado há mais de anos.
O movimento social chamado Lanceiros Negros legitimamente ocupava há mais de dois anos o referido prédio, propugnando pela efetivação de um direito social, humano e fundamental, que é a moradia.
Em meio a decisões judiciais, em processo que tramitava a mais de ano no judiciário, o Estado do Rio Grande do Sul na fatídica noite fria, véspera de um feriado, lançou mão de todo o seu aparato repressor e promoveu a força e a violência o cumprimento da ordem judicial de reintegração de posse concedida pelo Poder Judiciário.
Imagens que circulam pela mídia local dão conta do emprego de grande efetivo policial: helicóptero, polícia de choque e de operações especiais, cavalaria, além do emprego de bombas de gás lacrimogênio, spray de pimenta, afora a utilização da força, com a efetivação de prisões.
Segundo a própria mídia dá conta, não houve possibilidade de mediação, tampouco teriam sido cumpridas todas as determinações judiciais impostas à reintegração, como a presença do Conselho Tutelar ao local, Corpo de Bombeiros, SAMU, além da leitura do mandado de reintegração ou a sua entrega às lideranças.
Não houve sequer estabelecimento de um prazo a desocupação voluntária. No meio, então, de todo esse aparato repressor e ao menos inicialmente ilegal, homens e mulheres, além de um Deputado Estadual, restaram presos.
Longe de sequer respeitadas às imunidades parlamentares, as quais aplicáveis à espécie e aos Deputados Estaduais, na medida do que dispõe a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 53, e a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, em seu artigo 55, permitida a prisão em flagrante apenas em caso de crime inafiançável, comunicável à Casa Legislativa em 24 horas para que resolva sobre a prisão; o fato é que as demais prisões também não se sustentam e, assim, maculam qualquer procedimento posterior firmado em nome destas.
Sabemos que a Constituição Federal de 1988, justamente por que em período anterior ao da redemocratização do país, ou seja, quando da ditadura civil-militar, tinha-se como prática as chamadas prisões para averiguação e os desaparecimentos forçados, restringiu a privação da liberdade há duas hipóteses apenas: em caso de flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente.
Em sendo assim, qualquer prisão, qualquer privação de liberdade fora deste parâmetro constitucional é ilegal, incidindo a autoridade pública que assim o fizer em crime de abuso de autoridade.
Logo, no caso em comento, não estamos falando em ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, por que o mandado de reintegração de posse não tinha e nem poderia ter essa extensão, ainda que fizesse referência ao uso da força, assegurando o seu cumprimento, inclusive por meio da Polícia Militar.
Resta-nos, portanto, o flagrante delito. E quando ocorre o flagrante delito?
O artigo 302 do Código de Processo Penal é quem nos diz: quando se está cometendo infração penal; quando se acaba de cometê-la; quando se é perseguido, logo após, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; ou, quando se é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papeis que façam presumir ser ele o autor da infração.
Aqueles mais afoitos, portanto, logo responderiam pela legalidade da prisão, na medida em que a resistência ao cumprimento de uma ordem legal ou a desobediência a uma determinação judicial são situações que configuram infrações penais descritas como crime no Código Penal.
Entretanto, tanto o crime de resistência, o qual exigiria oposição à execução de ato legal, mediante o emprego de violência ou ameaça a funcionário competente para tanto, o que não se verifica em qualquer das imagens; quanto à desobediência a ordem legal de funcionário público; são infrações de menor potencial ofensivo, por que possuem pena máxima não superior a dois anos, portanto, sujeitas as disposições da Lei nº 9.099/95, que diz com os chamados Juizados Especiais Criminais.
Isso significa que ensejam apenas a confecção de termo circunstanciado e a impossibilidade de imposição de prisão em flagrante, caso o autor do fato, após a lavratura do termo, seja imediatamente encaminhado ao juizado ou assuma o compromisso de a ele comparecer.
Não são crimes inafiançáveis, portanto, no caso do Parlamentar, a situação se revela ainda mais ilegal, afrontadora de qualquer princípio democrático e republicano brasileiro. Aliás, revela a inexistência de limites ao arbítrio estatal. O que é extremamente perigoso, conforme a história deveria ter nos ensinado.
Além disso, não podemos nos esquecer de que qualquer restrição da liberdade enseja assegurar uma série de garantias e de direitos, tais como: a inadmissibilidade da incomunicabilidade, seja por que tempo o for, já que prática equiparada à tortura, inclusive, tal como a permanência em veículos oficiais ou viaturas por tempo superior ao necessário ao deslocamento à instituição; o acesso a um defensor; o esclarecimento dos seus direitos; a identificação de quem efetuou a sua prisão, bem como que seja esclarecido acerca de qual crime está cometendo; a inadmissibilidade da tomada de qualquer depoimento ou declaração sem a presença de um advogado ou defensor, entre outros.
Ao bem da verdade, portanto, a noite fria do dia 14 de junho de 2017 nos mobiliza tanto, por que desvela a faceta repressiva do Estado e a tentativa de criminalização dos movimentos sociais. Torna um caso de polícia a defesa legítima de um direito, expõe a toda sorte de violência, famílias, crianças, mulheres, idosos, pessoas, seres humanos, como todos nós, que buscam nada mais do que o seu quinhão legitimamente.
Mas essa história não é de agora, é de há muito tempo atrás, tanto que HOLLOWAY (1997) afirma ao estudar a Polícia no Rio de Janeiro, no século XIX, que o nascimento da instituição policial foi fundamental para o mundo moderno, pois foi através dela que o poder do Estado invadiu o espaço público para controlar e dirigir o comportamento das pessoas.
No caso brasileiro, no entanto, tal sempre se destinou a uma determinada parcela da sociedade, aquela vista aos olhos de uma elite com atributos negativos: uma vez que não possuíam riqueza, nem poder, e nem status.
Talvez seja por isso que Holloway nos brinda com tão importante reflexão:
Na medida em que as instituições estatais refletem e defendem os interesses de uma classe ou classes específicas, a coerção não é apenas uma ameaça, ela é imposta, e resistir a essa coerção não é barbárie, mas reflexo de sua humanidade.
E os Lanceiros Negros, assim, refletem a sua humanidade. Resistam Lanceiros! Por que resistir não é barbárie!
REFERÊNCIAS
HOLLOWAY, Thomas. H. Polícia no Rio de Janeiro. Repressão e Resistência numa cidade do Século XIX. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.