segunda-feira, 14 de agosto de 2017

A ‘vibe’ do suicídio

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A ‘vibe’ do suicídio

No momento em que o suicídio é revelado entre as principais causas de morte de adolescentes, o mundo começa a sentir a necessidade de renunciar ao método da cegueira voluntária para enfrentar a problemática com a atenção que o tema requer.
A preocupação com os filhos, acima de qualquer outra aflição, se destaca nessa guerra do homem contra si mesmo. O que parecia isolado, agora nos desafia como uma tragédia que recai sobre uma juventude inteira. A Geração Beat sugeria jogar tudo pela janela, mas a atual vai além, ela se joga pela janela.
O desejo pela autodestruição pode advir de uma série de fatores, desde as simples decepções amorosas até as concepções fanáticas em nome de um deus ou de certas convicções políticas.
É certo que nem sempre o fatídico decorre de um estado depressivo que ultrapassa os limites do suportável, embora este seja o diagnóstico mais frequente. Em alguns casos, o indivíduo é levado a suprimir a sua vida ou a permitir que alguém o faça em um rompante altruísta, no sentido de salvar a sua família ou a própria nação.
São os casos, por exemplo, do pai que trava luta corporal com um animal feroz até que seus filhos cheguem a um local seguro, do mesmo modo que um soldado, no isolamento da trincheira, retarda o avanço do inimigo a fim de viabilizar a inteira retirada dos seus colegas de farda.
Contudo, dispensável o embasamento em dados estatísticos para se admitir que não são as manifestações de amor que costumeiramente levam alguém ao encontro com a morte.
Alguns dizem que a capacidade de se matar não é restrita aos seres humanos. Há discussões no âmbito científico se realmente o escorpião lança o ferrão em seu próprio dorso quando encurralado por um círculo de fogo ou se essa reação somente ocorre no imaginário popular.
Igual debate se dá em relação às baleias, que inspiram o nome do covarde jogo da Blue Whale. Controvérsias à parte, jamais esquecerei os relatos de um veterano da Guerra do Vietnã, que em seu livro sobre o front comenta a respeito do suicídio dos elefantes após presenciarem a execução brutal dos seus donos como efeito da bestialidade da guerra.
Segundo o autor, esses animais costumavam se projetar contra as árvores até sucumbirem. De qualquer modo, o certo é que os irracionais também reagem de forma surpreendente diante do medo, do desespero e da solidão. O desfecho mais comum é a morte por inanição.
Para Erich Fromm, psicanalista, filósofo e sociólogo alemão (1900-1980), a solidão é o principal motivo do suicídio e é por isso que o homem tende a se associar a alguma coisa maior do que ele, como uma igreja, um partido político, um movimento qualquer, um sindicato ou até mesmo a uma torcida organizada.
É claro que alguns exemplos de suicídios coletivos, como os ocorridos no Gueto de Varsóvia, colocam em xeque essa tese, mas é fundamental ponderar que a solidão também pode atingir a coletividade, independentemente de suas vítimas compartilharem o mesmo espaço físico.
O mundo tecnológico tem afastado o homem dos seus semelhantes. Ao longo do dia, disparamos inúmeras mensagens via wathsapp, e-mail ou SMS com a sensação de que estamos cumprindo a nossa cota de socialização.
Jogamos videogame com o mundo inteiro pelo multiplayer na companhia de parceiros  sem rosto, enquanto a televisão se impõe como a principal interlocutora, construindo, em conluio com a Internet, verdades raramente contestadas.
Como efeito, o homem vai se isolando paulatinamente, em razão de não possuir mais a condição de entender o processo de evolução tecnológica que o atropela. Pensar parece não ser mais um de seus atributos. Quem sabe, em um dia qualquer, o vazio agravado pela perda do sinal WI-FI não o convidará à covardia da morte?
A expressão máxima do suicídio foi alcançada por Mary Shelley  (1797-1851), em seu romance Frankenstein, escrito por ocasião da disputa com Lord Byron sobre quem conseguiria escrever o conto mais horripilante.
Levando em consideração a época que antecedia a Revolução Industrial, nada mais assustador quanto à discussão sobre os limites entre o divino e o humano, reabrindo o que há de mais elementar no campo filosófico: de onde vim, para onde vou?
O ser criado pelo cientista Victor Frankenstein não era um monstro, exceto na sua aparência, o que bastou para ser rejeitado pelo seu criador e por todos com quem teve o desprazer de se expor.
Por essa razão, passou a viver recluso na floresta, onde pôde contemplar, à distância, a rotina de uma família de camponeses, experimentando, esporadicamente, a companhia generosa de um ancião completamente cego. Porém, quando visto pelos demais, foi atacado e banido em razão de suas feições.
Assim, dedicou-se a perseguir o seu criador para exigir o direito que lhe foi negado, ou seja, o de ser feliz no convívio com o próximo. A intransigente recusa do cientista fez com que a criatura fosse tomada de cólera e assassinasse os parentes mais próximos do seu criador.
Experimentada a dor da perda, Victor Frankenstein se sente castigado por Deus e acaba reduzindo sua vida ao desiderato da vingança, morrendo ao relento. Para a criatura, a ausência do seu criador significava que estava totalmente só, sem qualquer esperança de salvação.
Perdido em meio a intenso sofrimento, conspira para o próprio martírio.
Obviamente, Shelley venceu o concurso de contos tenebrosos. Pior do que o sobrenatural, só o que diz respeito à natureza humana. A capacidade de autodestruição é inerente a todos e não há quem possa se sentir imune às razões que nos levam a antecipar o inevitável.
Prudente é aquele que não paga para ver e não vacila ao vigiar seus impulsos, pois muitos iniciam o processo suicida sem ao menos perceber, seja pelo álcool, drogas, esportes ultrarradicais, excesso de velocidade ou de trabalho. Podem chamar de fuga, mas na realidade é suicídio.
O homem que se mata, entende a morte menos traumática do que a vida; pretende escapar da angústia que as circunstâncias lhe causam; extermina o corpo para aniquilar as lembranças que degeneram os seus pensamentos e comprometem tudo o que tende a vir pela frente.
Com exceção daqueles que ceifam a própria vida sem querer, na tentativa histérica de chamar a atenção, o suicida procura consumar a tragédia com perfeição, muitas vezes digna de um espetáculo cinematográfico, requinte fúnebre que nos faz lembrar alguns versos de Bocage:
“quando a morte a luz me roube, ganhe um momento o que perderam anos, saiba morrer o que viver não soube”.
A modernidade fez com que o suicídio saísse dos livros e ganhasse espaço nos filmes. Impossível esquecer o realismo com que o problema é tratado na obra Setembro, de Woody Allen.
Na mesma linha, outros ganharam mais notoriedade como os aclamados Ensina-me À Viver, Justiça Para Todos, Nascido Para Matar e Sociedade dos Poetas Mortos.
Na música, a banda inglesa Pink Floyd chocou o mundo com as cenas de autoflagelação, mas foram os conterrâneos do Judas Priest que acabaram condenados pela justiça, em razão de um jovem ter se enforcado enquanto ouvia a faixa de um dos seus mais famosos álbuns.
Nos anos noventa, o grupo Suicidal Tendences chegou a estar no Top Ten dos Estados Unidos. Entretanto, nada se compara à maneira como o assunto vem se destacando nos dias atuais.
Apenas como exemplo, uma das séries com mais audiência no mundo em 2017, produzida pela Netflix, chama-se 13 Reasons Why, cujo enredo versa sobre uma adolescente que corta os pulsos em consequência do incessante bulling sofrido na escola, além de outras formas de violência.
A onda de suicídios promovida pelo jogo Baleia Azul forçou a quebra do tabu na imprensa. Desde então, uma série de matérias vem sendo publicadas para provocar o debate.
Pesquisas apontam que no Brasil o suicídio já deve ser compreendido como uma questão de saúde pública, envolvendo pessoas de todas as idades, incluindo até mesmo crianças na faixa etária de nove anos.
No caso brasileiro, a miséria humana chega a níveis tais que chega a ser tão difícil saber o que leva uma pessoa a se matar quanto a querer estar viva. Claro que eu não estou me referindo ao grupo que corresponde a menos de um por cento da população, que possui emprego, recebe um salário digno, tem plano de saúde e possui casa própria.
Penso na quase totalidade que quando empregada se pergunta por quanto tempo terá o privilégio de exercer atividade laboral, vive para pagar as despesas ordinárias e mantém o telefone desligado para não ser importunada pelas empresas de cobrança.
Quando fica sem trabalhar, entra na disputa para virar as latas de lixo da cidade em busca de comida.
É verdade que a desgraça financeira não pode ser a única responsável por tirar o brilho da vida. Mesmo entre os mais ricos é possível encontrar muito mais do que treze razões para não desejá-la.
Nesse meio é também crescente a desagregação familiar e o estranho orgulho de ser desapegado a tudo e a todos, com exceção daquilo que tenha valor de mercado.
Não podemos nos ludibriar pelo que se vê no Instagram o no Facebook, nos quais não somos constituídos de carne e osso, mas por uma massa desforme cuja futilidade é o ingrediente principal.
As fotos que intrinsicamente nos enviam mensagens de “olha o meu carro novo”; “vejam que hotel luxuoso eu estou”, “vejam como sou sexualmente irresistível”, “vejam como o meu abdômen está definido”, “vejam como sou destemido” só comprovam a necessidade de camuflar o conhecido vazio que conduz ao suicídio.
Detalhe curioso é que para esse mal que agora nos assola não temos o Direito Penal como aliado. Nos últimos anos, os brasileiros vêm defendendo a criminalização de todos os comportamentos indesejáveis, como se a ameaça da imposição da pena fosse a solução para todos os pecados.
Ocorre que segundo a legislação pátria, o suicídio não é crime, e nem poderia ser. Segundo a corrente doutrinária dominante, para que um fato ganhe o status de infração penal, deve ser típico, antijurídico e culpável, ou seja, definido em lei, contrário ao ordenamento jurídico e que possa recair sobre o autor a responsabilidade penal.
A análise quanto à existência do delito precisa ser realizada pela verificação da presença desses elementos, rigorosamente nessa ordem.
Não obstante o suicídio ser considerado um fato antijurídico – porque não é dado a ninguém o direito de se matar, levando-se em conta que o Estado deve proteger a vida, bem jurídico indisponível – não é típico. O que está prevista no Código Penal Brasileiro é a conduta daquele que induz, instiga ou auxilia alguém ao suicídio.
O indivíduo que o consuma, consequentemente extingue a punibilidade pela morte. A tentativa também não é punível, pois se o suicídio consumado não é crime, a sua forma frustrada não poderia ter outro tratamento. Se o agente pode mais, forçoso concluir que também pode menos.
E por amor ao debate, se existisse uma brecha legal para punir o suicida mal sucedido, certamente ele encontraria o motivo para renovar o intento ainda com mais precisão.
Chegou a hora de colocar a sociedade no banco dos réus. Quando um jovem é asfixiado pelo nó de forca ou se lança em voo eterno do alto de um prédio, não há sequer um único inocente.
Qualquer pessoa poderia ter feito algo para tentar evitar. O silêncio diante da agonia alheia constitui a prova que nos incrimina e nos condena.
Aquele que nega a sua parcela de culpa poderá ver a própria imagem refletida no espelho sorrindo de desdém, como a personagem criada por Albert Camus (1913-1960), no livro A Queda, que ao passar por uma ponte, ouve o som do mergulho de uma pessoa que se lança às profundezas do rio, mas nada faz.
Dependendo da concepção que possamos ter da vida, realmente fica impossível compreender o suicídio, e mais ainda desviar alguém desse caminho. Viver significa simplesmente respirar. Tendo sorte, conseguimos amar, e com mais sorte ainda, alcançamos o êxtase de sermos amados.
Quando a ideia do que seja viver passa a ter o mesmo sentido de alcançar sucesso no campo profissional, amoroso e financeiro, o suicídio caminha ao lado e nos espera na curva.

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