A hermenêutica, enquanto problema teórico autônomo, é algo que se põe no contexto do renascimento e ganha fôlego com a reforma protestante e a questão da recepção do direito romano.
[1] Por óbvio, isso não significa que a filosofia não conhecesse problemas envolvendo a compreensão e a interpretação antes desse marco temporal. Na verdade, questões elementares para o tratamento atual do problema da interpretação, tais quais as relações entre todo e parte que presidem a lógica do círculo hermenêutico, possui um desenvolvimento ligado às regras da retórica
[2] e podem ter seus rudimentos encontrados já em Aristóteles e em seu
Peri hermeneias.
[3]Todavia, a palavra posta assim, como título de livro e com uma intenção metodológica mais ou menos precisa, só aparece em 1654 com o teólogo J. Dannhauer.
[4] Desde então, distingue-se entre uma hermenêutica
sacra(arte de interpretar as Sagradas Escrituras), uma hermenêutica
juris (que cuida da arte de interpretar corretamente os textos jurídicos), e uma hermenêutica
profana (também chamada de filológica, considerada a arte de interpretar os textos clássicos da literatura).
Nesse contexto - é conveniente destacar - a aproximação entre um âmbito e outro tinha lugar em face do caráter normativo comum a todos (pensemos, na hermenêutica teológica, na pregação e, na hermenêutica jurídica, na solução dos casos jurídicos) e na correlata conclusão de que não importava tematizar a hermenêutica como simples arte; mais do que isso, fazia-se necessário alcançar a correção da compreensão.
Essa intencionalidade corretiva, todavia, não estava preocupada com a dificuldade de compreender uma tradição e os mal-entendidos que ela pode produzir na mente do intérprete, mas, antes, preocupava-se em trazer para a superfície um contexto cultural de origens esquecidas, possibilitando-lhe uma nova compreensão. Com afirma Hans-Georg Gadamer, a hermenêutica, neste contexto, buscava alcançar uma nova compreensão daquilo que se havia corrompido, por distorção ou mau uso, nos âmbitos de suas especialidades: a
Bíblia, pela tradição magisterial da Igreja, que a reforma pretendia superar; os
clássicos da literatura, corrompidos pelo latim bárbaro da escolástica e que os humanistas queriam salvar a partir de um retorno ao classicismo; o
direito romano, pela jurisprudência regionalista, que o direito científico das universidades – mais tarde tema da chamada “recepção” – pretendia compreender de forma mais correta por meio de seus métodos e análises.
[5]
Essas hermenêuticas especiais, contudo, não se constituem almejando algum objetivo filosófico. Ao contrário, são fortemente fragmentárias, seus objetivos são, no mais das vezes, didáticos, de apoio das disciplinas principais do conhecimento teológico, humanístico ou jurídico, e suas metodologias fundamentais eram extraídas das antigas gramática e retórica.
Muito do que ainda se afirma sobre a hermenêutica em muitos círculos jurídicos continua vinculado, ainda que de forma inconsciente, a esse modelo “clássico”, por assim dizer. Com efeito, no pensamento jurídico brasileiro em específico, a tradição criada a partir do livro de Carlos Maximiliano,
Hermenêutica e Aplicação do Direito[6], posiciona-se dessa maneira, considerando a hermenêutica como mera disciplina acessória, de auxílio na interpretação dos textos jurídicos.
Nalguns casos, continua-se a falar em métodos ou estratégias interpretativas completamente anacrônicos, como é o caso do chamado “método gramatical”, que até poderia fazer algum sentido em uma época na qual pouquíssimas pessoas eram letradas e conheciam as regras formais da língua, mas que não possui nenhuma relevância substancial em um contexto em que o conhecimento da estrutura sintática da língua não está restrita (ou não deveria estar...), digamos assim, a um “monastério de sábios”.
A hermenêutica mais contemporânea, todavia, representa algo maior do que simplesmente um repositório de métodos para auxiliar o intérprete em sua tarefa de compreensão do direito. Trata-se de verdadeira filosofia e, portanto, não de uma disciplina acessória, mas sim fundante e, em termos gadamerianos, vinculadas à própria existência e sua vinculação com a linguagem.
Assim, e encurtando uma história que é longa, a hermenêutica atingirá pela primeira vez o status de filosofia somente na modernidade, mais especificamente no romantismo alemão, com F. Schleiermacher. Esse autor – por sinal também teólogo – estabeleceu as bases para se pensar a hermenêutica enquanto teoria universal do compreender e do interpretar, desvencilhando-a daqueles saberes dogmáticos que a impulsionaram no contexto do século XVII.
Schleiermacher pensou essa universalidade da hermenêutica em uma perspectiva formal, do método único. Vale dizer: independentemente da região do conhecimento a que se esteja vinculado, o método para evitar o mal-entendido é sempre o mesmo.
Nesse contexto, o sentido normativo básico de sua hermenêutica passa a ser o seguinte: compreender, de modo a afastar os mal-entendidos, significa a “repetição da produção originária de ideias, com base na congenialidade dos espíritos”.
[7] Ou seja, para compreender corretamente um texto o intérprete precisa reduzir a distância temporal que o separa de seu objeto, afastar seus pré-conceitos, e desenvolver uma experiência que equipare o seu espírito com o daquele que criou o texto.
É interessante pontuar, também, que em Schleiermacher uma exploração da estrutura circular da compreensão posta na relação parte-todo e todo-parte, ou seja, compreende-se melhor a parte na medida em que se projeta um sentido mais adequado do todo e, por outro lado, compreende-se melhor o todo na medida em que se esclarece o sentido da parte, aplicada à reconstrução da subjetividade do autor – dimensão subjetiva – e também do texto – dimensão objetiva. No desenrolar desse procedimento, os pré-juízos ou pré-conceitos são nocivos para a correta compreensão e o intérprete, para atingi-la, deve deles se livrar.
Anote-se: a compreensão representa uma comunhão de subjetividades (ou uma congenialidade): a do intérprete com a do autor do texto.
Esse caráter fundante desempenhado pela subjetividade, que levará a hermenêutica Schleiermacheriana a ser nomeada como
psicologicista, continuará presente em outro importante autor para a hermenêutica e para as ciências humanas que é Wilhem Dilthey. Do ponto de vista filosófico, é possível afirmar que, em alguma medida, Dilthey levou adiante o projeto hermenêutico de Schleiermacher. Com efeito, embora a hermenêutica em Dilthey acabe retornando para um papel de disciplina auxiliar – que oferece subsídios para a fundamentação sistemática das ciências do espírito – alguns elementos fortes em Schleiermacher, como é o caso do psicologismo do processo de reconstrução das subjetividades, reaparecem em Dilthey naquilo que pode ser nomeado como “doutrina do gênio”.
[8]
A hermenêutica filosófica, proposta pelo mais influente filósofo do ambiente hermenêutico que é Hans-Georg Gadamer, é algo bastante distinto daquilo que se projeta em Schleiermacher e Dilthey. Em primeiro lugar, a universalidade da hermenêutica ancora-se na linguagem e sua dimensão existencial e não em uma perspectiva formal-metodológica.
Por outro lado, a subjetividade cede o lugar de protagonista para a tradição e para uma consciência que se sabe produto dos efeitos da história. Por fim, a carga pré-compreensiva de pré-conceitos, bem como a distância temporal que separa texto e intérprete não são obstáculos a serem superados, mas, sim, aliados deste na empreitada interpretativa.
Todos esses elementos geram um quadro que permite pensar o problema hermenêutico fora do polo da subjetividade, abrindo caminho para uma série de filosofias que compartilham esse pressuposto e que podemos nomear como “paradigma da intersubjetividade”.
Na visão de Gadamer, destacam-se: a reabilitação da autoridade da tradição; a valorização dos pré-conceitos para o acontecimento da compreensão; e a distância temporal como fator determinante para o desenvolvimento de horizontes interpretativos mais adequados.
A isso, soma-se uma preocupação com a objetividade da interpretação e da necessidade de valorização da “alteridade do texto”, para que este último não seja sufocado pelos pré-conceitos que o intérprete inevitavelmente traz consigo. Vale dizer, embora seja impossível o intérprete atingir a compreensão de um texto despido de seus pré-juízos, aquele que deseja compreender corretamente um texto deve, no desenvolvimento do círculo da compreensão (círculo hermenêutico) suspender seus pre-conceitos/pré-juízos permitindo que o texto “lhe diga algo”.
Há que se ter presente, portanto, que a hermenêutica contemporânea, principalmente aquela que nos vem de Gadamer, é antitética à subjetividade assujeitadora do mundo e abre o problema da interpretação, inclusive aquela que se ocupa do material jurídico, para os caminhos da intersubjetividade. Esse aspecto é paradigmático e o teor dessa descoberta é tão importante que espalha efeitos para outros grandes filósofos contemporâneos, tais quais Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas.
Trata-se, como bem diz Franca D’Agostini, da recuperação do conceito de
participação no interior do qual a “razão” humana é pensada como parte de uma racionalidade que pertence sobretudo ao ser, e não à autoconsciência.
[9]
Quando nos movemos no mundo do sentido, compreendendo e interpretando, não o fazemos a partir de nossa consciência apartada do mundo. Movemo-nos, desde sempre, naquilo que, a partir de Herbert Schnädelbach, podemos chamar de
a priori compartilhado.
[10] Os sentidos, portanto, não dependem da consciência de quem compreende ou interpreta (no caso do direito, o exemplo privilegiado é o do julgador), mas, sim, de sua inserção em um mundo repleto de significados compartilhados intersubjetivamente.
[1] Para uma análise aprofundada da relação entre hermenêutica e modernidade, consultar STRECK, Lenio Luiz.
Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 11 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, em especial o capítulo 10.
[2] Cf. GRONDIN, Jean.
Qué es la hermenéutica. Barcelona: Herder, 2008, Kindle Edition, pos. 93.
[3] Nesse sentido, Cf. HEIDEGGER, Martin.
Ontologia – Hermenêutica da Faticidade. Petrópolis: Vozes, 2012, pp. 17-18.
[4] Cf. GADAMER, Hans-George.
Verdade e Método II. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 113.
[5] Cf. GADAMER, Hans-George.
Verdade e Método II. op., cit., p. 115.
[6] MAXIMILIANO, Carlos.
Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2002.
[7] GADAMER, Hans-George.
Verdade e Método II. op., cit., p. 119.
[8] Cf. STEIN, Ernildo.
Racionalidade e Existência: o Ambiente Hermenêutico e as Ciências Humanas. 2 ed. Ijuí: Unijuí, 2008, p. 49. Explicando a referida doutrina, Stein pontifica: “Os gênios, segundo Dilthey, têm a capacidade de, no universo singular da obra literária, por exemplo, apanhar sua universalidade; de, no universo singular dos fatos históricos, apanhar o elemento universal; eles produzem
necessidade e
verdade dos fatos humanos mediante uma aplicação da própria genialidade; os outros é que precisam de método, de lógica e de epistemologia. Ora, como a ciência é feita para os medíocres, para os menos dotados, na concepção de Dilthey, e a maioria da humanidade é medíocre e menos dotada, então temos de fornecer recursos para a humanidade, e este é o
ideal da Escola Histórica. A ciência é dos medíocres, a ciência como um conjunto de procedimentos que faz com que também os medíocres cheguem à universalidade”.
[9] Cf. D’AGOSTINI, Franca.
Analíticos e Continentais. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 146. A autora se refere a Gadamer como uma referência privilegiada no interior desse paradigma da intersubjetividade. Embora seja errado pensar em Gadamer como fundador desse movimento (que remonta, na verdade, ao Husserl da
crise das ciências europeias e de alguns de seus discípulos, como o sociólogo Alfred Schütz), é indiscutível que, de uma forma ou de outra, a obra gadameriana causou impacto em influentes filósofos contemporâneos como é o caso de Apel e Habermas. Sem embargo das profundas divergências que podem ser observadas entre estes dois autores, é fato que suas filosofias confluem no sentido de afirmar que “o sujeito individual, cartesiano, é agora dissipado (...). O que resta é a dimensão da intersubjetividade linguística, comunicativa”. Idem, pp. 146-147.
[10] STRECK, Lenio Luiz.
Verdade e Consenso. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, em especial o pósfácio.