Estética da Recepção
Estética da Recepção
A literatura na perspectiva do leitor
A estética da recepção é a teoria da literatura formulada por Hans Robert Jauss e seus colegas da Escola de Constança, no final da década de 60,[1]
que retoma a problemática da história da literatura. Jauss traz de
volta a discussão por não compartilhar com a orientação da escola
idealista ou da escola positivista para a construção de uma história
literária, uma vez que ambas não realizam seus estudos embasados na
convergência entre o aspecto histórico e o estético. A inexistência
desse nexo resulta, portanto, em pesquisas que se preocupam apenas com
as obras e seus autores, deixando à margem o terceiro elemento do
circuito literário, os leitores.
Em
vista disso, o teórico contrapõe-se às correntes teóricas marxista por
apresentar a literatura apenas como reflexo dos fenômenos sociais,
impossibilitando a definição de categorias estéticas.
No
que se refere à teoria literária formalista, a crítica funda-se na
concepção da obra literária como um todo autônomo e auto-sufisciente, com
seus elementos organicamente relacionados, independente de dados
históricos ou biográficos do autor, atribuindo a verdadeira significação
a sua organização interna sem necessitar da referência a uma situação
externa. Desse modo:
o processo de percepção da arte surge como um fim em si mesmo, tendo a perceptibilidade da forma como seu marco distintivo e o desvelamento do procedimento
como o princípio para uma teoria que, renunciando conscientemente ao
conhecimento histórico, transformou a crítica de arte num método
racional e, ao fazê-lo, produziu feitos de qualidade científica
duradoura.[2]
Para
Jauss, as duas teorias limitam-se a compreender o fato literário no
âmbito da estética da representação e da produção, o que significa a
exclusão da dimensão da leitura e do efeito, que é a privilegiada pela
estética da recepção, tendo em vista o propósito desta em apresentar uma
visão diferenciada da história da literatura pautada na historicidade
da obra de arte literária, já que ela “não repousa numa conexão de
‘fatos literários’ estabelecida post festum, mas no experienciar dinâmico da obra literária por parte de seus leitores”.[3]
Sob
esse ponto de vista, a estética da recepção toma como objeto de
investigação o receptor. Isso exige dela a construção de uma nova
concepção de leitor que assume,
então, “seu papel genuíno, imprescindível tanto para o conhecimento
estético quanto para o conhecimento histórico: o papel de destinatário a
quem, primordialmente, a obra literária visa”.[4]
Com
a mudança do foco de investigação para a recepção, o fato literário
passa a ser descrito a partir da história das sucessivas leituras por
que passam as obras, as quais se realizam de um modo diferenciado
através dos tempos, porque:
a
obra literária não é um objeto que exista por si só, oferecendo a cada
observador em cada época um mesmo aspecto. Não se trata de um monumento a
revelar monologicamente seu Ser atemporal. Ela é, antes, como uma
partitura voltada para a ressonância sempre renovada da leitura,
libertando o texto da matéria das palavras e conferindo-lhe existência
atual.[5]
A recepção, nessa perspectiva, é compreendida “como uma concretização[6] pertinente à estrutura da obra, tanto no momento de sua produção como de sua leitura, que pode ser estudada esteticamente”,[7]
considerando, assim, o leitor como um elemento também textualmente
marcado na obra de arte literária. Para o teórico, privilegiar a
recepção representa conceber o texto literário como um fato que não se
limita à dimensão estética, pois também considera a social. Por
conseguinte, desloca-se a concepção de literatura enquanto sistema de
sentido fechado e definitivo para a de um sistema que se constrói por
produção, recepção e comunicação, ou seja, por um relacionamento
dinâmico entre autor, obra e leitor.
Sendo
assim, a obra literária é condicionada pela relação dialógica entre
literatura e leitor, o que acarreta, necessariamente, um processo de
interação entre os mesmos, cujo grau de perenidade depende dos
referenciais estético-ideológicos que os configuram, isto é, em face da
natureza dialógica dessa relação, a obra literária só permanece em
evidência enquanto puder interagir com o receptor, sendo o parâmetro de
aceitação desse o horizonte de expectativas,[8]
composto pelo sistema de referências que resulta do conhecimento prévio
que o leitor possui do gênero, da forma, da temática das obras já
conhecidas/lidas, e da oposição entre as linguagens poética e
pragmática.[9]
O
sistema de referências, contudo, não se restringe aos aspectos
estéticos da obra, haja vista que no ato da leitura também entra em jogo
a experiência de vida do leitor, porque entre a leitura de uma obra e o
efeito pretendido ocorre o processo da compreensão, exigindo do leitor
não só a utilização do conhecimento filológico, mas de todo o seu
conhecimento de mundo acumulado. Em vista disso, o conjunto de
referências também é regido pelas convenções, elencadas por Zilberman, da seguinte ordem:
- social, pois o indivíduo ocupa uma posição na hierarquia das sociedades;
- intelectual,
porque ele detém uma visão de mundo compatível, na maioria das vezes,
com seu lugar no espectro social, mas que atinge após completar o ciclo
de sua educação formal;
- ideológica, correspondente aos valores circulantes no meio, de que se imbuiu e dos quais não consegue fugir;
- lingüística,
pois emprega um certo padrão expressivo, mais ou menos coincidente com a
norma gramatical privilegiada, o que decorre tanto de sua educação,
como do espaço social em que transita.[10]
No
processo de realização da leitura literária, o horizonte de
expectativas do leitor pode ser satisfeito ou quebrado por uma
determinada obra. Dessa relação de satisfação ou ruptura de horizontes
pode-se estabelecer a distância entre a expectativa do leitor e sua
realização, denominada por Jauss de distância estética,
que indicará o caráter artístico da obra. Ocorrendo a satisfação, a
obra caracteriza-se como sendo “arte culinária” ou de mera diversão,
isto é, literatura de massa, visto que não exige nenhuma mudança de
horizonte, servindo apenas para reforçar as normas literárias e sociais em vigor. No caso da quebra de expectativas, consoante Arnold Rothe,[11]
pode vir a acontecer uma mudança de comportamentos e de normas ou uma
rejeição por parte do público, como ocorreu, por exemplo, com Sthendal e
Flaubert, provocando a formação de um novo público.
Em
virtude dessas reações, tem-se a formulação do seguinte preceito
teórico: somente a quebra ou a ruptura de expectativas será indicativa
do valor estético de um texto, cuja avaliação, a partir da distância
estética, se torna bastante independente da visão particular do crítico.
Tal postura, para Regina Zilberman,[12]
aproxima Jauss dos formalistas e estruturalistas, porque, de certo
modo, esse critério adotado recupera o efeito de estranhamento da obra
de arte literária proposto por tais teorias. E, como consequência
pragmática, a reconstrução do horizonte de expectativas oportuniza às
obras consideradas clássicas o retorno do seu viés emancipador, perdido
por causa do processo de canonização, que as tornaram incapazes de
suscitar novos questionamentos.[13]
Reconstruir
os horizontes de expectativas de uma obra em relação ao processo de
produção/recepção sofrido por ela em épocas distintas significa
encontrar as perguntas para as quais o texto constitui uma ou mais
respostas. A lógica da pergunta e da resposta é
o mecanismo da hermenêutica que permite identificar o horizonte de
expectativas do leitor e as questões inovadoras a que o texto apresenta
uma ou mais respostas, como também mostrar como as compreensões variam
no tempo. Dessa forma, o sentido de um texto é construído
historicamente, descartando-se a ideia de sua atemporalidade. É a partir
do confronto desses dois polos que a distância estética pode ser
estabelecida.
Partindo
desses princípios, as grandes obras são as que permanentemente provocam
nos leitores, de diferentes momentos históricos, a formulação de novas
indagações que os levem a se emanciparem em relação ao sistema de normas
estéticas e sociais vigentes. O efeito libertador provocado pela
literatura é fruto do seu caráter social, pois, para Jauss, a interação
do indivíduo com o texto faz com que o sujeito reconheça o outro,
rompendo, assim, o seu individualismo e, conseqüentemente, promovendo a
ampliação dos seus horizontes proporcionada pela obra literária:
A
experiência da leitura logra libertá-lo das opressões e dos dilemas de
sua práxis de vida, na medida em que o obriga a uma nova percepção das
coisas. O horizonte de expectativas da literatura distingue-se daquele
da práxis histórica pelo fato de não apenas conservar as experiências
vividas, mas também antecipar possibilidades não concretizadas, expandir
o espaço limitado do comportamento social rumo a novos desejos,
pretensões e objetivos, abrindo, assim, novos caminhos para a
experiência futura.[14]
Nesse
sentido, Alliende e Condemarín salientam o papel social da leitura,
literária ou não, porque o homem leitor pode ampliar as possibilidades
de amadurecimentos individual e intelectual e, por conseguinte,
compreender melhor a si e o mundo. Em contrapartida, “as pessoas que não
lêem tendem a ser rígidas em suas ideias e ações e a conduzir suas
vidas e trabalho pelo que se lhes transmite diretamente. A pessoa que lê
abre o seu mundo, pode receber informações e conhecimentos de outras
pessoas de qualquer parte”.[15]
Com essas afirmações, os autores confirmam a premissa de que a leitura
conduz a uma práxis concreta, sustentados na correlação existente entre
as práticas de leitura de um povo e seu desenvolvimento material e
social.
Entretanto,
a transformação do homem, via prática da leitura, só é realizada na
medida em que ele estiver aberto a viver novas experiências, despojado
de uma postura autoritária e disposto a aprender, a fim de
conscientizar-se de sua transitoriedade. Essa abertura leva o homem a
ter mais conhecimento sobre o mundo, ter mais vivência, pois, de acordo
com Hans-Georg Gadamer, “a pessoa a que chamamos experimentada não é somente alguém que se fez o que é através das experiências, mas também alguém que está aberto a experiências”.[16]
A estética da recepção, portanto, é o instrumental teórico adequado para fundamentar, a partir dos conceitos de recepção, horizonte de expectativas, distância estética e lógica da pergunta e da resposta, a análise das narrativas infantis, que constituem o corpus dessa dissertação, a fim de se
compreender o processo de produção/recepção da obra literária infantil
tendo como referência o leitor, isto é, com base nos conceitos
selecionados da estética da recepção é possível delinear o horizonte de
expectativas de crianças de diferentes classes sociais em contexto
escolar, materializado em normas literárias e concepções de mundo
presentes nas narrativas infantis reproduzidas de textos literários
conhecidos/lidos, uma vez que uma das tarefas da teoria recepcional, em
conformidade com Zilberman,[17]
é a reconstrução desse horizonte, objetivando explicitar a relação da
obra literária com o seu público. Resta, ainda, delinear o espaço
percorrido pelo livro na sociedade, tarefa da sociologia da leitura.
1.1 O livro literário no contexto social
A
sociologia da leitura, como a estética da recepção, centra o seu foco
de atenção no terceiro eixo do circuito literário, o leitor, contudo não
se propõe investigar a relação entre leitor e texto buscando o
delineamento do horizonte de expectativas, pois o que interessa são as
questões extrínsecas da leitura, isto é, a abordagem está centrada na
relação entre o livro e os seus mediadores sociais.
Esse
campo teórico objetiva, portanto, estudar o público encarando-o não
mais como elemento passivo, mas como ativo, já que a sua mudança de
gosto e preferência influencia a circulação e a produção da obra
literária. Nesse sentido, a análise sociológica considera todos os
fatores sociais que interferem no processo de formação do gosto e que
funcionam como mediadores de leitura, como também as características dos
consumidores conforme sua condição social, cultural, etária, sexual,
profissional, entre outros.
Sendo
o seu objeto de estudo o público, a sociologia da leitura não se
restringe à análise e descrição da recepção de textos literários, o que
representa incluir também como objeto de estudo textos considerados
marginais e subliterários. Pelo fato de o enfoque não buscar
contrapartida na estética, Regina
Zilberman afirma que sua contribuição para a Teoria da Literatura fica
restrita, entretanto sua importância não é reduzida por essa razão, uma
vez que “suas pesquisas permitem compreender o fato literário no
cotidiano de sua existência, caracterizado por sua circulação e consumo”.[18]
O primeiro trabalho produzido a partir desse enfoque foi o livro Die Soziologie der literarischen Geschmacksbildung,[19] de
L. L. Schücking, publicado em 1923, que procurou atingir o objetivo
anteriormente descrito. Outros trabalhos deram continuidade ao estudo do
público leitor, todavia, sobressaem-se os produzidos pela Escola de
Bordéus, liderados por Robert Escarpit e sua equipe, bem como os de Arnold Hauser e Pierre Bourdieu.
Robert
Escarpit situa o estudo da formação do público leitor no âmbito da
sociologia da literatura, o que significa buscar compreender o fato
literário associado ao contexto social em que está inserido e com o qual
estabelece um diálogo. Não é propósito desse teórico realizar um
trabalho de análise estética, pois o critério utilizado para definir
literatura não é qualitativo e sim denominado por ele de “atitude ao
gratuito”, que resulta numa definição de literatura como todo texto que
não possui uma finalidade pragmática, cujo efeito provoca uma espécie de
catarse do ponto de vista cultural.
Essa
definição inicial apresenta um teor generalizante que não situa com
clareza a abordagem sociológica da literatura, no entanto, em Lo literário y lo social, o
Autor aprofunda o conceito de literatura em relação às questões
sociológicas, fundamentando com mais precisão a proposta da Escola de
Bordéus:
o
que nós denominamos literatura no século XX é a instituição que permite
à sociedade impor suas estruturas além da mera linguagem, toda
manifestação de uma literatura viva, caracterizada pela liberdade do
escritor é, em nosso tempo, antiliteratura numa certa medida. Dito de
outro modo, a literatura como fato histórico concreto, de antiguidade
não superior a duzentos anos, leva consigo sua própria negação e conduz a
sua própria superação.[20]
Importa,
então, para Escarpit, utilizar como procedimento metodológico mais
adequado o estudo dos dados de cunho objetivo, os quais serão explorados
de modo sistemático sem a interferência de idéias preconceituosas. No
entanto, o estudioso observa que a análise não deve se limitar aos dados
estatísticos, pois outras informações fornecidas pelos estudos das
estruturas sociais, tais como, regimes políticos, instituições
culturais, classes sociais, profissões, organização do tempo livre,
nível de analfabetismo, condições sociais do escritor, do livreiro, do
editor, problemas linguísticos, história do livro, complementam de forma
decisiva a interpretação pretendida, culminando com a compreensão do
público-leitor num contexto social mais abrangente. Outro procedimento é
o estudo de casos concretos realizado por meio dos métodos da
literatura geral ou da literatura comparada, como, por exemplo, o êxito
de uma obra, a evolução de um gênero ou de um estilo, a abordagem de um
tema, a história de um mito, no qual a significação dos dados contribui para explicitar os fenômenos observados objetivamente.[21]
Embasados
nessa perspectiva, através de um método empírico, os estudos realizados
pela referida escola tratam o fenômeno literário a partir de três
instâncias – a produção, a circulação e o consumo. As questões da
produção são analisadas a fim de identificar e caracterizar os fatores
“que interferem na atividade do escritor como homem de seu tempo com
responsabilidade social definida”.[22]
A análise da circulação das obras, por sofrer intervenção na sua
publicação e distribuição de diversos mediadores, como, por exemplo, o
circuito letrado (editores, livreiros e críticos literários) e o
circuito popular (bibliotecas populares, imprensa, rádio, cinema, bancas
de revistas e vendedores ambulantes), torna-se necessária para se
compreender o papel desempenhado individualmente pelos organismos
sociais participantes.
E,
finalmente, o consumo é examinado a partir da descrição das diferentes
modalidades existentes de público, cujas expectativas interferem na
formatação do texto; das razões dos êxitos, classificados por Escarpit
em semiêxito, êxito normal e o best seller, e dos fracassos das
obras sob os pontos de vista comercial e social, além da análise do
processo de formação do leitor, cujo resultado depende das
circunstâncias sociais e materiais que tornarão o indivíduo, mediante a
qualidade da relação leitura/vida, conhecedor ou consumidor da
literatura.
Outro
aspecto que tem sido temática de análise da sociologia da leitura é o
papel dos mediadores sociais, tais como a biblioteca, a editora, a
escola, a livraria, a imprensa, o sistema de distribuição, os eventos
culturais, a igreja e a família. Esse enfoque é objeto de estudo de
Arnold Hauser em Sociologia del publico,[23]
encarado pelo teórico como fundamental, tendo em vista que “artista e
público não falam a mesma língua desde o princípio. A obra de arte tem
que ser traduzida a um idioma próprio para que resulte geralmente
compreensível e para que a maioria possa gozá-la”.[24]
Em defesa dessa concepção, argumenta que existe entre o produtor e o
receptor da obra um grande abismo e são as instâncias de mediação as
responsáveis pela ponte ou idioma que garante a permanência ou não do
diálogo entre autor e leitor via obra, através dos tempos. Para
explicitar sua concepção de mediadores de leitura o autor diz o
seguinte:
Qualquer
que seja a constituição de uma obra de arte, normalmente passa por
muitas mãos antes de chegar do produtor ao consumidor. A sensibilidade e
capacidade associativa, o gosto e o juízo estético do público são
influenciados por uma larga série de intermediários, intérpretes e
críticos, professores e peritos, antes de constituírem-se em pauta mais
ou menos obrigatórias e critérios direcionados para obras que, todavia,
necessitam de uma concessão qualitativa, de um selo acadêmico, e
problemáticas segundo a opinião pública.[25]
Os
mediadores de leitura assumem o papel responsável pela constituição ou
não do dialógo entre autor/obra/leitor, porque a obra de arte é definida
por Hauser como sendo uma construção dialética, como conversa que se
estabelece entre autor e público mediante uma ação recíproca. Sendo
assim, o público deixa de ter uma atitude passiva para assumir a de
interlocutor, contribuindo “ao nascimento de uma forma enquanto
objetividade que responde/reage à subjetividade espontânea do artista,
forma cuja estrutura dialógica é inconfundível”.[26]
Enfim, a obra de arte situada numa perspectiva dialógica só existe a
partir da recepção, a qual só se concretiza por meio das instâncias
mediadoras.
O
autor salienta, ainda, que, por mais espontâneo e irresistível que seja
o modo de o artista comunicar-se com o público, é necessária a presença
de tradutores e intermediários para que a recepção seja compreendida de
maneira correta e apropriada, pois, quanto mais desenvolvido o estilo,
mais modernas as obras consideradas e menos conhecedores em arte os
receptores, tanto maiores, diversas e importantes terão de ser as
mediações.[27]
Ressalta, entretanto, que as instâncias mediadoras podem ter uma função
útil ou inútil de mediação, visto que elas podem aproximar o artista do
público, reforçando a relação e, ao mesmo tempo, podem distanciar ou
alienar.
Dada a importância atribuída às instâncias mediadoras, Aguiar[28]
salienta que um contato freqüente e próximo do sujeito com esses
organismos possibilita-lhes uma maior chance de tornar-se um leitor.
Todavia, a concretização desse contato é definida, de acordo com Pierre
Bourdieu,[29]
pelas condições econômicas e educacionais permitidas pela classe
dominante, ou seja, a transformação do indivíduo num leitor passa,
necessariamente, pelo acesso aos bens culturais e, para se adentrar ao
meio considerado culto, é necessário ter um certo nível de poder
econômico para adquirir o código, a fim de circular no habitat
natural do capital cultural. Logo, a definição da distribuição das
parcelas do poder econômico, como também do que é o capital cultural
cabe à classe dominante ou burguesa, por conseguinte, é ela quem dita as
regras das trocas sociais.
O
acesso ao capital cultural, via poder econômico, contudo, não é a
garantia de que o sujeito esteja em condições de usufruí-lo, uma vez que
a comunicação com a obra de arte é destinada a alguns eleitos que
possuam aptidões para entender o apelo da arte. Tais aptidões são, na
verdade, instrumentos adquiridos por meio do mecanismo denominado
arbítrio cultural, utilizado por instâncias como a família e a escola
para impor a aprendizagem dos códigos que determinam quais obras serão
consideradas naturalmente dignas de serem apreciadas como arte:
A
obra de arte considerada enquanto bem simbólico (e não em sua qualidade
de bem econômico, o que ela também é) só existe enquanto tal para
aquele que detém os meios para que dela se aproprie pela decifração, ou
seja, para o detentor do código historicamente constituído e socialmente
reconhecido como a condição da apropriação simbólica das obras de arte
oferecidas a uma dada sociedade em um dado momento do tempo.[30]
O
fato de estar desprovido desse código leva o indivíduo a perceber a
obra de arte a partir do seu referencial cotidiano remetendo a sua
percepção a uma ótica funcional, conforme afirma Bourdieu:
Na
verdade, aqueles que não contam com os meios de acesso a uma percepção
“pura” envolvem em sua apreensão da obra de arte as disposições que
sustêm sua prática cotidiana, e por esta via, estão fadados a uma
estética funcionalista que não passa de uma dimensão de sua ética, ou
melhor, de seu ethos de classe.[31]
Desse
modo, “os bens culturais enquanto bens simbólicos só podem ser
apreendidos e possuídos como tais por aqueles que detêm o código que
permite decifrá-los”,[32]
ou seja, só é possível apropriar-se desses bens quando se detém
antecipadamente os instrumentos adequados. Tal situação é o resultado do
processo de reprodução cultural e social, tendo em vista que as leis
que regem a transmissão cultural condicionam o retorno do capital
cultural às mãos dele mesmo, reproduzindo, assim, a estrutura de
distribuição desigual desse capital entre as classes sociais.
Nesse
processo, a escola funciona como um dos mecanismos mais eficientes no
processo de manutenção do sistema de reprodução cultural e social, pois,
para o sociólogo francês:
dentre
as soluções historicamente conhecidas quanto ao problema da transmissão
do poder e dos privilégios, sem dúvida, a mais dissimulada e por isto
mesmo a mais adequada a sociedades tendentes a recusar as formas mais
patentes da transmissão hereditária do poder e dos privilégios, é aquela
veiculada pelo sistema de ensino ao contribuir para a reprodução da
estrutura das relações de classe dissimulando, sob as aparências da
neutralidade, o cumprimento dessa função.[33]
O
sistema de ensino é ainda mais eficiente no processo de reprodução da
estrutura de distribuição do capital cultural entre as diferentes
classes sociais à medida que o modelo de cultura que repassa é o mais
semelhante ao da classe dominante e o modo de imposição é o mais próximo
da maneira de inculcação familiar burguesa. A escola constitui-se,
então, como instrumento de manutenção do status quo mais
adequado quando a cultura instituída enquanto tal é a pertencente à
classe dominante, a qual já é sedimentada no sujeito pela educação
familiar antes de chegar ao sistema formal de educação, excluindo,
assim, os que recebem outro tipo de educação familiar que é depositária
de outra modalidade de bagagem cultural.
Pierre
Bourdieu caracteriza, então, com lucidez, a prática do sistema de
ensino que está a serviço do processo de reprodução cultural e
reprodução social ao afirmar o seguinte:
Pela
prática de uma pedagogia implícita que exige a familiaridade prévia com
a cultura dominante e que procede pela técnica de familiarização
insensível, um sistema de ensino propõe um tipo de informação e formação
que constitui a condição do êxito da transmissão e da inculcação da
cultura. Eximindo-se de oferecer a todos explicitamente o que exige de
todos implicitamente, quer exigir de todos uniformemente o que não lhes
foi dado, a saber, sobretudo a competência lingüística e cultural e a
relação de intimidade com a cultura e com a linguagem, instrumentos que
somente a educação familiar pode produzir quando transmite a cultura
dominante. Em suma, uma instância oficialmente incumbida de assegurar a
transmissão dos instrumentos de apropriação da cultura dominante que não
se julga obrigada a transmitir metodicamente os instrumentos
indispensáveis ao bom êxito de sua tarefa de transmissão, está destinada
a transmitir por seus próprios meios, quer dizer, mediante a ação de
educação contínua, difusa e implícita, que se exerce nas famílias
cultivadas, os instrumentos necessários à recepção de sua mensagem e
necessários para assegurar a essas classes o monopólio dos instrumentos
de apropriação da cultura dominante, e, por esta via, o monopólio desta
cultura.[34]
No âmbito das trocas sociais em que a literatura também está inserida, Bourdieu[35]
propõe uma análise sociológica ou socioanálise, cujo eixo está centrado
nas relações entre o campo literário e outros campos, tais como o
econômico, o político, e o religioso. Em vista disso, a proposta de
análise permite compreender que o consumo do texto literário não depende
somente do acesso material, mas também dos jogos de poder estabelecidos
dentro do campo literário que, com suas regras próprias, determinam,
por exemplo, o que é literário ou não literário, o que é tradicional ou
vanguarda. O consumo de um desses tipos de texto implica situar o leitor
numa determinada categoria, visto que cada tipo de texto requer o
domínio de um código de decifração que é adquirido na educação familiar e
na escolar. Sendo assim, a formação do leitor, numa sociedade
estratificada como a atual, depende do entrelaçamento dos inúmeros
campos de poder que irão configurar a possibilidade ou a impossibilidade
da realização desse processo.
Michael Apple[36]
salienta que a forma adotada pela escola para manutenção da reprodução
social manifesta-se por meio de sua organização curricular, a qual
explicita um discurso de neutralidade, mas estabelece como parâmetro
para todas as camadas sociais o modelo de sociedade da classe dominante.
Desse modo, a escola apresenta por detrás desse discurso um currículo
oculto, que prega a homogeneização como ponto central para a negação das
diferentes vozes que constituem a diversidade social, promovendo,
assim, a exclusão do aluno oriundo das camadas populares, de culturas
distintas, ou seja, de todo aquele que não se enquadra no perfil
determinado pelos padrões sociais vigentes.
A
sociologia da leitura, portanto, tem seu trabalho voltado para a
distribuição, a circulação e o consumo de livros, ou seja, para os
aspectos externos da leitura. Tal abrangência possibilita examinar o
papel social do autor, a história das obras junto aos distintos
públicos, os processos de produção e popularização do livro, as
políticas de leitura, as práticas individuais e coletivas de leitura e,
principalmente, os modos de aproximação dos leitores ao livro através
dos mediadores sociais, como, por exemplo, a escola, a qual constitui o
espaço social selecionado para a realização da pesquisa de campo, tendo
em vista a importância e a visibilidade que apresenta enquanto mediador
de leitura literária na sociedade brasileira. Além disso, a validade das
respostas para as perguntas da investigação também depende da
compreensão da interferência do contexto social na circulação da obra
literária infantil.
1.3 A especificidade da narrativa literária infantil
A
produção literária destinada às crianças foi criada no âmbito escolar
com o objetivo de consolidar, no século XVIII, a ascensão da burguesia
européia ao poder, a qual modificou as concepções acerca da estrutura
familiar. A partir dessa mudança
de conceitos, a família tornou-se unicelular, voltada à preservação da
privacidade e dos elos afetivos entre pais e filhos. Dentro desse novo
cenário, a criança passou a possuir o status de indivíduo
especial, tendo em vista ser considerada um ente em processo de formação
e, portanto, dependente do adulto. Em face da dependência, o infante
deveria ser preparado pela família e pela escola para inserir-se no
mundo “burguês”, adentrar em tal mundo em consonância com os preceitos que regiam esse novo modelo de sociedade.
A
perspectiva de submissão da criança frente ao universo adulto ocorria
antes da ascensão da burguesia, pois, mesmo participando de modo
igualitário da vida adulta, ela era mantida excluída das decisões, ou
seja, a criança era como um adulto em miniatura, pois se vestia com as
mesmas roupas, apenas em tamanho menor, e as brincadeiras e as leituras
que entretiam adulto e criança também eram as mesmas. No entanto, essa
vivência igualitária restringia-se à vida social, já que o infante
estava alijado do processo de tomada de decisões.
Surgida
nesse contexto histórico, a narrativa literária infantil é
caracterizada em função da especificidade do leitor que possui: criança.
Além dessa singularidade, outras características particularizam ainda
mais esse gênero: a formação do acervo infantil valeu-se, em seus
primórdios, de material já existente como a adaptação dos clássicos (o
romance inglês do século XVII) e dos textos folclóricos (lendas, mitos,
cantigas, contos de fadas); caracterizam-se como textos literários
infantis à medida que incorporam elementos típicos dos contos de fadas,
tais como a presença do maravilhoso e a peculiaridade de apresentar um
universo em miniatura; a vinculação estrutural aos contos de fadas faz
com que a literatura infantil sofra o mesmo processo de evolução
ocorrido com essa forma. Também se evidencia a preocupação do adulto com a criança.[37]
Devido
à última característica, o gênero apresenta um caráter unidirecional,
visto que o adulto é o responsável pela sua produção e circulação e a
criança, apenas pela recepção, o que torna a literatura, em princípio,
assimétrica. A assimetria é gerada, consoante Zilberman,[38] ao citar Maria Lypp, pela
desigualdade entre o autor adulto e o leitor infantil no tocante às
questões, dentre outras, de natureza lingüística, cognitiva e social. A
autora salienta, ainda, ser esse caráter unidirecional o fator que
define a preocupação do adulto com a transmissão de normas sociais ou
estéticas, resultando, via experiência da leitura, na constituição do
“horizonte de expectativas” da criança leitora.[39]
A
referida desigualdade, entretanto, deve ser superada pelo interlocutor
adulto mediante o processo de adaptação, tendo em vista a necessidade de
aproximar o texto literário da natureza do leitor mirim, sem deixar de
atentar, todavia, para a universalidade da arte. A presença de um
caráter universal é o que garante à narrativa literária infantil sua
literariedade, a qual resulta da capacidade da obra em romper com as
modalidades pragmáticas de discurso e com as concepções de mundo de um
determinado período. Dessa forma, a adaptação deve ser trabalhada a
partir da adequação do assunto, da estrutura da história, da forma, do
estilo e do meio aos interesses do leitor infantil, o que não representa
a escolha por um gênero inferior. Ao aproximar o texto do universo do
seu receptor, postula-se a possibilidade de se estabelecer o diálogo
entre os mesmos e, por conseguinte, tornar possível à criança o acesso
ao mundo real, organizando suas experiências existenciais e ampliando
seu domínio lingüístico, bem como enriquecendo o imaginário.
O
livro destinado à criança pode e deve dispor dos mais variados temas e
assuntos, atentando o autor, apenas, para a capacidade de compreensão
desse leitor, em virtude de que o mesmo se encontra num processo de
amadurecimento, o que não significa ter uma visão redutora e
preconceituosa, mas uma postura de respeito ao ritmo da criança,
dando-lhe, assim, a oportunidade de dialogar com os referenciais
encontrados no texto. Nesse sentido, algumas narrativas têm abordado
temas como a paixão, presente em Cinderela, A dama e o vagabundo ou Tampinha, de Ângela Lago; o conhecimento oficial e a inseparabilidade de fantasia e realidade, em As aventuras de Alice no país das maravilhas de Lewis Carrol; a luta do velho contra o novo em Peter Pan, de J. Barrie; as dúvidas existenciais e emoções contraditórias de uma criança em busca do autoconhecimento em A bolsa amarela, de Lygia Bojunga Nunes; a deteriorização do poder e dos valores instituídos em História meio ao contrário, de Ana Maria Machado, por exemplo.
Os assuntos
abordados, enfim, são de natureza múltipla, centrados em questões
objetivas ou subjetivas, tratando da realidade humana como um todo.
Deve-se, no entanto, ter o cuidado para que o tratamento ficcional dado a
esses conteúdos não se limite a
focalizar o conjunto de normas em vigor, mas leve o leitor infantil à
compreensão do contexto social em que está inserido por meio de um
espaço aberto para a reflexão crítica da sociedade.
A
compreensão do texto literário, com todas as suas nuances, pela criança
relaciona-se igualmente com a organização lingüística por ele
apresentada, pois o interlocutor da obra é um leitor em processo
crescente de aquisição da língua, cabendo ao autor no momento da escrita
considerar essa questão. Isso quer dizer que as narrativas devem ser
construídas com um nível de linguagem de acordo com as fases de
desenvolvimento mental da criança, o qual se dá por processos evolutivos
de comportamentos. Seguindo essa perspectiva, escrever para a infância
não é escrever de modo simplório, mas escrever com fluência e
versatilidade a fim de ampliar seu repertório lingüístico e
instrumentalizá-la para perceber o jogo de linguagem característico da
literatura.
Com relação à estrutura da narrativa, segundo Aguiar,[40] o processo de criação literária para a infância deve seguir o modelo tradicional do conto de fadas[41],
em face do sucesso já alcançado junto a esse público. A autora observa
também que, embora criados para atender objetivos meramente reprodutores
da ideologia vigente, contraditoriamente, nesses contos, “a
multiplicação de situações, a ênfase na solução dos problemas, a riqueza
das ações, a ordenação de um mundo variado, em que diferentes
temperamentos convivem, promovem o alargamento vivencial do leitor,
incitando-o a participar das peripécias e a buscar respostas”.[42] Sendo assim, a narrativa pode ser estruturada dos seguintes modos:
1. Uma situação inicial introduz o leitor no universo ficcional, seguida de um conflito gerador das ações, a partir das quais se vai desenrolar o processo de solução, resultando no sucesso;
2.
Uma situação inicial introduz o leitor no universo ficcional, seguida
de um conflito gerador de ações, que resultam num fracasso e a partir do
qual vai se desenrolar um processo de solução com vistas ao sucesso.
As duas formas indicam a construção do final pautado no sucesso, uma vez que, para Bruno Bettelheim:
essa
é exatamente a mensagem que os contos de fadas transmitem à criança de
forma múltipla: que uma luta contra as dificuldades graves na vida é
inevitável, é parte intrínseca da existência humana – mas que se a
pessoa não se intimida mas se defronta de modo firme com as opressões
inesperadas e muitas vezes injustas, ela dominará todos os obstáculos e,
ao fim, emergirá vitoriosa.[43]
No que se refere à adaptação da forma, Zilberman,[44]
fundamentada na proposta de Göte Klinberg, sugere que as histórias
destinadas aos infantes devem visar aos interesses do leitor, sempre
considerando o seu nível de compreensão psicofísica da realidade, para
que a forma selecionada atinja as suas expectativas recepcionais. As
narrativas, neste sentido, devem constituir-se de enredos, cujo
desenvolvimento apresente uma linearidade (começo, meio e fim), sem a
presença de flash-backs ou grandes descrições.
Vale ressaltar, todavia, que a linearidade cronológica das ações, conforme Gerard Genette,[45]
não faz parte da tradição da literatura ocidental, já que a
coincidência temporal ou grau zero entre história e discurso é
hipotética, servindo apenas como referencial, caracterizando, então, a
tradição do Ocidente como portadora do processo da anacronia, usado
desde a Ilíada, de Homero. Logo, a narrativa infantil, em
virtude da transitoriedade do leitor, também pode utilizar como recurso o
jogo temporal em forma descontínua, visando desafiar seu leitor a
mergulhar num mundo ficcional mais complexo, como o faz Lygia Bojunga
Nunes em Corda Bamba, por exemplo, porque a realidade apreendida e significada pela obra caracteriza-se não só pelo viés da simplicidade, mas pelo percurso que vai desta à complexidade.
Outro
dado a considerar é a materialização temporal marcada pela indefinição.
Tal modo de organização do tempo assume um caráter mítico, porque “não é
pautado por uma lógica que pressupõe a internalização de uma série de
conceitos pertencentes a uma concepção compartimentalizada de
compreensão do mundo, típica do adulto”.[46]
Nessa medida, a relação mítica estabelecida entre o mundo e o infante é
possível em face de o pensamento mítico se associar ao pensamento da
criança, uma vez que em ambos ocorre uma apreensão do universo como uma
totalidade centrada numa harmonia entre o mundo vegetal, animal e
mineral com o mundo espiritual.
A
concepção espacial nos contos infantis, assim como a temporal,
apresenta uma indefinição em virtude do caráter mítico assumido pela
narrativa, uma vez que toda construção mítica é destituída de qualquer
lógica, do ponto de vista do pensamento racional. A convivência,
contudo, entre o mundo mágico e o real é possível, já que no universo do
mito não há separação entre os dois mundos. No entanto, a indefinição
não representa a ausência, pois o desenvolvimento da história depende
das ações praticadas pelas personagens, as quais só podem realizá-las
dentro de um determinado lugar. Por isso, a caracterização das
personagens, os conflitos e o tempo também indiciam a configuração do
espaço na narrativa.
Ainda
com relação à forma, as histórias não devem conter concepções de
caráter moral, explicações ou justificativas do autor, e as personagens
devem provocar nas crianças um processo de identificação, o que remete para o conceito de mimese
de Aristóteles, no qual o espectador deve se reconhecer, enquanto
modelo, na representação literária. Por isso, o leitor infantil tende a
preferir a aventura entre crianças e jovens por se identificar com o
herói, conforme constatado por Aguiar[47] em pesquisa sobre os interesses de leitura no ensino fundamental.
O herói, assim como as demais personagens ou personas
dos contos infantis, em geral, apresenta um conjunto de características
básicas, que permitem estabelecer o seu perfil quanto aos aspectos
estéticos e socioculturais, a saber:
1.
Quanto à estrutura, o personagem narrador centraliza a ação e a conduz
de modo a provocar reações positivas ou negativas no leitor. Os
personagens são lineares e comportam-se de acordo com o modelo fechado de narrativa que, por sua vez, corresponde a um modelo estratificado de sociedade;
2. são, geralmente, alegorias do bem e do mal e se configuram nesse conflito dualista;
3 .
representam valores que se cruzaram através de ciclos históricos;
assim, podem significar ritos de iniciação, símbolos totêmicos e a luta
entre forças da natureza;
4 .
apresentam traços tragicômicos favorecidos pelo tipo de narrativa em
que se situam: narrativas que fazem oscilar situações de equilíbrio e
desequilíbrio, de conflito e polarização de valores;
5 .
os personagens maravilhosos cumprem várias funções dentro da narrativa;
da eminentemente lúdica à de denúncia social. As soluções maravilhosas
são questionadas pelas soluções mágicas. Estas são, em contrapartida,
defendidas por psicanalistas que vêem nelas a possibilidade de resolução
dos problemas reais, através da representação simbólica;
6 .
o personagem-criança aparece esporadicamente, simbolizando o bom senso e
a inteligência; ou apresenta-se como vítima da autoridade familiar;
7 . os personagens maravilhosos mais comuns são fadas e bruxas, justamente a oposição entre forças positivas e negativas;
8 .
outros personagens bastante comuns são príncipes, princesas, reis e
rainhas, que significam a fantasia do poder e os conflitos dos
relacionamentos interpessoais;
9 .
nos contos as mesmas ações são praticadas por personagens diferentes de
maneiras diferentes. Os personagens catalogados por Wladimir Propp são
sete (o antagonista ou agressor, o doador, o auxiliar, a princesa e seu
pai, o mandatário, o herói e o falso herói) e se ligam a esferas de
ação. O que muda nos contos em relação aos personagens, são os
atributos, que nos permitem estabelecer relações histórico-culturais
variáveis.[48]
O
perfil da personagem do conto infantil apresentado por Sônia Salomão
Khedé revela a estreita ligação entre as escolhas do autor e o seu
receptor, visto que a caracterização linear e a localização das mesmas
em pólos bem definidos denotam a concepção da criança enquanto indivíduo
em processo de formação e que, portanto, necessita do auxílio do adulto
para poder decifrar a organização do mundo real e a partir daí
compreendê-lo melhor. Vale ressaltar, entretanto, que tais escolhas
evidenciam também uma determinada visão de mundo, o que implica a
representação pelas personagens dos papéis sociais desempenhados pelas
pessoas em sociedade de acordo com o ponto de vista do narrador.
Desse
modo, a matéria narrada é trazida à superfície do texto a partir do seu
ponto de vista, o qual apresenta um processo de organização interna que
indica os recursos utilizados com vistas à concretização das suas
intenções. Evidencia-se, então, uma posição privilegiada do narrador em
relação ao leitor, o que demarca uma assimetria, visto que este depende
das pistas deixadas por aquele a fim de realizar o percurso da
narrativa.
Quanto às personagens crianças nas histórias infantis como protagonistas, sua presença é recente, visto que anterior à criação da literatura infantil já havia um universo ficcional repleto de personas
como as fadas, seres místicos de origem oriental, céltica e européia,
presentes nas narrativas medievais direcionadas aos adultos. As antigas
narrativas maravilhosas, lendas ou sagas germânicas foram
catalogadas pelos irmãos filólogos Jacob e Wilhelm Grimm sem uma
preocupação com o mundo infantil, e os contos folclóricos reunidos por
Charles Perrault e os criados por Hans Christian Andersen
caracterizavam-se pela predominância do herói adulto e dos seres
fantásticos como pontos centrais da narrativa.
Sendo assim, somente na segunda metade do século XIX, as crianças deixam de representar personagens secundárias e passam a figurar como heróis, como, por exemplo, Alice em Alice no país das maravilhas, Dorothy em O mágico de Oz, Pinóquio em As aventuras do Pinóquio, Peter Pan em Peter Pan. A introdução da criança como protagonista, de acordo com Zilberman,[49]
provocou alterações na estrutura da história, porque a ação se tornou
contemporânea ou datada, proporcionando à criança ver-se representada ou
simbolizada na ficção, cujo desdobramento apresenta o embate entre o
mundo do herói e o dos adultos.
A
inovação pode contribuir para superação da situação de inferioridade do
infante em relação ao meio circundante, desde que o texto infantil
funcione como suporte do leitor nesse processo, pois o papel infantil
irá configurar-se em dose dupla, personagem e leitor, o que implica a
quebra do monopólio do discurso do adulto, visto que a voz da criança
também se faz presente. Se há um discurso constituído de uma diversidade
de vozes falando de diferentes lugares, há, portanto, a multiplicação
dos níveis de realidade e, assim, a construção de uma postura reflexiva
perante as regras e valores sociais que moldam o comportamento do homem
atual.[50]
Transformar
a criança no centro do mundo da ficção, entretanto, não isenta a
narrativa literária infantil de continuar sendo alvo de indagação a
respeito do seu papel enquanto transmissora de normas ou questionadora
das mesmas. A resposta vai depender, sobretudo, do modo como os recursos
da linguagem serão manipulados na organização interna do texto, como,
por exemplo, o nível de poder do narrador sobre a voz da personagem, a
valorização de determinada variação lingüística e a distância maior ou
menor entre o emissor do relato e o sujeito da ação.[51] Enfim, os recursos literários empreendidos na obra literária infantil serão utilizados conforme o tipo de relação estabelecida, no universo ficcional, entre narrador e leitor, evidenciando, assim, um processo autoritário ou de emancipação.
Mediante
a análise dos aspectos estruturais e formais do universo ficcional
construído para as crianças, pode-se depreender, por conseguinte, as
normas literárias – a construção das personagens, apresentação e
desenvolvimento do conflito, a representação do tempo e do espaço – e as concepções de mundo – o lugar da criança enquanto narrador e sujeito sociohistórico – que constituem o horizonte de expectativas do leitor infantil.
[1] JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994. (Série Temas, v.36)
[2] JAUSS, op. cit., p.19. (Grifos do autor)
[3] Id. Ibid., p. 24. (Grifo do autor)
[4] Id. Ibid., p. 23.
[5] Id. Ibid., p. 25.
[6] A noção de concretização apresentada pelos teóricos alemães tem como referência os trabalhos de Roman Ingarden e Felix Vodicka. cf. INGARDEN, Roman. A obra de arte literária.
Lisboa: Calouste-Gulbenkian, 1973. e VODICKA, Felix. A história das
repercussões das obras literárias.In: TOLEDO, Dionísio (org.). Circulo Lingüístico de Praga: estruturalismo e semiologia. Porto Alegre: Globo, 1978. p.299-309.
[7] AGUIAR, Vera Teixeira de, BORDINI, Maria da Glória. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. 2.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. p. 83.
[8] Os conceitos da hermenêutica, horizonte de expectativas e lógica de pergunta e da resposta, foram extraídos, por Jauss, da obra de Hans-Georg Gadamer, Verdade e método, cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.p.449-458, 533-556.
[9] JAUSS, op. cit., p. 27.
[10] ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil: livro, leitura, leitor. In:_____(org.) A produção cultural para a criança. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 103.
[11] ROTHE, Arnold. O papel do leitor na crítica alemã contemporânea. Letras de hoje. Porto Alegre, v.39, p. 7-18, mar.,1980. (Tradução de Vera Teixeira de Aguiar).
[12] ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989. p. 35. (Série Fundamentos, 41)
[13] ROTHE, op. cit., p. 11.
[14] JAUSS, op. cit., p. 52.
[15] ALLIENDE, Felipe, CONDEMARÍN, Mabel. Leitura: teoria, avaliação e desenvolvimento. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. p. 17-18
[16] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. p. 525. (Grifo do autor)
[17] ZILBERMAN(1989), op. cit., p.113.
[18] Id. Ibid., p. 18.
[19] Id. Ibid., p. 16. De acordo com Regina Zilberman, o título do livro poderia ser traduzido por “A sociologia da formação do gosto literário”.
[20] ESCARPIT, Robert. Lo literario y lo social. In:_____(org.) Hacia una sociologia del hecho literário. Madrid: Edicusa, 1974. p. 18.(Tradução do autor desta dissertação)
[21] Id. Ibid., p. 30-31.
[22] AGUIAR (1996), op. cit., p.24.
[23] HAUSER, Arnold. Sociologia del público. In: _____. Sociologia del arte. Barcelona: Labor, 1977. v. 04.
[24] Id. Ibid., p. 551. (Tradução do autor desta dissertação)
[25] HAUSER, op. cit., p. 551-552. (Tradução do autor desta dissertação)
[26] Id. Ibid., p. 559. (Tradução do autor desta dissertação)
[27] Id. Ibid., p. 588-590.
[28] AGUIAR (1996), op. cit., p.25.
[29] BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Porto Alegre: Perspectiva, 1982.
[30] Id. Ibid., p. 283.
[31] Id. Ibid., p. 287-288.
[32] Id. Ibid., p. 297.
[33] Id. Ibid., p.296.
[34] Id. Ibid, p. 306-307.
[35] BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
[36] APPLE, Michael. Ideologia e currículo. São Paulo: Brasiliense, 1982.
[37] ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 10. ed. São Paulo: Global, 1998. (Teses, 1). p. 48-49.
[38] Id. Ibid., p. 50.
[39] Id. Ibid., p. 39.
[40] AGUIAR, Vera Teixeira de. Leituras para o 1º grau: critérios de seleção e sugestões. In: ZILBERMAN, Regina (org.). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 88.
[41] O conto de fadas segue o modelo do conto folclórico, estudado por Wladimir Propp em Morfologia do conto maravilhoso,
que identificou 31 ações ou funções narrativas, pois o que muda são os
nomes das personagens e não as suas ações ou funções. Em vista disso, os
contos são estruturados a partir das funções das personagens e não dos
assuntos. Para o estudo do conto de fadas simplificam-se as funções de
Propp, resultando na estruturação da narrativa em duas formas
apresentadas no corpo desta dissertação.
[42] AGUIAR Vera Teixeira de. A literatura infantil no compasso da sociedade brasileira. In: ZILLES, Urbano (org.). Gratidão de ser. Porto Alegre: PUCRS, 1994. p. 76.
[43] BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 13.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1980. p. 14.
[44] ZILBERMAN(1998), op. cit. p. 50-51.
[45] GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa. 3.ed. Lisboa: Veja, 1995. p. 34.
[46] BARBOSA, Maria Tereza Amodeo. Mitologia poética dos contos de fadas no Brasil.
Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de Letras e Artes,
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1991. p. 102.
[47] AGUIAR (1979), op. cit., p.67.
[48] KHEDÉ, Sônia Salomão. Personagens da literatura infanto-juvenil. 2.ed. São Paulo: Ática, 1990. p. 23-25. (Série Princípios)
[49] ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil e o leitor. In: ZILBERMAN, Regina, MAGALHÃES, Ligia C. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. 3.ed. São Paulo: Ática, 1987. p. 87. (Ensaios, 82)
[50] ZILBERMAN(1987), op. cit., p.86.
[51] Id. Ibid., p. 111.