A venda sobre os olhos da Justiça
não significa apenas que não se deve interferir no direito, mas que ele
não nasceu da liberdade. (Adorno e Horkheimer)
Análise do princípio da
não intervenção em confronto com os novos paradigmas do Estado
pós-moderno, sob o enforque jurídico das relações internacionais.
Iniciamos com a análise jurídica; após, apontamos a importância e os
efeitos da ausência de consenso, regional ou global, acerca dos
conceitos “democracia”, “liberalismo” e “direitos humanos” enquanto
categorias jurídicas. Concluímos que a cooperação é vinculada à
convergência de orientação de valores da Política Internacional, da qual
depende a efetividade do Direito Internacional Público.
Introdução
A globalização é uma categoria ainda em construção, cujos
conteúdos vêm sendo historicamente agregados e remodelados numa
constante qualificação dos direitos ditos humanos. Com atraso de dois
séculos, disseminou pelo globo o ideário da Revolução Francesa, qual
seja: que a democracia é essencial às aspirações individuais e coletivas
e à articulação de interesses; que o liberalismo econômico é o sistema
que conduzirá ao bem-estar e desenvolvimento sociais; que o homem é
universal e que seus direitos naturais devem ser garantidos.
Todavia, os conceitos
“democracia”, “liberalismo” e “direitos humanos” são juridicamente
indeterminados e não há um consenso, regional ou global, do que sejam ou
devam ser. Como já alertava Kuhn, “um paradigma é aquilo que os membros
de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica
consiste em homens que partilham um paradigma[1]”.
E o que ouvimos é um discurso político de teor iluminista, centrado na
liberdade e na felicidade, a despeito da permanência de conflitos
violentos e do fato de os discursos e as práticas sobre os direitos
humanos não chegarem aos povos sob a forma de igualdade, felicidade e
liberdade, mas sim de culpabilização, penalização e punição, integrando
um movimento mundial de obsessão punitiva crescente[2].
Condição Humana e não-intervenção
A discriminação indisfarçada por categorias jurídicas
demonstra a ausência de consenso: os direitos de prisioneiros de guerra
valem para todos os homens, desde que ocidentais ou aculturados e
defensores do liberalismo econômico e dos regimes democráticos. Aqueles
que sejam capturados e que transcendam tais categorias não terão seus
mínimos direitos respeitados pela autoridade que os detiver – e esta
busca a legitimidade de seus atos na conduta dos acusados, que não são
considerados seres humanos “como nós”, mas sim “os outros”, numa típica
bipolaridade política: os direitos humanos são isolados dos direitos do
cidadão, numa demonstração da cisão da essência humana. Veja-se, na
história recente, as condições dos prisioneiros mantidos no centro de
detenção e interrogatórios da base militar norte-americana de Guantánamo[3];
e a decisão dos delegados da Comissão de Direitos Humanos contra
investigações sobre abusos no Irã e na Chechênia e bloqueio da discussão
sobre o Zimbábue. A alternância da jurisdição penal pela militar para
punir determinados atos à revelia do Direito Internacional equivale, em
termos éticos, ao uso da violência para impor convicções, eis que se
trata de interpretação das regras ditas universais em conformidade com
um poder particular.
Assim, as lideranças
ocidentais pregam seu modelo social, político e econômico, sob a
justificativa de que a democracia e a economia de mercado irão
transformar o planeta numa sociedade internacional pacífica e livre de
todos os problemas que são historicamente verificados: fome, miséria,
guerras religiosas e étnicas. Pode-se perceber que, mais uma vez, todo o
pensamento desenvolvido sobre direitos humanos e aspirações de Paz e
Justiça permanece distante da realidade. O arcabouço jurídico jamais
alcança o substrato, sequer para dar substância aos ditos direitos
preexistentes. Por outra vertente, da concepção de um Direito que não
sucede a categoria “liberdade”, mas sim a categoria “opressão”, como bem
colocaram Adorno e Horkheimer[4],
compreende-se o modelo de “sociedade internacional” que foi construído
pelos Tratados de Paz de Westphalia (1648), e cujos pilares são o
princípio da não intervenção, a soberania dos Estados e a
unilateralidade no recurso à coerção ou mesmo à guerra. Quando tais
princípios passaram a integrar o sistema constitucional dos Estados,
sobrevieram modificações nos parâmetros da ordem mundial, que diluíram
os cânones do paradigma estatocêntrico, introduzindo o Direito de
Ingerência, sob fundamento humanitário, a “guerra preventiva[5]”
e o sistema multilateral do Conselho de Segurança das Nações Unidas,
para a legitimação da guerra. Aqueles que detêm o poder apresentam o
direito humanitário como um imperativo moral para a comunidade
internacional, afastando a soberania estatal e o princípio da não
intervenção. Em pleno apogeu dos princípios de Westphalia, europeus
ocidentais clamavam pela ajuda humanitária aos cristãos (“civilizados”
como “nós”) martirizados pelo Império Otomano (o inimigo, “os outros”) e
engendraram a intervenção francesa de 1860 na Síria para socorrer os
maronitas. Até a Cruz Vermelha, organismo símbolo do Direito
Humanitário, encontra-se ausente nas categorias que não sejam cristãs. O
Direito de Ingerência também pode ser encarado como uma nova fase de
expansionismo agressivo do velho sistema neocolonial. O direito
transformou-se em dever (de ingerência humanitária), e passou a exigir
liberdade de acesso e atuação, em áreas de catástrofe natural ou social,
para as organizações não-governamentais. Seria, assim, uma modalidade
do direito de passagem pacífica para assistência humanitária. Mas o que
se discute é a consagração do “Direito de ingerência” de Estados
mediante uso da força, para socorro a vítimas do desrespeito aos
direitos humanos[6].
O princípio absoluto da
não intervenção incorporou os novos parâmetros estabelecidos na ordem
global e passou a admitir como exceções a intervenção – inclusive armada
– para o (r)estabelecimento de regimes democráticos, a proteção da
propriedade privada de seus súditos e a defesa dos direitos humanos.
Todavia, a questão transcendeu a assistência humanitária e passou a
incluir outras áreas, tais como as violações de garantias, a proteção do
meio ambiente e o controle de armamentos e tecnologia bélica. O
princípio outrora basilar encontra-se em constante construção categórica
e permanente qualificação dos direitos mediante a agregação do modelo
universal. A seu turno, o modelo concebido pelos detentores do poder
decisório é transmitido aos governados pela institucionalização, nos
seus ordenamentos jurídicos, do ideário da revolução francesa segundo as
concepções norte-americanas, dado o pretenso papel messiânico e
civilizatório dos Estados Unidos em relação ao resto do mundo. Nesse
contexto, a finalidade dos demais Estados reduz-se à tarefa de
organizar, de modo seguro e eficiente, as atividades de mercado, pois a
civilização capitalista procura tornar o Direito uma simples técnica de
organização eficiente da vida econômica[7].
Tal vácuo moral entre os Estados é uma tradição com raízes em
Maquiavel, e consiste na racionalização e legitimação de políticas
baseadas nos interesses econômicos e/ou na estratégia militar. O
interesse comum dos Estados passa por um processo de cristalização antes
de ser percebido como real e necessário. Para o Imperium, já não existe
um sistema internacional, ou seja, o Imperium outorga-se o direito de
ser o único a deter uma soberania inviolável.
Soberania e direitos humanos
O direito natural –
como fundamento para os Direitos Humanos Universais -, o antigo direito
das gentes e a problemática axiológica da guerra justa se acham
submetidos a uma reconceitualização sob o prisma do hegemon, ou seja, a
concepção de que a guerra imperial se legitima por carregar a bandeira
da defesa dos direitos humanos e dos regimes democráticos, quando em
verdade o modelo livre-cambista afasta intervenções legítimas. Do
conceito de soberania formulado por Jean Bodin em 1576 (“poder absoluto e
perpétuo de uma República”) ao conceito de soberania relativizada, que
passou a permitir um crescente controle sobre as ações dos Estados
soberanos por outros Estados soberanos, presenciamos a assistência
emergencial nos países da África Negra e a intervenção das forças de paz
na Iugoslávia e Haiti; a intervenção militar norte-americana no Iraque e
na Somália, a ausência das lideranças ocidentais em Ruanda e Indonésia
permitindo o extermínio de milhões de pessoas em guerras étnicas; a
presença do hegemon no Iraque e Kosovo em defesa de milhares; as ameaças
veladas aos governantes da América Latina e do Sudoeste Asiático. A
implantação de instituições ad hoc para a aferição de responsabilidades
por violações à concepção ocidental de direitos humanos foi regra, com a
instalação de diversos tribunais de exceção e cortes marciais. Todavia,
atores estatais ainda sustentam grande poder nas relações
internacionais, e os Estados Unidos são o exemplo.
No eixo axiológico
ocidental, a outrora venerada “razão de Estado” cedeu seu lugar à
valoração do homem em si, agora sujeito e objeto de um Direito
Internacional cujas normas não detém executoriedade. A proliferação
global do modelo, legitimado pelo procedimento, não pode encobrir os
problemas verificados nos países intitulados “democráticos” nem o
sentido trágico da dicotomia Direitos Humanos versus Identidade
Cultural. O debate atual sobre a governabilidade internacional, ou seja,
sobre as ações intencionais geradoras de uma ordem política, busca
caracterizar a complexa relação de poder existente em âmbito mundial e
seus desdobramentos no plano institucional e jurídico, quer dos Estados,
quer do Direito Internacional Público, e resolver o dilema da ordem ou
da governabilidade em um sistema supostamente anárquico. A formação de
normas e regras busca garantir a governabilidade desse sistema, mas a
intenção dos principais atores é uma variável fundamental para a
compreensão da ordem internacional. Como disse Visscher[8],
a necessidade de coexistência desperta a consciência de certos valores
sociais que modelam e sustentam uma concepção teleológica e funcional do
poder. Segundo Wight[9]
as questões chave da história das Relações Internacionais são a) a
questão da “anarquia sistêmica”; b) a questão do “intercurso” ou
intercâmbio contínuo entre as unidades do sistema; e c) a questão da
existência (ou não) de uma comunidade valorativa “superior” no plano
internacional, e sua caracterização.
Soberania e auto-determinação
Cientistas Políticos
usam o termo "anarquia" para designar a estrutura de poder na sociedade
de Estados soberanos. Para eles, não existindo autoridade que estabeleça
normas de conduta aos Estados e uma respectiva ação disciplinar, há
anarquia – ainda que se observe, em termos relativos, uma estabilidade
no cenário internacional. Segundo Hobbes, a essência da anarquia
internacional reside no fato de inexistir um ator internacional com
autoridade legítima sobre todos os demais Estados. Outros falam em
governabilidade precária, com significado analítico e por ausência de
legitimidade da potência hegemônica no comando dos assuntos globais. O
domínio do governo internacional trata de questões perenes da teoria do
direito internacional público: Quais são os “interesses comuns” numa
sociedade de Estados? Ocorre que sequer há uma sociedade internacional
no sentido atribuído pelos contratualistas. E para aqueles que aceitam a
noção de pacto entre as nações, nunca houve consenso global. E isso
porque na noção de “contrato” subjaz a de capacidade das partes,
licitude do objeto e ausência de vício formal. O pacto internacional
somente se dá entre nações civilizadas, consoante as cartas da Sociedade
das Nações e das Nações Unidas – o que exclui dois terços da
humanidade, sob o prisma do hegemon e reduz as potencialidades de
formação de um “contrato” internacional global. O corpus teórico das
relações internacionais é derivado da experiência européia, pois, como
bem colocou Waltz, a teoria é escrita nos termos do poder hegemônico[10],
e a importância das Nações Unidas foi questionada por ocasião da
invasão da coalizão anglo-americana ao Iraque sem autorização de seus
órgãos, ficando evidente que somente eventualmente seu sistema de
segurança coletiva funciona. Os construtivistas[11]
entendem o sistema internacional como socialmente construído, não se
diferenciando ontologicamente de outros sistemas sociais; por
conseqüência, o estudo das instituições internacionais não pode tratar
valores, idéias e a cultura como variáveis endógenas, mas sim em
constante construção interativa de novas formas de identidade, cultura e
valores comuns. Nas bases da nova ordem internacional, as
possibilidades de cooperação são maiores na medida em que ocorra
convergência de orientação de valores. E é este quadro que delineia um
modelo de Direito Internacional Público que não tem suficiente justiça
para ser efetivo direito, o mínimo de autodeterminação para ser
inter-nacional, nem uma altura adequada de fins para ser público[12].
Vejamos o caso das armas nucleares, tidas como
garantidoras da autodeterminação dos povos: recentemente, um país do
grupo “civilizado” efetuou testes nucleares, violando o consenso
“civilizado” estabelecido pelo Tratado de Proibição Completa de Testes
Nucleares, de 1996. A ocorrência de protesto por parte de diversos
países do grupo deu a dimensão da noção atual de soberania, mas não
garante que o protesto tenha se revestido duma ação disciplinadora. É
fato que a soberania interna do Estado francês não se rendeu ao suposto
interesse comum, ainda que verifiquemos uma ação inibidora do protesto
internacional. E isso porque a Política Internacional avizinha-se do
Direito Internacional Público, dando-lhe ou retirando-lhe a efetividade.
O do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (tnp) deveria ser a
barreira legal capaz de conter a proliferação de armas nucleares, e
será revisto em 2005. Todavia, as potências nucleares ignoram as
obrigações assumidas de desarmamento, dispostas no Artigo VI do TNP[13].
A idéia de Estado-nação
formou-se para combater o supranacionalismo da cristandade, adquiriu
legitimidade com os Tratados de Paz de Westphalia e está em franco
declínio nos processos de jurisdicionalização da vontade hegemônica.
Fala-se em sociedade internacional, em pacto global, em crise das
estruturas de autoridade baseadas no Estado-nação, em interdependência. E
os agentes transferem para foros internacionais (Nações Unidas e seus
organismos e agências) o aparato burocrático-administrativo que,
idealmente, representa os interesses do povo nos limites do contrato
social. Quando se fala em "ordem" na sociedade internacional,
necessariamente implica ser esta resultante de um pacto entre todas as
nações para o controle de todas as nações. É nesse contexto que se
perpetua a "governabilidade" internacional, ainda que a relação entre
Estados soberanos tenda a ser anárquica. Mesmo no pensamento kantiano,
os Estados considerados em suas relações externas permanecem em um plano
não-jurídico e num estado de guerra permanente, ainda que se não tenha
como deflagrado o conflito. A solução, para ele, seria a celebração de
um pacto internacional (‘contrato social primitivo’) que vinculasse os
povos à não ingerência nos litígios internos de uns e outros e garantira
mutuamente os Estados em relação a ataques de outros Estados. Tal pacto
não deveria instituir nenhuma forma de poder soberano, mas sim uma
Federação dissolúvel ad nutum – vale dizer, uma Confederação[14].
Desde Tucídides até Maquiavel, pensadores detêm-se na
questão de como unidades autônomas – representantes da identidade
cultural de um determinado povo – se envolvem em conflitos com outras
unidades devido a necessidades variadas (econômicas, estratégicas ou
políticas). O recente fim do conflito ideológico entre o capitalismo e o
comunismo não significou uma nova fase de paz entre os Estados.
Megablocos de natureza econômica e pretensões de unificação política não
significam, necessariamente, a instituição de instâncias
supranacionais. Paradoxalmente, é do próprio capitalismo que surge a
maior ameaça à soberania estatal, a ver, a imposição de normas flexíveis
de interesse de empresas transnacionais.
Soberania e jurisdição
Pergunta-se: a vontade
dos Estados determina a normogênese ou a jurisdição compulsória? Ou
ainda, num grau anterior: a vontade do povo determina a normogênese ou a
jurisdição? O Direito, segundo Eros Roberto Grau, "[…] não é uma
ciência e as decisões no seu âmbito tomadas não são decisões
cientificamente determinadas. O Direito, como afirmei, é uma prudência.
[…] Assim, todos os que aplicam o Direito, ao fazê-lo, exercitam uma
prudência, segundo e conforme a lógica da preferência [e não a da
conseqüência, que é científica][15]”.
Na contemporaneidade, a premissa original da soberania dos Estados tem
sofrido alterações, mas não mutações que a descaracterizem de plano. O
modelo de soberania externa absoluta e a ausência de normas no sistema
internacional foi antes um ideal que uma realidade da política
internacional. Em termos de aceitação de jurisdição internacional, a
verdade é que os Estados comparecem perante os Tribunais Internacionais
não como suma potestas, mas como membros de tratados nos quais
declararam sua vontade e criaram a obrigação de lá comparecer. A
obrigação jurídica estabelecida no tratado internacional não é provida
de executoriedade, todavia. A competência Corte Internacional de Justiça
(CIJ) tem por pressuposto indispensável o consentimento das partes: é o
que consagra o artigo 36º do seu Estatuto. E a alegação de falta de
jurisdição foi o fundamento legal de sua decisão no caso Iugoslávia vs.
países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Alguns anos
antes[16],
a CIJ decidiu que as resoluções dos órgãos das Nações Unidas não impõem
uma obrigação a todos os Estados, não constituindo sequer fonte de
direito para decidir a questão posta sob sua jurisdição por ato de
vontade dos Estados envolvidos.
É no princípio do monopólio da jurisdição, atributo
natural do Estado soberano, que encontramos a resistência para sua
internacionalização, sob a alegação de que o poder soberano dos Estados
Nacionais inviabilizaria a efetividade das decisões dos Tribunais
Internacionais implementados. A saída recentemente encontrada foi o
princípio da subsidiariedade, estipulando que a atividade jurisdicional
do Tribunal Penal Internacional seja complementar àquela dos Estados
Nacionais[17].
Há, ainda, a questão das pretensões de jurisdição do Tribunal sobre
crimes cometidos por cidadãos de Estados não-signatários, incluindo
funcionários públicos e elementos das Forças Armadas – o que
potencialmente atingiria cidadãos norte-americanos que se encontrem em
território de países signatários, fazendo com que o acordo celebrado
entre terceiros Estados[18]
venha a suprimir a autodeterminação do povo que detém a hegemonia
militar. Ressalte-se, ainda, que o Tribunal Penal Internacional tem
competência para julgar pessoas físicas, e não pessoas morais de Direito
Internacional Público.
Contudo, consideremos
que os Tribunais Internacionais outrora implementados foram concebidos
por Estados-nações considerados potências política, econômica e militar,
os Estados Unidos e Grã-Bretanha[19].
Sob esse prisma, o Tribunal Penal Internacional pode ser visto como uma
iniciativa da União Européia (como parte do rearranjo internacional
após a queda do Muro de Berlim) que afeta os interesses da potência
hegemônica – e, por conseqüência, a pretensão de governabilidade global.
O enfoque simplista da sociedade internacional sem
governo nunca se adequou à realidade. Desde o início da comunidade
ocidental (Pax romana), e até a sociedade dita moderna, com os Tratados
de Paz de Westphalia (1648), Estados soberanos nunca agiram de forma
anárquica. Estados nunca se comportaram como membros de uma sociedade
política porque não há pacto social global, malgré as Nações Unidas.
Todavia, os Estados jamais se comportaram de forma caótica,
desconsiderando totalmente regras previamente convencionadas. A conduta
dos Estados sempre foi determinada por princípios, normas, regras e
procedimentos – é bem verdade que sob o prisma europeu – e formada por
instituições tradicionais que tiveram seu nascedouro e inspiração em
categorias européias. E são estas as instituições que darão aos
ocidentais a previsibilidade do comportamento dos “outros” – mas não
tornam possível um governo mundial. É exatamente a isso que chamamos
ordem internacional.
É até possível que
estejamos caminhando para o fim das unidades territoriais conhecidas
como Estados, mas devemos reconhecer que somente o Estado é capaz de
conduzir a ordem mundial, num sistema chamado de "anarquia regulada",
sendo a única instituição responsável pelo balanço de poder. A
comunidade internacional seria, considerada a globalização, a referência
para a análise dos fenômenos afetos a todos, e os Estados continuariam
respondendo por assuntos locais, e as coletividades estatais deteriam
poderes de intervenção nos Estados que assim convencionassem.
Governabilidade
Mas, o quê será governado, por quem e, principalmente,
como? Apesar de se falar em "comunidade internacional", uma sociedade de
Estados não teria qualquer projeto político comum, mas tantos projetos
nacionais quantos Estados façam parte do pacto. Governabilidade
internacional, tal como concebida pelas instituições do Direito
Internacional Público clássico, é necessariamente restrita. E o mais
interessante é notar que a globalização cultural, sendo peça ideológica
de uma estratégia de domesticação em escala planetária, resultaria na
configuração de um mundo integrado e organizado nos moldes de um
gigantesco Estado-nação, cujo centro irradiador seria, necessariamente,
um império capitalista sem possibilidades de governo. Segundo Negri e
Hardt[20],
apesar de a criação do Império trazer devastadoras e violentas
estruturas de opressão e exploração, ela também cria as condições para a
libertação, pois os seus paradigmas favorecem a visibilidade dos
processos hegemônicos e a consciência ontológica dos seus conteúdos e
efeitos.
Um outro problema
relativo à governabilidade é o da igualdade como um valor ocidental que
não pode ser efetivamente implantado e aceito por todos. Boaventura
Souza Santos enfrentou a questão[21]
e sugere que os direitos humanos só poderiam se efetivar legitimamente
numa sociedade global se transcendessem o desafio do multiculturalismo,
definindo os direitos não como abstratos e universais de acordo com a
tradição ocidental, mas a partir de valores das diversas culturas que
compõem a comunidade internacional.
Conclusão
Ao cabo, observa-se o debate em torno do papel das
Organizações internacionais, governamentais e não-governamentais, na
formação de normas e instituições internacionais: com a hegemonia
norte-americana, a capacidade das Nações Unidas para gerir a paz a nível
global se fragilizou e acabou por ter só um papel de controle
organizativo de pós-guerra – quer na Iugoslávia, quer no Iraque[22].
A governabilidade se efetiva mediante normas jurídicas, e as normas de
Direito Internacional Público se efetivam pelo uso da força militar ou
econômica, em última instância. No século XIX, a governabilidade
internacional se efetivou mediante um governo de facto composto pelas
potências. Assim foi o Concerto Europeu. No século XX, a governabilidade
pelo Imperium buscou legitimidade – e a obteve – nas resoluções das
organizações internacionais. A História demonstra que a consciência de
um interesse comum surge com a necessidade de ação no plano concreto. A
governabilidade é sempre uma imagem fiel dos interesses comuns dos
Estados e é relacionada ao poder: trata-se de como obrigar os outros a
fazerem o que queremos que eles façam – ou como forçar a ordem no mundo
para que esta se conforme ao interesse norte-americano. Assim principia o
século XXI.
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Notas
[1] Thomas S. Kuhn,
A Estrutura das Revoluções Científicas. 5ª edição, São Paulo: Perspectiva, 1998.
[2] Helena Singer,
Direitos Humanos e volúpia punitiva, 1998, [citado em 10 de Janeiro de 2004] World Wide Web: http://www.direitoshumanos.usp.br/bibliografia/helena.html
[3]
Segundo médico-chefe da Anistia Internacional, Jim West, a situação dos
talebans presos remete aos métodos de tortura utilizados durante a
década de 1970. Por outro lado, o secretário de Defesa dos EUA, Donald
H. Rumsfeld, afirmou que os talebans não têm direitos de prisioneiros de
guerra porque são "combatentes ilegais".
[4] Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 30.
[5] José Manuel Pureza, Anarquia ou Direito
. 2002, [citado em 10 de Janeiro de 2004] World Wide Web: http://www.ces.fe.uc.pt/nucleos/nep/comunicacoes001.php
[6] V. Alain Finkielkraut,
Do crime contra a Humanidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
[7] Fábio Konder Comparato,
O papel do juiz na efetivação dos Direitos Humanos, s.d., World Wide Web: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/ comparato/comparato_juiz.html
[8] Charles De Visscher,
Problèmes de confins en droit international public, Paris, Editions A. Pedone, 1969.
[9] Wight, Martin.
International Theory: The Three Traditions. Leicester: Leicester University Press, 1991.
[10] WALTZ, Kenneth.
Theory of International Politics. New York: MacGraw-Hill, 1979.
[11] HAAS, Peter M. e HAAS, Ernst. "Learning to Learn: Improving International Governance". 1995,
Global Governance, nº 1.
[12] Maltez, José Adelino.
O Estado acima do Cidadão. 2001, [citado em 10 de Janeiro de 2004] World Wide Web: http://maltez.home.sapo.pt/Textos/o_estado_acima_do_cidadao.htm
[13] Artigo VI. Cada
uma das partes do Tratado compromete-se a promover, de boa fé,
negociações sobre medidas efetivas para por fim à corrida por armas
nucleares o quanto antes e para levar ao desarmamento nuclear, e sobre
um tratado referente ao desarmamento completo e geral que esteja sob
controle estrito e efetivo da comunidade internacional.
[14] Immanuel Kant,
A Paz Perpétua e outros opúsculos, Lisboa: Edições 70, 1988.
[15] Direito, conceitos e normas jurídicas. São Paulo: RT, 1988. p. 20
[16] Caso relativo à Questão de Timor Leste – Portugal vs. Austrália, 1991.
[17] Artigos 17 a 20 do Estatuto de Roma, 1998; Decreto n° 4.388/2002.
[18]
Em verdade, entre os signatários do Tribunal Penal Internacional que
não tenham se obrigado, em tratado paralelo com os Estados Unidos, a não
extraditar cidadãos deste Estado.
[19] O Tribunal Militar de Nuremberg, o Tribunal Militar de Tóquio, o Tribunal
ad hoc de Haia, o Tribunal
ad hoc de Arusha.
[20] Empire, Boston, Harvard University Press, 2000
[21] Em “Uma concepção multicultural de direitos humanos”.
Lua Nova, nº39, 1997, pág. 105-124.
[22]
Em ambas as ocasiões, os Estados Unidos alegaram a legitimidade
subjetiva e implícita, nas resoluções do Conselho de Segurança nºs
1199/1998 e 1441/2002.
Informações Sobre o Autor
Margareth Leister
Procuradora da Fazenda Nacional em São Paulo
Professora da PUC-SP