quarta-feira, 9 de junho de 2021

Narciso em Férias

Cena de Narciso em Férias, com Caetano Veloso

"Não podemos esquecer que o golpe militar de 1964 foi apoiado por grande parte da população", diz Caetano

Aos 78 anos, Caetano Veloso convida espectadores a mergulharem em algumas de suas  mais profundas e dolorosas memórias. Ao assistir ao documentário Narciso em Férias, que estreou na última segunda-feira (07/09) na 77ª edição do Festival de Veneza, experimenta-se a força da narrativa, mas também da linguagem corporal e simbólica do cantor e compositor baiano.

Tudo começou quando Paulinha, como Caetano se refere carinhosamente à companheira Paula Lavigne, teve a ideia de recontar o capítulo Narciso em Férias, do livro de memórias Verdade Tropical, com imagens em movimento. Nesse capítulo, o baiano descreve a temporada que passou no cárcere durante a ditadura militar.

A produtora e empresária Lavigne idealizou o documentário e, para dirigi-lo, convidou Renato Terra, que repetiu a parceria com Ricardo Calil, iniciada no longa Uma Noite em 67. "Nesse momento do país, sinto que o filme entra como um sopro de afeto, de esperança, de força e de clareza", diz Terra à DW Brasil.

Os dois diretores optaram por um formato minimalista, no qual cada detalhe ganha relevância: os silêncios, as pausas, as inflexões de Caetano. "Tiramos imagens de arquivo, tiramos entrevistas, tiramos trilha sonora, tiramos qualquer efeito de câmera", explica Terra.

No longa, com 83 minutos de duração e também disponibilizado no Globoplay, Caetano aparece numa sala cinza vazia da Cidade das Artes, espaço cultural inacabado no Rio de Janeiro. Ele está sentado em uma cadeira e algumas vezes, poucas, pega o violão e canta. 

"O Antônio Prata me disse que, ao ver o filme, a experiência dele foi muito melhor assim, porque foi completando o que Caetano estava dizendo com as imagens da cabeça dele. É como um filme de terror, por exemplo, que fica muito mais interessante quando você não mostra o monstro. Você só sugere o monstro", diz Terra.

Os 54 dias de encarceramento de Caetano tiveram início em dezembro de 1968, apenas 14 dias depois da emissão do AI-5. Ele e Gilberto Gil fora retirados de suas casas em São Paulo e levados para o Rio de Janeiro por policiais à paisana. Em entrevista à DW Brasil, Caetano relembra os horrores do cárcere: "Eu tinha uma alucinação de que a minha vida era só aquilo. Eu me lembrava das coisas como se elas fossem apenas sonhos."

Sobre o atual momento vivido pelo Brasil, sob o governo do presidente Jair Bolsonaro, Caetano diz que a perspectiva para o país é "sombria". "Temos um governo inimigo das liberdades [...] No médio prazo, a gente olha para frente e não vê uma coisa muito boa."

DW Brasil: Como era sua rotina durante os 54 dias em que ficou encarcerado?

Caetano Veloso: Gil e eu fomos levados para o 1º Batalhão de Polícia do Exército, na Tijuca. Na primeira semana, eu fiquei numa solitária. Foi terrível. Dormia no chão, tinha uma privada perto da minha cabeça, um chuveiro por cima da privada e nada mais. Depois de alguns dias, eu estava muito mal da cabeça. Achava que nunca tinha vivido outra coisa, senão aquilo. No fim dessa primeira semana, fomos transferidos, Gil e eu, para um outro quartel (da Polícia do Exército da Vila Militar, no subúrbio de Deodoro), onde eu dividi o xadrez com outros rapazes. Eu num xadrez, e Gil no outro. Só por não estar mais na solitária já era melhor, mas continuava ruim. Não tinha onde dormir, tinha mais gente do que a cela podia comportar, tínhamos que dividir um chuveiro para todos. Por fim, me transferiram para o quartel dos paraquedistas do Exército. Desta vez, eu tinha cama, travesseiro, lençol. Tinha até um banheiro separado.

Você dividia a cela com outros artistas e intelectuais?

Eu não. No xadrez de Gil estavam alguns nomes da cultura brasileira, como o poeta Ferreira Gular, o escritor Antônio Calado, o jornalista e romancista Paulo Francis. Geraldo Vandré era procurado. Os militares tinham um ódio violento dele por causa daquela canção Pra não dizer que não falei das flores, que falava de "soldados armados, amados ou não". Eu estava com líderes estudantis, rapazes vinculados à Igreja Católica, mas de esquerda. O Gil estava numa cela melhor porque tinha diploma, ele podia até ter violão. O sofrimento era grande. A minha mulher [Dedé Gadelha] não sabia onde eu estava. Ninguém da minha família sabia. Eu fui sequestrado, estava desaparecido. E já fazia um mês.

Caetano Veloso

Foto do corte de cabelo feito na prisão foi parar no cartaz do filme "Narciso em férias"

Foi nesse momento que você achou que poderia ser assassinado?

Eu vivi muitos momentos terríveis. No período final da primeira semana nessa solitária que eu descrevi, fiquei muito mal da cabeça. Achei que a vida tinha sido sempre aquilo. Porque eu dormia e acordava, e estava sempre ali. Não via ninguém, não via nem a mim mesmo. O carcereiro colocava café e um pedaço de pão através de uma portinhola. Eu tinha uma alucinação de que a minha vida era só aquilo. Eu me lembrava das coisas como se elas fossem apenas sonhos.

Um dia, quando eu estava no segundo quartel, o tenente chegou com um soldado. Eu me lembro que o soldado me olhava chorando. Ele balançava a cabeça, como se reprovasse aquela situação. Eu pensei: "O que será que vai acontecer?" Lembro-me de meus companheiros de cela assustados. Eles me olhavam com uma cara como se também estivessem se perguntando: "O que será que vai acontecer?" Esse tenente e outros dois outros militares me tiraram da cela. Eles me mandaram andar na frente deles. Eu saí da minha cela bastante tenso. Estávamos em uma vila militar. Quando eu estava andando na frente, eles armados atrás de mim disseram para eu não olhar para trás, e eu pensei: "Vão atirar, vão atirar."

Então um deles me disse: "Vire à direita." Eu fui por um corredor, era o barbeiro. Eles cortaram o meu cabelo, e embora eles estivessem simbolicamente tirando mais um pedaço da minha liberdade, fiquei feliz. Eles tosaram meu cabelo num estilo militar, bem batidinho dos lados [A foto do corte foi parar no cartaz do filme].

Você só compôs uma música na prisão. Em qual momento isso aconteceu?

Foi no terceiro quartel, o dos paraquedistas do Exército. A minha mulher [Dedé], enfim, me encontrou. Ela ficava do lado de fora da grade e, assim, podíamos nos ver. Aí minha cabeça melhorou e fiz uma canção meio de vontade de estar fora, de ser solto para eu ver minha irmã mais nova de novo, que era adolescente e tinha uma risada linda, a Irene. Eu fiz essa música sem violão, sem nada.

Caetano Veloso

"Nesse momento do país, sinto que o filme entra como um sopro de afeto, de esperança", diz o diretor Renato Terra

Este é o mem que você chora no filme, quando a Dedé vai te visitar?

Eu me emocionei por não lembrar o nome do sargento baiano que facilitou meu encontro com Dedé. Depois, ele acabou sendo preso. Não gosto de falar disso. A gente teve que parar a gravação. Mas é preciso ter coragem de enfrentar o tema.

E como foi quando a Dedé te mostrou a foto do planeta Terra pela primeira vez na cadeia?

Foi estimulante. Dedé foi me visitar e levou a revista Manchete. E tinha as primeiras fotos da Terra tiradas do espaço sideral. Era a primeira vez que a gente via a Terra. Claro, estudávamos na escola que "a Terra é redonda", tinha o globo para olharmos, mas ver uma fotografia da Terra tirada do espaço sideral foi a primeira vez. Aquilo me entusiasmou, fiquei pensando... Isso não está em lugar nenhum, estou contando a você. Eu pensei assim: "Mas a Terra aqui aparece toda redondinha, a gente estudou que ela é achatada nos polos, mas nas fotografias nunca aparece achatada. Mais ou menos dez anos depois fiz uma canção chamada Terra, que começa justamente por causa do fato de eu ter visto as primeiras fotos da Terra, tiradas de fora, de dentro de uma cela: "Quando eu me encontrava preso, na cela de uma cadeia, foi que vi pela primeira vez, as tais fotografias…"

O governo Bolsonaro pode ser comparado ao período da ditadura militar?

Nós temos agora um governo de extrema direita, mas que foi eleito democraticamente. Oficialmente, não temos um governo autoritário. Temos um governo inimigo das liberdades. Eles aparelharam as áreas de cultura, de educação. Eles estão fazendo uma corrosão da situação democrática. Isso é perigoso. Sem falar no total desrespeito pelos cuidados ambientais. É duro, porque estão fazendo uma onda populista para se reelegerem em 2022. A perspectiva é sombria. No médio prazo, a gente olha para frente e não vê uma coisa muito boa, não. Eles ficam lutando contra os princípios da democracia, mas dentro das formalidades da democ

Olha, não podemos esquecer que o golpe militar de 1964 foi apoiado por grande parte da população e por toda a imprensa. Por toda a imprensa. Ele foi pedido, rogado, pelo Globo, pela Folha de S.Paulo, pelo Estadão, todo mundo. E teve uma passeata que era "Família com Deus pela liberdade", algo assim, que defendia que estávamos sendo ameaçados pelo comunismo, por causa do governo de João Goulart, que, na prática, era de centro-esquerda. Até alguns intelectuais respeitáveis e adoráveis, como Carlos Drummond de Andrade, chegaram a achar razoável que houvesse um golpe.racia. É tenso.omento 

No golpe militar, não houve opção. Foi um golpe. Agora, os brasileiros escolheram este governo...

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Foto: Alexandre Koester

quinta-feira, 3 de junho de 2021

O Bicho e O Homem



O Bicho e O Homem


[evangelhista da silva]


O bicho desnudado invade o Santa Madalena

escarra, xinga, espanca, grita e mata

assim, o homem abraça o bicho

legisla, inaugura, cheira pó

e joga no bicho.


O bicho invade o Irmã Dulce

derrama sangue e pemba vermelha no Sales

e o homem em aperto de mãos com o bicho

dá vida às normas, administra,  fuma  pedra

e ganha no bicho.


O bicho escarra o Santo Antônio e Nossa Senhora das Graças

espalha a desgraça por toda a Vida Nova e Mutum

enquanto o homem beijando o bicho

sentencia o preto, pobre, sarará

e cuida do bicho.


O bicho que desarmoniza totalmente a cidade

atira lixo pelos caminhos onde a gente passa

enqunto isso o homem, de gravata e terno

passa em seu carro de luxo, no lixo,

rodando a roleta e joga no bicho.


Santo Antônio de Jesus, 03 de junho de 2021, às 13h17min.









quarta-feira, 2 de junho de 2021

💝AS PALAVRAS MAIS PODEROSAS DE JESUS CRISTO PARÁBOLAS JESUS BÍBLIA JESU...

Mainimbú


 Mainimbú


[evangelista da silva]


E o carnaval

festivais, reveillon, futebol, carnaval e São João

tudo sextou em fins de semana agônicos.


O vírus enterrou a alegria e sorrir

no luto, saudade, tristeza e melancolia;

uns choram lágrimas de sangue e outros riem.


E, se tu receberes visita de um beija-flor batendo asas a sorrir

por certo estará a anunciar-te que pessoas que se foram estão em teu coração

decidiram de tal forma visitar-te para dizerem, carinhosamente, que estão bem.


Neste compasso e descompasso nuvens  roseas

desmaiam na madrugada e garis varrem as ruas no deslinde

de um amanhecer despido de vaidades completamente nuas.


Santo Antônio de Jesus, 02 de junho de 2021, às 12h27min.


sábado, 29 de maio de 2021

Por que a Bandeira de Santo Antônio de Jesus é Preta


Por que a Bandeira de Santo Antônio de Jesus é Preta





Bandeira ondulada preta realista Vetor Premium

*Raymundo Evangelhista______________ 

Hoje estão comemorando, cinicamente, a mercê do descaso , desrespeito, violência e exploração do nosso povo, o aniversário de emancipação política da cidade das Palmeiras Colonial, terra dos Tupinambás e Negros remanescentes, - Santo Antônio de Jesus. A história do meu povo não se baseia em seus causos; mas sim, nos seus descasos. No ostracismo político protagonizado por Agentes Públicos ao longo do tempo, aqui em minha querida e amada terra natal, - Santo Antônio de Jesus. No século XVIII, adentrando o século XIX, mais precisamente nos idos de 1880, em 29 de maio, hastearam a 'bandeira preta' de uma liberdade que ainda está por vir. Abolicionistas existiram por aqui; assim também como os mantenedores da miséria e infâmia do nosso povo. Naquela época o Pe Mateus Vieira de Azevedo, o maior escravocrata destas plagas, condicionou os nossos irmãos negros a obedecerem as ordens da Igreja de Roma, sendo um dos seus soldados na escravatura. Assim cantara em versos o nosso maior poeta, Silvestre Evangelista dos Santos, em seu poema e livro ititulados, Roma Condenada A Morte. De tal forma o Pe Mateus Vieira de Azevedo escravizou o nossos antepassados que trabalhavam arduamente nestas terras em nome da Instutuição Igreja Católica. A agricultura era o fervor da economia de então. Os negros, em troca de jabá com farinha e água, aravam a terra, cultivavam o plantio de cana de açúcar, fumo, café, laranja, mandioca e tudo mais. Além de carregar nas costas fardos de fumo, sacos de farinha, café e toda a produção agrícola. Ainda não existia o trem de ferro que ligava Santo Antônio de Jesus a Nazaré/São Roque. Em 30 de julho de 1881 o trem desliza nos trilhos rumo a Nazaré. Amenizando o sofrimento dos negros, burros, cavalos e bois de canga. E às margens do rio Sururu, balançava-se em uma rede aos peidos e roncos o Maior Escravocrata Institucional aqui em Santo Antônio de Jesus. O Pe. Mateus Vieira de Azevedo, que habitava e comandava os escravos, nossos irmãos. Não é preciso ler o grande livro do eminente sociólogo Roberto Freire, Casa Grande & Senzala, para entender as mazelas sociais em Santo Antônio de Jesus. Tampouco nos delirar na afirmação do historiador Paul Veyne ao afirmar que a história é a história das práticas e das crenças. Vale lembrar que práticas e crenças primárias criam o processo de abortamento de ideias e cerceiam a liberdade de construção de vida de um povo através de si mesmo.

"Preto é a sombra da negação. A bandeira preta é a negação de todas as bandeiras. É a negação da nação, que bota a raça humana contra ela mesma e recusa a união de toda a humanidade. Preto é o humor da raiva e ódio a todos os crimes contra a humanidade feitos no nome de um estado ou outro. É a raiva e ódio ao insulto à inteligência humana feitos em pretensas, hipócritas e baratas caridades dos governos. Preto é também a cor da tristeza; a bandeira preta que cancela a nação também chora pelas vítimas incontáveis assassinadas em guerras, externas e internas, para a glória eterna e estabilidade de algum estado sangüinário. Ela chora por aqueles cujo trabalho é roubado (taxado) para pagar a carnificina e opressão de outros seres humanos. Não lamenta só a morte dos corpos mas o aleijamento do espírito abaixo de autoritários e hierarquizados sistemas, lamenta os milhões de células cerebrais desativadas sem chance de acordar para o mundo. É uma cor de tristeza inconsolável. Mas preto também é lindo. É uma cor de determinação, de resolução, de força, a cor pela qual todos são esclarecidos e definidos. Preto é o cerco misterioso de germinação, fertilidade, a terra de crescimento para o que evolui, renova, refresca e reproduz na escuridão. A semente escondida na terra, a estranha jornada do esperma, o secreto crescimento do óvulo no útero, toda essa escuridão cerca e protege. Então preto é negação, é raiva, é ódio, é lamentação, é beleza, é esperança, é o nascimento de novas formas de vida e o relacionamento com a Mãe Terra. A Bandeira Negra significa tudo isso, estamos orgulhosos de carregá-la e olhar para o dia em que esse símbolo não vai mais ser necessário.

________________________________ escrito por Howard Ehrlichdo livro “Reinventing Anarchy”.


Desta forma, a bandeira de Santo Antônio de Jesus é preta pelo fato de que o preto é luz que brota na escuridão. A vida não é justa dividindo os seres humanos em sociedade de classes. E toda a forma de viver exige respeito e dignidade humana. A bandeira de Santo Antônio de Jesus é preta porque o preto é o feto em plena escuridão. A razão e o desequilíbrio se opõem. É a partir do feto que veremos a luz em sua plenitude. E na imensidão do infinito nos faz brotar em nossas consciências a negação, raiva, ódio, lamentação, beleza, esperança, e nascimento de novas formas de relacionamento sem desequilíbrio social e desencanto para com a vida. E fora do útero Materno da Nossa Querida e amada Mãe, - Santo Antônio de Jesus, sofremos ataques constantes por parte do banditismo que aqui se instalou para que vivamos a mercê da sua subjugação e negativismo. A nossa bandeira é preta porque não aceitamos ordens estatais como desmando e controle de um povo que nasce para perseguir a liberdade.



*Raimundo José Evangelista da Silva nasceu em Santo Antônio de Jeus. É poeta, professor e bel. em direito. Graduou-se em Letras e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Católica do Salvador em 1989, logo especializando-se em Linguística Textual pela UFBA e Instituto Anísio Teixeira em 1993. Bacharel em Direito pela FABAC - Faculdade Baiana de Ciências - Lauro de Freitas/BA em 2011. Especializou-se em Advocacia Criminal pela Faculdade Verbo Jurídico/RS em 2018. Tem 5 livros de poesias publicados; crônicas e poesias publicadas em Blogger Raymundo Evangelhista, Recanto das Letras, Pensador, Jornal A Tarde, Jornal da Bahia, Tribuna da Bahia, Facebook, Instagram e Twitter.


Santo Antônio de Jesus, 29 de maio de 2021, às 1h.

domingo, 23 de maio de 2021

Mel, e Música, e Mulher



Mel, e Música, e Mulher


[evangelhista da silva]



Colheradas de mel adoçam

a sinfonia que sorvo

lentamente.


E ela, santamente melada e doce

vou lambendo inteiro a sua carne 

na ânsia de consumi-la.


Santo Antônio de Jesus, 23 de maio de 2021, às 19h35min.

Três grandes ameaças à vida na Terra que devemos enfrentar em 2021. Artigo de Noam Chomsky e Vijay Prashad

 

Três grandes ameaças à vida na Terra que devemos enfrentar em 2021. Artigo de Noam Chomsky e Vijay Prashad

IHU

“É necessário um internacionalismo robusto para dar uma atenção adequada e imediata aos perigos de extinção: extinção por guerra nuclear, por catástrofe climática e por colapso social. As tarefas pela frente são colossais e não podem ser adiadas”, escrevem Noam Chomsky, linguista e filósofo estudunidense, e Vijay Prashad, jornalista e historiador indiano, em artigo publicado por Ctxt, 19-01-2021. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Grandes partes do mundo – fora a China e alguns outros países – enfrentam um vírus descontrolado, que não foi detido devido à incompetência criminosa dos governos. O fato desses governos em países ricos desconsiderarem hipocritamente os protocolos científicos básicos publicados pela Organização Mundial da Saúde e por organizações científicas revela sua prática maliciosa.

Qualquer coisa que não seja centrar a atenção no gerenciamento do vírus por meio de testes, rastreabilidade de contato e isolamento – e se isso não for suficiente, impor um bloqueio temporário – é imprudente. É igualmente preocupante que esses países ricos tenham adotado uma política de “nacionalismo da vacina“, monopolizando candidatas à vacina em vez de se alinharem a uma política de criação de uma “vacina dos povos“. Para o bem da humanidade, seria sensato suspender as normas de propriedade intelectual e desenvolver um procedimento para criar vacinas universais para todos os povos.

Embora a pandemia seja o principal tema em nossas mentes, existem outras grandes ameaças à longevidade de nossa espécie e do planeta. Essas incluem:

Aniquilação nuclear

Em janeiro de 2020, o Bulletin of the Atomic Scientists (Boletim dos Cientistas Atômicos) fixou o Relógio do Juízo Final de 2020 em 100 segundos para a meia-noite, perto demais para a comodidade. O relógio, criado dois anos após o desenvolvimento das primeiras armas atômicas em 1945, é avaliado anualmente pelo Conselho de Ciência e Segurança do Boletim, em consulta ao seu Conselho de Patrocinadores, que decide se move o ponteiro dos minutos ou deixa no mesmo lugar.

Quando voltarem a fixar a hora, provavelmente estaremos mais perto da aniquilação. Os já limitados tratados de controle de armas estão sendo destruídos, enquanto as principais potências possuem cerca de 13.500 armas nucleares (mais de 90% delas estão apenas nas mãos da Rússia e dos Estados Unidos). O desempenho dessas armas poderia facilmente tornar este planeta ainda mais inabitável. A Marinha dos Estados Unidos já utilizou ogivas nucleares táticas W76-2 de baixo desempenho. O Dia de Hiroshima, comemorado todo dia 6 de agosto, deve se tornar um dia mais importante de reflexão e protesto.

Catástrofe climática

Em 2018, surgiu um artigo científico com um título impactante: “A maioria dos atóis estará inabitável em meados do século XXIpois o aumento do nível do mar aumentará as inundações causadas pelas tempestades“. Os autores concluíram que os atóis das Seychelles às ilhas Marshall correm o risco de desaparecer.

Um relatório da ONU de 2019 estimou que um milhão de espécies de animais e plantas estão em perigo de extinção. A isso se somam os catastróficos incêndios florestais e o grave branqueamento dos recifes de coral e fica claro que não precisamos mais ficar nos clichês de que uma coisa ou outra é o canário na mina da catástrofe climática: o perigo não está no futuro, mas no presente.

É fundamental que as grandes potências – que continuam falhando em deixar de usar combustíveis fósseis – se comprometam com o enfoque de “responsabilidades comuns, mas diferenciadas” da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992. É significativo que países como a Jamaica e a Mongólia tenham atualizado seus planos climáticos perante as Nações Unidas antes do final de 2020, conforme exigido pelo Acordo de Paris, apesar desses países produzirem uma fração minúscula das emissões globais de carbono.

Os fundos que foram prometidos aos países em desenvolvimento para a sua participação no processo praticamente evaporaram, enquanto a dívida externa aumentou exponencialmente. Isso mostra uma falta básica de seriedade por parte da “comunidade internacional”.

Destruição neoliberal do contrato social

Os países da América do Norte e da Europa destruíram sua função pública na medida em que o Estado foi sendo entregue aos especuladores e a sociedade civil foi mercantilizada por meio de fundações privadas. Isso significa que os caminhos de transformação social nessas partes do mundo têm sido grotescamente obstaculizados. A terrível desigualdade social é o resultado da relativa fragilidade política da classe trabalhadora. É essa fragilidade que permite aos bilionários definir políticas que aumentam as taxas de fome.

Os países não devem ser julgados pelas palavras escritas em suas constituições, mas por seus orçamentos anuais. Os Estados Unidos, por exemplo, gastam quase um trilhão de dólares (caso o orçamento estimado para inteligência seja somado) em sua máquina de guerra, enquanto gastam apenas uma fração em bens e serviços públicos (como saúde, algo evidente durante a pandemia). A política externa dos países ocidentais parece ser bem lubrificada por negócios de armas: os Emirados Árabes e Marrocos concordaram em reconhecer Israel com a condição de que possam comprar 23 bilhões de dólares e 1 bilhão em armas feitas nos Estados Unidos, respectivamente. Os direitos do povo palestino, saharauis e iemenitas não importaram para estes acordos.

O uso de sanções ilegais pelos Estados Unidos contra trinta países, entre eles Cuba, Irã e Venezuela, tornou-se parte da vida normal, mesmo durante esta crise de saúde pública global desencadeada pela pandemia. É um fracasso do sistema político que as populações do bloco capitalista sejam incapazes de obrigar seus governos – que em muitos casos são democracias apenas no papel – a adotarem uma perspectiva global diante dessa emergência.

O aumento das taxas de fome revela que a luta pela sobrevivência é o horizonte para bilhões de pessoas no planeta (tudo isso enquanto a China consegue erradicar a pobreza absoluta e eliminar, em grande parte, a fome).

aniquilação nuclear e a extinção devido à catástrofe climática são ameaças gêmeas para o planeta. Enquanto isso, para as vítimas do ataque neoliberal, que foi uma praga para a última geração, os problemas de curto prazo para sustentar sua própria existência deslocam questões fundamentais sobre o destino de nossos filhos e netos.

Os problemas globais nesta escala requerem a cooperação global. Pressionadas por países do Terceiro Mundo, nos anos 1960, as grandes potências aceitaram o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (1968), embora tenham rejeitado a profundamente importante Declaração sobre o Estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica Internacional (1974). Já não existe a correlação de forças para promover esse tipo de agenda de classe no cenário internacional.

Certas dinâmicas políticas nos países ocidentais, em particular, mas também em grandes estados do mundo em desenvolvimento (como Brasil, Índia, Indonésia e África do Sul), são necessárias para mudar o caráter de seus governos. É necessário um internacionalismo robusto para dar uma atenção adequada e imediata aos perigos de extinção: extinção por guerra nuclear, por catástrofe climática e por colapso social. As tarefas pela frente são colossais e não podem ser adiadas.

(EcoDebate, 21/01/2021) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

 

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"O homem foi feito para a guerra; e a mulher para descansar o guerreiro." (Friedrich Nietzsche)

Para que servem as guerras?

Para que servem as guerras?

O que a história e dez mil anos de experiências nos levam a concluir sobre a guerra e seu papel no progresso da civilização

Há livros bastante provocativos que nos fazem ir contra o senso comum e revelam verdades inconvenientes. Um deles é “War! What's it good for?: Conflitos e o progresso da civilização de primatas a robôs”, do professor de Stanford Ian Morris.
A leitura é leve e estimulante, um passeio por séculos de conflitos, dos romanos contra os bárbaros às guerras medievais, das grandes guerras do século XX à Guerra Fria e, por fim, o Império Americano.

Os argumentos centrais são simples e convincentes quanto ao papel da guerra para o desenvolvimento da civilização. Vejamos:

1. As guerras criam sociedades maiores e mais organizadas.
É impossível para uma sociedade lutar (e obter vitórias) sem um mínimo de organização. Quanto maior o esforço bélico, maior a necessidade de alocar devidamente recursos - humanos e materiais - de maneira a atingir o objetivo militar, seja de conquista, seja de defesa do território.
A complexidade necessária demanda a criação de um Governo mais forte e atuante.
O legado do conflito é uma sociedade mais complexa, mais organizada, e com um know-how de como se tornar ainda mais complexa.

2. As guerras criam sociedades maiores e mais seguras.
Embora a guerra seja a pior maneira de criar sociedades maiores e mais pacíficas, é praticamente a única forma que os humanos encontraram para isso.
Parece contra intuitivo, mas conquistadores precisam garantir que os povos dominados não disponham de armas, nem de meios para exercer a violência, sob pena de comprometer a conquista. Esse controle e o respectivo monopólio da força bruta pelo Estado têm como resultado uma sociedade mais pacífica e segura para todos.
É cada vez menor o número de mortes mundiais anuais causadas por conflitos armados. Apenas uma referência: esse número caiu de 546.000, em 1950, para 87.432, em 2016. Além do mais, era maior a probabilidade de um europeu morrer em uma guerra no século XIX do que é hoje em dia.

3. Sociedades mais complexas criadas por guerras trazem riqueza.
A longo prazo, ao formar sociedades mais pacíficas e seguras, as guerras criam as bases para o desenvolvimento e, em última análise, promovem mais riquezas.
A administração do Império Romano demandou a criação de uma infraestrutura de governo e logística – estradas e linhas marítimas - que favoreceu o comércio e a economia inter e intraprovincial, gerando riqueza para empreendedores de todas as partes do império.
Vale também notar a ascensão dos Estados Unidos como superpotência após a Segunda Guerra Mundial, que terminou em 1945.

4. As Guerras são tão eficientes que tendem a serem continuamente reduzidas.
Milhares de anos de conflitos geraram sociedades cada vez mais complexas, governos cada vez mais fortes e riquezas para a maior parte da população mundial. O progresso tecnológico trouxe a possibilidade de armas de destruição em massa, capazes de acabar com a vida no planeta. Isso torna improváveis os confrontos em larga escala, mantem a paz e limita a guerra a pequenos conflitos regionais, com números anuais decrescentes.

Moral da história: devemos chegar muito próximo do mundo imaginado pelos pacifistas, mas por motivos diferentes, muito diferentes.