Podemos criticar Foucault?* – Parte 1**
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*Tradução da entrevista de Daniel Zamora, presente na matéria Can We Criticiza Foucault, do site Jacobin (para lê-la em inglês, clique aqui).
**Para que a postagem não fique muito extensa a entrevista será dividida em 2 partes.
Entrevistador: No livro Foucault, Sa Pensée, Sa Personne, o amigo de Foucault Paul Veyne escreve que ele era inclassificável, politica e filosoficamente: “Ele não acreditava nem em Marx, nem em Freud, nem na Revolução, nem em Mao, no particular ele glosava de sentimentos progressistas, e eu não sabia de nenhuma posição sua embasada sobre os vastos problemas do Terceiro Mundo, consumismo, capitalismo, imperialismo americano.”
Você escreve que ele sempre “esteve um passo a frente de seus contemporâneos”. O que você quis dizer com isso?
Entrevistado: Deve ser dito que Foucault coloca holofotes em temas que eram claramente ignorados, até mesmo marginalizados, pela intelectualidade dominante de sua era. Seja sobre psiquiatria, sobre prisões ou sexualidade, seus trabalhos claramente marcaram um vasto terreno intelectual. Claro que ele era parte de uma Era, um contexto social muito mais amplo, e não foi o primeiro a trabalhar em tais áreas. Esses temas estavam brotando de todos os lugares e tornando-se objetos de movimentos políticos e sociais significativos.
Na Itália, por exemplo, o movimento anti-psiquiátrico iniciado por Franco Basaglia não precisou esperar que Foucault desafiasse o asilo mental para formular suas próprias propostas políticas para substituir aquela instituição. Assim, obviamente Foucault não originou todos esses movimentos – ele nunca reivindicou isso – mas ele claramente abriu o caminho para um grande número de historiadores e acadêmicos que trabalhavam em novos temas, novos territórios, que pouco haviam sido explorados.
Ele nos ensinou a sempre questionar politicamente coisas que na época pareciam além de qualquer suspeita. Eu ainda me lembro de sua famosa discussão com Chomsky, onde ele declarou que, em sua opinião, a verdadeira tarefa política era criticar instituições que eram “aparentemente neutras e independentes” e ataca-las “de tal maneira que sua violência obscura fosse desmascarada”.
Eu posso ter algumas dúvidas sobre a natureza de suas críticas – nós iremos voltar a isso, tenho certeza – mas mesmo assim era um projeto extremamente novo e estimulante.
Entrevistador: Tornando Foucault compatível com o neoliberalismo, seu livro poderia “arrancar muitas penas”.
Entrevistado: Eu espero que sim. Essa é meio que a ideia do livro. Eu queria romper com essa imagem consensual demais de Foucault como estando totalmente em oposição ao neoliberalismo no final de sua vida. Desse ponto de vista, eu acredito que as interpretações tradicionais de seus últimos trabalhos são errôneas, ou, pelo menos, perdem parte da questão. Ele se torna uma espécie de figura intocável para parte da esquerda radical . Críticas à ele são tímidas, para dizer o mínimo.
A cegueira é surpreendente porque até mesmo eu fiquei abismado pela indulgência que Foucault mostrou frente ao neoliberalismo quando eu mergulhei em seus textos. Não são apenas suas aulas no Collège de France, mas também inúmeros artigos e entrevistas, tudo isso está acessível.
Foucault era altamente atraído pelo liberalismo econômico: ele via nisso a possibilidade de uma forma de governabilidade que era muito menos normativa e autoritária que o socialismo e o comunismo, que ele via como totalmente obsoletos. Ele especificamente via no neoliberalismo uma forma política “muito menos burocrática” e “muito menos disciplinante” do que a oferecida no Estado de Bem Estar Social pós Segunda Guerra Mundial. Ele parecia imaginar um neoliberalismo que não iria projetar seus modelos antropológicos no indivíduo, que iria oferecer aos indivíduos maior autonomia comparativamente ao Estado.
Foucault parecia, no final dos anos 70, estar migrando para a “segunda esquerda”, a minoritária mas intelectualmente influente tendência do socialismo francês, juntamente com figuras como Pierre Rosanvallon, que os escritos Foucault apreciava. Ele achava sedutor esse anti-estatismo e esse desejo de “desestatificar a sociedade francesa”.
Até Colin Gordon, um dos principais tradutores e comentadores sobre Foucault no mundo Anglo-Saxão, não tem nenhum problema em dizer que vê em Foucault um precursor à Terceira Via de Tony Blair, incorporando estratégias neoliberais dentro do corpus social-democrata.
Entrevistador: Ao mesmo tempo, seu livro não é uma denuncia ou uma investigação processual. Como você disse antes, você reconhece a qualidade de seu trabalho.
Entrevistado: Claro! Eu estou fascinado por sua personalidade e trabalho. Para mim, é precioso. Eu também apreciei o trabalho recentemente publicado por Geoffrey de Lagasnerie, La dernière leçon de Michel Foucault [ A última lição de Michel Focault, lançado no Brasil pela editora Três Estrelas]. Por fim, seu livro é meio que o lado inverso do nosso, já que ele vê em Foucault um desejo de usar o neoliberalismo para reinventar a esquerda. Nossa perspectiva é que ele usa o neoliberalismo de maneira mais profunda que apenas como uma ferramenta: ele adota a visão neoliberal para criticar a esquerda.
Mesmo assim, Lagasnerie enfatiza um ponto que para mim é essencial e vai no ponto central de muitos problemas na esquerda crítica: Ele argumenta que Foucault foi um dos primeiros a levar os textos neoliberais a sério e a lê-los rigorosamente. Antes dele, aqueles produtos intelectuais foram geralmente dispensados, considerados como pura propaganda. Para Legasnerie, Foucault explodiu a barreira simbólica que havia sido construída pela intelectualidade de esquerda contra a tradição neoliberal.
Sequestrado pelo sectarismo do mundo acadêmico, nenhuma leitura estimulante existia que levasse em consideração os argumentos de Friedrich Hayek, Gary Becker, ou Milton Friedman. Nesse ponto, podemos apenas concordar com Legasnerie: Foucault nos permitiu ler e entender esses autores, para descobrir neles um complexo e estimulante corpo de pensamento. Nesse ponto eu concordo totalmente com ele. É inegável que Foucault sempre tentou arduamente investigar corpus teóricos de horizontes diametralmente diferentes e constantemente questionar suas próprias ideias.
A intelectualidade de esquerda infelizmente nem sempre conseguiu fazer parecido. Tem frequentemente permanecido presa em uma atitude “de escola”, recusando a priori considerar ou debater ideias e tradições que começam com premissas diferentes das suas. Essa é uma atitude muito danosa. Nos encontramos entre pessoas que praticamente nunca leram os pais fundadores da teoria política que eles estão supostamente atacando! Seus conhecimentos são geralmente limitados a alguns poucos lugares comuns.
Entrevistador: Em seu livro, você contesta a visão de Seguridade Social e redistribuição de riqueza. Você poderia falar mais sobre isso?
Entrevistado: É praticamente uma questão inexplorada dentro do imenso corpus dos “foucaultianos”. Para dizer a verdade, eu não pensei que trabalharia nisso quando eu estava pensando sobre o planejamento do livro. Meu interesse em seguridade social não era diretamente conectado a Foucault, mas minha pesquisa sobre o assunto levou-me a pensar como, nos últimos 40 anos, nós fomos de uma política focada em combater a desigualdade, baseada na seguridade social, para uma política focada em combater a pobreza, crescentemente organizada em alocações específicas de verba e populações alvo.
Ir de um conceito ao outro transformou totalmente a visão de justiça social. Combater desigualdade (e procurar diminuir disparidades absolutas) é muito diferente de combater pobreza (e procurar fornecer o mínimo para os mais necessitados). Completar essa pequena revolução necessitou de anos de deslegitimação da seguridade social e das instituições da classe trabalhadora.
Foi enquanto lia atentamente os textos do Foucault “tardio” (do fim dos anos 70 ao início dos anos 80) que tornou-se claro para mim que ele tomou parte nessa operação. Ele não apenas desafiou a seguridade social, ele foi também seduzido pela alternativa de um imposto de renda negativo proposto por Milton Friedman nesse período. Para ele, os mecanismos de seguridade e assistência social, que ele colocava no mesmo plano que as prisões, os quartéis, ou a escola, eram instituições indispensáveis “para o exercício do poder nas sociedades modernas”.
É também interessante notarmos que no trabalho central de François Ewald, ele não hesita ao dizer que o “Estado de Bem Estar Social completa o sonho do ‘biopoder'”. Nada menos que isso! [ Ewald foi discípulo e assistente de Foucault, agora é um intelectual alinhado com a indústria francesa de seguros e ao “Medef”, a principal federação de negócios da França].
Dado os muitos defeitos do sistema de seguridade social clássico, Foucault estava interessado em troca-lo por um imposto de renda negativo. A ideia era relativamente simples: o Estado paga um benefício para todos aqueles que estejam abaixo de um certo nível de renda. Arrumar as coisas de maneira que, com necessidade de pouca administração, ninguém ficará abaixo de um nível mínimo.
Na França, esse debate apareceu em 1974, no livro de Lionel Stóleru Vaincre la pauvreté dans les pays riches [Conquistando a pobreza nos países ricos, em tradução livre]. É também interessante notar que Foucault encontrou-se com Stóleru várias vezes quando Stóleru era um conselheiro técnico na equipe do [presidente direitista da França] Valéry Giscard D’Estaing. Um argumento importante perpassa seu trabalho e atraiu a atenção de Foucault: no espírito de Friedman, Stóleru desenha uma distinção entre uma política que persegue a igualdade (socialismo) e uma política que simplesmente busca eliminar a pobreza sem desafiar as desigualdades (liberalismo).
Para Stóleru, e eu estou citando, “doutrinas […] podem: ou nos levar para uma política visando eliminar a pobreza, ou a uma política que busque limitar a disparidade entre os ricos e os pobres”. É isso que ele chama de “a fronteira entre pobreza absoluta e pobreza relativa”. O primeiro refere-se simplesmente a um nível arbitrário (que o imposto de renda negativo lida) e o outro refere-se à todas as disparidades entre indivíduos (que a seguridade social e o Estado de Bem Estar Social lidam).
Aos olhos de Stóleru, “a economia de mercado é capaz de assimilar ações para combater a pobreza absoluta” mas “é incapaz digerir remédios muito fortes contra a pobreza relativa”. É por isso, ele argumenta, [que] “Eu acredito que a diferença entre pobreza absoluta e pobreza relativa é de fato a distinção entre capitalismo e socialismo”. Portanto, o que está em questão entre uma e outra é uma questão politica: a aceitação do capitalismo como economia dominante, ou não.
Desse ponto de vista, o entusiasmo pouco escondido de Foucault com a proposta de Stóleru era parte de um movimento maior, que surgiu juntamente com o declínio da filosofia igualitária da seguridade social em favorecimento de uma luta contra a “pobreza” orientada pelo livre mercado. Em outras palavras, e por mais surpreendente que possa parecer, a luta contra a pobreza, longe de limitar o efeito de políticas neoliberais, tem na verdade militado a favor de sua hegemonia política.
Portanto, não é surpreendente ver as maiores fortunas do mundo, como as de Bill Gates ou George Soros, engajadas nessa luta contra a pobreza, mesmo enquanto apoia, sem nenhuma contradição aparente, a liberalização dos serviços públicos, a destruição de todos esses mecanismos de distribuição de renda, e as “virtudes” do neoliberalismo.
O combate a pobreza ainda permite a inclusão de questões sociais na agenda política sem que se lute pela desigualdade e o mecanismo estrutural que a produz. Então essa evolução tem sido parte e parcela do neoliberalismo, e o objetivo do meu texto é mostrar que Foucault teve sua cota de responsabilidade nesse desenvolvimento.