Por João Batista de Castro Júnior, no DCM
Antes da Lei 11.719/2008, que introduziu
alteração no Código de Processo Penal, o réu era citado ordinariamente
para ser interrogado por um magistrado acompanhado de um escrivão que
digitava todas as frases começando sempre com “que”. Não raro um lapso
condenatório do juiz e/ou do digitador escapava: “que, mesmo sendo
verdade, insiste em dizer que não é verdade” etc.
Ainda nessa época, todo cuidado era
pouco por parte do acusado, pois a recepção judiciária ainda estava
presa a intenso formalismo, quase que se assemelhando àquele antigo
exemplo encontrável em Gaio (jurista romano que morreu em 180 da era
cristã), nas suas famosas Institutas, de um indivíduo “agindo por causa
de videiras cortadas”, o qual, ao dizer, perante o juiz, a palavra vites
em vez de arbor, terminou por perder a ação, uma vez que a Lei de XII
Tábuas falava de árvores cortadas em geral.
A Lei 11.719/2008 surgiu, então, para
ser e reafirmar-se ser um marco miliário da teoria do processo penal: o
interrogatório é primacialmente meio de defesa do réu e,
secundariamente, meio de prova.
Dez anos já se foram, mas ainda tem
juiz(íza) preso(a) ao passado, o que, tratando-se das práticas
jurídico-judiciárias, não é novidade, pois as roupas continuam
inadequadas ao climas dos trópicos, a linguagem insiste em imitar (mal,
saliente-se) uma norma padrão própria do modelo gramatical do início do
século XX, quando começou a parábola descendente do bacharelismo oco e
retórico, os padrões litúrgicos teimam em ser fortemente rococó etc.
No ambiente virtual contemporâneo,
esperava-se a adaptação dos magistrados a um novo modelo. Mas o que se
viu no interrogatório de Lula hoje, dia 14 de novembro, foi o passadismo
mostrando sua força na cena jurídica, ou seja, um acusado sendo tratado
como condenado, não como réu que tem em seu favor a presunção de
inocência.
Se Moro nunca esteve à altura de um
cargo que exige imparcialidade, e isso se tornou mais que evidente ao
aflorarem suas dissimuladas ambições políticas nos últimos dias, muito
menos parece merecê-lo sua sucessora, a juíza federal substituta
Gabriela Hardt, que, na audiência de interrogatório, mostrou toda sua
inabilidade para pelo menos posar de imparcial ao vociferar: “senhor
ex-presidente, esse é um interrogatório. E se o senhor começar nesse tom
comigo, a gente vai ter um problema”.
Que problema, que problema, Gabriela? Se
ao réu é dado até ficar em silêncio sem que isso arranhe sua defesa,
como assegura o Código de Processo Penal (art. 186, parágrafo único),
como admitir que deva ter um tom para falar e um barema lexical do que
possa dizer?
Pelo que se vê, está faltando mais
esforço de credibilidade no caráter imparcial dos julgadores de Lula,
porque, quando um juiz não é imparcial, mas tem que fingir sê-lo, deve
ao menos fazer um melhor esforço teatral de demonstrar que o é.
Costuma-se ensinar em Análise do
Discurso que o que se diz nem sempre é tão importante quanto a
circunstância que envolve o não dito.
Ao declarar “se o senhor se sente
desconfortável, o senhor pode ficar em silêncio”, a magistrada
incriminou-se mais do que seguramente tentará fazer com Lula na sentença
condenatória que está por vir, pois juiz algum pode induzir um acusado a
ficar em silêncio, a não ser que tema que o depoimento constranja não
só os acusadores como a mais recente e bizarra criação jurídica do
direito brasileiro, nascida em Curitiba, o juiz-acusador.
Convenhamos: na encenação judiciária de
baixo estofo que se instalou no caso Lula, morre-se de medo da paixão
oratória dele, até no STF, que cometeu a atrocidade de vetar sua
entrevista. Goste-se ou não, o ex-presidente humilhou Moro, que, perdido
na sua ruminação de desforço vingativo, se deixava alimentar ainda mais
pelo desejo de condenar a cada lance eloquente do interrogatório no
caso do tríplex.
Agora, a juíza, temerosa de que a
eloquência de Lula passasse também por cima dela, logo denunciou sua
limitação intelectual: “se ele fugir do assunto e começar com discurso
político, doutor, infelizmente, eu estou comandando a audiência e vou
ter que cortar”.
O que você sabe, Gabriela, de discurso
político? Sabe ao menos o significado dado pela Ciência Política? Não,
né, não sabe, pois os manuais recheados de macetes com que se consegue
aprovação em concursos da magistratura e do ministério público passam
longe desse tipo de incursão.
Portanto, um réu pode falar o que quiser
em seu interrogatório, desde que não produza ofensas, pois não se sabe
qual é a estratégia de defesa. Portanto, a juiz algum é dado interferir
nessa configuração defensiva, a menos que não disfarce seu propósito
condenatório.
Mas vou ainda, Gabriela, lhe puxar a
orelha com uma última lição sobre sua aberração de incitar o réu a ficar
em silêncio. É bem provável que isso nunca chegue a seu conhecimento.
Mas, vá lá, não vou me furtar de fazê-lo: quando, em um interrogatório,
se induz ILEGALMENTE um réu a ficar em silêncio, quer-se no fundo
produzir o que se conhece como argumentum ex silentio, ou seja, uma
evidência presuntiva de que a pessoa deixou de mencionar algo embora
estivesse em condições de fazê-lo.
Dou-lhe um exemplo clássico, porque
conheço bem as limitações intelectuais da formação jurídica: nos seus
diários, Marco Polo diz ter visitado a China, mas não cita a Grande
Muralha, o que abriu uma enorme controvérsia historiográfica se teria
mesmo estado naquela região.
Como sugestão bibliográfica desse
instigante tema, indico John Lange, The Argument from Silence, History
and Theory”, vol. 5, n.. 3, 1966, e M. G. Duncan, The Curious Silence of
the Dog and Paul of Tarsus; Revisiting the Argument from Silence,
Informal Logic, vol. 32, n. 1, 2012.
Mas, antes de qualquer coisa, fique
advertida da lição dada por Sven Bernecker e Duncan Pritchard:
“argumentos pelo silêncio são, invariavelmente, bem fracos; há muitos
exemplos onde este tipo de argumentação nos levaria a lugar nenhum” (The
Routledge Companion to Epistemology, Routledge, 2012, p. 64-5).
Mas nós sabemos aonde as imputações
contra Lula querem chegar, não é mesmo? Afinal, até o presidente eleito,
que não detém qualquer poder legal sobre o assunto, mas é chefe de fato
do juiz que encarcerou o ex-presidente, já declarou que este irá
“apodrecer na cadeia”.
Em arremate: não é segredo como isso
terminará e só me darei mesmo em breve ao trabalho de criticar os
aspectos técnicos da anunciada futura sentença condenatória porque tenho
muitos alunos e alunas interessados em conhecer as vísceras da
estupidez jurídica que se abateu sobre o País.
–
JOÃO BATISTA DE CASTRO JÚNIOR é juiz federal e professor doutor do Curso de Direito da Universidade do Estado da Bahia
A juíza federal Gabriela Hardt em entrevista ao programa “Justiça Para Todos”, da Ajufe, em maio de 2017. Foto: Reprodução/Ajufe
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