segunda-feira, 23 de agosto de 2021

O racismo religioso nosso de cada dia

 

O racismo religioso nosso de cada dia

Promotora de Justiça Lívia Sant’Anna Vaz reflete sobre intolerância e preconceitos

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“Exu matou um pássaro ontem,
com uma pedra que só jogou hoje”

Ditado Iorubá

arrancar uma árvore do solo quando suas raízes já foram cortadas. Mas Baobás têm raízes profundas! Essa metáfora é capaz de sintetizar a história de opressão e resiliência de pessoas africanas escravizadas no Brasil.

 

É mais fácil 

O sistema colonialista escravocrata não se contentava em aprisionar e coisificar corpos negros. Intentava também capturar nosso espírito livre, retirar nossa dignidade e romper a ligação com nossas origens e ancestralidade. Para tanto, diversas estratégias foram utilizadas pelo colonizador: mudança de nomes das pessoas escravizadas, separação de famílias negras, perseguição às práticas culturais e religiosas de matriz africana.

Nesse contexto, ao longo da história do Brasil, as religiões afro-brasileiras foram submetidas à repressão do Estado, por meio de seu aparato jurídico-político e policial.  

A forma como se desenvolveram as religiões afro-brasileiras –em ambiente doméstico e, muitas vezes, associando Orixás a santos católicos – resultou das tecnologias ancestrais aplicadas como estratégias de sobrevivência diante das restrições impostas pela legislação.   

Antes mesmo de o Brasil possuir ordem jurídica própria, as Ordenações Filipinas, em seu Livro V, punia a feitiçaria com pena de morte.  

A Constituição de 1824 definiu o catolicismo como religião oficial do Império, garantindo a liberdade de culto a outras religiões, desde que exercido em ambiente doméstico e sem ostentação de templos. Em consonância com as normas constitucionais, o Código Criminal de 1830 criminalizava a celebração pública, em casa ou edifício com forma exterior de templo, de cultos de outra religião que não a oficial do Estado. O Código Penal de 1890, por sua vez, tipificava o espiritismo e o curandeirismo, práticas historicamente associadas às religiões de matriz africana.  

A perseguição continuou na segunda metade do século XX, mesmo com a consagração do Estado laico, desde a Constituição republicana de 1891. Na Paraíba, a Lei nº 3.443/1966 determinava que líderes religiosas/os afro-brasileiras/os se submetessem a exame de sanidade mental, com emissão de laudo psiquiátrico. Na Bahia, a Lei nº 3.097/1972 impunha o cadastramento dos terreiros nas Delegacias de Jogos e Costumes. Nesse período, era habitual –embora atualmente também não seja rara– a ostensiva repressão policial aos terreiros, com interrupção de atividades religiosas e apreensão de objetos sagrados.  

De fato, as religiões afro-brasileiras foram as únicas que tiveram objetos sagrados sistematicamente apreendidos e expostos em museus do crime. Recorde-se que, apenas em setembro de 2020, os objetos sagrados afro-brasileiros expostos no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro foram transferidos para o Museu da República.  

O histórico de discriminação religiosa centrada na inferiorização dos povos negros escravizados reflete-se até os dias de hoje em restrições a direitos fundamentais dos adeptos de religiões afro-brasileiras. Essa realidade pode ser constatada na recusa de atendimento em unidades de saúde, no constrangimento em transportes públicos e até mesmo na restrição de acesso a órgãos públicos com indumentárias próprias da religião.  

No Brasil, o povo negro nunca experimentou igual liberdade religiosa! 

Por isso, é preciso distinguir racismo religioso de intolerância religiosa. Esta pode atingir qualquer religião; o racismo religioso afeta as religiões de matriz africana por serem expressão da religiosidade negra de origem africana. Constitui-se como uma das graves interfaces do racismo à brasileira, legitimado por um sistema político que se diz sem partido – mas com religião! – e cujo poder público instituído não se envergonha em proclamar ser terrivelmente cristão.  

Nesse campo pecaminosamente fértil, o racismo religioso se prolifera como um milagre da multiplicação às avessas. A expiação do pecado alheio e o sacrifício do diferente parecem convertidos em mandamentos sacralizados, em verdadeiras leis divinas, de cujas boas intenções até mesmo Deus duvida.   

Apesar de toda a violenta história de repressão, as religiões de matriz africana representam o resgate do sentido de família para as pessoas negras escravizadas, separadas de suas famílias de origem pelo sistema escravocrata. Não é à toa que se diz mãe, pai, filha/o e irmã/o de santo. A partir e em torno dos terreiros se formaram e se formam verdadeiras famílias.  

O legado afro-brasileiro, com seus sabores e saberes, é único no mundo! Nós, no entanto, insistimos em ignorar as perspectivas epistemológicas que os saberes ancestrais nos proporcionam e continuamos apegadas/os às perspectivas epistemicidas do colonizador. Seguimos buscando uma alvura inalcançável que não é nossa e que continua elegendo como alvos sempre os mesmos corpos negros.  

Que a cada dia, além do pão nosso, sejamos capazes de buscar inspiração na arte ancestral de Exu; que sejamos capazes de atirar hoje a pedra que matará ontem o pássaro sombrio do racismo religioso.

*Livia Sant’Anna Vaz é promotora de Justiça do MP-BA. Mestra em Direito Público pela UFBA. Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Nomeada uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo, na Edição Lei & Justiça (Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition)

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