O Ministro (Min.) Ayres Britto, que tinha posição contrária, acaba de reformular seu entendimento para admitir a retroatividade do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 aos fatos ocorridos no tempo da Lei 6.368/76. Muito lúcido o seu voto. O benefício do § 4º (diminuição da pena) é novo no nosso sistema jurídico. Não existia antes. A norma nova benéfica deve ter retroatividade. Síntese dos fatos feita pelo Min. Ayres Britto:
I – L.F.P. (recorrido) foi condenado a 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de reclusão, em regime fechado, pelo crime de tráfico de drogas, nos termos do art. 12 da Lei 6.368/76; II – com a superveniência da Lei 11.343/2006, o Juízo da Vara de Execuções Criminais da Comarca de São Paulo deferiu a pretensão da defesa de estender ao acusado a causa de diminuição do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006. Pelo que a reprimenda ficou estabelecida em 1 (um) ano e 8 (oito) meses de reclusão; III – o Tribunal de Justiça paulista acolheu agravo em execução, interposto pelo Ministério Público, tornando prevalecente o patamar fixado na sentença originária (3 (três) anos e 4 (quatro) meses de reclusão); IV – o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu a ordem de habeas corpusimpetrado pelo recorrido e restabeleceu a decisão do Juízo das Execuções Penais para permitir ao paciente o gozo da nova causa de diminuição da pena, criada pela mais recente Lei de Drogas. O Recurso Extraordinário (RE) foi interposto pelo Ministério Público Federal (MPF) contra o acórdão proferido pelo STJ (HC 101.125/SP) que entendeu que: 1. É imperativa a aplicação retroativa da causa de diminuição de pena contida no parágrafo 4º do artigo 33 da Lei 11.343/2006 feita sob a pena cominada na Lei 6.368/1976 (…). 2. Não constitui uma terceira lei a conjugação da Lei 6368/76 com o parágrafo 4º da Lei 11.343/06, não havendo óbice a essa solução, por se tratar de dispositivo benéfico ao réu e dentro do princípio que assegura a retroatividade da norma penal, constituindo-se solução transitória a ser aplicada ao caso concreto. (…) Do voto do Min. Ayres Britto transcrevemos as seguintes informações: O MPF entende que a decisão impugnada ofende o inciso XL do art. 5º da CF e alega ofensa ao princípio da separação dos Poderes: “É que ‘não cabe ao Judiciário o papel de legislar (…)’”. O recorrente recorda da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) (Extradição 925, Plenário) no sentido de que a norma em causa não autoriza a “combinação das regras mais benignas de dois sistemas legislativos diversos formando uma terceira lei. (…) A medida correta, em tais situações, é a que pugna pela análise isolada de cada legislação, para que se verifique qual delas se mostra mais favorável ao réu”. A Defensoria Pública da União sustenta que: - (…) o acórdão impugnado apenas deu plena efetividade ao princípio da retroatividade da lei mais benéfica ao réu (inciso XL do art. 5º da CF/88); - o julgador “não está criando nada, mas apenas se utilizando, aplicando ao caso concreto leis federais que seguiram o processo legislativo constitucional e foram aprovadas pelo Congresso Nacional”; - o magistrado “deve se utilizar do ordenamento jurídico como um todo, uma vez que esse é sistemático e as leis não existem por si só, mas fazem parte desse ordenamento”. A Procuradoria-Geral da República opinou pelo provimento do RE. O Min. Ricardo Lewandowski (Relator) votou pelo provimento do recurso, sendo acompanhado pelos Ministros Joaquim Barbosa e Cármen Lúcia. Divergiram do Relator os Ministros Cezar Peluso e Dias Toffoli. O Min. Ayres Britto salienta que a discussão envolve o tema do conflito intertemporal de leis penais: a causa de diminuição de pena, instituída pelo § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006, pode ser estendida a réus também condenados pelo crime de tráfico de entorpecentes, porém sob a vigência da Lei 6.368/76? O Min. Ayres Britto transcreve parte do voto do Relator citando doutrina nos dois sentidos. O STF (no julgamento acima citado – Extradição 925) se filiou à corrente que não aceita a conjugação de lei anterior com discordante legislação posterior, ainda que para beneficiar o réu ou aquele já definitivamente condenado. Foi assim que o Min. Ayres Britto votou, nos autos da Extradição 925, julgada pelo Tribunal Pleno, na Sessão de 10 de agosto de 2005: “[...] 60. O que há de ser feito, então, ante um conflito de leis no tempo e da impossibilidade da combinação de modelos legais para resolvê-lo é buscar-se, nos parâmetros de cada caso, qual das leis em confronto é de ser aplicada em face da sua condição de maior benignidade. [...]”. O Min. Ayres Britto comunica que prosseguiu meditando sobre o tema e dá diversos fundamentos (que apresento de forma resumida abaixo) para chegar à sua conclusão: - “não se pode perder de vista o caráter individual dos direitos subjetivo-constitucionais em matéria penal; sabido que o indivíduo é sempre uma realidade única ou insimilar, irrepetível mesmo na sua compostura anímica e biopsíquica de microcosmo ou de um universo à parte”. - “a norma do inciso XL do art. 5º da Lei das Leis está a merecer (…) uma interpretação mais elástica ou tecnicamente ‘generosa’ (falaria o pranteado Miguel de Seabra Fagundes), na medida em que ela própria dispõe sobre a não-retroação da lei penal, ‘salvo para beneficiar o réu’”. - “a principal diretriz hermenêutica do cientista e operador do direito é conferir o máximo de eficácia à Constituição, mormente naqueles dispositivos que mais nitidamente revelem a identidade ou os traços fisionômicos dela própria, como é o tópico dos direitos e garantias individuais”. - “O Magno Texto, no aludido inciso XL do art. 5º, quando fala de lei penal, está falando, em rigor, de norma penal (a ‘norma penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu’, é como se deve ler). (…) É como dizer: se a benignidade está na regra penal, a retroação eficacial está na Constituição mesma”. - “a prefalada discussão em torno da possibilidade ou da impossibilidade de mesclar leis que antagonicamente se sucedem no tempo (para que dessa combinação se chegue a um terceiro modelo jurídico-positivo) é de se deslocar do campo da lei para o campo da norma. (…) o que a nossa Constituição rechaça é a possibilidade de mistura entre duas normas penais que se contraponham, no tempo, sobre o mesmo instituto ou figura de direito. Situação em que há de se fazer uma escolha, e essa escolha tem que recair é sobre a inteireza da norma comparativamente mais benéfica. Vedando-se, por conseguinte, a fragmentação material do instituto, que não pode ser regulado, em parte, pela regra mais nova e de mais forte compleição benéfica, e, de outra parte, pelo que a regra mais velha contenha de mais benfazejo”. - “O que proclama a Constituição, portanto, é a retroatividade dessa ou daquela figura de direito que, veiculada por norma penal temporalmente mais nova, se revele ainda mais benfazeja do que a norma igualmente penal até então vigente. Caso contrário, ou seja, se a norma penal mais nova consubstanciar política criminal de maior severidade, o que prospera é a vedação da retroatividade. Equivale a dizer: na hipótese de maior severidade ou endurecimento da norma penal mais nova, ela revoga, sim, a norma penal mais antiga; que, no entanto,mantém íntegros os efeitos que já deflagrou ou ainda esteja a deflagrar na esfera subjetiva de quem protagonizou os fatos por ela descritos como crimes. É o fenômeno da ultra-atividade eficacial da norma que, embora revogada, conserva os seus efeitos penais comparativamente mais benéficos quanto a determinados sujeitos de direitos. Morre a norma antiga, mas sobrevivem os seus efeitos comparativamente mais favorecedores de determinada(s) pessoa(s)”. - “(…), o tema em debate ganha em clareza cognitiva à luz das figuras constitucionais da ultra-atividade e da retroatividade, não de uma determinada lei penal em sua inteireza, mas de uma particularizada norma penal com seu específico instituto. Isto na acepção de que, ali onde a norma penal mais antiga for também a mais benéfica, o que deve incidir é o fenômeno da ultra-atividade; ou seja, essa norma penal mais antiga decai da sua atividade eficacial, porquanto inoperante para reger casos futuros, mas adquire instantaneamente o atributo da ultra-atividade quanto aos fatos e pessoas por ela regidos ao tempo daquela sua originária atividade eficacial. Mas ali onde a norma penal mais nova se revelar mais favorável, o que toma corpo é o fenômeno da retroatividade do respectivo comando. Com o que ultra-atividade (da velha norma) e retroatividade (da regra mais recente) não podem ocupar o mesmo espaço de incidência. Uma figura é repelente da outra, sob pena de embaralhamento de antagônicos regimes jurídicos de um só e mesmo instituto ou figura de direito”. Conclusão do Ministro Ayres Britto: - “o § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 outra coisa não fez senão erigir quatro vetores à categoria de causa de diminuição de pena para favorecer a figura do pequeno traficante. Minorante, essa, não objeto de normação anterior. E que, assim ineditamente positivada, o foi para melhor servir à garantia constitucional da individualização da reprimenda penal (inciso XLVI do art. 5º da CF/88). Mas para melhor servir a essa garantia pelo uso de u’a mais justa proporcionalidade entre o castigo e as circunstâncias do crime de tráfico ilícito de entorpecentes em sua empírica perpetração”. - “Alusivamente ao tipo penal ou delito em si do tráfico de entorpecentes, ele já figurava no art. 12 da Lei 6.368/1976. O ineditismo regratório, no que interessa a esta causa, deu-se tão-somente quanto à pena mínima de reclusão, que subiu de 3 (três) para 5 (cinco) anos. Afora pequenas alterações redacionais, tudo o mais se manteve substancialmente intacto (…)”. - “No plano do agravamento da pena de reclusão, a regra mais nova não tem como retroincidir. Sendo (como de fato é) constitutiva de política criminal mais drástica, a nova regra cede espaço ao comando da norma penal de maior teor de benignidade, que é justamente aquela mais recuada no tempo: o art. 12 da Lei 6.368/1976, a incidir por ultra-atividade”. - “Não é o que sucede com o novidadeiro instituto da minorante, que, por força mesma do seu ineditismo, não se contrapõe a nenhuma anterior regra penal. (…) Daí poder incidir tão imediata quanto solitariamente, nos exatos termos do inciso XL do art. 5º da Constituição Federal. O que afasta, de plano, qualquer eiva ou mácula de combinação indevida de normas penais para compor uma terceira e imaginária regra penal sobre um mesmo instituto. Afinal, como combinar regra nova com uma inexistente norma velha? Impossível! O que de pronto afasta qualquer ofensa ao princípio da separação dos Poderes, pois não houve, por nenhuma, forma usurpação de competência legislativa pelo Poder Judiciário”. - “A retroatividade benigna opera por mérito da Constituição mesma (inciso XL do art. 5º), que se coloca, então, como o único fundamento de validade da retroação penal da norma de teor mais favorável. E se a vontade objetiva da Constituição é essa – desde a sua redação originária, acresça-se –, não cabe sequer cogitar de ofensa a esse ou aquele princípio igualmente constitucional”. O Min. Ayres Britto negou provimento ao Recurso Extraordinário, acompanhando a conclusão do voto proferido pelo Min. Cezar Peluso. *LFG – Jurista e cientista criminal. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Acompanhe meu Blog. Siga-me no Twitter. Encontre-me no Facebook. |