domingo, 20 de abril de 2014

José ("E agora, José") - Poema, de Carlos Drummond de Andrade


  • Data de publicação

A partir de Sentimento do Mundo (1940), Carlos Drummond de Andrade parece se armar em relação a si próprio e ao mundo. E, se o individualismo evidente nos primeiros livros é mais util, não é por isso menor. O mesmo "eu-oblíquo" contempla-se a si e ao mundo; e, se muitas vezes o pronome na primeira pessoa desaparece, o poeta se desdobra em uma terceira pessoa:

- o impessoal "se": "Chega um tempo em que não se diz mais: 'Meu Deus'." (Sentimento do Mundo);
- o homem qualquer: "Ó solidão do boi no campo, / ó solidão do homem na rua!" ("O boi");
- a simples constatação do fato: "Lutar com palavras / é a luta mais vã" ("O lutador");

até chegar a um outro "eu", "José" - "E agora, José?" ("José"), que se pergunta sobre o significado da própria existência e do mundo. Mas este "José" não é outro senão o poeta. A personagem funciona, no poema, como o desdobramento da personalidade poética do autor, tanto quanto nas demais situações apontadas, atrás de quem o poeta se esconde e se desvenda.

O “não-ser” se faz presente neste poema por meio do modo verbal subjuntivo que torna a ação imprecisa:

“...Se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...”


José não dorme, não cansa, não morre, ele é duro, apenas segue. Sua dureza é o que existe e tudo mais é o “nada” no qual ele se funde. Chama-se atenção para o caráter construtivo que o Existencialismo dá à categoria “nada”, ele é o inexistente, mais traz em si o por fazer.

Escrito durante a Segunda Guerra Mundial e da ditadura de Vargas, José, apesar da dureza, ainda tem o impulso de continuar seguindo. Mesmo sem saber para onde: “...Você marcha, José! / José, para onde?

Leia o poema na íntegra:

JOSÉ

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama protesta,
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,

seu terno de vidro, sua incoerência,
seu ódio - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, pra onde?

"Teogonia", de Hesíodo

Teogonia, de Hesíodo


0118
Hesíodo e a Musa, 1891.
INIT Teogonia (lit. "o nascimento dos deuses"), é um poema épico (metro: hexâmetro dactílico) que detalha a origem e genealogia dos deuses gregos. Tradicionalmente atribuído a Hesíodo, a data de composição (c. -700) é tão imprecisa quanto a data em que o poeta deve ter vivido.
A idéia em si não é original, pois já havia sido desenvolvida pelos egípcios (sæc. -XXIV), pelos babilônios (-2000/-1500) e pelos hititas (-1400/-1200) muitos anos antes (ver Supplementa). Hesíodo, no entanto, foi o primeiro a sistematizar os antigos mitos da criação e a organizar os mitos gregos numa sequência lógica. De certa forma, a Teogonia é o mais antigo tratado de mitologia grega que chegou até nós.

Hipótese

Não há nenhuma intenção dramática ou enredo, e sim um plano expositivo. Hesíodo descreve a criação do mundo e a seguir relaciona, cronologicamente, cada uma das gerações divinas. O argumento gira em torno de três temas básicos:
  1. a criação do mundo, ou cosmogonia;
  2. genealogia das gerações divinas, ou teogonia propriamente dita;
  3. a ascensão de Zeus ao poder.
Segundo Timothy Ganz (1993), o poeta pretendia contrastar a "desordem" do cosmo durante o domínio dos deuses primordiais e dos titãs, com a "ordem" cósmica que imperava em seus dias, determinada por Zeus e pelos demais deuses olímpicos. Segundo a cronologia hesiódica, os deuses olímpicos pertenciam à 3ª geração e eram governados por Zeus, cuja história se desenvolve em boa parte do poema. Hesíodo, no entanto, vai além da simples enumeração e habilmente entremeia a árida sucessão de deuses e deusas com raros, curtos mas elucidativos trechos dos antigos mitos.

Resumo do poema

O poema tem 1022 versos hexâmetros e ocupa 39 páginas da edição de Evelyn-White (1920), na qual se baseia o resumo. O narrador é o próprio poeta.
Após uma invocação às Musas, Hesíodo relata como as deusas inspiraram seu canto ao cuidar de ovelhas perto do Monte Hélicon (1-35); a origem das musas, filhas de Zeus, é também contada (36-115).
Segue-se a origem dos primeiros deuses, que personificavam os elementos primordiais do Universo (116-153): Caos, o vazio primitivo; Gaia, a terra; Tártaro, a escuridão primeva; Eros, a atração amorosa. Os descendentes imediatos são também relacionados: Hemêra, o dia; Nix, a noite; Urano, o céu; Ponto, a água primordial.
Os mais notáveis descendentes de Urano e Gaia foram os titãs, como Crono, Oceano, a água doce, Jápeto e o gigantesco Ceos; as titânides, como Têmis, a lei, e Mnemósine, a memória; os ciclopes, que tinham um único olho; e os hecatônquiros, gigantes com cem braços e cinquenta cabeças.
Depois, o poeta descreve como Crono assumiu o poder (154-200) e inadvertidamente deu origem a Afrodite, deusa do amor sensual; relaciona os descendentes de Nix, entre eles Tânato, a morte, Hipno, o sono, e Oneiro, o sonho (211-232); os descendentes de Ponto (233-336), entre eles Nereu, o mais antigo deus do mar e pai das nereidas e Fórcis, progenitor de monstros como as Górgonas, Equidna, com tronco de mulher e cauda de serpente, e a Esfinge; os descendentes de Oceanos (337-403), entre eles os rios e fontes, as ninfas da terra firme, os ventos, Métis, a sabedoria, e Hélio, o sol; os descendentes de Ceos (404-452), especialmente Hécate, a dádiva.
A história de Zeus, filho de Crono, e como conseguiu destronar o pai é contada nos versos 453-506. A lenda de Prometeu, filho de Jápeto, e a criação da primeira mulher são relatadas nos versos 507-616. Nos versos 617-721 é descrita a titanomaquia, luta entre Zeus e os titãs pelo domínio do mundo. Auxiliado entre outros por seus irmãos Hades e Posídon, pelos ciclopes e pelos hecatônquiros, Zeus vence os titãs e os prende no Tártaro, descrito juntamente com o mundo subterrâneo nos versos 722-819.
Vencidos os titãs, Zeus teve ainda de enfrentar e vencer o monstruoso Tífon, filho de Gaia e Tártaro (820-880), mas logo depois consegue se tornar o soberano supremo dos deuses. Algumas de suas aventuras com deusas e mortais são descritas nos versos 881-964, e notável é a lenda da filha de Zeus e Métis, Atena, que ao nascer saiu da cabeça de Zeus. Nos versos 965-1020 são descritos os amores entre as deusas e os mortais.
Os dois últimos versos, 1021-1022, contêm uma nova invocação às Musas e ligam a Teogonia a um poema autônomo perdido, o Catálogo das Mulheres, do qual restam apenas alguns fragmentos. Os especialistas atribuem atualmente essa obra a um poeta anônimo do século -VI, e não a Hesíodo.

Manuscritos, edições, traduções

Numerosos manuscritos completos e diversos fragmentos significantes de papiros chegaram até nós. Os mais importantes manuscritos são o Laurentianus 32.16 (1280) e o Laurentianus conv. soppr. 158 (sæc. XIV), da Biblioteca Laurenciana de Florença; o Parisinus suppl. gr. 663 (c. 1200), da Biblioteca Nacional de Paris; o Casanatensis 356 (sæc. XIII/XIV), da Biblioteca Casanatense de Roma; e o Vaticanus gr. 915 (c. 1300), da Biblioteca do Vaticano.
A edição princeps é a Aldina, de 1495. As principais edicões modernas são as de Gaisford (1814/1820), Koechly e Kinkel (1870), a de Rzach (1902), a de Evelyn-White (1914, rev1936) e a de Mazon (1928). As mais utilizadas atualmente são a de Solmsen (1966) e a de Most (2006).
A primeira tradução completa da Teogonia para o português é a de JAA Torrano (1981, reeditada em 1991). Mais recentemente o texto foi traduzido por Pinheiro e Ferreira (2005) e por Christian Werner (2013).

O que é Política


Nietzche e a Filosofia do Martelo


Matou quatro pessoas e foi absolvido por ser rico



Publicado por Luiz Flávio Gomes - 3 dias atrás


O drama do castigo penal (ora barbaramente excessivo, ora escancaradamente leniente) sugere diariamente incontáveis capítulos novos. Vale a pena refletir sobre o tratamento vergonhosamente favorável dado ao jovem Ethan Couch. Ser absolvido de um crime por ser milionário não constitui nenhuma novidade. Que o diga a história da humanidade e da Justiça criminal. Os ricos (especialmente nos sistemas penais burgueses extremamente desiguais) gozam de muitos privilégios, ideologicamente perpetuados nas respectivas culturas. Eles fazem de tudo para não serem nem sequer processados (muito menos condenados).
Beccaria, já em 1764 (no seu famoso livro Dos delitos e das penas), deplorava esse tipo de tratamento desigual. Na época, em relação aos nobres; ele dizia que, sob pena de grande injustiça, os nobres deveriam ser punidos da mesma maneira que os plebeus. A medida da pena, ele afirmava, deve ser o dano causado à sociedade, não a sensibilidade do réu (sua honra, sua fama, sua carreira etc.).
Ethan Couch, um adolescente norte-americano de 16 anos, no Texas, conduzia seu veículo em estado de embriaguez (três vezes acima do permitido) quando matou quatro pessoas num acidente automobilístico. A prisão que seria a reação natural, sobretudo se se tratasse de um jovem negro e pobre. Sendo Ethan de uma família muito rica, a sentença do juiz foi espetacularmente “humanista”. Fundamentação do juiz: “os pais de Ethan sempre lhe deram tudo o que ele queria, e nunca lhe ensinaram que as ações têm consequências. Ocupados com o seu egoísmo e as suas próprias vidas, deixaram-no crescer entregue a si mesmo, sem lhe incutirem bons princípios - um problema típico desse tipo de famílias, segundo o tribunal. O menino foi desculpado, portanto” (expresso. Sapo. Pt/matou-quatro-pessoas-masojuiz-diz-que-naooprende-por-ser-rico=f846069#ixzz2yaUIvs5r).
No Brasil isso já ocorreu incontáveis vezes em relação aos menores ricos (para que destruir o futuro de uma criança ou de um adolescente do “bem”?). E vai ocorrer com mais intensidade se o legislador brasileiro (irresponsavelmente) não resistir à tentação de reduzir a maioridade penal (quando vamos entender que lugar de menores é na escola, não em presídios?). Já hoje praticamente não se vê nenhum menor rico cumprindo a “medida” de “internação”. A Justiça trata os menores milionários de forma diferente; apenas não costumam ser tão explícitos como foi o juiz norte-americano do caso Ethan.
Quando se trata de um pobre, por mínima que seja a infração, a família dele funciona como agravante - mães solteiras, pais ausentes, alcoolismo, dependência, irresponsabilidade, disfuncionalidade; “o menor pobre nasce para o crime”, é atavicamente mórbido etc. Tudo leva o juiz (“imparcial”) a deixá-lo preso (“internado”) um período, para se acalmar. Nem sempre ocorre o programado, mas o sistema penal burguês foi desenhado para discriminar os pobres e marginalizados. O tratamento não é apenas lenientemente desigual em relação ao rico, sim, é desigual da intensidade das sanções contra o pobre. A mesma infração ora é perdoada, ora é punida severamente: tudo depende quem a praticou (essa distinção, extraordinariamente difusa nos países socioeconomicamente muito desiguais, é que era criticada pela sensibilidade de Beccaria).

Luiz Flávio Gomes
Publicado por Luiz Flávio Gomes
Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz...

Quem foi Émile Durkheim


Émile Durkheim

Quem foi Émile Durkheim

Nascido no ano de 1858, Emile Durkheim era descendente de uma família judia e iniciou seus estudos filosóficos na Escola Normal Superior de Paris. Embora sua obra versasse muitas vezes a respeito dos fenômenos religiosos (assim como outros fenômenos com a criminalidade e o suicídio) pensados a partir de fatores sociais e não divinos isso não fez com que ele se afastasse da comunidade judaica.
Ainda que formado em filosofia sua obra inteira mostra-se voltada para a Sociologia, área onde de fato tornou-se amplamente reconhecido. A inexistência do ensino regular de Sociologia na França parecia dever-se ao fato de conceberem que a Sociologia era a forma científica do socialismo. Durkheim decide-se então por ir a Alemanha realizar seus estudos nessa área.
Emile Durkheim é um ícone quando o assunto é Sociologia e o próprio pensamento social. Sendo considerado um dos pais da Sociologia Moderna, Durkheim foi pioneiro também em combinar pesquisa empírica e teoria sociológica, fazendo com que seu nome figure também como fundador da escola francesa. Seu reconhecimento é bastante amplo também dado o prestígio adquirido enquanto teórico do conceito de coesão social.

Durkheim, a consciência coletiva e a

Teoria do Fato Social

Seu principal trabalho envolve a teoria de “consciência coletiva” onde ele busca defender que o homem é na verdade um animal selvagem, e que so pode tornar-se humano a partir do momento em que tornou-se social e sociável, aprendendo hábitos e costumes para poder viver coletivamente. Suas reflexões sobre esse processo de socialização resultam ainda naquilo que hoje é conhecido como teoria do “fato social”.

Uma de suas mais reconhecidas teorias parte da afirmação de que “os fatos sociais devem ser tratados como coisas”. Para Durkheim, a partir disso foi possível conceber uma definição do normal e o patológico em cada sociedade em temos de comportamento social. Dentro disso, fica claro que o normal é aquilo que é obrigatório e normatizado pela sociedade, de modo que a sociedade e os próprios padrões morais configuram-se enquanto uma entidade superior ao individuo.
Suas teses mais importantes e reconhecidas até hoje no campo da Sociologia iniciaram-se no doutorado, com escritos como “Da Divisão Social do Trabalho”. Posteriormente obras como “As regras do método sociológico”, “O suicídio” e “As regras elementares da vida religiosa” surgiram também, sempre muito marcadas pela concepção que Durkheim defendia sobre a vida e os fatos sociais e como estes delineavam o comportamento humano.

A importância de Émile Durkheim para a Sociologia

durkheimDurkheim foi ainda um nome importantíssimo para a constituição da Sociologia e para sua regularização enquanto ciência. Seu legado no campo metodológico com a obra “As regras do métodos sociológico” foram elementares nesse sentidos, uma vez que ele percebeu esse campo como uma ciência de fato e atentou-se para a necessidade do desenvolvimento de uma metodologia única e especifica que fosse respeitada pelos estudiosos desse campo. Através da análise de dados estatísticos e observações de diferentes meios e tipos sociais, os escritos de Emile Durkheim constituíram-se de fato como exemplos de como reflexões, trabalho e monografias da área de Sociologia deveriam ser escritos.
Os escritos de Durkheim são até hoje bibliográfica fundamental para estudos das mais diversas áreas das ciências sociais. Suas teorias são ainda muito atuais e importantes e dentro de sua obra podemos ter contato com o a criação e o desenvolvimento de conceitos caríssimos para a área da sociologia como “fato social” ,“anomia”, “solidariedade”, “coerção” e muitos outros.

Durkheim e as Instituições Sociais

Durkheim apresenta ainda interessantíssimas discussões acerca do que ele denomina instituições sociais. Essas instituições são por exemplo a família, escola, governo, policia, etc. Instituições consideradas conservadoras e que agem de forma a fazer forca contra as mudanças. Assim, Durkheim as aponta como instituições pela manutenção da ordem. Apesar dessa característica claramente conservados desse aparelhos da sociedade, Durkheim parte em defesa dos mesmos,  partindo do pressuposto que os homens necessitam sentir-se seguros e respaldados, e isso é oferecido por essas instituições.
O sociólogo faz essa defesa justamente por acreditar que o homem mantém sua humanidade a partir do momento em que torna-se sociável e que essa vida em sociedade só é possível em um ambiente onde existam regras claras, limites e valores. Caso contrario, ele acredita que os homens estariam entregues a um total estado de desespero . E é justamente a preocupação com esse estado de desespero que o leva a estudar temáticas como criminalidade, suicídio e religião.

Conclusão

É possível concluir que, após tamanho legado deixado em forma de teorias que ajudaram (e ajudam) a entender e a mudar o meio social, Émile Durkheim foi um dos principais protagonistas da Sociologia. Fique atento às próximas publicações neste site, iremos esmiuçar algumas das principais teorias elaboradas pelo pensador, além de continuar a fornecer maiores detalhes sobre quem foi este grande pensador.

Émile Durkheim – Teoria do Fato Social e a Teoria do Suicídio

Émile Durkheim – Teoria do Fato Social e a Teoria do Suicídio


Émile Durkheim e suas duas principais teorias

Enquanto sociólogo, Émile Durkheim é responsável pela formulação de inúmeras teorias estudadas até hoje. Dentre essas algumas merecem grande destaque devido a genialidade de suas observações, a validade metodológica das pesquisas e a complexidade das reflexões suscitadas. Dessa forma, destacaremos aqui duas das mais renomadas teorias deste estudioso: a teoria do fato social e a teoria do suicídio, de modo que possamos conhecer minimamente essas obras. Caso queira conhecer um pouco mais sobre este excepcional pensador não deixe de acessar este link antes de continuar a leitura deste artigo.

Durkheim e a Teoria do Fato Social

No que conhecemos hoje enquanto teoria do fato social, Durkheim parte do princípio de que os homens são animais selvagens, igualmente aos demais, e que aquilo que nos difere, dando-nos humanidade é nossa capacidade de tornarmo-nos sociáveis, ou seja, aprender hábitos e costumes capazes de nos inserir no convívio de determinada sociedade. Ele chama esse processo de aprendizado dessocialização, o que formaria nossa consciência coletiva, nos dando orientações em termos de moral e comportamento nessa vida em sociedade. A todas essas informações ele chamou “fatos sociais”, apontando-os como verdadeiros objetos da sociologia. Nosso comportamento, moral, noção de coletividade e sociedade, e tudo aquilo que aprendemos nesse processo de inserção na vida social.
No entanto, nem toda ação humana configura-se num fato social. Para tanto deve atender a três características apontadas pelo sociólogo: generalidade, exterioridade e coercitividade.
  • Generalidade relaciona-se a existência desse fato para o coletivo social, e não apenas ao individuo.
  • Exterioridade refere-se ao fato de esses padrões culturais serem exteriores ao individuo e independentes de sua consciência.
  • Coercitividade trata da força que esses padrões exercem , obrigando seu cumprimento.
Isso tudo então diz respeito a todo comportamento ou ação que independe da vontade do individuo, e que no entanto não lhe fora imposto de maneira particular. Assim, fato social é toda aquela ação que responde a normas sociais externas e muito anteriores a sua individualidade, vontade e consciência individual.
Desse modo, percebemos que as instituições sociais como a igreja, escola, polícia e etc. apenas servem como um aparelho para a constituição dessa consciência coletiva que mantem a ordem da sociedade. Durkheim aborda também essa questão, o papel dessas instituições na propagação das normas sociais e morais que regem o convívio, e inclusive defende suas ações dentro da sociedade uma vez que ele acreditava que de fato os homens necessitam sentir-se seguros, regidos e amparados, quando isso falta a uma sociedade certos fenômenos surgem com maior força, como por exemplo a criminalidade e o suicídio.

Teoria do Suicídio

suicidioamor1Essa inquietação pode ter sido o que impulsionou Émile Durkheim na criação daquilo que ficou conhecido como teoria do suicídio. Aos longo de seus estudos sobre o tema, o sociólogo busca provar a tese de que o que as estatísticas apresentam é insuficiente para compreender a ocorrência e os níveis de suicídio. Para Durkheim tudo que se tem de informações sobre os suicidas é insuficiente. Aquilo que figura no obituário, por exemplo, trata-se na verdade da opinião que se tem sobre o fato, a opinião de uma pessoa aleatória, de modo que não serve enquanto informação palpável para se compreender o fato.
Sua teoria embasa-se inclusive em observações do âmbito religioso, uma vez que ele percebe que o índice de suicídio entre protestantes é maior do que entre o católicos, independente da região do suicida. Assim, surge uma possível teoria de que há então um menor controle sobre os fieis, controle social que para ele é também o papel da igreja e da religião. Dessa forma ele busca demonstrar como a causa dos índices de suicídio podem ser sociais.
No que se refere ao estudo dessas causas o sociólogo a divide essas causas entre três tipos: egoísta, altruísta e anômico.
  • A compreensão dos motivos egoístas passa pela observação da integração dos indivíduos em sociedades religiosas, politicas e domesticas. Percebe-se que a taxa desuicídios varia inversamente ao nível de integração desses grupos, e quando se da essa desintegração os fins próprios do individuo tomam o lugar dos fins sociais. Para homens nessa situação pouco importa o fim de sua vida visto que ele já não se integra ao seu meio social.
  • A causa altruísta refere a insuficiência de individualização, ocorrendo mais frequentemente naquilo que o sociólogo chama sociedades primitivas, onde os indivíduos estão de tal forma sobrepostos pelo coletivo que por vezes tem o dever de se matar e o fazem, sendo imbuído inclusive de certo sentimento de heroísmo. Dentro dessa causa Durkheim estudo o alto índice de suicídio de militares, devido a sua alta integração em seu meio social e busca por esse heroísmo, no entanto isso não ocorre apenas em prol da pátria, dando-se muitas vezes por motivos banais.
  • Por último trata do suicido de causa anômica, se difere dos demais por dar-seno momento em que o individuo não encontra razão de existência em si ou mesmo exterior e nem mesmo as sociedade em seus diversos mecanismos é capaz de controla-lo. É chamado anômico por ocorrer em situações extremamente fora do comum como uma forte crise que toma o individuo e a sociedade. Dentro desse aspecto Durkheim analisa os índices de suicídio em períodos de grave crise econômica e conclui que tal contexto influi nesses números por serem perturbações da ordem social e coletiva e não necessariamente pelas consequências como pobreza, fomes, etc.
E você, o que acha destas duas teorias? Participe com um comentário, a sua opinião vale muito neste portal!

Tortura e Consciência


05/03/2013

Quando um psicanalista como Calligaris lida com pacientes, ele não se diverte. Mas quando ele lida conosco, supostamente sadios, ele Peter SingerPeter Singertem o direito de se divertir. Ele jogou a isca esperando pegar intelectuais. Não deu outra: Marcelo Coelho, Safatle e, agora, Helio Schwartsman vieram com o beiço caído pelo anzol para o balde de Calligaris. Os dois primeiros procuraram invalidar o exemplo-limite de Calligaris, qualificando-o como artificial. Marcelo Coelho usou uma saída válida: se a proposta é cinematográfica, então eu mudo de canal. Safatle tropeçou no marxismo que, enfim, impede muito filósofo de filosofar: desqualificou toda a filosofia moral que trabalha com o que ele chamou de postura “infantil”, o uso da situação-limite (talvez por isso não tenha citado Calligaris!). Por sua vez, Schwartsman tentou fazer diferente e enfrentar o problema, reconhecendo (como eu já havia feito também) que situações extremadas como a evocada por Calligaris não são ilegítimas, elas são posições filosóficas que talvez possam nos ajudar a resolver dramas da vida real (Debate sobre a tortura revela qão pouco sabemos sobre nós mesmos, Folha de S. Paulo, 03/03/2013).
O que Schwartsman fez pode parecer comum e correto, todavia, tem os problemas detectados por Nietzsche em relação ao que este chamou de “sobretudo burguês” em suas Extemporâneas: quando lidamos com filosofia não temos mais posições nossas, como os gregos faziam, e então vestimos erudição histórica como quem veste um capote com o qual se enfrenta o frio da rua – eis nossa saída moderna. Em parte, é assim que a academia tem ensinado que é a filosofia. Ninguém mais pode ser filósofo uma vez que todos viraram professores de filosofia ou “pesquisadores em filosofia”. Em ambos os casos a tarefa cabível não é enfrentar dramas filosóficos, mas expor o que outros disseram. Estes “outros”, em geral mortos ou estrangeiros, são os que ganharam o título de filósofos exatamente porque não quiseram ficar na condição exclusiva de comentadores, mas que são vistos aqui entre nós como contendo um dom a mais, que nós não poderíamos ter (porque falamos o português – é por isso que não somos deuses-filósofos?).
Também mordi a isca de Calligaris. Mas eu não sou Bill Clinton, se eu fumo maconha eu trago e seu eu faço sexo não é só nas coxas. Muito menos sou Fernando Henrique, eu não experimentei coisas na faculdade, tudo que tenho de experimentar eu só experimento depois da faculdade, na vida mesmo. Tenho mais experiências que experimentos! Sendo assim, fiz o meu texto em resposta ao de Calligaris de um modo que outros talvez não possam fazer, ou seja, de modo corajoso. A coragem é uma virtude do filósofo. Não me coloco como professor, mas como filósofo, por isso tive de aceitar o desafio de Calligaris não mordendo a isca, mas engolindo-a. Afinal, a consulta com o Calligaris é cara e, então, já que ele deu de bandeja uma sessão pública gratuita, eu não poderia perder tal oportunidade. Fui para o divã. Deixar de lado uma promoção dessas seria tolice.
Escrevi então, em resposta a Calligaris (Calligaris, eu torturaria), que a questão toda deve começar por diferenciar ética de moral. Moral nós temos, é impossível viver sem uma. Mas ética é diferente, nem sempre podemos, individualmente, seguir com ela. Nem sempre as regras sociais que expressam o ethos de um povo ao qual pertencemos podem comandar todos os nossos atos individuais, mas nem por isso eles não são nossos mores. Todavia, isso não resolve o problema, pois o modo como Calligaris colocou o drama golpeia a ética e a moral. Vejamos.
Nossa ética não tem como admitir a tortura como alguma coisa legítima. A ética comanda a política e as leis. De forma alguma temos como fazer valer eticamente uma lei que permita a tortura, mesmo que tal prática seja permitida somente ao estado e em situações excepcionais, levada adiante debaixo de vários cuidados médicos e jurídicos. Assim, nesse plano, assumimos a posição de Kant. No entanto, se não somos kantianos e, sim, utilitaristas, podemos usar Mill para dizer que em nome de salvar mais pessoas podemos sacrificar menos pessoas. Ou seja, no “dilema da bomba relógio”, mais ou menos o que Calligaris colocou, se temos que penalizar um culpado para salvar um inocente, a qualidade substitui a quantidade. Assim, que a tortura seja feita. Mas isso resolve as coisas? Claro que não!
De uma maneira ou de outra, o dilema posto por Calligaris não deixa saída para a filosofia moral moderna: se somos kantianos somos pegos pela ética e pela moral: não devemos torturar em hipótese alguma, pois não podemos usar o homem sem tomá-lo como um fim em si mesmo; e se somos utilitaristas somos pegos pelo conflito entre ética e moral. Nesse segundo caso, podemos imaginar que, ficando só no campo moral, optaríamos por torturar o sequestrador, mas então, pela mesma regra, logo ficaríamos tentados a ir para o campo da ética e, então, sugeriríamos transformar nosso ato de exceção em uma lei. Deixaríamos o estado, em nome de um maior número, infringir tortura a um menor número, sendo estes os suspeitos? (culpados eles seriam só depois do julgamento, o que não é o caso). Ora, fica fácil ser adepto de Mill, nesse caso, se não somos nós os que estão sendo torturados, postos na prisão por falsa pista ou falsa acusação, o que não é difícil de ocorrer quando se está querendo encontrar culpados para crimes tomados como bárbaros ou para situações onde o tempo corre de modo perverso.
Bem, mas então vamos ou não torturar o sequestrador do garoto para salvar o garoto que está preso em um lugar cujo ar está se extinguindo?
Coelho, Safatle e Schwartsman não entraram no problema. Cada um deles, por questões de método próprio, procurou fugir da filosofia e, consequentemente, do divã. Eu não. Eu disse claramente que minha moral valeria, e que a ética teria de esperar, se fosse alguém de minhas relações íntimas que estivesse no cativeiro. Eu disse que torturaria não só para obter informações! Talvez eu pudesse torturar também depois de salvar a criança, apenas pelo prazer da vingança. Caso fosse o Pitoko o raptado, aí eu torturaria eternamente. Tendo condições eu faria como fez o marido que prendeu o assassino da esposa uma vida toda, no belíssimo filme argentino O segredo de seus olhos (El Secreto de Sus Ojos , Juan José Campanella, 2009).
Depois da tortura, eu olharia no espelho como os nazistas se olhavam? Ou seja, eu teria aquelas justificativas pouco justificadoras? Por exemplo, a de dizer que sou um soldado convocado ou a de bradar que estou apenas exterminando ratos? Ou eu faria como a maioria dos nazistas fazia, não teria justificativa nenhuma porque espelhos não são pessoas e não pedem justificativas?
Sendo filósofo, mesmo que eu estivesse aparentemente tranquilo após ter barbarizado o sequestrador, eu teria comigo o dilema de Sócrates: como viver sob o mesmo teto que abriga um torturador? Afinal, como diz Sócrates no Hipias Maior, e bem notado por Hannah Arendt em A vida do Espírito, o problema todo é voltar para casa e encontrar lá, morando com você, alguém que faz coisas terríveis. Tenho de morar comigo mesmo, o torturador, e, nesse caso, conversar com ele, pedir conselhos, fazer perguntas e seguir suas respostas! Ora, meu interlocutor era uma pessoa sem ações tão selvagens nas costas até então e, agora, tendo se transformado em um terrível torturador, poderia continuar sendo amigo, sendo um conselheiro? Eu não iria me dar mal não? Como ficar com tal pessoa em casa, inclusive na mesma cama? (no mesmo corpo!). Eu poderia não ser vítima da facada literal desse torturador, mas será que seus conselhos, daí por diante, não me poriam numa fria?
Há duas observações aqui, que valem a pena ser retomadas. Uma é a do Coringa representado por Heath Ledger no Batman, o Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, Christopher Nolan, 2008), e que é mais ou menos a mesma do meu amigo também já falecido, o filósofo norte-americano Richard Rorty: as pessoas são solidárias enquanto estão em bonança e calmaria, mas em situações difíceis viram bestas que se devoram, poupando outras somente segundo um grau decrescente em uma onda circular indo do centro para a periferia. Desse modo, eu até poderia não usar da tortura caso a criança presa não fosse “um dos nossos”, considerando aí o “nossos” segundo círculos de proximidade: filhos e esposa, família, amigos, compatriotas, terrestres etc. Mas sendo o sequestrado “um dos nossos”, o que determinaria mesmo a opção minha pela tortura viria da consideração do círculo. O círculo chamado “filhos e esposa” ou mesmo “família” seria, certamente, aquele pelo qual não somente eu, nessa nossa sociedade, torturaria alguém.
Haveria chance de salvar aqueles filósofos que louvaram a natureza humana (1) como sendo próxima da dos anjos, mesmo quando estamos em um clima de alta pressão? Para um filósofo pragmatista, em geral adepto de éticas consequencialistas, posso pensar de modo semelhante ao que o filósofo Peter Singer fez com o “caso do terrorista”. Em uma palestra em Michigan, ele foi perguntado por um estudante sobre se poderíamos ou não torturar, com alguma legitimidade, um terrorista que teria colocado uma bomba em Manhattan, tentando assim descobrir o local da bomba e desarmá-la. Resumindo ao máximo, sua resposta foi a seguinte: temos de separar ficção de realidade, temos leis que proíbem a tortura porque se não for assim haverá certamente danos a inocentes sem que ninguém seja responsabilizado por isso, mas, se a situação ficcional é a real mesmo, como filósofo ou professor de filosofia eu direi a você para quebrar as regras, torturar o terrorista e salvar Manhattan, mas deve fazer tudo isso sabendo muito bem das consequências. Caso a informação sobre a bomba seja verídica você será um herói e a questão da tortura não será evocada ou, se evocada, não o levará a receber punições. No entanto, caso seja falsa, você terá de arcar com responsabilidades que surgirão e várias pessoas, inclusive as da lei, irão querer punir você.
Creio que posso pensar como Singer, principalmente se eu acrescento o modo como Rorty dissertou sobre os círculos segundo os quais alguém pode ser tomado ou não como “um dos nossos”. Creio que essa posição pode não definir, logo de início, uma ética, mas define uma moral, sem a qual viveríamos, realmente, amedrontados por aquele homem que assombrava Sócrates, aquele que, tendo se transformado em uma pessoa terrível, ainda iria morar na casa dele.
Como é a costura que faço então, entre Singer, Rorty e os meus propósitos?
Em Pragmatismo e política (Martins, 2005), há textos de Richard Rorty que traduzi e que me ajudam a resolver o meu medo que, enfim, se aproxima ao de Sócrates, uma vez que eu sei que posso torturar alguém. Trata-se da ideia de não definir o que é moral e eticamente legítimo ou não, definindo então a justiça, como alguma coisa “menos ou mais racional”. A ideia básica é não criar uma contraposição estanque entre a justiça (as regras éticas que podem ser “leis para todos”, sendo assim, expressão da razão) e a lealdade (as regras morais que dizem que temos de proteger primeiro “os nossos”, e que podem ser tomadas não como expressão da razão, mas dos sentimentos). O que digo é que, assim pensando, levo em conta o que me é caro, a moral da lealdade. Afinal, para todos nós essa moral é cara. Ficamos com ela em situação de pressão. Mas não precisamos tomar essa lealdade como o que negaria a justiça. Pois, enfim, poderíamos pensar como “nossos” não só a criança sequestrada, ou a população de Manhanttan. Temos a capacidade de ir ampliando os círculos de lealdade e, mesmo sob pressão, imaginarmos círculos bastante amplos que incluam até mesmo o próprio sequestrador. De certo modo é isso que fazemos quando nos damos conta de que dificilmente poderemos ter certeza de que não estamos torturando um inocente. Fazemos isso quando a ficção criada não é a posta por Calligaris, motivada pelo filme A hora mais escura (Zero Dark Thirty, Cathrin Bigelow, 2012), mas aquela de O suspeito (Rendition, Gavin Hood, 2007).
Esse filme, também baseado em fatos reais, mostra uma esposa americana, casada com um homem de nome árabe, desesperada ao ver seu marido desaparecer na volta de uma conferência na África. No filme, ao final o inocente é solto por meio de uma decisão pessoal de um agente da CIA, que resolve bancar o feito contra a própria organização e a partir de suas conjecturas. Em um determinado momento, o agente da CIA, interpretado por Jake Gyllenhaal, começa a ampliar o seu círculo de “nossos”, ao se imiscuir na vida do prisioneiro torturado. Também nós que estamos vendo o filme tendemos a nos deslocar em favor do torturado não só pela sua dor e inocência, mas pela maneira como o enredo nos mostra que ele é muito mais “um dos nossos” do que poderíamos imaginar ao vermos a peregrinação da esposa. À medida que a esposa bate de frente com pessoas do governo que se dizem defensores da justiça e do “interesse de todos”, vamos ficando sozinhos na cadeira do cinema como ela está sozinha em sua procura, se sentindo abandonada por todos aqueles que ela pensava ser “um dos nossos”, as autoridades americanas. Sua lealdade para com todos os americanos, e inclusive para com a questão da segurança da nação, não diminui, mas ela (e nós) percebe que ou o círculo dos “nossos” se amplia ou não se terá nenhuma justiça. Enfim, a justiça não pode ser outra coisa senão a ampliação dos círculos de lealdade, até caber aquele que é torturado. Não há nenhuma regra kantiana aí. Nem há utilitarismo. Mas há um tipo de consequencialismo citado por Singer e definido por Rorty. A justiça, a regra para a nação, mesmo em situações extremas, não precisa se opor à lealdade que temos para com “os nossos”. O problema todo é o de ver como que a justiça pertence ao espectro da lealdade, não sendo um elemento de oposição a ele.
Volto então ao drama da bomba relógio, de Calligaris, ou melhor, ao drama da criança que vai morrer asfixiada enquanto eu tenho, nas mãos, o sequestrador. Devo ou não torturá-lo? Dado que Marcelo Coelho, Safatle e até mesmo Schwartsman correram para casa, dizendo que o sequestro não era problema deles, tudo sobrou em minhas mãos. Estou somente eu e o sequestrador, e ele está amarrado em minha frente, disponível. Ora, posso imaginar que ele seja inocente e vê-lo, assim, no círculo que cabe “um dos nossos”. Posso ter certeza de que ele é o sequestrador, mas ainda assim, vê-lo como “dos nossos”, pois não é difícil imaginá-lo como uma boa pessoa em sua cidade, alguém que também tem filhos e que os ama, e que tais filhos o estão esperando. Posso apelar verbalmente a ele, de modo que ele também pense empaticamente, mesmo que um de seus filhos tenha sido morto pelo meu povo. Mesmo sob a pressão do tempo, isso poderia fazer efeito, tanto quanto a tortura – é uma incógnita a essa altura da situação saber, de antemão, “o que faz efeito”. Caso nada surta efeito, e eu vá decidir pela tortura porque o tempo está se acabando, devo saber que isso não anulará da minha consciência, mesmo depois, a consequência: darei um passo sem volta, dali para diante serei um torturador, sendo ou não herói, depois, aos olhos de muitos. Em outras palavras: minha vitória será a minha derrota, pois, ao final, tornar-me-ei senão um covarde, ao menos uma pessoa que se aproveitou da fraqueza do outro. Caso isso não pese, pesará sobre mim a questão de saber se não terei ali adquirido o que disse, aqui mesmo, já possuir: o desejo de torturar o sequestrador mesmo depois de salvar a criança, principalmente se o sequestrado for o Pitoko (meu cachorro, que é meu filho). É o peso dessas consequências, bem medidos, que me dará as chances de ver a lealdade se abrir menos ou mais de modo que a justiça possa ser vista como alguma coisa que não lhe é oposta.
© 2013 Paulo Ghiraldelli Jr. filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
(1) A expressão “natureza humana” é tomada aqui como peça do linguajar comum, e não como uma expressão de quem não compartilha a posição de que não vale a pena uma teoria sobre a natureza humana. Nesse caso específico, explicado isso, o leitor não deve estranhar vê-la na boca de um pragmatista.

Um filósofo imaginativo: o legado de W. V. Quine





Wilard van Orman Quine, o deão dos filósofos americanos, morreu aos 92 anos no dia de Natal. Exatamente a cinqüenta anos antes, em dezembro de 1950, ele leu um paper na Divisão Leste da Associação Filosófica Americana que fez a audiência girar nos calcanhares. “Dois dogmas do empirismo”, publicado no ano seguinte, tornou-se o artigo mais discutido e mais influente da história do século XX na filosofia anglófona. Poucas coisas de tamanha brevidade tiveram tal impacto no curso do pensamento filosófico. É um modelo de argumentação convincente e sucinta, um bom exemplo da elegância da prosa de Quine. Mas é, acima de tudo, um atalho imaginativo. Nele, Quine levantou uma nova e disposta forma da questão sobre a relação entre filosofia e investigação empírica.


Em “Dois Dogmas”, Quine questionou a distinção entre verdades necessárias e contingentes. A investigação empírica produz verdades do último tipo – afirmações que podem, em princípio, ser rescindidas à luz de outras observações ou experimentos (“Esquilos não hibernam” e “E=mc2”, por exemplo). A filosofia, Platão e Aristóteles nos ensinaram, deveria produzir verdades necessárias, exatamente como a matemática. Rudolf Carnap, mentor de Quine, e seus colegas ligados ao empirismo lógico (como Bertrand Russell e A. J. Ayer) concordavam com isso. Mas, eles diziam, verdades necessárias são verdades “analíticas” – enunciados que nada nos conta sobre a realidade, mas simplesmente refletem convenções lingüísticas. “Dois mais dois são quatro” é tornado verdadeiro pelo significado do “dois” e do “quatro” e do “mais”, tanto quanto “Todos os solteiros são não casados” é tornado verdadeiro pelos significados de seus termos componentes.


A filosofia, os empiristas lógicos concluíram, não deveria tentar nos contar algo sobre a natureza das coisas. Deveria confinar-se à clarificação dos significados de enunciados e exibir o que Carnap chamou de “a sintaxe lógica da linguagem”.


Até meados do século, muitos filósofos assumiram a oposição entre aquela visão modesta da filosofia e a visão mais velha, mais ambiciosa, como um resumo do contraste entre Carnap, um homem decente perfeitamente dentro da perspectiva da esquerda política, e Martin Heidegger, um ex-nazista megalomaníaco que punha questões como “O que é o Ser?” sem se importar em tornar claro como ele saberia se havia dado a resposta correta. Carnap queria filósofos para tornar seus critérios de êxito explícitos e, portanto, imitadores da honestidade intelectual dos investigadores empíricos. Heidegger tinha considerável desprezo pelas ciências naturais e pela lógica matemática desenvolvidas por Russell e outros, aquilo que Carnap viu como um indispensável instrumento do bom trabalho filosófico.


Quine, um jovem brilhante, que havia feito contribuições para a um tipo de lógica, tinha ido a Praga em 1933 para trabalhar com Carnap. Poucos anos depois, ajudou Carnap e seus amigos imigrantes a encontrar empregos nos Estados Unidos (o que rendeu um inestimável serviço à vida acadêmica americana). Assim, era natural esperar que sua fala em 1950 (em um simpósio “Tendências recentes da filosofia”) seria um manifesto do empirismo lógico. Ao invés disso, Quine veio a público com dúvidas com as quais ele havia pressionado Carnap, privadamente, por anos. Não há, Quine disse, nenhum teste para determinar onde termina o apelo à realidade empírica e onde começa o apelo às relações entre idéias, aos significados das palavras. Certamente, não há nenhum bom modo de classificar as verdades em necessárias e contingentes. Em lugar do antigo dualismo, ele sugeriu, deveríamos visualizar um espectro contínuo de crenças, aquelas que não poderíamos imaginar como sendo abandonadas e aquelas que poderíamos facilmente imaginar como desconfirmadas por observações futuras.


Muito influenciado por seu amigo B.F.Skinner, Quine estava preparado para traçar uma linha entre fato e linguagem – entre apelo à experiência sensível e apelo ao conhecimento de significados – unicamente se tal linha fosse traçada na base da observação do comportamento lingüístico. Mas, ele indicou, não há qualquer teste por meio do qual um lingüista aprendiz de uma nova linguagem pode contar como apelo que os nativos estão produzindo, quando estes lidam com a verdade de certas sentenças como incontroversas. Assim, os “Dois dogmas” virou o lado empirista do empirismo lógico contra o seu lado lógico. “Para todos os seus razoáveis a priori”, Quine disse, “uma fronteira entre enunciados analíticos e sintéticos [isto é, empiricamente confirmado e desconfirmado] simplesmente não havia sido traçada. Que tal distinção pode ser, em absoluto, traçada, é um dogma não empírico dos empiristas, uma artigo metafísico de fé”.


“Dois dogmas” levantou a questão: “como podemos ter filosofia analítica, o tipo de filosofia que Carnap e ele próprio, Quine, queriam fazer, se não havia nenhuma coisa tal como verdades analíticas? O golpe de Quine não somente lançou dúvidas sobre uma distinção que tinha parecido óbvia a Platão, Aristóteles, David Hume e Immanuel Kant, mas também pareceu frustrar a esperança recém adquirida de que filósofos pudessem alcançar resultados úteis, permanentes de uma vez por todas.


Quine compartilhou o costumeiro desgosto anglófone por Heidegger, e ele obviamente não quis trazer de volta o tipo de metafísica especulativa que tinha sido produzida, por exemplo, por F.H. Bradley e A. N. Whitehead. Mas ele não ofereceu um programa metafilosófico para substituir aquele que Russell e Carnap haviam levado adiante. Antes, ele simplesmente instigou os filósofos a trazer a filosofia para o contato com a ciência empírica. Tratava-se de estancar a tentação por verdades necessárias e, ao invés, incentivar a busca de modos claros de arrumar o material fornecido pelas ciências naturais. Ele visualizou, por exemplo, um futuro em que a epistemologia, o estudo filosófico do conhecimento, poderia ser “naturalizado”e, então, absorvido no que, agora, podemos chamar de “ciência cognitiva”. Este tipo de colaboração com a investigação empírica que, agora, parece a muitos dos filósofos anglófonos como o melhor modo de fazer avançar a sua disciplina.


Tal visão do seu papel cultural torna-os motivados a mover a filosofia para fora das humanidades e dar menos ênfase, do que no passado, na familiarização dos estudantes com os escritos dos filósofos mortos. Quine uma vez disse, satiricamente, que há dois tipos de pessoas que se tornam professores de filosofia: aqueles que estão interessados em filosofia e aqueles que estão interessados em história da filosofia. Quando seus colegas de Harvard (onde ele ensinou durante toda sua carreira) tentaram ganhá-lo para ensinar matérias históricas, ele resistiu. Uma vez ele deu um curso sobre Hume, mas observou em sua autobiografia de 1985, O tempo da minha vida, que “determinar o que Hume pensava e transmiti-lo aos estudantes era menos atrativo do que determinar a verdade e transmiti-la.” Sua observação fez eco a uma outra, supostamente dita por Carnap, quando foi solicitado a dar um curso sobre Platão: “Não ensinarei Platão. Não ensino nada, exceto a verdade”.


A tentativa feita por filósofos analíticos de deixarem a vizinhança dos departamentos de história e de literatura e se moverem para mais próximo dos laboratórios científicos contribuiu para a divisão analítico-continental dentro da disciplina. Em países não anglófonos, a repugnância a Heidegger é animadamente admitida, mas ele é, todavia, considerado por muitos professores de filosofia como o mais importante pensador do século XX. Essa opinião é compartilhada por bem poucos professores de literatura, teoria política e história intelectual americanos e britânicos – pessoas que não podem ver muito o que é a questão dos filósofos analíticos, e que suspeitam que a filosofia anglófona tem se tornado excessivamente técnica e intelectualmente estéril. A acusação de esterilidade, contudo, é injusta. Ao contrário, o desafio de Quine a Carnap (junto com os desafios complementares oferecidos por Thomas Kuhn e Ludwig Wittgenstein) abriu a porta para uma série toda de reconsiderações originais e frutíferas das abordagens tradicionais das relações entre linguagem e realidade, entre conhecimento e experiência dos sentidos, entre ciência e filosofia. Tais reconsiderações levantaram dúvidas concernentes à convicção, mantida por Quine, de que a ciência natural é a área da cultura em que a verdade sobre a realidade é mais clara e obviamente alcançada e na qual a racionalidade está mais claramente em evidência. Muitos filósofos que reconhecem um profundo débito para com Quine, se tornaram menos ávidos pelo prazer com as assim chamadas ciências duras enquanto paradigmas do conhecimento. À medida que Quine afirmou, de modo célebre, que “a filosofia da ciência é o suficiente em filosofia”, esses pensadores neo-quineanos se tornaram mais motivados a ver a investigação científica com menos diferença do resto da cultura do que Quine a havia tomado.


Quine nunca se desviou da afirmação de que os vocabulários da lógica e das ciências físicas, propriamente regidos pela filosofia, podiam revelar o que ele chamou de “a verdadeira e última estrutura da realidade”. Mas, muitos dos filósofos analíticos contemporâneos concordam com Nelson Goodman, um colega de Quine no departamento de filosofia de Harvard, que não existe tal estrutura – que não há, como Goodman colocou, qualquer modo de como o mundo é, mas há meramente várias descrições alternativas dele. Algumas descrições são úteis para certos propósitos, outras para outros propósitos, mas nenhuma deles está mais próxima ou mais distante do modo da realidade. A visão de Goodman é reminiscente da abordagem de John Dewey e, em particular, à motivação de Dewey em negligenciar as questões sobre a relação do pensamento com a realidade, no sentido de se concentrar sobre a utilidade pragmática dos modos alternativos de pensamento.


Muitos dos melhores estudantes de Quine (como Donald Davidson) e muitos de seus mais fervorosos admiradores (como Hilary Putnam) tentaram argumentar com Quine no sentido dele abandonar ou suavizar seu cientificismo, mas sem qualquer êxito. A doutrina de que enunciados sobre crenças e desejos humanos não representam qualquer coisa real, ao passo que enunciados sobre estrelas e moléculas representam, permaneceu central no pensamento de Quine. Davidson, Putnam e outros gastaram muitos anos tentando estender e radicalizar a visão de Quine, apontando para aparentes inconsistências e falhas em seu pensamento, criticando-o implicitamente (e em certas ocasiões, explicitamente) por não apreciar as implicações de seu próprio progresso. Deve-se crédito a Quine e a tais outros pelo fato de tais críticas, que foram certamente bem profundas, nunca terem conduzido a antagonismos pessoais ou a uma rachadura na filosofia analítica, criando duas escolas filosóficas. Ao contrário, o respeito, criado por um profundo sentido de gratidão, que Quine mostrou a Carnap, mesmo quando ele fez seu melhor demolindo algumas das mais queridas crenças de Carnap, foi equivalente à honra merecidamente paga a Quine por aqueles que tentaram demolir algumas de suas crenças.


A relação entre Quine e Davidson era particularmente próxima, e Davidson, ainda produzindo idéias originais e provocativas no ano de 1983, herdou a posição de deão de Quine. Davidson resumiu sua radicalização das dúvidas de Quine sobre a distinção entre linguagem e fato dizendo que “temos apagado a fronteira entre conhecer uma linguagem e conhecer o mundo ao nosso redor, em geral (...) Concluo que não há uma tal coisa como a linguagem, não se a linguagem é algo como o que muitos filósofos e lingüistas tem sustentado. Não há, portanto, nenhuma tal coisa a ser aprendida, controlada, ou inata. Devemos abandonar a idéia de uma estrutura claramente definida compartilhada, que usuários da linguagem adquirem e então a aplica a casos”.

O hiper quineanismo de Davidson não somente ofende Noam Chomsky (que considera tal coisa como um dogmatismo a priori, exibindo desprezo por lingüistas empíricos), mas causa consternação entre aqueles que pensam que a filosofia analítica iria à bancarrota se não pudesse estudar precisamente aquele tipo de estrutura lingüística compartilhada, definida claramente, que Davidson pensa que não existe. Essa posição de Davidson também não lembraria o próprio Quine. Quando Davidson sugeriu que lançássemos fora não somente a distinção analítico-sintética, mas todo resíduo da velha distinção lockeana-kantiana entre o caos fornecido pelos sentidos e a mente organizadora que torna o caos com sentido, Quine afundou nos calcanhares.


Em seu artigo de 1974 “Sobre toda idéia de um esquema conceitual”, Davidson incitou a se colocar de lado a distinção entre conceitos e dados sensórios, como aquela distinção entre nossos esquemas conceituais e o mundo não conceitualizado ao qual os esquemas são aplicados: “[o] dualismo esquema e conteúdo, o de um sistema organizador e algo esperando para ser organizado, não pode tornar-se inteligível e defensável.Ele próprio é um dogma do empirismo, o terceiro dogma. Uma terceiro, e talvez o último, pois se o abandonamos, então não mais é claro que há alguma coisa distinta a ser chamada de empirismo”.


Quine respondeu, em um ensaio bem humoradamente intitulado “A idéia toda de um terceiro dogma” (incluído em seu livro de 1981, Teorias e coisas), que o empirismo é muito importante para ser abandonado. Se o empirismo acabasse, Quine pensava, então assim também ocorreria com o projeto de naturalização da epistemologia – o de mostrar como os seres humanos sempre modelam mais quadros acurados do mundo na base de míseros imputs fornecidos pelos órgãos dos sentidos. A esperança de Quine nesse projeto, e para a confluência resultante de filosofia e investigação empírica, repousava na sua convicção de que o serviço da filosofia é servir de criada da ciência natural.


Na perspective de Davidson, contudo, as ciências duras não são assim tão especiais: ele está menos convicto do que Quine de que enunciados sobre partículas elementares estão mais proximamente relacionadas à realidade do que enunciados sobre valores morais e estéticos. Empirismo, sendo meramente a desajeitada tentativa de Locke de encontrar uma filosofia que se harmonizaria com a mecânica corpuscular de Boyle e Newton, talvez pudesse se permitir secar de uma vez.


Se amanhã os filósofos analíticos revoarem sob a liderança de Davidson, e se concordarem com Putnam sobre o cientificismo como tendo sido uma má influência sobre o pensamento filosófico do século XX, então a filosofia analítica terá se metamorfoseado em algo que Russell e Carnap teriam dificuldade em reconhecer. Historiadores da filosofia do século XX, provavelmente, estão aptos a identificar “Os dois dogmas” como o início dessa transformação, mas podem pensar sobre Quine como desmotivado para cruzar a terra que seus discípulos foram colonizar.


Se tal transformação ocorresse, haveria alguma chance (admitidamente fraca) de um fim ao que é, ainda, a bem azeda e contenciosa discordância sobre o papel da filosofia na cultura, o que divide filósofos analíticos e não analíticos. Os primeiros, tipicamente não enxergam a questão de Heidegger. Os últimos, que ainda dominam a profissão de filósofo na maior parte dos países anglófonos, pensam (como eu) que há muito a ser aprendido dele. A maioria dos filósofos não analíticos não considera as ciências como um modelo apropriado para a filosofia. Eles gostariam de manter a filosofia dentro das humanidades. Embora não compartilhem o desprezo de Heidegger pela ciência natural, eles acham que sua importância é super estimada pelos seus colegas analíticos.


Filósofos exteriores à tradição analítica, gastam a maior parte do tempo pensando, de um modo típico, sobre a história intelectual antes do que sobre ciência natural. Alguns de seus livros favoritos são narrativas abrangentes das histórias das idéias, histórias sobre como a Europa pensou, dos gregos até hoje. Estas são o tipo de histórias contadas, por exemplo, por Hegel, Nietzsche (no Nascimento da Tragédia), Heidegger, Hans Blumenger e Jurgen Habermas (em O discurso filosófico da modernidade). Lendo e escrevendo livros desse tipo, eles criam uma espécie bem diferente de ambiente intelectual daquele ligado aos estudos de artigos relativamente curtos, eficazes, de Quine, Davidson e Putnam e seus admiradores. Filósofos não analíticos premiam virtudes intelectuais como a ressonância histórica e a visão sinótica tanto quanto a acuidade argumentativa.


Deveria haver um espaço dentro de uma disciplina singular para ambos os tipos de pensamento e escritas. Infelizmente, muitos dos filósofos analíticos ainda têm o mesmo tipo de dúvida sobre seus colegas não analíticos que Carnap tinha sobre Heidegger em 1930. Suspeitam de seus colegas não analíticos como sendo frívolos, irracionalistas e moralmente dúbios para argumentar a partir de premissas enunciadas bem claramente até chegar a conclusões estabelecidas claramente.


Muitos dos filósofos não analíticos retaliam, então, com igual e infeliz acusação de decadente escolasticismo. Eles vêem os problemas para os quais os filósofos analíticos afirmam oferecer soluções como artefatos frágeis, periodicamente descartáveis e substituídos tanto quanto a fome analítica de uma geração ameaça a outra posta abaixo. Filósofos não-anglófonos com dificuldade de familiarizarem-se com a tradição analítica, algumas vezes zombam do fato dos filósofos de língua inglesa terem gasto cinqüenta anos, antes de o “Dois Dogmas”, marchando até o pico de saída da toupeira – e terem gasto mais cinqüenta marchando de volta.


Tal desprezo está tão equivocado quanto os muitos daqueles arremessados pelos filósofos analíticos. Os críticos não percebem que Quine abriu uma porta que levou a um mundo intelectual mais amplo. Insistindo que a filosofia poderia permanecer fiel ao espírito e aos resultados da ciência moderna – e ao mesmo tempo repudiando os dualismos herdados de Platão, Aristóteles, Hume e Kant –, ele abriu novos caminhos filosóficos. Tornou possível aos seus alunos irem a lugares que ninguém sabia que existiam. Ainda que a importância de “Dois dogmas” nunca venha a ser imediatamente evidente ao leigo (algo a mais do que a importância da Crítica da razão pura, de Kant), a maioria daqueles que fazem a leitura do background requisitado para se entender o desígnio contra o qual Quine estava reagindo, suspirarão de admiração diante do poder de sua imaginação esplendidamente iconoclasta.


A filosofia faz avanços, mas não de um modo linear. Ao contrário, o progresso é feito em várias e diferentes frentes ao mesmo tempo, esporadicamente. Leva tempo para que qualquer iniciativa seja consolidada, e mais tempo para que ela seja integrada com outras iniciativas. Nós, filósofos, estamos ainda deliberando não somente sobre que moral deveríamos tirar de “Dois dogmas”, mas quais lições podem ser aprendidas da Fenomenologia do Espírito, de Hegel. Em um livro recente, Articulating reasons, o filósofo da linguagem Robert Brandom faz bom uso tanto de Hegel quanto de Quine. Não acho (e aqui eu discordo de muitos de meus colegas filósofos) que o progresso é tipicamente feito pelo exame cuidadoso e rigoroso das implicações de argumentos alternativos. Ocasionalmente sim, mas mais freqüentemente é o resultado de alguém como Quine expondo o que Hegel teria chamado de contradição implícita no coração da sabedoria convencional, encarando como as coisas se pareceriam se uma distinção que parece intuitiva e de senso comum fosse colocada de lado, desarranjando todas as peças do tabuleiro. “Dois dogmas”, como observei acima, exibe grande habilidade argumentativa tanto quanto enorme poder imaginativo. Mas o último faz a maior parte do trabalho.


Esse é o tipo de poder, o extraordinário dos dons intelectuais, que é encontrado tanto em filósofos como Wittgenstein, Quine, Sellars e Davidson quanto em filósofos como Nietzsche, Dewey, Bergson, Heidegger e Derrida. O que tais figuras têm em comum – a habilidade de visualizar alternativas que ninguém mais havia vislumbrado – é de longe mais importante do que qualquer diferenças entre eles. Assim (para tirar a conclusão contra a qual Quine provavelmente resistiria com toda sua força) seria uma coisa boa se os estudantes de filosofia em todos os países fossem encorajados a estudar ambos os tipos de filosofia do século XX.


2001 © Richard Rorty
Trad. Paulo Ghiraldelli Jr.
Obituário de Quine: Chronicle of Higher Education
Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA)

Virada Línguistica – Um verbete


05/11/2007

Wittgenstein
Ainda que possa ser encontrada em outras áreas, a expressão “virada lingüística” ou “giro lingüístico” (linguistic turn) é típica do campo filosófico. Designa o predomínio da linguagem sobre o pensamento como um dos objetos da investigação filosófica. De acordo com o filósofo estadunidense Donald Davidson (1917-2003), é uma expressão que nomeia um novo paradigma quanto ao modo de se fazer filosofia e que veio para ficar.
A virada lingüística, uma vez aceita como paradigma pelos filósofos, também alterou a periodização da historiografia da filosofia. Ou seja, uma boa parte dos historiadores da filosofia tem construído narrativas a partir de “viradas” ou “giros” – os “turns”.
Fala-se ao menos em três “viradas”, como uma maneira de estabelecer uma divisão entre a filosofia antiga e a moderna, uma outra divisão entre a moderna e a contemporânea e, por fim, uma divisão no interior da filosofia contemporânea. O filósofo alemão Jürgen Habermas tem adotado essa terminologia, falando em “virada epistemológica”, “lingüística” e “lingüístico-pragmática”. No que segue, a ênfase é sobre as duas primeiras “viradas”.
Apogeu e Queda da Virada Epistemológica
A filosofia antiga tem preocupações cosmológicas e ontológicas, por isso mesmo, pergunta sobre o mundo; e faz isso de um modo direto (intentio recta). A filosofia moderna, diferentemente, pergunta sobre o mundo de um modo indireto (intentio obliqua). Isto é, antes de perguntar sobre o mundo, pergunta sobre o conhecimento (do mundo). Antes de perguntar o que há de real e/ou existente no mundo, pergunta qual representação do mundo é válida; qual representação é verdadeira e, assim, se há ou não conhecimento do mundo. A pergunta sobre o conhecimento gera a filosofia enquanto teoria do conhecimento ou epistemologia. Explicar o conhecimento – o que ele é e como ocorre – leva os filósofos a elaborarem e testarem modelos do que seria o aparato cognitivo. Este aparato cognitivo, em parte, é denominado de “a mente” ou, mais ampliadamente, “a consciência”. Entendendo que a consciência produz reflexões, crenças, desejos, intenções e juízos, ela é também tomada, então, como sujeito. Criar e testar modelos de subjetividade se torna a tarefa do filósofo moderno, que a partir de meados do século XIX passa a dividir tal trabalho com o psicólogo.
De John Locke (1632-1704) a Friedrich Hegel (1770-1831) e Karl Marx (1818-1883) o modo como os filósofos construíram a noção de subjetividade ganhou várias especificidades, mas o resultado foi semelhante: “sujeito é aquele (ou aquela entidade) que é consciente de seus pensamentos e responsável pelos seus atos”. Colocaram como núcleo do sujeito ou como o seu melhor representante algo como “mente”, “pensamento”, “entendimento”, “consciência transcendental”, “Espírito”, “proletariado”, etc..
Na transição do século XIX para o XX e em meados deste os filósofos começaram a acreditar que era melhor elaborarem críticas do sujeito ou criarem “subjetividades” que saíssem do padrão até então estabelecido.
Arthur Schopenhauer (1788-1870) aliou o conhecimento ao corpo; para ele, haveria um conhecimento especial, para além do Entendimento, que seria fornecido por processos ligados à compaixão. Friedrich Nietzsche (1840-1900) disse que o sujeito era uma “ficção da linguagem”, isto é, apenas uma função gramatical que, por motivos sociais, se cristalizou ontologicamente na discurso da filosofia. Sigmund Freud (1856-1939) fez a consciência ficar tripartida e deu ênfase ao que seria o subconsciênte: Id e Superego controlariam o Ego e seriam, de certo modo, responsáveis por muito mais atos e falas do que se poderia imaginar. Os pragmatistas disseram que Charles Darwin (1809-1882) os havia ensinado a ver continuidade entre seres com consciência e seres sem consciência; desse modo, a idéia de sujeito deveria ser repensada, pois não se tratava de algo que não tivesse uma gênese – biológica e antropológica. Os frankfurtianos, no início do século XX, evocaram Marx e Freud para dizerem que o sujeito em nossa sociedade moderna é em verdade o objeto; ou seja, por questões econômicas e libidinais, estaríamos em uma sociedade onde o que é vivo se transforma no que é morto e vice-versa, de modo que o morto – no limite os objetos e o próprio Capital – passam a ser as instâncias de tomada de decisão, ou seja, o vivo.
Nessa crítica, mas já usando instrumentos da “virada lingüística”, Ludwig Wittgenstein (1889-1951) sugeriu que o núcleo da garantia da noção tradicional da consciência era algo como uma “linguagem privada”, mas esta, de fato, não poderia existir; pois uma linguagem privada não seria uma linguagem uma vez que a única linguagem possível é a social, e nosso próprio pensamento é a linguagem social ou uma estrutura muito semelhante a ela.
Willard Van O. Quine (1908-2000), na trilha de John Dewey (1859-1952) e Wittgenstein, afirmou que a “mente” não seria capaz de ter o que atribuíam a ela como seu núcleo duro, os significados – os substitutos, na filosofia contemporânea, das “essências” aristotélicas.
Martin Heidegger (1889-1976) afirmou que a acoplagem entre “homem” e “sujeito” não era legítima. “Sujeito” viria da noção de substrato, do que é que sustenta e/ou recebe e/ou põe o objeto. A doutrina do Humanismo, que teria imperado na modernidade, ao fazer do homem o substrato de tudo, fez tudo se transformar em objeto – o que é posto e, no limite, então, manipulado pelo homem. Nesse sentido, o projeto humanista e moderno seria o de domínio do mundo pelo homem. Esse domínio epistemológico encaminharia, cedo ou tarde, para o mundo em que vivemos, o do predomínio da tecnologia: a forma máxima de dominação. Uma vez que somos seres naturais, também nós seríamos os manipuláveis pela tecnologia. O tiro teria saído pela culatra: ao nos colocarmos como sujeitos, perdemos toda condição de ouvirmos a voz da filosofia, ou seja, a “voz do Ser”.
Portanto, em menos de cem anos, a filosofia moderna, ou seja, a “filosofia da consciência” ou a “filosofia do sujeito” ganhou mais críticas, talvez, do que qualquer outro tipo de paradigma filosófico dos vinte e cinco séculos anteriores.
Virada Lingüística – Contemporaneidade
Ao lado de tais críticas, alguns filósofos se voltaram para a idéia de que o melhor para a filosofia seria, mesmo, abandonar a “filosofia da consciência”, porque ela estava envolta a algo que mais era uma ciência empírica do que com a filosofia propriamente dita. Tal ciência era a psicologia. O melhor seria, então, se livrar de todo e qualquer psicologismo em filosofia. Husserl caminhou nesse sentido, mas com a noção de intencionalidade acabou voltando a dar ênfase na filosofia da consciência. Os filósofos de língua inglesa, em especial George Moore (1873-1958) e Bertrand Russell (1872-1970), e depois os “positivistas lógicos” do chamado Círculo de Viena, também advogaram o afastamento de todo e qualquer psicologismo, de um modo muito mais radical que o de Husserl. Surgiu, então, a filosofia analítica e, em certa medida, desenvolveu-se de fato um tipo de prática filosófica que bem mais tarde passou a ser denominado de o resultado da “virada lingüística”.
Russell deu ao panorama do que se produziu – ao menos inicialmente – no interior da “virada lingüística” algumas características especiais. Seu realismo epistemológico se fez contra os idealistas neohegelianos ingleses e também contra as tendências da tradição inglesa empirista, vinda principalmente de David Hume (1711-1776). Hume achava que a tarefa da filosofia era a de fazer a análise psicológica das idéias. Russell defendia a análise das idéias, sim, mas de modo a focalizar sua atenção sobre a lógica. Ele tomou a lógica como a sintaxe de uma linguagem “ideal”, ou seja, uma linguagem “logicamente perfeita”. Tal linguagem teria todos seus enunciados ordinários, já que significativos, contendo proposições com estrutura e relacionamento mútuo sob regras lógicas estritas. Então, o pensamento claro e correto sobre o mundo – a chamada conversação sem ruídos – deveria ser encontrado na lógica formal. Essa linguagem ideal espelharia o mundo exatamente como um mapa espelha o mundo por meio de símbolos. A identidade de estruturas entre os pontos do mapa e os pontos da Terra nos daria o mapa perfeito, tal como seria uma linguagem ideal. Assim, para todo nome próprio haveria uma propriedade correspondente. Quando corretamente usada, tal linguagem figuraria os fatos tais como eles são. Uma teoria da verdade derivada de tal concepção seria a teoria da verdade como correspondência.
Independentemente de lembrarmos os êxitos e fracassos da concepção de Russell, é possível ver nela como que há uma transição do trabalho filosófico de modo natural para a linguagem.
A expressão “virada lingüística” ou “giro lingüístico” já estava sendo utilizada quando, em 1966, Richard Rorty reuniu em um volume um número significativo de textos importantes a respeito de “filosofia lingüística”, com o título de The linguistic turn. A partir daí, a expressão ganhou popularidade. Na introdução desse livro, Rorty nos dá um parágrafo que equivale a uma definição:
“O propósito do presente volume é fornecer material de reflexão sobre a maior parte da revolução filosófica recente, a da filosofia lingüística. Com a expressão “filosofia ¨lingüística”, estarei entendendo aqui uma visão de que os problemas filosóficos são problemas que poderiam se resolvidos (ou dissolvidos) pela reforma da linguagem, ou por uma melhor compreensão da linguagem que usamos presentemente” (Rorty, 1992, p. 3).
Rorty, mais tarde, abandonou a idéia de que problemas de filosofia poderiam ser resolvidos ou dissolvidos. Ele assim agiu não por desencanto com a filosofia analítica, não ao menos como um estilo, mas sim por causa de que passou a desconfiar da facilidade com que a filosofia analítica circunscrevia o que deveria ser ou não um “problema filosófico”. Desistiu de conferir à filosofia analítica uma supremacia em relação a outras filosofias, a não ser como um estilo mais claro e elegante que outros tipos de filosofia. Mas essa mudança não alterou o fato dele e outros passarem a conferir à linguagem um novo status na investigação filosófica.
Mas a linguagem, aqui, já estava bem distante daquela concepção que integrou o realismo de Russell. Rorty, em um estágio bastante desenvolvido do cruzamento americano entre pragmatismo e filosofia analítica, passou a pensar na linguagem como “instrumento” natural de seres naturais para lidar com o mundo – se o tamanduá tem língua para comer formigas e se a formiga tem antenas para, talvez, lidarem umas com as outras e “informarem” sobre o tamanduá, nós humanos temos a linguagem para arcarmos com tamanduás, formigas, nós mesmos e todo o resto. Esse tipo de abordagem é, de certa forma, a continuidade de certos resultados da “virada lingüística” no interior da “virada pragmática”.
Paulo Ghiraldelli Jr, o filósofo da cidade de São Paulo. Veja também: Portal Brasileiro da Filosofia: www.filosofia.pro.br e TV Filosofia.