Wilard van Orman Quine, o deão dos filósofos americanos, morreu aos 92 anos no dia de Natal. Exatamente a cinqüenta anos antes, em dezembro de 1950, ele leu um paper na Divisão Leste da Associação Filosófica Americana que fez a audiência girar nos calcanhares. “Dois dogmas do empirismo”, publicado no ano seguinte, tornou-se o artigo mais discutido e mais influente da história do século XX na filosofia anglófona. Poucas coisas de tamanha brevidade tiveram tal impacto no curso do pensamento filosófico. É um modelo de argumentação convincente e sucinta, um bom exemplo da elegância da prosa de Quine. Mas é, acima de tudo, um atalho imaginativo. Nele, Quine levantou uma nova e disposta forma da questão sobre a relação entre filosofia e investigação empírica.
Em “Dois Dogmas”, Quine questionou a distinção entre verdades necessárias e contingentes. A investigação empírica produz verdades do último tipo – afirmações que podem, em princípio, ser rescindidas à luz de outras observações ou experimentos (“Esquilos não hibernam” e “E=mc2”, por exemplo). A filosofia, Platão e Aristóteles nos ensinaram, deveria produzir verdades necessárias, exatamente como a matemática. Rudolf Carnap, mentor de Quine, e seus colegas ligados ao empirismo lógico (como Bertrand Russell e A. J. Ayer) concordavam com isso. Mas, eles diziam, verdades necessárias são verdades “analíticas” – enunciados que nada nos conta sobre a realidade, mas simplesmente refletem convenções lingüísticas. “Dois mais dois são quatro” é tornado verdadeiro pelo significado do “dois” e do “quatro” e do “mais”, tanto quanto “Todos os solteiros são não casados” é tornado verdadeiro pelos significados de seus termos componentes.
A filosofia, os empiristas lógicos concluíram, não deveria tentar nos contar algo sobre a natureza das coisas. Deveria confinar-se à clarificação dos significados de enunciados e exibir o que Carnap chamou de “a sintaxe lógica da linguagem”.
Até meados do século, muitos filósofos assumiram a oposição entre aquela visão modesta da filosofia e a visão mais velha, mais ambiciosa, como um resumo do contraste entre Carnap, um homem decente perfeitamente dentro da perspectiva da esquerda política, e Martin Heidegger, um ex-nazista megalomaníaco que punha questões como “O que é o Ser?” sem se importar em tornar claro como ele saberia se havia dado a resposta correta. Carnap queria filósofos para tornar seus critérios de êxito explícitos e, portanto, imitadores da honestidade intelectual dos investigadores empíricos. Heidegger tinha considerável desprezo pelas ciências naturais e pela lógica matemática desenvolvidas por Russell e outros, aquilo que Carnap viu como um indispensável instrumento do bom trabalho filosófico.
Quine, um jovem brilhante, que havia feito contribuições para a um tipo de lógica, tinha ido a Praga em 1933 para trabalhar com Carnap. Poucos anos depois, ajudou Carnap e seus amigos imigrantes a encontrar empregos nos Estados Unidos (o que rendeu um inestimável serviço à vida acadêmica americana). Assim, era natural esperar que sua fala em 1950 (em um simpósio “Tendências recentes da filosofia”) seria um manifesto do empirismo lógico. Ao invés disso, Quine veio a público com dúvidas com as quais ele havia pressionado Carnap, privadamente, por anos. Não há, Quine disse, nenhum teste para determinar onde termina o apelo à realidade empírica e onde começa o apelo às relações entre idéias, aos significados das palavras. Certamente, não há nenhum bom modo de classificar as verdades em necessárias e contingentes. Em lugar do antigo dualismo, ele sugeriu, deveríamos visualizar um espectro contínuo de crenças, aquelas que não poderíamos imaginar como sendo abandonadas e aquelas que poderíamos facilmente imaginar como desconfirmadas por observações futuras.
Muito influenciado por seu amigo B.F.Skinner, Quine estava preparado para traçar uma linha entre fato e linguagem – entre apelo à experiência sensível e apelo ao conhecimento de significados – unicamente se tal linha fosse traçada na base da observação do comportamento lingüístico. Mas, ele indicou, não há qualquer teste por meio do qual um lingüista aprendiz de uma nova linguagem pode contar como apelo que os nativos estão produzindo, quando estes lidam com a verdade de certas sentenças como incontroversas. Assim, os “Dois dogmas” virou o lado empirista do empirismo lógico contra o seu lado lógico. “Para todos os seus razoáveis a priori”, Quine disse, “uma fronteira entre enunciados analíticos e sintéticos [isto é, empiricamente confirmado e desconfirmado] simplesmente não havia sido traçada. Que tal distinção pode ser, em absoluto, traçada, é um dogma não empírico dos empiristas, uma artigo metafísico de fé”.
“Dois dogmas” levantou a questão: “como podemos ter filosofia analítica, o tipo de filosofia que Carnap e ele próprio, Quine, queriam fazer, se não havia nenhuma coisa tal como verdades analíticas? O golpe de Quine não somente lançou dúvidas sobre uma distinção que tinha parecido óbvia a Platão, Aristóteles, David Hume e Immanuel Kant, mas também pareceu frustrar a esperança recém adquirida de que filósofos pudessem alcançar resultados úteis, permanentes de uma vez por todas.
Quine compartilhou o costumeiro desgosto anglófone por Heidegger, e ele obviamente não quis trazer de volta o tipo de metafísica especulativa que tinha sido produzida, por exemplo, por F.H. Bradley e A. N. Whitehead. Mas ele não ofereceu um programa metafilosófico para substituir aquele que Russell e Carnap haviam levado adiante. Antes, ele simplesmente instigou os filósofos a trazer a filosofia para o contato com a ciência empírica. Tratava-se de estancar a tentação por verdades necessárias e, ao invés, incentivar a busca de modos claros de arrumar o material fornecido pelas ciências naturais. Ele visualizou, por exemplo, um futuro em que a epistemologia, o estudo filosófico do conhecimento, poderia ser “naturalizado”e, então, absorvido no que, agora, podemos chamar de “ciência cognitiva”. Este tipo de colaboração com a investigação empírica que, agora, parece a muitos dos filósofos anglófonos como o melhor modo de fazer avançar a sua disciplina.
Tal visão do seu papel cultural torna-os motivados a mover a filosofia para fora das humanidades e dar menos ênfase, do que no passado, na familiarização dos estudantes com os escritos dos filósofos mortos. Quine uma vez disse, satiricamente, que há dois tipos de pessoas que se tornam professores de filosofia: aqueles que estão interessados em filosofia e aqueles que estão interessados em história da filosofia. Quando seus colegas de Harvard (onde ele ensinou durante toda sua carreira) tentaram ganhá-lo para ensinar matérias históricas, ele resistiu. Uma vez ele deu um curso sobre Hume, mas observou em sua autobiografia de 1985, O tempo da minha vida, que “determinar o que Hume pensava e transmiti-lo aos estudantes era menos atrativo do que determinar a verdade e transmiti-la.” Sua observação fez eco a uma outra, supostamente dita por Carnap, quando foi solicitado a dar um curso sobre Platão: “Não ensinarei Platão. Não ensino nada, exceto a verdade”.
A tentativa feita por filósofos analíticos de deixarem a vizinhança dos departamentos de história e de literatura e se moverem para mais próximo dos laboratórios científicos contribuiu para a divisão analítico-continental dentro da disciplina. Em países não anglófonos, a repugnância a Heidegger é animadamente admitida, mas ele é, todavia, considerado por muitos professores de filosofia como o mais importante pensador do século XX. Essa opinião é compartilhada por bem poucos professores de literatura, teoria política e história intelectual americanos e britânicos – pessoas que não podem ver muito o que é a questão dos filósofos analíticos, e que suspeitam que a filosofia anglófona tem se tornado excessivamente técnica e intelectualmente estéril. A acusação de esterilidade, contudo, é injusta. Ao contrário, o desafio de Quine a Carnap (junto com os desafios complementares oferecidos por Thomas Kuhn e Ludwig Wittgenstein) abriu a porta para uma série toda de reconsiderações originais e frutíferas das abordagens tradicionais das relações entre linguagem e realidade, entre conhecimento e experiência dos sentidos, entre ciência e filosofia. Tais reconsiderações levantaram dúvidas concernentes à convicção, mantida por Quine, de que a ciência natural é a área da cultura em que a verdade sobre a realidade é mais clara e obviamente alcançada e na qual a racionalidade está mais claramente em evidência. Muitos filósofos que reconhecem um profundo débito para com Quine, se tornaram menos ávidos pelo prazer com as assim chamadas ciências duras enquanto paradigmas do conhecimento. À medida que Quine afirmou, de modo célebre, que “a filosofia da ciência é o suficiente em filosofia”, esses pensadores neo-quineanos se tornaram mais motivados a ver a investigação científica com menos diferença do resto da cultura do que Quine a havia tomado.
Quine nunca se desviou da afirmação de que os vocabulários da lógica e das ciências físicas, propriamente regidos pela filosofia, podiam revelar o que ele chamou de “a verdadeira e última estrutura da realidade”. Mas, muitos dos filósofos analíticos contemporâneos concordam com Nelson Goodman, um colega de Quine no departamento de filosofia de Harvard, que não existe tal estrutura – que não há, como Goodman colocou, qualquer modo de como o mundo é, mas há meramente várias descrições alternativas dele. Algumas descrições são úteis para certos propósitos, outras para outros propósitos, mas nenhuma deles está mais próxima ou mais distante do modo da realidade. A visão de Goodman é reminiscente da abordagem de John Dewey e, em particular, à motivação de Dewey em negligenciar as questões sobre a relação do pensamento com a realidade, no sentido de se concentrar sobre a utilidade pragmática dos modos alternativos de pensamento.
Muitos dos melhores estudantes de Quine (como Donald Davidson) e muitos de seus mais fervorosos admiradores (como Hilary Putnam) tentaram argumentar com Quine no sentido dele abandonar ou suavizar seu cientificismo, mas sem qualquer êxito. A doutrina de que enunciados sobre crenças e desejos humanos não representam qualquer coisa real, ao passo que enunciados sobre estrelas e moléculas representam, permaneceu central no pensamento de Quine. Davidson, Putnam e outros gastaram muitos anos tentando estender e radicalizar a visão de Quine, apontando para aparentes inconsistências e falhas em seu pensamento, criticando-o implicitamente (e em certas ocasiões, explicitamente) por não apreciar as implicações de seu próprio progresso. Deve-se crédito a Quine e a tais outros pelo fato de tais críticas, que foram certamente bem profundas, nunca terem conduzido a antagonismos pessoais ou a uma rachadura na filosofia analítica, criando duas escolas filosóficas. Ao contrário, o respeito, criado por um profundo sentido de gratidão, que Quine mostrou a Carnap, mesmo quando ele fez seu melhor demolindo algumas das mais queridas crenças de Carnap, foi equivalente à honra merecidamente paga a Quine por aqueles que tentaram demolir algumas de suas crenças.
A relação entre Quine e Davidson era particularmente próxima, e Davidson, ainda produzindo idéias originais e provocativas no ano de 1983, herdou a posição de deão de Quine. Davidson resumiu sua radicalização das dúvidas de Quine sobre a distinção entre linguagem e fato dizendo que “temos apagado a fronteira entre conhecer uma linguagem e conhecer o mundo ao nosso redor, em geral (...) Concluo que não há uma tal coisa como a linguagem, não se a linguagem é algo como o que muitos filósofos e lingüistas tem sustentado. Não há, portanto, nenhuma tal coisa a ser aprendida, controlada, ou inata. Devemos abandonar a idéia de uma estrutura claramente definida compartilhada, que usuários da linguagem adquirem e então a aplica a casos”.
O hiper quineanismo de Davidson não somente ofende Noam Chomsky (que considera tal coisa como um dogmatismo a priori, exibindo desprezo por lingüistas empíricos), mas causa consternação entre aqueles que pensam que a filosofia analítica iria à bancarrota se não pudesse estudar precisamente aquele tipo de estrutura lingüística compartilhada, definida claramente, que Davidson pensa que não existe. Essa posição de Davidson também não lembraria o próprio Quine. Quando Davidson sugeriu que lançássemos fora não somente a distinção analítico-sintética, mas todo resíduo da velha distinção lockeana-kantiana entre o caos fornecido pelos sentidos e a mente organizadora que torna o caos com sentido, Quine afundou nos calcanhares.
Em seu artigo de 1974 “Sobre toda idéia de um esquema conceitual”, Davidson incitou a se colocar de lado a distinção entre conceitos e dados sensórios, como aquela distinção entre nossos esquemas conceituais e o mundo não conceitualizado ao qual os esquemas são aplicados: “[o] dualismo esquema e conteúdo, o de um sistema organizador e algo esperando para ser organizado, não pode tornar-se inteligível e defensável.Ele próprio é um dogma do empirismo, o terceiro dogma. Uma terceiro, e talvez o último, pois se o abandonamos, então não mais é claro que há alguma coisa distinta a ser chamada de empirismo”.
Quine respondeu, em um ensaio bem humoradamente intitulado “A idéia toda de um terceiro dogma” (incluído em seu livro de 1981, Teorias e coisas), que o empirismo é muito importante para ser abandonado. Se o empirismo acabasse, Quine pensava, então assim também ocorreria com o projeto de naturalização da epistemologia – o de mostrar como os seres humanos sempre modelam mais quadros acurados do mundo na base de míseros imputs fornecidos pelos órgãos dos sentidos. A esperança de Quine nesse projeto, e para a confluência resultante de filosofia e investigação empírica, repousava na sua convicção de que o serviço da filosofia é servir de criada da ciência natural.
Na perspective de Davidson, contudo, as ciências duras não são assim tão especiais: ele está menos convicto do que Quine de que enunciados sobre partículas elementares estão mais proximamente relacionadas à realidade do que enunciados sobre valores morais e estéticos. Empirismo, sendo meramente a desajeitada tentativa de Locke de encontrar uma filosofia que se harmonizaria com a mecânica corpuscular de Boyle e Newton, talvez pudesse se permitir secar de uma vez.
Se amanhã os filósofos analíticos revoarem sob a liderança de Davidson, e se concordarem com Putnam sobre o cientificismo como tendo sido uma má influência sobre o pensamento filosófico do século XX, então a filosofia analítica terá se metamorfoseado em algo que Russell e Carnap teriam dificuldade em reconhecer. Historiadores da filosofia do século XX, provavelmente, estão aptos a identificar “Os dois dogmas” como o início dessa transformação, mas podem pensar sobre Quine como desmotivado para cruzar a terra que seus discípulos foram colonizar.
Se tal transformação ocorresse, haveria alguma chance (admitidamente fraca) de um fim ao que é, ainda, a bem azeda e contenciosa discordância sobre o papel da filosofia na cultura, o que divide filósofos analíticos e não analíticos. Os primeiros, tipicamente não enxergam a questão de Heidegger. Os últimos, que ainda dominam a profissão de filósofo na maior parte dos países anglófonos, pensam (como eu) que há muito a ser aprendido dele. A maioria dos filósofos não analíticos não considera as ciências como um modelo apropriado para a filosofia. Eles gostariam de manter a filosofia dentro das humanidades. Embora não compartilhem o desprezo de Heidegger pela ciência natural, eles acham que sua importância é super estimada pelos seus colegas analíticos.
Filósofos exteriores à tradição analítica, gastam a maior parte do tempo pensando, de um modo típico, sobre a história intelectual antes do que sobre ciência natural. Alguns de seus livros favoritos são narrativas abrangentes das histórias das idéias, histórias sobre como a Europa pensou, dos gregos até hoje. Estas são o tipo de histórias contadas, por exemplo, por Hegel, Nietzsche (no Nascimento da Tragédia), Heidegger, Hans Blumenger e Jurgen Habermas (em O discurso filosófico da modernidade). Lendo e escrevendo livros desse tipo, eles criam uma espécie bem diferente de ambiente intelectual daquele ligado aos estudos de artigos relativamente curtos, eficazes, de Quine, Davidson e Putnam e seus admiradores. Filósofos não analíticos premiam virtudes intelectuais como a ressonância histórica e a visão sinótica tanto quanto a acuidade argumentativa.
Deveria haver um espaço dentro de uma disciplina singular para ambos os tipos de pensamento e escritas. Infelizmente, muitos dos filósofos analíticos ainda têm o mesmo tipo de dúvida sobre seus colegas não analíticos que Carnap tinha sobre Heidegger em 1930. Suspeitam de seus colegas não analíticos como sendo frívolos, irracionalistas e moralmente dúbios para argumentar a partir de premissas enunciadas bem claramente até chegar a conclusões estabelecidas claramente.
Muitos dos filósofos não analíticos retaliam, então, com igual e infeliz acusação de decadente escolasticismo. Eles vêem os problemas para os quais os filósofos analíticos afirmam oferecer soluções como artefatos frágeis, periodicamente descartáveis e substituídos tanto quanto a fome analítica de uma geração ameaça a outra posta abaixo. Filósofos não-anglófonos com dificuldade de familiarizarem-se com a tradição analítica, algumas vezes zombam do fato dos filósofos de língua inglesa terem gasto cinqüenta anos, antes de o “Dois Dogmas”, marchando até o pico de saída da toupeira – e terem gasto mais cinqüenta marchando de volta.
Tal desprezo está tão equivocado quanto os muitos daqueles arremessados pelos filósofos analíticos. Os críticos não percebem que Quine abriu uma porta que levou a um mundo intelectual mais amplo. Insistindo que a filosofia poderia permanecer fiel ao espírito e aos resultados da ciência moderna – e ao mesmo tempo repudiando os dualismos herdados de Platão, Aristóteles, Hume e Kant –, ele abriu novos caminhos filosóficos. Tornou possível aos seus alunos irem a lugares que ninguém sabia que existiam. Ainda que a importância de “Dois dogmas” nunca venha a ser imediatamente evidente ao leigo (algo a mais do que a importância da Crítica da razão pura, de Kant), a maioria daqueles que fazem a leitura do background requisitado para se entender o desígnio contra o qual Quine estava reagindo, suspirarão de admiração diante do poder de sua imaginação esplendidamente iconoclasta.
A filosofia faz avanços, mas não de um modo linear. Ao contrário, o progresso é feito em várias e diferentes frentes ao mesmo tempo, esporadicamente. Leva tempo para que qualquer iniciativa seja consolidada, e mais tempo para que ela seja integrada com outras iniciativas. Nós, filósofos, estamos ainda deliberando não somente sobre que moral deveríamos tirar de “Dois dogmas”, mas quais lições podem ser aprendidas da Fenomenologia do Espírito, de Hegel. Em um livro recente, Articulating reasons, o filósofo da linguagem Robert Brandom faz bom uso tanto de Hegel quanto de Quine. Não acho (e aqui eu discordo de muitos de meus colegas filósofos) que o progresso é tipicamente feito pelo exame cuidadoso e rigoroso das implicações de argumentos alternativos. Ocasionalmente sim, mas mais freqüentemente é o resultado de alguém como Quine expondo o que Hegel teria chamado de contradição implícita no coração da sabedoria convencional, encarando como as coisas se pareceriam se uma distinção que parece intuitiva e de senso comum fosse colocada de lado, desarranjando todas as peças do tabuleiro. “Dois dogmas”, como observei acima, exibe grande habilidade argumentativa tanto quanto enorme poder imaginativo. Mas o último faz a maior parte do trabalho.
Esse é o tipo de poder, o extraordinário dos dons intelectuais, que é encontrado tanto em filósofos como Wittgenstein, Quine, Sellars e Davidson quanto em filósofos como Nietzsche, Dewey, Bergson, Heidegger e Derrida. O que tais figuras têm em comum – a habilidade de visualizar alternativas que ninguém mais havia vislumbrado – é de longe mais importante do que qualquer diferenças entre eles. Assim (para tirar a conclusão contra a qual Quine provavelmente resistiria com toda sua força) seria uma coisa boa se os estudantes de filosofia em todos os países fossem encorajados a estudar ambos os tipos de filosofia do século XX.
2001 © Richard Rorty
Trad. Paulo Ghiraldelli Jr.
Obituário de Quine: Chronicle of Higher Education
Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA)