domingo, 20 de agosto de 2017

Antônio Fredereico de Castro Alves, - Grande Homem e Genial Poeta


Castro Alves, 1871.
Última entrevista do poeta
da liberdade



Vale a pena lembrar a última entrevista de Castro Alves, concedida ao escritor e professor, Augusto Sérgio Bastos, em 1871, no Palacete do Sodré, em Salvador. Cecéu, como o poeta dos escravos era chamado pelos amigos baianos, morreu às 15:30h do dia 6 de julho de 1871, um mês após haver concedido essa franca e comovente entrevista, onde aborda temas ainda hoje atuais, como a escravidão e a liberdade.


Quem é o poeta Castro Alves?

Sou um homem que escreve e declama seus poemas. Por amor, por compulsão e por herança. Um poeta brasileiro nascido em 14 de março de 1847 lá na fazenda Cabaceiras, sete léguas distante de Curralinho. Um baiano do sertão. Meus pais foram o doutor Antônio José Alves e dona Clélia Brasília da Silva Castro, que também nasceu em um 14 de março.
A família mudou para Salvador quando eu tinha sete anos de idade. Aqui completei o curso primário e fiz o ginasial. Aos 15, em 1862, eu e meu irmão José Antônio fomos morar no Recife para fazer o Curso Anexo, um ano de aulas preparatórias que habilitavam às provas da Faculdade de Direito, onde fiz o 1º e o 2º ano. Lá, ainda em 62, pela primeira vez tive um poema publicado pela imprensa, “A destruição de Jerusalém”, no Jornal do Recife. No ano seguinte saiu no nº 1 de um jornal acadêmico, chamado A Primavera, o meu primeiro poema contra a escravidão: “A canção do africano”. Em 68, fui para São Paulo continuar meus estudos jurídicos. Completei apenas o 3º ano, sem bacharelar-me por conta de problemas relacionados à saúde.
Mas as publicações se sucederam, tanto no Recife como em Salvador, no Rio de Janeiro e São Paulo; muita vez em seqüência às declamações que eu fazia nas ruas, nos saraus e nos teatros, sempre com grande sucesso, diga-se de passagem. Alguns desses versos, junto com muitos inéditos, hoje fazem parte do meu livro Espumas flutuantes, primeiro e único até agora, e que foi lançado em outubro do ano passado, aqui mesmo na Bahia, para onde voltei no final de 69.

Fale um pouco mais sobre sua família e a infância em Salvador

Éramos muitos irmãos: José Antônio, Zezinho, o primogênito, poeta que se suicidou aos 19 anos; eu, Antônio Frederico de Castro Alves, era chamado de Cecéu pelos de casa e pelos amigos; João, que faleceu recém-nascido; Guilherme, o quarto, também poeta; aí vem a primeira mulher, Elisa; depois Adelaide, a Sinhá, minha preferida, mas que ninguém nos ouça; e Amélia, uma bela poetisa. Bem mais tarde, Cassianinho, nascido das segundas núpcias de meu pai.
Papai foi um médico famoso. Estudou na Europa, foi professor da Faculdade de Medicina, homem de talento artístico apreciável, com o que conseguiu grupar em nossa casa uma galeria de pinturas estrangeiras e nacionais de grande fama. Dessa paixão resultou fundar em 56, aqui na Bahia, a Sociedade das Belas-Artes. No lar, essa influência se exerceu na nossa educação artística: todos inclinados à música, ao canto, ao desenho, à pintura, às letras, favorecendo disposições da natureza que seriam consagradas. Mas papai e mamãe tinham pouca saúde. Perdi-os cedo, ela de tuberculose, em 1859, com apenas 34 anos de idade, e papai há cinco anos, aos 48.
Voltemos ao ano de 1854, quando fomos morar na capital, no pequeno sobrado da Rua do Rosário no 1. Essa casa, que marcaria de forma definitiva a minha vida, era cheia de lendas e mistérios: uma linda moça, Júlia Feital, nela foi assassinada pelo noivo que, louco de ciúmes, a fulminou com uma bala de ouro. Eu, menino, imaginava a cena e tinha muito medo. Ainda bem que logo depois nos mudamos.
Assim que chegamos a Salvador, fui estudar no Colégio Sebrão, uma escola tradicional, e depois no Ginásio Baiano, de conceitos pedagógicos avançados para a época: estudávamos várias matérias ao mesmo tempo, não recebíamos castigos físicos e ainda por cima éramos incentivados a participar de torneios literários. Para mim, que já trazia o amor à arte cultivado pela família, foi uma espécie de preliminar, desculpem a imodéstia, para a glória futura. Celebrávamos principalmente as datas cívicas, o que me deixava envaidecido, pois meu avô materno, José Antônio da Silva Castro, foi um dos heróis da independência da Bahia, que só foi conquistada em 2 de Julho de 1823. É que em muitas províncias, como o Senhor sabe, os portugueses não acataram a proclamação do Sete de Setembro e queriam nos manter atados à Coroa lusitana. Na Bahia, meu avô ajudou a derrotar as tropas inimigas, para assim confirmar a independência do Brasil. Ele foi condecorado por bravura no comando de um batalhão de voluntários, por ele mesmo criado. Vou lhe contar uma coisa que pouca gente sabe: foi nesse batalhão que, sob suas ordens, lutou a heroína baiana Maria Quitéria. Ainda vou escrever um poema em homenagem a essa grande mulher.



“O povo – esse condor gigante – sacudindo as longas asas
pairou na ordem social por sobre a realeza,
na ordem científica por sobre a autoridade.”



Como o Senhor vê a poesia nesta segunda metade do séc. XIX?

Olhe bem. A poesia na terra dos Andradas, dos Pedros Ivos, e dos Tiradentes deve ser majestosa como as matas virgens da América; arrojada como seus rios gigantes; livre como os ventos que passam gementes por suas várzeas, e que zurzem os costados pedregosos dos seus gigantes de granito. A poesia enfim deve ser o reflexo desta terra. Isto no que toca à natureza, é claro.
No que toca às idéias desta metade de século, eu diria que a poesia deve ser o arauto da liberdade – esse verbo na redenção moderna – e o brado ardente contra os usurpadores dos direitos do povo.
Quanto a sua forma, a literatura, sendo a expressão da humanidade, libertou-se dos preceitos asfixiadores da escola clássica – essa jaula do pensamento – assim como a humanidade despedaçara o feudalismo – essa jaula da dignidade popular. O povo – esse condor gigante – sacudindo as longas asas pairou na ordem social por sobre a realeza, na ordem científica por sobre a autoridade. O espírito popular tem sido iluminado pelos luzires do cometa da civilização.
Tudo tende a idealizar-se. No entanto, lanço uma censura a dois erros, que em geral permanecem em nossa literatura, e neles eu sei que a minha poesia não está:
Um – a falta de brasileirismo nas composições. O segundo erro, que ainda lavra, especialmente na Bahia, é o classicismo. Deus me livre de maldizer das obras-primas que a antiguidade nos legou. Não. Homero, Dante, Virgílio e outros hão de ser sempre admirados. Mas não queirais, homens da atualidade, mandar, como primor de escultura, uma cabeça de esfinge para a Exposição, nem apresentar nos banquetes de Napoleão III a paródia dos vasos soterrados de Pompéia… passou esse tempo… A poesia hoje é Byron, Barthélemy, Lamartine, Victor Hugo – esses Cristos humanos.




O poeta é às vezes um corcel sem freios…
Eu tenho consciência de que faço alguns poemas
para voz alta, e não para leitura com um chá, no
aconchego das cadeiras de balanço.



De que forma o Senhor situa a sua obra dentro deste contexto?

É muito difícil a um poeta situar sua própria obra no contexto de uma literatura. Talvez possa dizer que segui um caminho que é normal a todo escritor: o de fazer com que a vida e a obra entrem em acordo e possam viver bem juntas.
Olhe bem. Hoje, a palavra da poesia, além de ser íntima, também deve ser cívica. Tenho o sangue militar do meu avô e cheguei até a me alistar no Batalhão Acadêmico de Voluntários que foi à Guerra do Paraguai, mas nunca fui um apologista da guerra. Amo sim a minha pátria, luto pela abolição da escravidão, canto os feitos heróicos, as batalhas vitoriosas contra a opressão e confesso o meu amor em tom vibrante; só em louvor ao Dois de Julho escrevi cinco poemas. Muitos dizem que minha obra está composta de uma parte política e de uma parte lírica. Penso que vigora sempre o mesmo amor à humanidade, sob roupagens diversas: amor coletivo e amor pessoal, e não saberia dizer qual o mais importante.
Acho que o poeta deve falar aos corações. Eu falo. Mas, não é com sussurros que se incendeia o público; é com entusiasmo, dramaticidade, retórica. O poeta é às vezes um corcel sem freios… Eu tenho consciência de que faço alguns poemas para voz alta, e não para leitura com um chá, no aconchego das cadeiras de balanço. Algumas vezes, anoto ao lado do texto: “Não se publica”. Não sei se será publicado, pois tenho a certeza de que o poeta, quando muito, é o dono dos versos, mas não é nunca o dono do destino do poema.
Particularmente, acho exagerado o gosto pelo doentio que os poetas da geração anterior a minha desenvolveram. Eles estavam voltados para eles mesmos, amavam a musa distante, idealizada, intocada e etérea. A minha amada é de carne e osso (o poeta sorri). Eu aposto no amor, na vida; às vezes perco, às vezes ganho… Deixo aos críticos do futuro o julgamento do meu trabalho.

Que figuras exerceram influência na sua formação de escritor?

Tudo o que o escritor vê, vive ou lê o influencia. Assim, sou filho de Horácio, de Byron, Barthélemy, Lamartine, Musset, do grande Hugo principalmente… Aprecio Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Junqueira Freire, mas se tivesse que escolher apenas dois brasileiros, citaria dos contemporâneos, meu amigo Fagundes Varela e dos passados, o Casimiro de Abreu.



Ser chamado de “poeta dos
escravos” é uma honra. Acho,
porém, que não diz tudo; sempre
quis ser “O poeta da Liberdade”.



O Senhor está começando a ser chamado “O poeta dos escravos”. Como se sente?

Eu me orgulho do epíteto. Estou, inclusive, na fase final de negociações para a impressão de meu livro Os escravos, que até o final do ano será publicado. A escravidão é uma das mazelas, talvez a mais horrenda, que devemos combater em prol da liberdade. É certo que, desde 1850, instituíram-se pesadas penas para o tráfico negreiro, já abolido pela legislatura de 31, mas ainda vigente. Há dois anos foi proibida a venda de seres humanos em pregão público e até o fim deste ano – não sei se o Senhor sabe – será votada a Lei do Ventre Livre. Mas é pouco. Muito pouco.
Sempre fui devotado às causas sociais. Fundei, com Rui Barbosa – meu antigo colega do Ginásio Baiano – e outros alunos da Faculdade de Direito, a Sociedade Abolicionista do Recife. Esse pendor abolicionista vem do berço. Lembro de papai a reclamar, sempre, do tratamento cruel que era dado ao negro. O amor que eu tive e tenho pela minha bá, que já se foi, a negra Leopoldina, minha ama de leite, minha segunda mãe, a me contar as histórias de senzalas, mucamas e amores proibidos… O meu tio, o alferes João José, herói da Guerra do Paraguai, brincando comigo de cavalinho, montado em seus joelhos, dizendo-me: “A liberdade, filho, é o maior bem do mundo”. Ah! Como essas coisas ainda me comovem…
Ser chamado de “poeta dos escravos” é uma honra. Acho, porém, que não diz tudo; sempre quis ser “O poeta da Liberdade”. E para mim, Abolição e República são palavras quase irmãs: uma puxa a outra, naturalmente. Tanto que, em paralelo à minha luta pela libertação dos escravos, participei também de alguns comícios republicanos. Lembro-me bem de um deles, dissolvido pela polícia, quando criei de improviso os versos de “O povo ao poder” (nesse momento o poeta abre um sorriso e levanta-se, com esforço, da cadeira de balanço austríaca). A segunda estrofe desse poema começa com dois versos que agitaram a multidão, aos gritos e assobios (o poeta de pé, com a voz já rouca e entrecortada por um pigarro renitente):


A praça! A praça é do povo
Como o céu é do condor
É o antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor.
Senhor!… pois quereis a praça?
Desgraçada a populaça
Só tem a rua de seu…
(um acesso de tosse interrompe a fala;
ele se senta novamente, e com dificuldade termina a estrofe)

Ninguém vos rouba os castelos
Tendes palácios tão belos…
Deixai a terra ao Anteu.
Desculpe-me, Senhor… Desculpe-me… (aparentemente refeito) Prossiga, prossiga…

Além dos comícios republicanos e da campanha abolicionista, é sabido que o Senhor tem participado de debates sobre a liberdade de imprensa e de muitos outros movimentos civis, como a luta pelo voto feminino. Por outro lado, as discussões literárias também não foram poucas. Fale-nos sobre sua polêmica com o poeta Tobias Barreto.

O Tobias? Isso é coisa do passado, não tem mais importância… Nem sei se vale a pena voltar ao assunto. Mas o que posso dizer?… Vamos ver…
Começamos como amigos – temos, inclusive, poesias dedicadas um ao outro; passamos a colegas, tornamo-nos rivais e acabamos inimigos. Intrigas pessoais e literárias. Discordamos em quase tudo, tanto na poesia quanto no teatro. Olhe que nossos desencontros se acaloraram a partir de 66, quando ele teve o desplante de, em público, dizer que a atriz Adelaide Amaral era superior a minha amada D. Eugênia Câmara, um talento fulgurante que Portugal nos legou; inigualável, como o Brasil jamais tivera oportunidade de assistir.
O Senhor Tobias Barreto é feio, velho, escreve mal e declama pior ainda. Não conhece a língua que fala, o significado das palavras; já o aconselhei a fazer, de quando em quando, uma viagenzinha ao Morais. Nos recitativos fica nervoso, tem um jeito desastrado, não controla a voz. Não possui o domínio cênico que eu tenho, se veste mal. Eu entro no palco vestido de negro, chique, com uma flor na lapela, óleo nos cabelos, madeixas minuciosamente espontâneas e pó-de-arroz no rosto, para parecer mais pálido. Começo logo com uma das minhas bombas “O século”, “Pedro Ivo”, “Visão dos mortos”…, com resultado previsto e certo: a platéia me ovaciona. Lembro-me de um sarau em São Paulo , organizado pelo Arquivo Jurídico, no Salão Concórdia. Nessa noite todas as honras foram minhas; o entusiasmo tocou ao delírio, quando arrematei a última estrofe de “Visão dos mortos” e, a pedido geral, encetei “O livro e a América”. Se algum dia obtive um triunfo, não foi noutro lugar. Até a senhora do cônsul inglês Richard Burton veio entusiasticamente dizer-me: “Mim gostar muito de sua recitativa” (rindo e imitando um sotaque inglês).
Atualmente não tenho mais debatido com o Tobias Barreto. Como o Senhor sabe, pouco tenho saído de casa. A minha última declamação em público foi, se a memória não me falha, em 10 de fevereiro deste ano, no salão nobre da Associação Comercial da Bahia, quando se realizava ali um meeting em favor das famílias francesas sacrificadas pela guerra franco-prussiana. Eu recitei o poema “No meeting du Comité du Pain”, escrito no dia anterior. Fiz especialmente para a ocasião.

Aproveitando a sua lembrança, o Senhor poderia nos falar da grande atriz D. Eugênia Câmara?

A minha admiração pela atriz D. Eugênia Câmara se confundiu com meu amor pela mulher Eugênia. Quando a vi pela primeira vez, no palco do Teatro Santa Isabel, no Recife, eu tinha 16 anos e ela 26. De minha parte, amor à primeira vista. Ela era a estrela do drama Dalila, de Octave Feuillet. Difícil descrever o impacto que a presença dela exerceu sobre mim. Digo apenas que ela foi a mulher mais importante da minha vida, a musa celeste que me arrastou, como um turbilhão, ao mais profundo fundo dos cafundós do inferno. E ainda mais, o que muitos não sabem: é poetisa. Já tem dois livros publicados.
Escrevi para ela o drama Gonzaga ou A Revolução de Minas, onde falo de liberdade, escravidão, traição, paixões… em suma, de tudo que atormentava ou deliciava minha existência, e se confundia com a própria Eugênia, para quem, é evidente, eu havia reservado o papel principal. Meu sonho era vê-la em cena interpretando meu texto.
O nosso amor foi sempre tumultuado. Em 66, após um longo período de indecisões e recuos, que nunca soube se eram meus ou dela, finalmente consegui arrancá-la do empresário com quem vivia, e levei-a junto com a filha, para morar comigo num subúrbio do Recife. Nosso ninho de amor… Dediquei-lhe muitos poemas… Ah! Bons tempos aqueles…
No ano seguinte, fui para a Bahia, levando minha mulher e uma certeza: iríamos conseguir encenar o Gonzaga em Salvador. O que, de fato, aconteceu no dia 7 de setembro, no Teatro São João, tendo à frente do elenco Eugênia no papel de Maria, a Marília de Dirceu. Foi uma brilhatura como há poucas! Fui chamado à cena depois de cada ato, sob estrondosa ovação. Não satisfeita, a multidão carregou-me em triunfo, sobre os ombros, até minha casa. Tive um triunfo como não consta que alguém tivesse na Bahia. Era a glória, mas era a glória baiana. Até aí a alegria do sucesso e o amor de Eugênia me completavam, mas eu queria a consagração nacional…

A noite encantada ao conhecer sua amada em cena, no Recife.


Eram cada vez mais constantes as nossas desavenças.
Cenas violentas, ciúmes, brigas, precárias reconciliações.
Sopravam-me histórias de adultério.



Foi por isso que o Senhor resolveu ir para São Paulo?

Sim, sim. Foi com essa intenção que decidi continuar os estudos de Direito em São Paulo , interrompidos quando viemos para Salvador. Eugênia foi comigo. Incluí no roteiro de viagem uma visita ao Rio de Janeiro, onde conheci o grande escritor José de Alencar. Chegamos a São Paulo em março de 68, a terra de Azevedo, cidade das névoas e mantilhas, ainda acanhada e provinciana, onde não há senão frio, mas frio da Sibéria; cinismo, mas cinismo da Alemanha, um tédio infinito. Entretanto prefiro São Paulo ao Recife, apesar das péssimas recordações daquele tempo, pois foi lá que o nosso amor chegou ao fim. O meu objetivo era terminar os estudos na Faculdade do Largo de São Francisco e o de D. Eugênia retornar aos palcos. No início retomamos a vida intelectual e boêmia, freqüentando saraus e salões, sempre com muito sucesso. Porém, rapidamente, o nosso relacionamento se deteriorou. Eram cada vez mais constantes as nossas desavenças. Cenas violentas, ciúmes, brigas, precárias reconciliações. Sopravam-me histórias de adultério. No entanto, sei que ela me amou, como sei que, talvez, meu amor tenha sido insuficiente para sua paixão. Não a recrimino. Em determinado momento, largou a carreira para me seguir. Depois, me largou para seguir a si própria. Rompemos em 68 e a última vez que a vi foi no ano seguinte apresentando-se no Teatro Fênix Dramática, no Rio de Janeiro, quando pude lhe oferecer meus derradeiros aplausos. Despedi-me de Eugênia com a poesia “Adeus”, que termina assim (acomodando-se na cadeira):


Quis te odiar, não pude. – Quis na Terra
Encontrar outro amor. – Foi-me impossível.
Então bendisse a Deus que no meu peito
Pôs o germe cruel de um mal terrível.


Sinto que vou morrer! Posso, portanto,A verdade dizer-te santa e nua:
Não quero mais teu amor! Porém minh’alma
Aqui, além, mais longe, é sempre tua.
E Eugênia me respondeu com uma outra e que sei de cor. Vou dizer-lhe a primeira e a derradeira das 14 estrofes (a voz um pouco mais baixa):


Adeus, irmão desta alma, digo-te Adeus!
Mas deixa que eu evite esse – jamais! –
Que o céu se compadeça aos rogos meus
E um dia cessarão teus e meus ais!

Adeus! Se um dia o Destino
Nos fizer ainda encontrar
Como irmã ou como amante
Sempre! Sempre me hás de achar.

Como foi seu contato com José de Alencar?

Ah! Esse foi um dia inesquecível: 17 de fevereiro de 1868. Levei uma carta de apresentação do estadista baiano Dr. Joaquim Fernandes da Cunha, amigo de meu pai e padrinho da minha irmã Amélia. Visitei Alencar no Rio, como já lhe disse. Ele residia lá nos cerros da Tijuca. Segundo suas palavras, lugar puro e são, montanha encantadora que a natureza colocou a duas léguas da Corte, como um ninho para as almas cansadas de pousar no chão. E foi lá que o primeiro literato brasileiro provou-me que a ninguém cedia em cavalheirismo e urbanidade.
Sabendo que tocava numa corda sensível do mestre, além de declamar alguns poemas, li para ele o Gonzaga. Meu anfitrião era um obcecado pela construção de um teatro brasileiro, mesmo tendo fracassado na tentativa. Ele pregava um teatro baseado em nossa História – exatamente o que eu fizera, ao invocar em meu drama a Inconfidência Mineira. A receptividade foi muito boa, a ponto de Alencar recomendar-me a outro talento que se firmava na literatura fluminense: o jovem Machado de Assis, que me visitou no domingo de carnaval. O resultado desses encontros se traduziu nas crônicas publicadas no Correio Mercantil, a de Alencar em 22 de fevereiro e a de Machado em 1o de março, ambas muito favoráveis ao Gonzaga. Saiba que ainda guardo comigo esses exemplares do Correio.




Então busquei ajuda médica no Rio de
Janeiro e o diagnóstico foi implacável: teria
que amputar a perna esquerda no seu terço
inferior. Devido ao meu estado debilitado,
a intervenção cirúrgica se daria sem
anestesia, pois a cloroformização seria perigosa.



Quando e por que o Senhor decidiu deixar o sul do país e retornar à Bahia?

Devido a meus problemas de saúde; não ia nada bem. Quando me separei de Eugênia, a minha sorte piorou. Não sai da minha mente o fatídico dia 11 de novembro de 68, em que para espairecer minha solidão dirigi-me ao Brás, onde costumava caçar; era um mato cerrado, animais em abundância. Fui saltar uma pequena valeta e um disparo da espingarda atingiu-me o pé. Como todos sabem, surgiram complicações no ferimento e os antigos padecimentos pulmonares acordavam, impressionantes. Então busquei ajuda médica no Rio de Janeiro e o diagnóstico foi implacável: teria que amputar a perna esquerda no seu terço inferior. Devido ao meu estado debilitado, a intervenção cirúrgica se daria sem anestesia, pois a cloroformização seria perigosa. Se não operasse poderia morrer; então reuni todas as minhas forças e dei a autorização aos médicos, em tom de blague, disfarçando sob o riso, a dor física e moral da mutilação que deveras sentia. Ainda lembro de minhas palavras: “Corte-o, corte-o doutor… ficarei com menos matéria que o resto da humanidade”.
A convalescença foi demorada, agravada pela tísica renitente. Após alguns meses consegui levantar-me com a ajuda de um pé de madeira e apoiado em muletas. Porém , não me entreguei ao infortúnio. Nesse período de recuperação, estive hospedado na casa de meu grande amigo Luís Cornélio, cercado de carinho e atenção. Não deixei de escrever e recitar meus poemas para o pessoal da casa e para as bonitas moças que me visitavam e inspiravam. É… Não foram tão maus aqueles tempos (risos). No entanto, os meus pulmões não iam nada bem; acessos de tosse e febre deixavam-me constrangido. A saudade da minha pátria e a necessidade de cura em outro ambiente me fizeram retornar ao aconchego da família. Em novembro de 69, deixei o Rio de Janeiro. A travessia, transposta a enseada maravilhosa da Guanabara, sugeriu-me, com a saudade e o desengano, a idéia de reunir os meus poemas num volume que denominei Espumas flutuantes. Os meus versos eram as espumas que se formavam, flutuando à volta do navio. Essa lembrança está relatada no Prólogo do meu livro.

Quais são seus planos para o futuro?

Como já lhe disse, estou com Os escravos pronto, deve sair até o final do ano ou, no máximo, no princípio do ano que vem. A cachoeira de Paulo Afonso, livro de poemas, também já está acabado. E quero publicar o texto do meu Gonzaga, que já viajou por todo o Brasil, e, como o Senhor sabe, com grande sucesso de público e de crítica. Infelizmente nos últimos tempos não tenho trabalhado muito, a minha saúde não anda boa, e os médicos e as manas não querem que eu faça esforço. Para dar-lhe esta entrevista, tive que impor a minha autoridade de irmão mais velho (risos).
Mas Deus vai me dar ânimo, pois tenho planos de voltar a declamar em público, no máximo daqui a um mês. Já encomendei até um novo terno preto, bem cortado, pois estou um pouco mais magro e quero me apresentar bem. Se Deus quiser.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Para Aldo Fornazieri, 'convulsão social já está ocorrendo'

Crise
Na opinião de professor de Filosofia Política, "Temer está dando uma aula de como os profissionais de uma quadrilha reagem com força para se manter no poder". Para ele, "a esquerda está acomodada"
por Eduardo Maretti, da RBA publicado 17/07/2017 18h31, última modificação 17/07/2017 18h49
REPRODUÇÃO
Aldo Fornazieri
Para professor da Fespsp, Michel Temer “está quebrando o país mais do que já está quebrado”
São Paulo – Em meio à maior crise política de sua história recente, o Brasil espera o fim do recesso parlamentar para conhecer a decisão, pelo plenário da Câmara dos Deputados, sobre o futuro de Michel Temer. A votação que pode ou não autorizar o Supremo Tribunal Federal a dar prosseguimento ao processo está prevista para o dia 2 de agosto, quando o peemedebista precisará de 172 votos para evitar esse desfecho e, na prática, o fim de seu governo.
Enquanto isso, na opinião de Aldo Fornazieri, professor de Filosofia Política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp), o país já vive uma convulsão social. “Na verdade, a convulsão social está ocorrendo, mas não pela via política. Está ocorrendo na guerra civil no Rio de Janeiro, com a violência espalhada pelo país e a quebradeira geral dos serviços brasileiros pelo governo”, diz.
Para ele, o problema é que Temer até o momento tem sido bem sucedido em suas manobras e articulações para se manter no poder. “Do ponto de vista político não acontece nada. A esquerda está acomodada, o Lula é condenado e não vimos ainda manifestações contra a condenação. Por esse caminho não acredito em convulsão social.” A apelação do ex-presidente Lula da sentença do juiz Sergio Moro, que o condenou a 9 anos e 6 meses de prisão, será julgada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em data ainda imprevisível.
Na opinião de Fornazieri, Temer tem “grandes chances” de se salvar. “Ele está fazendo um jogo pesado para isso. Está dando uma aula de como os profissionais de uma quadrilha reagem com força para se manter no poder, gastando bilhões do dinheiro público. Não vejo mobilizações suficientes para tirar Temer do governo”, afirma Fornazieri.
Ele acredita que as manifestações dia 20 precisarão ser grandes para configurar um contraponto popular à mobilização parlamentar e articulação política do grupo palaciano. “Qual vai ser o tamanho e o alcance dessas manifestações? Até hoje as manifestações da esquerda na Paulista não passaram de piqueniques cívicos”, diz Fornazieri. Em sua opinião, as mobilizações teriam que envolver muito mais gente do que a militância organizada que faz parte das estruturas dos partidos e sindicatos.
Para se manter no poder, o presidente “está quebrando o país mais do que já está quebrado”. “E não se vê uma contrapartida das oposições nas ruas. As oposições são minoria no Congresso, mas estão se submetendo ao jogo puramente parlamentar, enquanto no contexto do golpe e do impeachment da Dilma foram mobilizadas milhões de pessoas nas ruas", afirma ainda o professor.
Na quinta-feira (13), a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara rejeitou, por 40 votos a 25, o relatório do deputado Sergio Zveiter (PMDB-RJ), favorável à autorização para abertura do processo contra Temer no STF.
Segundo a ONG Contas Abertas, o governo federal liberou em junho R$ 134 milhões em emendas parlamentares a 36 dos 40 deputados que votaram a favor de Temer na CCJ.
Para Antônio Augusto de Queiroz, diretor de Documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), os cenários na atual conjuntura são basicamente três: “a) renúncia, por exaustão do governo; b) a cassação, por decisão do STF, após autorização da Câmara dos Deputados; e c) a Sarneyzação do governo, ou a imagem do “pato manco”, com a equipe econômica e o Congresso fazendo o feijão com arroz, sem qualquer reforma relevante”. Na opinião do analista, o primeiro cenário “é realista, o segundo pessimista e o terceiro otimista”.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Dennis Nilsen, o necrófilo escocês

Dennis Nilsen, o necrófilo escocês


Por Bernardo de Azevedo e Souza e Henrique Saibro

Eu queria parar [de matar], mas não conseguia. Não tinha outra emoção ou felicidade” (Dennis Nilsen)
A PERSONALIDADE
Dennis Andrew Nilsen nasceu na Escócia, na cidade de Fraserburgh, em novembro de 1945, em um ambiente familiar nada afetivo. O casamento dos seus pais durou apenas sete anos – muito em razão do alcoolismo do genitor. O jovem Nilsen, juntamente com a sua mãe e seus dois irmãos, morava na casa de seus avós maternos.
Dennis possuía uma relação muito estreita e amorosa com o seu avô. Era quem confiava, se inspirava e admirava. Os dois eram grudados. Nilsen era o neto preferido do ancião da casa. Entretanto, por causas naturais – dado o avanço da idade –, o avô acabou falecendo. Mas o que traumatizou Dennis não foi a morte do seu avô por si só, senão a forma como ficou sabendo. Não é necessário ter um filho pequeno para ter noção de que, em se tratando de acontecimentos complicados, como, por exemplo, a morte de um ente querido, todo cuidado é pouco ao dar a notícia à criança. E foi o que a mãe de Nilsen não teve. Para você ter uma ideia, ela, sem contar ao menino sobre o falecimento, o levou ao encontro do corpo do seu avô – já sem vida e com o aspecto sombrio peculiar de um defunto. Posteriormente, Dennis ressaltou que teria morrido por dentro diante daquela cena.
A infância de Nilsen foi recheada de abalos psíquicos. Com oito anos, quase morreu afogado no mar. Foi salvo por um adolescente. Ocorre que quem lhe salvou não era, exatamente, um herói. É que, por mais que salvo, Dennis estava desacordado e, enquanto isso, quem lhe salvou masturbou-se sobre ele. Foi se dar conta do ocorrido quando acordou e verificou que havia esperma na sua barriga. Aos dez anos, viu a sua mãe casar-se novamente, dessa vez dando à luz mais quatro filhos. No final das contas, Nilsen acabou sendo negligenciado, passando a ser uma criança carente e solitária – sentimento que perdurou até a vida adulta.
Na adolescência não há relatos acerca da sua vida sexual, mas sempre se sentiu atraído por jovens do mesmo sexo. Aos 16 anos, alistou-se e serviu ao exército, onde exerceu a função de cozinheiro. Foi aí que absorveu a expertise do corte de faca, própria de um açougueiro – que, futuramente, veio a ser extremamente útil para suas práticas criminosas. Também foi na milícia que passou a consumir sobremaneira álcool.
young-dennis
Dennis Nilsen durante a juventude
No período do serviço militar, dormia em um quarto privativo, onde iniciou a masturbar-se compulsivamente. Suas fantasias sexuais acabaram se tornando macabras, na medida em que percebia que chegava somente ao clímax quando se imaginava copulando com um defunto. Maquiava-se a fim de simular sangue, para dar tons mais realísticos à sua imaginação. Aos 27 anos, dedicou a sua vida a tornar-se policial. Ficou maravilhado com as aulas de necropsia. Tão deslumbrado que largou a carreira. Aulas expositivas não eram suficientes para saciar a compulsão daquele adulto assombrado por traumas na infância. Ele queria, bem dizer, botar a mão na massa.
Aos 33 anos, Dennis começou a matar. E muito.
OS CRIMES
Nilsen, como já dito anteriormente, era muito solitário e, sobretudo, carente. Como tinha muita dificuldade de se relacionar com outras pessoas, era difícil suprir essa lacuna existencial. Mas não faltavam tentativas de sua parte. Sua vida noturna resumia-se a conhecer homens em pubs e levá-los para a sua casa – tudo, ressalte-se, regado a muito álcool. Em casa, mantinha relações sexuais com seus parceiros, mas, quando acordava, estava sozinho. Nada de carinho; nada de afeto. Somente sexo.
Inconformado com tal situação, seus novos companheiros, curiosamente, passaram a permanecer sob a sua companhia, mas, dessa vez, estavam mortos. Para evitar o abandono matutino, estrangulava o seu parceiro enquanto dormia. Sem vida, podia acariciá-lo, tomar banho juntos, ver televisão e falar sobre a sua vida pessoal. Quando batia a vontade, masturbava-se e copulava com o cadáver. Era o que sempre quis. Seus dias de solidão estavam acabados.
Quando tinha que ir trabalhar, escondia o corpo embaixo de tábuas na sua sala e, ao voltar à residência, retirava novamente o defunto para preencher o seu vazio. Para evitar o cheiro horrível de carniça, passava desodorante pela casa. A partir do momento em que o corpo entrava em decomposição, esquartejava-o com manuseio de um facão extremamente afiado e fervia a cabeça de sua vítima em uma grande panela que possuía – para facilitar o retiro da carne. Igualmente, guardava pedaços de corpos no seu jardim, escondia-os pela casa (roupeiro, armários, gavetas), incinerava-os, ou descartava-os pela privada.
Aliás, por ter descartado tantos restos mortais na patente que veio a ser descoberto pela polícia. Certo dia, no edifício em que morava, os seus vizinhos não conseguiam mais dar descarga e chamaram um encanador (Michael Cattran). Quando Cattran se dirigiu, com uma lanterna, à caixa de inspeção do esgoto, não acreditou no que viu. Era a cena mais sinistra por ele já presenciada. Havia mais de trinta pedaços de carne interrompendo o fluxo da latrina. E não pareciam meras sobras de churrasco. Assustado, o encanador resolveu voltar outro dia com o seu supervisor.
Nilsen, aproveitando a deixa de Cattran, desceu à caixa de inspeção e recolheu os restos mortais e, sem saber onde deixá-los, os descartou no jardim do edifício. Ocorre que, para seu infortúnio, dois vizinhos estavam lhe vigiando. Noutro dia, quando Cattran retornou com o seu colega, praticamente não havia mais pedaços de carne por lá. Os mesmos vizinhos, então, desconfiaram de Dennis e chamaram a polícia.
Peter Jay, inspetor-chefe de polícia acionado pelo chamado, submeteu os pedaços de carne que ainda estavam bloqueando a latrina ao dr. David Bowen, catedrático da Universidade de Londres. Os resultados periciais demonstraram que se tratava de carne humana. A polícia, então, se dirigiu ao apartamento de Nilsen e lhe pressionaram para dizer onde estava o resto do corpo; no mesmo instante, com muita frieza e naturalidade, Dennis respondeu: “em sacos plásticos, no armário perto da porta”. Jay ainda indagou: “estamos falando de um ou dois corpos?” Dennis, sarcástico, riu e respondeu: “quinze ou dezesseis”.
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Nilsen é preso pelas autoridades policiais 
A CONFISSÃO 
Em sede policial, Nilsen confessou quase todos os seus crimes, ajudando as autoridades policiais a identificar parte das vítimas. O escocês relatou as “técnicas” utilizadas com precisão. Sem demonstrar qualquer remorso, sanou todas dúvidas e questionamentos, tanto sobre o modus operandi quanto acerca da veracidade das informações. Após mais de 30 horas de depoimento, a polícia conseguiu juntar os pedaços dos corpos das vítimas. Um dos corpos encontrados assegurou a prisão de Nilsen para a continuidade das investigações.
Nilsen permaneceu recluso na prisão de Brixton, distrito de Londres, até a data de seu julgamento. Nesse intervalo, as autoridades policiais encontraram mais de mil fragmentos de ossos no jardim que lhe pertenceu.
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A polícia encontrou inúmeros fragmentos de ossos humanos no jardim
A confissão (antes e durante a delegacia), a descrição detalhada dos crimes (nas mais de 30 horas de depoimento) e as provas materiais encontradas (os sacos de corpos no armário e os ossos no jardim) foram destacadas no relatório final do inquérito. A acusação foi então formalizada, imputando a Dennis Nilsen a prática de seis homicídios e duas tentativas de homicídio. Ao escocês só restava agora aguardar o julgamento pelo tribunal do júri.
O JULGAMENTO 
O julgamento iniciou em 24 de outubro de 1983, com uma intensa cobertura televisiva. Dennis Nilsen ficou assustado com a reação da mídia aos seus crimes. Seu desejo era apenas ser visto como um homem comum, pois assim se considerava. A Acusação, representada pelo Promotor Alan Green, debruçou suas forças sobre as declarações fornecidas por Nilsen em sede policial, sustentando que ele sabia exatamente o que estava fazendo, e que não havia qualquer indício de doença mental. Green arrolou três vítimas que escaparam dos ataques: Carl Stotter, Douglas Stewart e Paul Nobbs. Os depoimentos causaram graves danos à tese defensiva.
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O necrófilo escocês sendo conduzido ao julgamento
Diante do cenário claramente prejudicial, o procurador de Nilsen, Ralph Haeems, tentou diminuir a credibilidade dos depoimentos, alegando que as testemunhas não souberam explicar detalhes fundamentais do caso, e que Stewart, particularmente, tinha vendido a história para a mídia. Após as considerações sobre as testemunhas, a Defesa enfatizou aos jurados que Nilsen era doente mental e merecia ser absolvido dos crimes imputados.
Para comprovar a tese defensiva, o advogado Haeems convocou três psiquiatras para depor em juízo. O primeiro deles, James MacKeith, referiu que Dennis Nilsen sofria de uma desordem de personalidade (sem indicar o nome). Já o segundo, Patrick Gallwey, diagnosticou-o como fronteiriço e esquizofrênico.
Apesar da contradição na nomenclatura utilizada, até aí tudo parecia estar bem à Defesa. Foi quando a terceira testemunha, Paulo Bowden, declarou não ter encontrado as evidências indicadas pelos psiquiatras anteriores, bem como que Nilsen era extremamente manipulador. O estrago à tese defensiva estava consolidado.
O julgamento encerrou-se em 3 de novembro de 1983. Os jurados retiraram-se para decidir e chegaram ao veredicto no dia seguinte. Dennis Nilsen foi considerado culpado de todas as acusações imputadas pela Acusação e sentenciado à prisão perpétua (sem possibilidade de condicional).
A PRISÃO 
Condenado a passar o resto da vida na prisão, Nilsen foi encaminhado à penitenciária de segurança máxima Wormwood Scrubs, em Londres. Nela, recebeu sua própria unidade celular, onde permanecia boa parte de suas horas diárias, sendo-lhe permitido, durante os banhos de sol, o contato com os demais detentos. Em dezembro de 1983, foi atacado com uma lâmina de barbear por outro detento (Albert Moffatt), sofrendo ferimentos no rosto e no peito. Diante do ataque, teve de ser transferido para outra penitenciária.
Entre os anos 1983 a 2003, o Dennis Nilsen foi transferido diversas vezes, passando pelos presídios ingleses Wakefield (West Yorkshire), Parkhurst (Isle of Wight), Whitemoor (Cambridgeshire). Por fim, foi encaminhado à penitenciária de segurança máxima Full Sutton, em East Yorkshire (Inglaterra), onde atualmente cumpre sua pena.
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Nilsen em um de seus últimos registros fotográficos
Aos 70 anos, e sem perspectivas para sair da prisão, Dennis Nilsen ocupa-se escrevendo suas ideias, pensamentos e memórias. Recentemente formalizou um pedido para publicar sua autobiografia, mas autoridades britânicas vedaram a iniciativa. Apesar da recusa, Nilsen revela que a obra fornecerá relatos e informações inéditas. A expectativa do escocês é que a autobiografia venha a público após sua morte.

Apontamentos sobre o método da Criminologia Crítica

Apontamentos sobre o método da Criminologia Crítica

A Criminologia Crítica é uma concepção teórica de matriz materialista que pretende explicar, a partir das bases estruturais econômicas e sociais, o processo de criminalização e o sistema de justiça criminal, para assinalar a relação entre punição e modo de produção capitalista (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 20), sociedade essa marcada pelo imperativo da valorização do valor.
Condição necessário para alcançar esta hipótese, Evgeny Bronislavovich Pachukanis é quem, a partir do legado da obra de maturidade de Karl Marx – O Capital, identifica a forma jurídica a uma relação social específica, isso é, a relação de troca de mercadorias.
Ainda, o jurista russo identifica o direito penal como atrelado ao modo de produção do capital, porquanto, e fazendo uma conclusão apressada por imperativo da brevidade, a subsunção real do trabalho ao capital e a consolidação do trabalho abstrato, é o que determina e quantifica as sanções (KASHIURA JR; NAVES, 2013, p. 214).
Segundo ele, “a privação de liberdade – continua o jurista – com uma duração determinada através da sentença é a forma especifica pela qual o direito penal moderno, ou seja, burguês-capitalista, concretiza o princípio da reparação equivalente” (PACHUKANIS, 1988, p. 130), porquanto, de acordo com SPITZER, trata-se de “um mecanismo para lidar com as contradições e alcançar os objetivos de desenvolvimento capitalista” (1975, p. 642).
Partindo da concepção de que a análise da criminalização necessita da compreensão da formação social e econômica (BATISTA, 2011, p. 19), a Criminologia Crítica promove uma revolução com o método dialético materialista: do autor às condições sociais e estruturais.
Portanto, o objeto de estudo não é mais a criminalidade e, sim, a criminalização, abandonando o modelo etiológico-determinista da Criminologia Etiológica ou Tradicional, para refletir o controle social e suas consequências, o que permite desenvolver a concepção de seletividade extremada do direito penal (PAVARINI, 2002, p. 146 e 151) com base na posição de classe do autor, pertencimento étnico e territorial (WACQUANT, 2014, p. 156).
A matriz teórica da Criminologia Crítica, que permite dizer que a cada modo de produção corresponde um modo de punição, decorre da leitura marxista do fenômeno jurídico desenvolvida por Pachukanis com suporte nos apontamentos de Marx, que permite desvelar tanto a especificidade do objeto de estudo quanto o que existe por trás dele, isso é, o “paradigma marxista [que] proporciona uma abordagem […] proveitosa para o estudo do crime e do direito penal” (CHAMBLISS, 1975, p. 168).

REFERÊNCIAS
BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia. – Rio de Janeiro: Revan, 2011.
CHAMBLISS, William J. Toward a Political Economy of Crime. In: Theory and Society, Vol. 2, No. 2 (Summer, 1975), p. 149-170.
KASHIURA JR, Celso Naoto; NAVES, Marcio Bilharinho. Pachukanis e a Teoria Geral do Direito e o Marxismo. In: FREITAS, Lorena; FEITOSA, Enoque (Org.). Marxismo, Realismo e Direito Humanos. João Pessoa: Editora UFPB, 2012. p. 205-225.
MASTRODI NETO, Josué; FURQUIM, Gabriel Martins. Pachukanis e o abolicionismo penal de Hulsman e Christie. In: Revista Direito e Práxis, v. 5, n. 9, 2014, p. 150‐175.
PACHUKANIS, Evgeny Bronislavovitch. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988.
PAVARINI, Massimo. Punir os inimigos: criminalidade, exclusão e insegurança. Curitiba: LedZe Editora, 2012
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. Ed. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia (ICC), 2004.
SPITZER, Steven. Toward a Marxian Theory of Deviance. In: Social Problems, Vol. 22, nº 5 (Jun., 1975), pp. 638-651.
WACQUANT, Löic. Marginalidade, etnicidade e penalidade na cidade neoliberal: uma cartografia analítica, p. 156. Tempo Social, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 139-164, dec. 2014.

De bilionário a foragido: Eike Batista e os novos rumos da política criminal brasileira

De bilionário a foragido: Eike Batista e os novos rumos da política criminal brasileira

Eu sou como um compositor que faz uma música. As minhas notas, por acaso, são dinheiro”, afirmou o então bilionário Eike Batista, no ano de 2012. Na ocasião, o atual foragido da justiça estimava alcançar o posto de homem mais rico do mundo em 2016. Seus planos não deram certo.
Pior. Foi decretada a sua prisão preventiva, ontem, por suposta participação nos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, no âmbito da “Operação Eficiência”, derivada da Operação “Lava Jato”.
Mas o que a derrocada dos planos de Eike Batista e o decreto prisional em seu desfavor pode nos indicar sobre a atual política criminal brasileira? Vejamos.
É fato que a maior parte da população carcerária, conforme levantamento realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional, é composta por presos vinculados ao tráfico ilícito de entorpecentes e crimes contra a pessoa. Dos mais de 600 mil presos, menos de 0,5% possui ensino superior completo.
Essa é a realidade histórica brasileira. Prende-se muito. E sempre os mesmos.
Todavia, os acontecimentos recentes no âmbito da criminalidade econômico-financeira têm demonstrado que pessoas antes intocáveis – políticos, empresários, banqueiros – também podem ser levadas ao ergástulo.
Quais são os possíveis fatores para essa ampliação de foco do sistema punitivo?
Em primeiro lugar, pode-se levar em consideração a existência de um movimento da sociedade civil no sentido de demonstrar maior insatisfação social e menor tolerância com a corrupção. De fato, o discurso de “rouba, mas faz”, não agrada mais os eleitores, que cobram, além de eficiência na gestão da máquina pública, maior lisura, probidade e respeito ao erário público.
Em prosseguimento, essa tendência de “combate” à corrupção não se restringe aos sistemas informais de controle, transbordando essa esfera e atingindo, também, as instituições formais, tal como o Poder Legislativo, Ministério Público, policias e Poder Judiciário.
Todas estas instituições têm dirigido esforços para tentar estabelecer maior controle da corrupção e dos crimes de cunho econômico-financeiro.
Exemplificativamente, vale mencionar que o Poder Legislativo editou, em  2013, a Lei nº 12.846/2013, a qual se tornou conhecida como a Lei Anticorrupção. Ainda, o Ministério Público e as policiais possuem setores especializados no âmbito do combate à corrupção.
O Poder Judiciário, por sua vez, não fica alheio a essa perspectiva, tendo seus órgãos influenciados por esse movimento diretivo. Exemplo disso é a própria decisão que decretou a prisão preventiva de Eike Batista, quando consigna que:
reconheço a gravidade dos crimes cometidos com violência ou ameaça à pessoa, inclusive pela necessidade da imediata cessação delitiva. Mas os casos que envolvem corrupção, de igual forma, têm enorme potencial para atingir, com severidade, um número infinitamente maior de pessoas.Basta considerar que os recursos públicos que são desviados por práticas corruptas deixam de ser utilizados em serviços públicos essenciais, como saúde e segurança públicas”.
Assim, essa conjuntura político-social tem apresentado novos rumos a nossa política criminal, a qual, embora não conflagre ruptura com a clássica seletividade do sistema penal – os clientes favoritos do sistema penal permanecem os mesmos – procura ampliar o foco punitivo para alcançar também os criminosos de white collor.
O afã punitivo existente, contudo, deve ser moderado e dentro dos limites legais, havendo a necessidade de que se combatam eventuais ilegalidades e excessos, sempre com zelo aos Direitos e Garantias Fundamentais.
Diante da intolerância crescente à corrupção, corre-se o risco de a irracionalidade estabelecer de novos inimigos públicos, medida que afronta a razoabilidade e não pode ser adotada como forma de política criminal.
De qualquer forma, o fenômeno de punição dos poderosos é recente e ainda não há como saber se é uma tendência duradoura ou apenas uma nuvem passageira. Por derradeiro, o que a frustração do sonho de Eike Batista (tornar-se o homem mais rico do mundo) e a decretação de sua prisão preventiva demonstram, no âmbito político criminal, é que até mesmo para os mais favorecidos existem limites, cujo rompimento pode ensejar forte reação estatal.