A Psicologia Analítica engloba todo o arcabouço teórico criado por Carl Gustav Jung,
um trabalho denso e essencial para a compreensão da mente humana.
Muitos dos temas desenvolvidos por Jung brotaram de suas próprias
experiências pessoais. O psiquiatra suíço vivenciou constantemente
sonhos marcantes e a visão de imagens mitológicas e espirituais,
passando então a nutrir um grande interesse por mitos, sonhos e
religiões, do ponto de vista psicológico. Ele também experimentou a
ocorrência de manifestações parapsicológicas, o que suscitava em sua
inteligência questionamentos cada vez mais freqüentes.
Carl Gustav Jung, psiquiatra suíço, nasceu no dia 26 de julho de
1875, na cidade de Kresswil, na Basiléia. Sua família era muito
religiosa, o pai e outros familiares eram pastores da Igreja Luterana, o
que justifica o interesse precoce de Jung pela filosofia e pelo
espiritualismo. Alguns trabalhos seus, posteriormente, desenvolverão a
questão da religião e sua contribuição para o amadurecimento psicológico
dos indivíduos, bem como dos povos e civilizações. Jung buscou
inspiração para o desenvolvimento de seu pensamento nas esferas da Alquimia,
da Mitologia, nos povos ancestrais da Ásia, África e nos indígenas da
tribo dos Pueblos, dos Estados Unidos. Também foi muito influenciado
pela filosofia e pela religião orientais, principalmente a indiana, e
pelo I Ching.
Segundo Jung, o homem deveria ser analisado em sua integridade, na
sua vida em comunidade, nunca isolado do contexto sócio-cultural e
universal. Os conceitos por ele criados foram batizados com expressões
imbuídas de um simbolismo profundo, que por si só já definem seu valor
temático. O Inconsciente Coletivo, por exemplo, diferencia-se já no
próprio nome do universo desvendado por Freud - visto como um depósito
mnemônico e de pulsões reprimidas -, significando um sistema herdado por
cada geração, dinâmico e pulsante, incessantemente ativo.
O inconsciente
junguiano não pode ser meramente descrito como um conjunto de memórias
legadas pelos ancestrais, mas sim de tendências inatas para a disposição
da psique. Ou seja, este oceano da mente humana já existe ‘a priori’ –
antes de tudo, no início, uma expressão tipicamente kantiana
-, o homem é concebido já com o inconsciente, que como um arquivo
perpetuado ao longo do tempo traz em si, potencialmente, toda produção
mental legada pelos ancestrais. Assim, pode-se afirmar que ele é
anterior à consciência,
um pequeno ponto na vastidão do universo da inconsciência. Mas o
inconsciente não apenas recebe conteúdos elaborados em tempos distantes,
ele também produz seus próprios temas, rearranja os que herdou e
trabalha em conjunto com o consciente. Nesse sentido, Jung divide o
Inconsciente em Pessoal e Coletivo.
O Inconsciente Pessoal ou Individual quase se confunde com o espaço
da consciência, pois suas fronteiras são bem tênues, ele é um estrato
temático mais superficial, semelhante ao de Freud, porque contém
elementos que por algum motivo foram ali reprimidos. Nele também se
encontram percepções que não foram percebidas pela consciência e
memórias que esta esfera não deseja para si o tempo todo. Aqui estão
igualmente os complexos – tema desenvolvido por Jung e depois adaptado
por Freud –, elementos que, desconectados da consciência, refugiam-se no
inconsciente, mas continuam a exercer influência sobre o comportamento
humano, tanto negativa quanto positiva, ao incentivar o exercício do
potencial criativo do ser. Jung lida com os complexos por meio do exame
das personas – papéis sociais desempenhados pelos indivíduos, as famosas
máscaras que todos desenvolvem no processo de interação social.
O Inconsciente Coletivo – revelação essencial de Jung – é a esfera
mais íntima e recôndita da psique humana. Nela se encontram vestígios
das ações naturais da mente, impressas como representações potenciais,
ou seja, automatismos desenvolvidos pela psique ao longo de milênios.
Estes traços são compartilhados por toda a humanidade e estão ao alcance
de cada um, preparados para se tornarem concretos através da ação
humana. Neste estrato psíquico todos são iguais, diferenciando-se depois
por meio da experiência pessoal, na qual o homem realiza escolhas e
assim atualiza uma ou outra tendência inata, o que se processa no nível
do Inconsciente Pessoal.
Os arquétipos, para Jung, são justamente os automatismos
desenvolvidos pela psique, estes traços do Inconsciente Coletivo. Cada
um deles corresponde a uma circunstância apresentada pela vida,
recepcionada pela mente como um desafio a ser conquistado e transformado
em conhecimento, através da repetição exaustiva da experiência, então
automatizada em nossa organização psíquica, no início mais como
disposição formal do que como conteúdo, simbolizando tão somente
possibilidades, dentre as quais o homem posteriormente escolherá a que
se tornará real. Eles se traduzem em imagens primitivas, estreitamente
relacionadas à criação da nossa espécie, são embriões das
características humanas, latentes em cada ser. Segundo Jung, é em volta
do centro de um arquétipo que se agrupam os complexos que têm em comum
uma carga emocional semelhante.
A teoria junguiana é muito vasta, e aqui estão delineados os
conceitos principais. Mas há outros igualmente importantes, como o
processo de Individuação – processo através do qual o ser evolui de um
estado de identificação profunda com o ambiente à sua volta, para outro
de sintonia com o Si-mesmo, o centro de sua personalidade individual, de
onde brota toda a energia inata da mente -, objetivo máximo da psique
humana; Eu ou ego – centro da Consciência, simboliza os impulsos
inferiores da personalidade; Sombra – a parte mais sombria do homem,
legada, segundo Jung, das formas mais primitivas de vida; Sigízia, ou
arquétipo da alteridade – diz respeito à oposição entre masculino e
feminino na mente, constituindo uma elaboração voluntária do
inconsciente -, o ‘animus’ corresponde à face masculina da mulher,
enquanto a ‘anima’ refere-se ao lado feminino do homem; os Tipos
Psicológicos, ou seja, a Personalidade.
Carl Gustav Jung (1875-1961) é o pai da Psicologia Analítica.
Além de psiquiatra e psicoterapeuta, foi estudioso das artes,
mitologias e religiões, sendo considerado o primeiro psicólogo da New
Age (Nova Era) e um dos maiores intelectuais do século XX.
Carl Gustav Jung.
Infância
Jung nasceu em Kesswil, na Suíça, no dia 26 de junho de 1875. Com
quatro anos, mudou-se para Basiléia, grande centro cultural. Fora filho
único até os nove anos, tendo a infância marcada por um estilo de vida
rústico e solitário, mas também por sentimentos de conexão com a
natureza, que perduraram por toda sua existência.
Formação
Devido ao fato de seu pai ser pastor protestante, a carreira
eclesiástica sempre fora uma possibilidade de futuro. Entretanto sua
decisão pautou-se em estudar Medicina na Universidade da Basiléia, onde
interessou-se pelas questões da mente humana.
Concluiu o curso em 1900, quando passou a trabalhar na Clínica
Bugholzi, em Zurique, como assistente de Eugen Bleuer, psiquiatra que
primeiro descreveu a esquizofrenia.
Freud
Interessado na Teoria do Inconsciente, Jung entrou em contato com Sigmund Freud,
pai da Psicanálise, iniciando uma longa troca de correspondências.
Encontraram-se pela primeira vez em 17 de fevereiro de 1907, em um
encontro que perdurou por treze horas ininterruptas, dando início a uma
profunda amizade.
Eventos marcantes para a dupla foram a viagem para palestrarem nos
Estados Unidos, em 1909, e a fundação da Associação Psicanalítica
Internacional no ano seguinte, da qual Jung foi eleito presidente –
quando ademais, foi chamado por Freud de “Príncipe da Psicanálise”.
A partir de 1912, tornaram-se insuportáveis as divergências teóricas
entre os analistas. Além de Freud não admitir o interesse do colega por
fenômenos espirituais, Jung, monista, defendia que a libido (energia
sexual) deveria ser considerada a totalidade da energia psíquica dos
indivíduos. F. era dualista: afirmava a existência de duas pulsões, a
sexual, com fonte na libido, e a de autoconservação.
A discordância culminou em uma dolorosa separação dos amigos, e consequente afastamento de Jung do movimento psicanalítico.
J. descreveu seu luto como intenso estado de desorientação e agudo período de incerteza.
Psicologia Analítica
Após o rompimento, Jung, em um momento de introversão e atenção aos próprios sonhos,
aprofundou seus estudos de leituras orientais e conhecimentos
ocultistas e alquímicos. Assim, desenvolveu as bases de sua escola, a
Psicologia Analítica.
Em sua teoria, é fundamental para o desenvolvimento humano o processo
de individuação - de autorrealização e alcance da individualidade.
Outros conceitos independentes por ele descritos são o de arquétipos, tipos psicológicos, complexos, símbolos, persona, sombra e sincronicidade.
Além da questão sobre a libido, outra divergência com a psicanálise freudiana são as formulações a respeito do inconsciente coletivo e individual – para Freud, o inconsciente é uma instância transubjetiva regida por leis próprias.
Morte
Dia 06 de junho de 1961, com 85 anos, Jung faleceu tranquilamente, cercado por parentes e pessoas queridas.
Foi enterrado no cemitério de Küsnatch. No túmulo de sua família, por
ele desenhado, está gravada a inscrição “Vocatus atque non vocatus deus
aderit” (Invocado ou não, o deus terá estado presente).
Referências bibliográficas:
JUNG, C. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008
DUNNE, C. Carl Jung – Curador Ferido de Almas. São Paulo: Alaúde Editorial, 2012
JUNG, C. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996b.
JUNG, C. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008
LAPLANCHE, J; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Antropologia é um ramo das ciências sociais que estuda o ser humano e a sua origem de maneira abrangente. Por meio de estudos sobre as características físicas, a cultura, a linguagem
e as construções do ser humano, o antropólogo vai buscar determinar,
com base em grupos sociais específicos, como se formaram os seres
humanos a ponto de tornarem-se o que são em suas comunidades.
A palavra antropologia tem origem no idioma grego, o radical “antropo” vem de antrophos (homem)e “logia” vem de logos (razão ou, em sentido específico, estudo). A antropologia é, ao traduzirmos a palavra ao pé da letra, o estudo do ser humano em seu aspecto mais amplo.
A antropologia busca compreender como o ser humano formou-se e tornou-se o que ele é. Portanto, o antropólogo busca as raízes do ser humano estabelecendo (como a história) um estudo do passado para compreender quais foram essas origens. Isso é feito de maneira física ou biológica, social, cultural e até linguística, dependendo de qual vertente da antropologia estudada e de qual método antropológico utilizado.
O que a antropologia estuda?
Os estudos antropológicos buscam compreender como os povos viveram, como os seres humanos formaram-se e como a cultura humana desenvolveu-se.
Dessa maneira, o antropólogo busca o trabalho de imersão numa
determinada sociedade, a fim de observar e traçar teorias sobre a
constituição cultural ou física dos indivíduos daquela sociedade.
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Tipos de antropologia
→ Concepção clássica de antropologia estabelecida a partir dos estudos europeus do século XIX e XX
Antropologia biológica ou física: é um estudo da formação do ser humano em seus aspectos físicos. Os antropólogos dessa vertente buscam, junto à biologia,
determinar quais fatores levaram os seres humanos a desenvolver
determinados atributos físicos em sociedades específicas. Dessa maneira,
se um antropólogo está estudando uma aldeia indígena que tem
características próprias, ele vai procurar saber quais fatores
geográficos e biológicos levaram aquela tribo a desenvolver as suas
características peculiares.
Antropologia cultural: é
uma vertente mais ampla e busca compreender como se formaram as
culturas dos diferentes grupos humanos, tomando cultura como um conjunto
de hábitos, costumes, valores, religião, arte, culinária etc.
→ Concepção estadunidense de antropologia, subdividida em quatro campos
Antropologia biológica ou física: consiste no mesmo estudo de antropologia biológica ou física da divisão europeia clássica.
Antropologia cultural: consiste no mesmo estudo de antropologia cultural da divisão europeia clássica.
Antropologia linguística: com base nos estudos da linguagem
de uma sociedade, determina as origens daquele povo. Um importante
antropólogo que deu os impulsos para o reconhecimento desse ramo da
antropologia foi o alemão, radicado nos Estados Unidos, Franz Boas.
No fim da primeira metade do século XX, o antropólogo belga Claude
Lévi-Strauss desenvolveu uma teoria que ficou conhecida como
antropologia estruturalista, a qual se baseia na linguagem para
determinar as estruturas similares das pessoas dentro de uma cultura.
Apesar da importância de Boas, é com Lévi-Strauss que a antropologia
passa a identificar na linguagem um objeto central de estudo.
Arqueologia:
busca compreender a formação do ser humano com base nos objetos
materiais deixados por ele. Nesse sentido, o arqueólogo busca por armas,
utensílios culinários, vestimentas, escritos e pinturas e utensílios em
geral que possam expressar como os povos antigos viviam, o que permite
elaborar teorias sobre o modo de vida e cultura dos seres humanos no
passado.
A antropologia surgiu como uma ferramenta da sociologia para compreender as diferenças étnicas dos seres humanos. No século XIX, nos estudos de história e geografia contemporâneos, a sociologia e a antropologia surgiram com um objetivo bem específico: servir como meios de auxílio para o capitalismo industrial.
A expansão industrial que a Europa viveu no século XIX colocou uma nova necessidade para a economia europeia: a busca de recursos naturais
que serviriam de matéria-prima para a produção. Para satisfazer tal
busca, as potências europeias, em especial a Inglaterra, a França e a
Alemanha, iniciaram um novo processo de colonização dos países não desenvolvidos situados na África, na Oceania e na Ásia e que possuíam recursos naturais em abundância.
No século XV, durante o colonialismo
europeu liderado, principalmente, por Portugal, Espanha e Inglaterra, as
justificativas para a dominação das colônias e dos povos que lá viviam e a justificativa da escravidão davam-se pela religião: os europeus nutriam a crença de que eles deveriam colonizar os territórios pagãos e levar o cristianismo a esses lugares, pois isso seria o caminho para a salvação daqueles povos.
Além disso, os europeus acreditavam que havia uma predestinação divina
que os permitia dominar povos que, no seu ponto de vista, eram
atrasados. Muitos navegantes que participaram desse primeiro movimento
de colonização escreveram relatos considerados documentos antropológicos de um período pré-científico, ou seja, de quando a antropologia ainda não era uma ciência bem construída.
No século XIX, a sociedade intelectual europeia não mais acreditava cegamente na religião,
pois a ciência tinha tomado nela um lugar de destaque. Nesse momento de
intensa colonização, para a obtenção de recursos para a indústria, os
europeus tiveram que justificar as suas ações de maneira científica.
Para tanto, surge um primeiro movimento da antropologia como parte dos estudos de sociologia que visava analisar e classificar os seres humanos de etnias diferentes.
Os primeiros estudos antropológicos eram extremamente etnocêntricos,
ou seja, analisavam as culturas diferentes com base no ponto de vista
de uma pessoa imersa na cultura europeia. Com isso, os europeus visavam
mostrar que sua cultura e seu desenvolvimento eram superiores aos das
demais sociedades, colocando a colonização como um movimento necessário
de civilização para aquelas sociedades que, nesse ponto de vista, eram
atrasadas.
Assim, a antropologia surge primeiro como uma parte da sociologia
e, depois, torna-se uma ciência humana autônoma, relacionada fortemente
com a sociologia, mas com suas especificidades. Podemos dizer que a
sociologia estuda a sociedade e analisa-a no tempo presente. Já a
antropologia estuda o ser humano e analisa-o no passado para entender as
suas formações mais primitivas.
A antropologia evolucionista foi o primeiro movimento de estudos antropológicos
liderado pelo antropólogo e biólogo inglês Edward Burnett Tylor e pelo
geógrafo e biólogo Herbert Spencer. Para esses primeiros antropólogos, a
teoria da evolução, de Charles Darwin (em alta na sociedade intelectual europeia do século XIX), poderia ser aplicada à formação das sociedades.
Dessa maneira, assim como os animais
desenvolveram-se biologicamente, sendo que alguns evoluíram e ficaram
mais aptos ao meio, a cultura também tinha evoluído porque alguns seres
humanos, supostamente, teriam evoluído mais. Surge aí a noção etnocêntrica de raça, que alegava que algumas “raças humanas” eram superiores a outras.
Também surgem as noções de cultura superior e cultura inferior,
sendo que o padrão de medida de tais era o da própria cultura europeia.
Com isso, não causou espanto a ideia de que a cultura europeia
desenvolvida pelo homem branco era superior e que as culturas
desenvolvidas por povos de outras etnias eram inferiores. Para os
evolucionistas ou darwinistas sociais,
o fato de haver diferentes níveis hierárquicos de desenvolvimento
cultural evidenciava a justificação da dominação dos povos “inferiores”
pelos povos “superiores”.
Meu texto de junho para este Estado da Arte
girava ao redor de duas questões intimamente relacionadas, a saber,
frente ao avanço das ciências específicas que têm o ser humano como
objeto, seja direta ou indiretamente, há ainda alguma possibilidade de
contribuição genuína ou distintamente filosófica ao tratamento do
problema “O que é o homem?”. Em caso afirmativo, qual seria tal
contribuição? Que forma ela teria? É a esse espectro de questões que os
títulos dos artigos – tanto daquele como deste – fazem referência; ainda
há espaço para alguma intromissão filosófica em um problema que parece
ser cada vez menos suscetível de um tratamento “especulativo”?
O parágrafo acima – bem como uma parte considerável do meu texto
anterior – coloca uma série de questões prévias que não é possível
perseguir agora. Talvez a mais importante delas seja a meta-questão “o
que significa um tratamento filosófico de um problema?”. Isso nos
levaria a uma das mais interessantes questões sobre a qual pretendo
tratar em textos futuros, a saber, a do assim chamado “excepcionalismo”
da filosofia, ou seja, se a filosofia, como discurso articulado cuja
pretensão é descrever (e/ou prescrever) a realidade possuiria algo de
excepcional, único, que outras descrições sobre a realidade não
possuiriam. O problema não é simples e deve ficar para um próximo texto;
por ora, basta dizer que mesmo alguns defensores da ideia de que a
filosofia possua sim um método específico, simultaneamente negam tal
excepcionalismo (como Timothy Williamson, por exemplo). No entanto, se o
objetivo aqui é perseguir a possibilidade e o caminho de uma abordagem
filosófica sobre o ser humano, é preciso apontar ao menos alguns
aspectos do que entendo aqui por tal abordagem. Para isso, é preciso uma
pequena digressão.
Se é verdade que, como apresentei no texto passado, as ciências naturais conheceram um boom
inaudito nos últimos dois séculos, não é menos verdade que a própria
filosofia passou por profundas modificações. Para o que me interessa
aqui, a mais saliente delas talvez tenha sido a paulatina aproximação
com aquelas ciências naturais de uma forma porventura sem precedentes em
sua história. É fato que a filosofia historicamente foi o tronco comum a
partir do qual emergiram as ciências específicas tal como compreendidas
hoje e que, para além disso, a relação para com tais ciências sempre
esteve no escopo dos filósofos. De Aristóteles a Kant, passando por
Descartes, Hume, Kant e uma parte considerável de pensadores dos séculos
XIX e XX, salvo poucas exceções, houve sempre franca abertura para a
recepção dos conhecimentos provenientes da física, biologia, química
etc., bem como para a reflexão sobre eles. No entanto, nas últimas
décadas, perspectivas e visões sobre o trabalho filosófico como devendo
não apenas recepcionar os conhecimentos gerados pelas hard sciences,
mas como tendo de buscar produzi-los segundo os mesmos métodos,
culminou em concepções tais como a articulada por Joshua Knolbe e Shaun
Nichols em seu manifesto de uma filosofia experimental. Ali, Knolbe e
Nichols propugnam que a filosofia deveria voltar a uma concepção de si
própria que não se preocupava em distinguir-se da psicologia, da
história ou da ciência política, bem como não apenas refletir sobre os
ganhos das diversas ciências, mas deveria ela mesma conduzir seus
próprios experimentos.
Não se trata, por ora, de investigar o movimento descrito acima ou
se, de fato, houve uma tal fase áurea na qual não teria sido importante
distinguir a filosofia de outras áreas. O objetivo com a breve
reconstrução acima – certamente mais próxima de um esboço – é apontar
que, sob um certo ponto de vista e para alguns filósofos contemporâneos,
as duas questões que trato aqui simplesmente não se colocam ou, ainda,
colocam-se com ressalvas; o que uma aproximação não-empírica sobre o
homem traria como vantagem? Seriam seus “resultados” confiáveis?
Contudo, o que pretendo aqui é, precisamente, apontar para a
relevância e para a importância de uma espécie de reflexão filosófica
“igualmente” tradicional, sobretudo em relação ao problema
antropológico. Dito diretamente, o que tenho em mente ao apresentar o
problema da validade e do estatuto de uma antropologia filosófica é o
problema da relevância de um discurso intuitivo sobre o ser
humano. E aqui outras considerações (meta) filosóficas sobre o método
são necessárias. Uma vez mais, pretendo voltar a esse tema
posteriormente. Por ora, bastam algumas pequenas clarificações. Por intuição em
filosofia quero me referir a proposições que, para usar as palavras de
van Inwagen, parecem nos mover em direção a aceitarmos algo como
evidente, verdadeiro, correto etc. Há uma série de debates, encampados
por filósofos como David Lewis, Ernest Sosa, Hilary Putnam, Joel Pust,
Timothy Williamson, Daniel Nolan e outros, sobre o que são, mais
precisamente, intuições e qual sua validade epistêmica ou como
justificativa de crenças (ou mesmo da validade de uma armchair philosophy).
Para o meu objetivo aqui, é suficiente ter em mente a formulação de van
Inwagen e alguns exemplos mais simples tais como: “É impossível um
triângulo não ter três lados”, “se ‘p’ é verdadeiro, então ‘não p’ é
falso”[1].
Assim, agora podemos recolocar as nossas questões em uma formulação
mais precisa: é possível um discurso filosófico intuitivo sobre o
problema antropológico que seja ainda hoje, sob algum aspecto,
relevante? Minha resposta é afirmativa e pretendo utilizar o resto desse
artigo para apontar um exemplo de tal construção e, por fim e mais
importante, um caminho particularmente significativo e profícuo aberto
por esse tipo de abordagem.
O filósofo alemão Helmuth Plessner (1892-1985), um dos principais
propositores da antropologia filosófica no início do século passado, tem
como centro de suas reflexões duas noções ou, melhor, intuições. Tais
noções ou conceitos parecem ter uma notável capacidade de interação
tanto com explicações das hard sciences quanto com abordagens
sociológicas e partem igualmente de uma cogente intuição, a saber, que o
homem dá mostras de possuir uma relação peculiar com o corpo.
Diferentemente de Heidegger, para quem a perspectiva central da
compreensão dos fenômenos humanos é sua relação com o tempo, Plessner
assume um ponto de partida espacial. Desse modo, uma primeira intuição
fundamental quanto ao fenômeno humano é sua relação – ou suas relações –
com aquilo que ele chama de “posicionalidade” (Positionalität). Os corpos – animados ou inanimados – apresentam limites ou fronteiras (Grenze),
pensados, a princípio, espacialmente mesmo. Entretanto, embora tais
limites físicos estejam presentes em todos os objetos e entidades, eles
parecem possuir um papel distinto para o ser humano. Diferentemente do
que parece ocorrer às plantas – cujas fronteiras cumprem um papel
estritamente fisiológico – e aos outros organismos animais – os quais
apresentam um “centro” que se relaciona com aquilo que intercepta seus
limites –, no homem esse “centro” que marca um “dentro” e um “fora” dos
limites dá mostras que pode ir ainda mais longe. Como aponta Plessner, o
homem não apenas coloca-se ora do ponto de vista “interior”, ora do
ponto de vista “exterior” aos limites físicos de seu corpo, em uma
perspectiva necessariamente dupla, mas tem a capacidade de olhar sua
própria posicionalidade, seu próprio centro, a partir de um “fora” que
não se identifica com o exterior físico; é o que Plessner chama de
“excentricidade” ou “posicionalidade excêntrica” (exzentrische Positionalität). Em outras palavras, o homem é um animal que simultaneamente “é um corpo”, “tem um corpo” e que “está fora de um corpo”.
A possibilidade de uma “centralidade fora de centro” constitui para
Plessner a condição para o mundo da cultura, abrindo-se então o espaço
para a sua segunda intuição básica, derivada daquela sobre a
excentricidade, que é a de que somos animais “artificiais por natureza”.
Se a excentricidade é condição para a abertura de todo um mundo, isso
ocorre porque tal exigência é também falta de identificação completa com
“ser um corpo” ou “ter um corpo”. Por isso o homem naturalmente se
inclina à fabricação de universos (simbólicos, diria Cassirer) de
substituição e complementação. E apresenta-se, enfim, como um animal
composto; se não por duas naturezas, por duas perspectivas.
Aqui poderíamos, por exemplo, deixar as intuições fundamentais de
Plessner e avançar por outros caminhos. O homem é um animal que não se
satisfaz com a natureza tal como ela é dada. Mas mais do que isso, o
homem é o único animal para o qual há, de fato, algo como “natureza”.
Com isso quero dizer que somente o homem – ao menos no presente e no
planeta Terra – (1) contempla entidades naturais em relações umas com as
outras e, num nível superior, segundo leis (da física, da química etc.
Que elas possam ser expressas matematicamente é, aqui, um plus) e, principalmente, (2) faz da natureza um todo único passível de ser tomado como objeto intencional de diversos tipos: a ser explicado, admirado, modificado
etc., bem como (3) entende-se a si mesmo e a seus propósitos a partir
dos diversos níveis de consciência e relação com (2). Em outras
palavras, algo como “o cosmo” só é objeto para um tipo de animal, o tipo
de animal que nós somos. Da mesma forma, só há vida – como biografia, e não somente como biologia, como afirma Ortega y Gasset – e história no interior dessa perspectiva. O ponto fundamental parece ser que o mundo
existe para nós – como conjunto das propriedades físicas, sociais e
históricas – e há algo como (e estou me referindo ao tipo de perspectiva
descrita por Thomas Nagel em seu clássico What is like to be a bat?) um “como é ser eufrente a esse mundo”. E aqui a noção de self parece ganhar um sentido e uma importância mais determinada.
Neste ponto, até mesmo a questão do excepcionalismo humano frente a
outros animais começa a ser secundária. O mesmo acontece com a questão
sobre a gênese de tais configurações descritas acima. Chego agora ao meu
segundo ponto que só indicarei de forma breve, mas, creio, suficiente.
Por que razão e como tais coisas chegaram a ser tais como são não parece
ser tão urgente quanto a minhaexperiência de tais fenômenos. E parecemos encontrar certa relevância para essa forma de abordar o problema “O que é o homem?”.
Muito antes de Plessner, a intuição de que o homem é, de algum modo,
uma certa composição deficiente, já encontra diversas ocorrências na
filosofia. Para além de Aristóteles e seus epígonos medievais, Blaise
Pascal forneceu uma das melhores formulações: “O homem não é nem anjo
nem besta e a infelicidade exige que quem quer fazer-se de anjo, seja
besta”. No auspicioso século XIX, o filósofo Søren Kierkegaard também
fez eco à mesma intuição ao dizer que o homem é sempre um inter-esse
– um ser intermediário – entre diversos polos (finitude-infinitude,
necessidades e possibilidades etc.). Mesmo depois de Plessner, nosso
conterrâneo Ferreira Gullar, em seu simples e delicioso Acidente na sala experimenta as mesmas questões:
Movo a perna esquerda de mau jeito E a cabeça do fêmur atrita com o osso da bacia Sofro um tranco E me ouço perguntar Aconteceu comigo ou com o meu osso? E outra pergunta Eu sou o meu osso? Ou sou somente a mente que a ele não se junta E outra, se osso não pergunta, quem pergunta? Alguém que não é osso, nem carne, que em mim habita Alguém que nunca ouço A não ser quando no meu corpo um osso com outro osso atrita?
Mais do que as questões especificamente técnicas da filosofia, que
fiz apenas apontar anteriormente, o que emerge das considerações que se
desenrolam a partir de intuições quase fenomenológicas é que tanto o
problema “o que é o homem?” quanto tais intuições transpassam incólumes
as limitações científicas do século IV a. C., as querelas religiosas do
século XVII ou ainda as questões sobre a validade do discurso filosófico
no século XIX. A autoimposição de intuições sobre nossa experiência do
mundo em primeira pessoa não pode senão arrastar-nos para tais reflexões
que, se Sócrates tem razão ao repreender os arroubos de Alcibíades,
devem preceder todas as demais ações e decisões. O lugar e a relevância
de tal aproximação ao problema parecem sempre emergir, ainda que
desordenada e desarticuladamente, no interior do homem que reflete sobre
si, fazendo ressoar de maneira tão intensa e atual as palavras do
príncipe dinamarquês:
Que obra-prima o homem! Tão nobre em
sua razão, tão infindo em faculdades, em forma e movimento quão rápido e
admirável, na ação tão próximo dos anjos, na apreensão tão semelhante a
um deus: a beleza do mundo, o paragão dos animais – mas que é isso para
mim senão a quintessência do pó (Hamlet, Ato II, Cena II).
[1]
Evitei propositalmente o uso de expressões tais como “em virtude de sua
forma lógica” ou, ainda, distinções como analítico/sintético e a priori/a posteriori uma vez que elas ou não explicam exaustivamente o que conta como uma intuição – como no caso da forma lógica ou da distinção a priori/a posteriori – ou abrem problemas mais complexos cujos tratamentos superariam os ganhos deste texto, como a distinção analítico/sintético.
Gabriel Ferreira
Gabriel Ferreira é doutor em
Filosofia e professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e da
Escola de Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.
Em um tempo como o nosso, no qual problemas e divisões de proporções
particularmente épicas se alastram pelo mundo, algo que se impõe como
estando aparentemente ao abrigo de quaisquer críticas é o fato bruto de
que, por debaixo das celeumas e distinções, somos todos animais. Isso
significa dizer, ao menos, que pouco importa se somos “partos, medos
elamitas” ou “habitantes da Frígia e da Panfília”, nossos processos
biológicos são regidos por aquilo que podemos chamar, grosso modo, de leis da natureza.
Como se sabe, isso não constituía grande novidade nem mesmo para os
antigos. Nas obras de Platão e Aristóteles abundam formulações desse
fato que encontra na tese – com poucas diferenças entre as formulações
dos dois, ainda que seja verdade que Aristóteles a tenha levado mais
longe – de que necessariamente compartilhamos potências anímicas mais
fundamentais com os demais seres vivos, sua máxima expressão. No
entanto, se é verdade para um Aristóteles que uma parte incontornável do
que somos é, por sua vez, parte de um conjunto de propriedades que nos
aproxima de ou mesmo nos iguala a determinados seres naturais, é
igualmente verdadeiro que tal parcela não conta toda a história do que
somos. No clássico trecho de seu Peri psyches – Sobre a alma
– (414a 29 – 414b 20), Aristóteles afirma que algumas potências da alma
podem ser encontradas tanto em nós como nas plantas (a nutritiva), bem
como nos outros animais (para além daquela, a perceptiva e a
desiderativa). Mas conclui o excerto afirmando que a faculdade de
raciocinar e o intelecto encontram-se apenas “nos homens e em algum
outro, se houver, de tal qualidade ou mais valioso”.
A importância da proposição implícita no trecho acima não pode ser
superestimada. A afirmação de que mesmo que sejamos parcialmente
condicionados por aquilo que em nós é idêntico ao restante da natureza
encontramos ainda certa especificidade que nos afasta dela embalou
grande parte dos esforços empreendidos na história da filosofia. Ela se
deixa ver, por exemplo, no fato de que tal traço distintivo, sob os
nomes de razão e liberdade, tenha sido compreendido como o aspecto
fundamental do nosso “ser à imagem e semelhança” de Deus ou, ainda, pelo
prisma da Aufklärung, em Kant que, no início de sua Antropologia do ponto de vista pragmático,
estabelece uma divisão de campo, afirmando ser possível elaborar uma
doutrina do ser humano sistematicamente composta a partir do “que a
natureza faz do homem”, mas também, e principalmente, a partir do “que
ele faz de si mesmo, ou pode e deve fazer como ser que age livremente”.
No entanto, embora a ideia de uma dessemelhança do animal humano em
relação aos demais, que não seja meramente de grau, tenha
progressivamente arrefecido sob o peso de críticas e argumentos de
diversas matrizes, impossíveis de perseguir aqui, foi a partir do século
XIX que uma suspeição mais profunda tenha se abatido sobre ela. Com o
avanço inaudito das ciências naturais, mas também da historiografia,
assim como o advento de Darwin e da perspectiva evolucionária, parece
agora fazer pouco sentido ter como horizonte conceitual e paradigmático a
afirmação de uma especificidade humana que serviria de base para pensar
o “mundo humano” da cultura. Veja-se o caso da mutação sofrida pela
psicologia, que durante mais de dois mil anos foi, de Aristóteles a
Hegel, em linhas gerais basicamente a mesma e agora era reformulada
precisamente quanto à determinação de seu objeto, fenômeno epitomizado
na célebre ideia programática de Wilhelm Wundt de estabelecer uma
“psicologia sem alma”, uma psicologia científica que se esforçaria por
afastar-se da especulação e aproximar-se da fisiologia. Abria-se o
espaço epistemológico, que de fato se estabeleceu no curso do século
seguinte, para que até mesmo o que outrora era compreendido como sede do
mais propriamente humano fosse visto agora como podendo ser, isso
também, reconduzido àquela porção de características subsumidas, em
última análise, às mesmas leis gerais da natureza; se nós ainda não
sabemos mais propriamente como explicar todos os fenômenos que parecem
nos caracterizar ou singularizar é apenas porque ainda não estamos em
posse da completa compreensão de todas as leis ou todas as variáveis.
Nada que uma mente laplaceana não dê um jeito.
O esboço de reconstrução histórica que fiz acima não tem o objetivo
de esgotar a história daquelas questões, mas sim fornecer um pano de
fundo para visualizarmos o que Habermas chama, propriamente, de uma
“reação”: o surgimento de uma área híbrida ou limítrofe da filosofia,
tocando simultaneamente a metafísica (specialis), a ética e a
política, a filosofia da cultura e as ciências empíricas, a saber,
aquilo que convencionou-se chamar de antropologia filosófica. A
seguirmos Habermas, em seu artigo “Anthropologie” para o Fischer-Lexicon Philosophie,
a antropologia filosófica configura-se como uma ação reativa da
filosofia frente às ciências empíricas pelo direito a abordar o ser
humano como objeto para além do que dele é investigado por aquelas
ciências. Sob esse ponto de vista, embora já Kant tenha afirmado em sua Lógica
que a questão “O que é o homem?” consigne, por fim, todos os outros
problemas filosóficos, uma vez que nela estão contidos, ao menos em
germe, todas as demais, a antropologia filosófica, como disciplina que
articula aquela mesma questão é fruto do século XX. Nomes mais ou menos
conhecidos como os de Max Scheler, Ernst Cassirer, Helmut Plessner,
Arnold Gehlen e o próprio Habermas compõem um conjunto de filósofos que,
deliberadamente ou não, constituíram aquela “reação”. Não seria errado
incluir ainda, na lista de filósofos do século XX que atacaram o
problema sob uma miríade de perspectivas, Edith Stein, Albert Camus,
Jean-Paul Sartre, Hannah Arendt, Michel Foucault e mesmo Heidegger malgré lui.
No entanto, a história da ciência e da filosofia deste mesmo século
XX aparentemente sepultaram tal reação ou, ao menos, relegaram-na a
segundo ou terceiro plano. O ainda mais vistoso avanço da biologia e da
neurociência naquele século (e neste) parece ter sido lido por uma parte
não desprezível da filosofia como tendo reforçado ainda mais a
expectativa laplaceana-comteana de que o completo entendimento das leis
(da natureza) que esgotariam o explanans da pergunta sobre o
ser humano é apenas uma questão de tempo. Assim, pouco ou nada restaria à
filosofia acrescentar à resposta das ciências. Em outras palavras, a
pergunta implícita na reação dos pensadores supracitados – há ainda
espaço para uma reflexão filosófica sobre o problema “O que é o homem”? –
não poderia receber outra resposta que não a negativa. Para ficarmos em
apenas dois exemplos bastante eloquentes, lembre-se dos experimentos de
Benjamin Libet, que puseram em xeque, do ponto de vista de uma
neuropsicologia, a presunção clássica da posse de um daqueles traços
distintivos, a liberdade, e as propostas explicativas da consciência em
termos estritamente materiais (neurais, quânticos etc.), que têm no mais
recente livro de Daniel Dennett (From bacteria to Bach and back – the evolution of minds, Allen Lane, 2017) sua exposição condensada mais recente. Mesmo o revival
vivido pela antropologia filosófica nas últimas décadas, com nomes como
Axel Honneth ou Peter Sloterdijk, parece não ter sido muito profícuo na
tarefa de (re)justificar uma abordagem (estritamente?) filosófica do
problema.
Por outro lado, não deixa de ser notável que no terreno contemporâneo
da filosofia de matriz analítica, usualmente marcado pela aderência às
ciências empíricas, a presença da discussão de temas como identidade
pessoal e a natureza da experiência do self, ou mesmo o
dissenso sobre as mesmas questões apontadas acima, como certa defesa do
livre-arbítrio (por exemplo, por Peter van Inwagen e Alfred Mele) ou de
certo dualismo na explicação da consciência (penso em David Chalmers e
Thomas Nagel) pareça manter, contra a maior parte dos prognósticos, a
relevância de uma aproximação filosófica a esses problemas. Claro está
que uma mais profunda abordagem dessas questões, mesmo em um artigo para
um blog, não pode se furtar a encarar – ainda que não se possa oferecer
uma resposta definitiva – a pergunta sobre o que significaria, em
termos formais, uma tal “aproximação filosófica” e nem deixar de ao
menos apontar em que ela consistiria materialmente. Mas, em suma,
estaria a nossa perspectiva contemporânea tão longe assim de uma
antropologia filosófica? E, se não, por que, então, evitá-la?
Desenvolver a reflexão sobre o que poderia significar a presença dos
problemas citados mais acima no contexto contemporâneo e ao menos
tangenciar as duas últimas questões indicadas é o que farei no próximo
artigo.
Gabriel Ferreira
Gabriel Ferreira é doutor em
Filosofia e professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e da
Escola de Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.
Em 2019, você provavelmente
ouviu falar, nos noticiários ou outros meios de comunicação, sobre o
“Pacote Anticrime”. É uma Lei elaborada pelo Ministério da Justiça e
Segurança Pública, com a iniciativa do até então Ministro Sérgio Moro.
O
Pacote Anticrime surgiu com o objetivo de atualizar a legislação penal e
processual penal, visando aumentar o êxito no combate aos crimes.
Apesar
da polêmica social e política que girou em torno do Pacote Anticrime e
das diversas alterações que sofreu durante o processo de aprovação pelo
Congresso Nacional, a lei foi sancionada e trouxe impactos relevantes
para a Justiça Criminal. Uma das mudanças foi em relação às regras para
progressão de regime.
Nesse texto,
vamos explicar o que é progressão de regime e te ajudar a entender como
ela funciona no sistema penal brasileiro, principalmente após as
mudanças trazidas pelo Pacote Anticrime. Vamos ficar por dentro desse
assunto?
O que é a progressão de regime?
Antes de mais nada, precisamos saber o que é progressão de regime, certo? Então vamos lá!
A
progressão de regime é um direito da pessoa condenada que cumpre pena
de privação da liberdade. A legislação brasileira entende que a pena
deve ter a finalidade de ressocializar e reeducar o preso, com intuito
de afastar a possibilidade de reincidência criminal, ou seja, que o
preso volte a praticar outros crimes quando for posto em liberdade.
Quando
uma pessoa é condenada, o juiz estabelece além do tempo da pena, o
regime dela, ou seja, de que maneira a pessoa vai cumprir a pena. E, a
progressão de regime é quando o condenado tem a oportunidade de cumprir a
pena de forma menos rigorosa, menos severa. E isso deve ocorrer
progressivamente, isto é, se desenvolvendo por etapas, gradualmente.
O
objetivo da progressão de regime é dar ao condenado a possibilidade de,
aos poucos, voltar a convivência em sociedade. É um benefício que o
preso poderá receber desde que cumpra alguns requisitos legais.
Para
que fique mais claro como funciona a progressão de regime, é necessário
entendermos quais são as “formas” de cumprir uma pena no Brasil, ou
seja, quais os regimes prisionais brasileiros. É isso que veremos no
próximo tópico.
Os regimes prisionais no Brasil
Conforme
dito, o regime prisional é a maneira como o condenado vai cumprir sua
pena, ele vai ser definido pelo juiz no momento em que é proferida a
sentença condenatória.
Em alguns
casos, o regime inicial a ser estabelecido depende do crime cometido e
do tempo da condenação. O regime inicial poderá progredir para outro
regime menos gravoso, caso atenda a algumas condições legais. No Brasil,
existem três tipos de regimes: o fechado, o semiaberto e o aberto.
➭
Fechado: neste caso, a execução da pena deverá ser realizada em
estabelecimento prisional de segurança máximo ou média, o preso vai
passar todo o dia na unidade prisional, podendo ter horários para ficar
em ambientes externos, para trabalhar ou pegar sol. O regime fechado
deverá ser adotado para as penas com tempo superior a 8 (oito) anos.
➭
Semiaberto: são as penas executadas em colônias agrícolas, industriais
ou estabelecimentos similares, o preso poderá ter autorização para
trabalhar durante o dia fora da prisão, desde que retorne para passar a
noite no estabelecimento prisional. E, deverá ser adotado, quando o
condenado não for reincidente e tiver pena superior a 4 (quatro) anos e
inferior a 8 (oito) anos.
➭ Aberto:
a pena deverá ser executada em casa de albergado ou estabelecimento
adequado, por exemplo, a própria residência do condenado, que poderá
sair de casa durante o dia, devendo retornar de noite. A pena promove a
convivência do preso com outras pessoas, além disso, poderá trabalhar
para auferir renda. O regime aberto ocorre para os crimes que tenham
pena com tempo inferior a 4 (quatro) anos, desde que não sejam
reincidentes.
Vale ressaltar que o
condenado reincidente (aquele que pratica outro crime, mesmo já
condenado por um anterior) perde o direito de iniciar o cumprimento da
sua pena nos regimes semiaberto ou aberto, mesmo que o tempo de duração
dela se encaixe nesses regimes.
Agora
que já entendemos acerca dos regimes prisionais brasileiros, precisamos
compreender quais os requisitos para que o condenado tenha direito à
progressão de regime. E um dos fatores que vai influenciar nessa decisão
é o tempo de pena que o preso já cumpriu. Veja a seguir como isso pode
ocorrer.
Lapso temporal e os requisitos para progressão de regime
Para
o preso ter direito à progressão de regime, ele precisa atender alguns
requisitos legais durante o cumprimento da sua pena. Os requisitos são
separados em objetivos e subjetivos.
O requisitosubjetivo
está relacionado ao bom comportamento que o preso tem no
estabelecimento prisional em que está encarcerado, que se materializa
através de uma certidão que será emitida pelo Diretor da penitenciária. A
lei é clara quando diz que "o apenado só terá direito à progressão de
regime se ostentar boa conduta carcerária."
Contudo,
essa não é uma novidade da Justiça Criminal. As principais alterações
trazidas pelo Pacote Anticrime estão relacionadas em verdade com os
requisitos objetivos. É aí que entra o conceito de lapso temporal.
Lapso
temporal pode ser definido como um intervalo de tempo e, aqui no nosso
tema, ele está relacionado ao requisito objetivo da progressão de
regime. A principal característica deste requisito é que o apenado
deverá cumprir parte do tempo total da sua pena, para ter então direito à
progressão de regime.
Sabendo o que é lapso temporal, vamos entender como ele se aplica à progressão de regime.
Quais os lapsos temporais para a progressão de regime?
A
partir das alterações legais proporcionadas pelo Pacote Anticrime, os
requisitos objetivos para efetivação da progressão de regime estão
concentrados no Artigo 112, da Lei de Execução Penal.
Os
lapsos temporais do sistema progressivo de regime prisional ganharam
novas frações de cumprimento de pena exigidas para a progressão de
regime, os quais podemos apresentar da seguinte forma:
➭ crimes cometidos sem violência à pessoa ou grave ameaça:
quando o apenado não é reincidente, deve-se cumprir 16% da pena
quando o apenado é reincidente, deve-se cumprir 20% da pena
➭ crimes cometidos com violência à pessoa ou grave ameaça:
quando o apenado não é reincidente, deve-se cumprir 25% da pena
quando o apenado é reincidente, deve-se cumprir 30% da pena
Além
disso, no mesmo artigo estão os lapsos temporais relativos aos crimes
hediondos ou equiparados (são crimes que geram grande indignação moral
ou reprovação da sociedade, como o crime de homicídio, estupro ou
genocídio) e também aos crimes hediondos e equiparados cometidos através
de organização criminosa estruturada. Vejamos:
➭ crimes hediondos ou equiparados:
quando o apenado não é reincidente, deve-se cumprir 40% da pena
quando o apenado é reincidente, deve-se cumprir 60% da pena
➭ crimes hediondos ou equiparados, com resultado morte:
quando o apenado não é reincidente, deve-se cumprir 50% da pena
quando o apenado é reincidente, deve-se cumprir 70% da pena
➭ organização criminosa estruturada para prática de crime hediondo ou equiparado:
deve-se cumprir 50% da pena
Por último, a lei prevê o cumprimento mínimo de 50% da pena para os crimes de milícia privada, que é a constituição
de um grupo armado de civis ou militares, fora das suas atribuições,
que revoltados com a suposta falta de competência das autoridades
públicas frente à criminalidade, optam por tentar fortalecer a
segurança, lutando contra a criminalidade, pelas suas próprias mãos.
Em todos estes casos, o condenado terá concedida a progressão de regime caso cumpra ambos os requisitos objetivos e subjetivos.
Vale
lembrar que os novos lapsos temporais que destacamos só serão aplicados
aos condenados em que o crime praticado por eles tenha acontecido após a
vigência do Pacote Anticrime, ou seja, após 23 de janeiro de 2020.
Como fazer o cálculo de progressão de regime?
Primeiro,
para saber quando o preso terá direito à progressão de regime, é
necessário calcular quanto tempo da sua pena ele deverá cumprir antes de
ter o direito de solicitar o benefício. Esse cálculo é realizado a
partir da pena imposta e do lapso temporal determinado na lei.
Quer
ver um exemplo? Vamos supor que José cometeu o delito de estupro de
vulnerável no dia 24 de janeiro de 2020. Em setembro do mesmo ano, foi
condenado a pena de 8 anos em regime fechado. Qual o tempo mínimo que
José deverá cumprir para ter direito à progressão de regime?
O
primeiro passo é analisar a natureza do crime. Neste caso, o estupro de
vulnerável causa uma indignação social muito grande, ou seja, é um
crime considerado hediondo, certo? Ademais, é imprescindível saber que
José é réu primário, ou seja, não tem condenação anterior pela prática
de outros crimes.
Além disso, nos
casos de crimes hediondos, é necessário verificar se houve ou não o
resultado morte. Ou seja, se a pessoa vítima da violência sexual de José
veio a óbito em razão do crime. Fato que não ocorreu no nosso exemplo.
Considerando
que José não é reincidente e não causou a morte da vítima, mas o crime
por ele cometido é hediondo, o lapso temporal que deverá cumprir é de
40% do total da pena, até que possa querer a progressão de regime.
José
recebeu a pena de 8 anos. Como 40% de 8 anos é igual a 3 anos, 2 meses e
12 dias, este será o lapso temporal que deverá ser cumprido por ele.
Após o cumprimento deste período, e do cumprimento dos requisitos
subjetivos, José está apto a solicitar sua progressão de regime.
Digamos
que esse benefício tenha sido concedido à José, ele poderá voltar ao
regime anterior? Em que situações isso pode ocorrer? Sim! A progressão
de regime pode ser revogada e o condenado pode ter que voltar ao
cumprimento de sua pena no regime anterior. Vamos ver como isso
acontece.
Perda do direito à progressão de regime
A
progressão de regime é um benefício concedido ao condenado. Quando ele é
transferido para um regime mais brando, deverá cumprir as imposições
impostas pelo juiz. Caso contrário, o apenado poderá perder esta
prerrogativa, retornando ao regime mais rigoroso ao qual estava
submetido. Ou seja, ocorrerá a regressão do regime.
A lei define que o apenado ficará sujeito à forma regressiva, quando:
➭ praticar fato definido como crime doloso ou falta grave;
➭ sofrer condenação, por crime anterior e, a nova pena da condenação, somada à anterior, torne incabível a aplicação do regime;
Vale
lembrar que, antes da decisão de regressão de regime, o preso será
ouvido pelo juiz, para que tenha a oportunidade de esclarecer os fatos e
se defender.
Além da perda do direito à
progressão de regime, com atualização da lei a partir do Pacote
Anticrime, criou-se a hipótese de vedação à progressão de regime. São
hipóteses quem que mesmo que apenado cumpra os requisitos subjetivos e
objetivos, ele não poderá requerer a progressão de regime.
Vedação à progressão de regime
Antes
da alteração realizada pelo Pacote Anticrime, não existiam vedações
absolutas, impedimentos para que o apenado tivesse direito à progressão
de regime.
Como vimos, os
condenados que comandam organização criminosa para a prática de crime
hediondo ou equiparado deverão cumprir 50% do tempo da sua pena para ter
direito à progressão de regime.
Contudo,
a lei determina que as pessoas que foram condenadas por integrar
organização criminosa ou, ainda, praticar delito por intermédio desta,
não poderão progredir de regime de cumprimento de pena, quando existam
provas suficientes de que o apenado ainda participe da manutenção,
gestão ou administração da organização criminosa.
Pegue
como exemplo um traficante de drogas, que mesmo preso, ainda comanda,
dá diretrizes e ordens a uma organização externa que opera a compra e
venda de drogas. Nesse caso, fica impedido de usufruir do benefício da
progressão de regime.
A progressão
de regime é um instituto importante quando falamos em função social da
pena. Na teoria, a pena no Brasil tem a finalidade de ressocializar o
apenado e não apenas castigá-lo.
Assim,
se, aos poucos, o preso tem a oportunidade de trabalhar e voltar a
convivência em sociedade, através da progressão de regime, acredita-se
que as chances de ele praticar outros crimes seja diminuída. Por isso é
tão importante que esse benefício possa ser concedido.
Um campo insalubre no Sudão, ou Tigré em guerra: o dilema dos refugiados
30/11/2020 13h26
Gedaref,
Sudão, 30 Nov 2020 (AFP) - Os etíopes que fugiram do conflito em Tigré
enfrentam um dilema cruel, tendo de escolher entre suportar condições
difíceis em um campo de refugiados, ou correrem o risco de retornar à
sua região em guerra.
Mais de 45.000 pessoas fugiram de Tigré para
o Sudão desde o início da ofensiva do primeiro-ministro Abiy Ahmed, em 4
de novembro, contra o governo dissidente desta região do norte da
Etiópia.
Ahmed prometeu proteger os civis e pediu repetidamente o retorno dos refugiados.
Na
fuga, várias famílias se separaram. Os agricultores foram forçados a
abandonar rapidamente seus campos, enquanto o gergelim e o sorgo ainda
não foram colhidos.
Refugiaram-se
em campos insalubres no Sudão, com difícil acesso a água e alimentos e
com instalações sanitárias insuficientes. Muitos esperam um retorno à
normalidade em Tigré para retomar suas vidas.
Drajo Germaya,
hospedado por uma família sudanesa na cidade fronteiriça de Hamdayit,
está determinado a retornar, independentemente do resultado do conflito.
"Tenho uma granja em Mai Kadra [em Tigré] e não quero viver em um campo de refugiados", diz ele.
"Quando eu voltar para a Etiópia, será questão de vida ou morte, mas estarei lá".
Outros, que afirmam ser marginalizados na Etiópia, explicam que não têm outra escolha a não ser uma vida em outro lugar.
-
Esperança de retorno -O primeiro-ministro Abiy Ahmed, prêmio Nobel da
Paz de 2019, declarou no sábado que as operações militares "terminaram",
após assumir o controle da capital regional, Mekele.
Ele também
insistiu na prioridade de um "retorno à normalidade" para os habitantes
de Tigré e disse desejar "trazer de volta aqueles que fugiram".
É
difícil saber o que está acontecendo no terreno, pois as comunicações
com a região rebelde foram interrompidas desde o início da ofensiva.
De
acordo com funcionários das Nações Unidas, muitas pessoas preferem
ficar perto da fronteira na esperança de voltar para casa em breve.
"Cerca
de 80% dos refugiados são agricultores que não terminaram suas
colheitas. Eles querem voltar para fazer isso", explica Po Mayro do Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), no centro de
trânsito de Hamdayit.
O alto comissário das Nações Unidas para
Refugiados, Filippo Grandi, disse no sábado que "eles não apenas
abandonaram seus campos antes da colheita", mas também "deixaram parte
de suas famílias e propriedades".
Um dos países mais pobres do
mundo, o Sudão já enfrenta dificuldades para lidar com esse fluxo
repentino. Esta crise está "além da capacidade do estado fronteiriço" de
Gedaref, disse seu governador, Soliman Ali, à AFP na semana passada.
Grandi
usou sua visita a Um Raquba para fazer um apelo aos doadores, já que o
Sudão precisa de US$ 150 milhões para lidar com o influxo de refugiados.
As
condições de vida e sanitárias são difíceis. Muitos casos de
disenteria, tuberculose, malária e HIV foram relatados, segundo médicos
da ONG Mercy Corps, que temem que a superlotação piore a situação.
No
momento, nenhum caso de coronavírus foi registrado entre os refugiados,
mas o risco de uma rápida disseminação para as aldeias vizinhas
preocupa a opinião pública.
Apesar dessas condições difíceis, alguns preferem a vida de refugiado à de cidadão sob o governo de Abiy Ahmed.
Em
Um Raquba, Gabrahi Wadgeday também rejeita qualquer retorno. "Por que
eu voltaria? Para morrer? Não quero morrer", explica ele.
Burhan
Yusef condiciona sua volta a uma mudança de regime em Addis Abeba. "O
governo de Abiy Ahmed deve mudar e, nesse caso, voltarei. Do contrário,
ficarei aqui", diz o homem de 77 anos.