sábado, 22 de outubro de 2011

A PASSAGEM DO ESTADO DE SAÚDE À EXPERIÊNCIA DE MORTE

A PASSAGEM DO ESTADO DE SAÚDE À EXPERIÊNCIA DE MORTE


A PASSAGEM DO ESTADO DE SAÚDE À EXPERIÊNCIA DE MORTE:
O Desafio do Profissional de Saúde
Introdução:
Há uma pequena história, chamada “Somente de Passagem” que tem circulado pela Internet, que nos mostra exatamente o que queremos aqui discutir: vivemos descuidados de alguns valores, enquanto nos apegamos a outros, como se a vida, tal como a conhecemos, fosse a única forma de existir. Vivemos o apego a esta existência, sem perceber sua fragilidade e como se a nossa consciência refletisse apenas este estado de existir.
“Um turista chega à cidade do Cairo, com o objetivo de visitar um famoso sábio. E fica muito surpreso, quando ao encontrá-lo, vê que este mora em um quartinho muito simples e cheio de livros. As únicas peças de mobília são uma cama, uma mesa e um banco.
- Onde estão os seus móveis? – pergunta o turista.
E o sábio, bem depressa, pergunta também:
- E os seus, onde estão?
- Os meus?! – surpreende-se o turista. – Mas eu estou aqui só de passagem.
- Eu também... - conclui o sábio.”
E a história continua com a moral: “A vida na Terra é somente uma passagem... No entanto, alguns vivem como se fossem ficar aqui eternamente...”
Receber o diagnóstico de uma doença que ameaça a vida e a integridade física, como é o caso do câncer, obriga o indivíduo a questionamentos a respeito da vida, seu sentido e significados. Também o leva a pensar de que forma anda a bagagem que vem acumulando com as experiências e com os relacionamentos.
Uma doença potencialmente fatal constitui a perda da ilusão. A ilusão de um corpo perfeito, de invulnerabilidade, de imortalidade. Embora nos recônditos de nossa alma sabemo-nos e percebemo-nos como eternos, a morte deste corpo e desta identidade é real. E lidar com a perspectiva de morte re-significa o sentido de nossa existência.
O ego, na busca confusa da sabedoria e da transcendência de si mesmo, como o turista da história acima, vai acumulando conhecimentos, guardando experiências tantas vezes, desnecessárias. Sobrecarregado, infla-se com o peso da bagagem.
Diferentemente, o Eu, representado na história como o sábio, conhece o que é essencial. Livre do apego, percebe o que é permanente no fluxo de constante impermanência da vida.
Acompanhar um paciente durante as várias passagens, desde o estado de saúde até a experiência de morte, talvez seja o maior desafio ao profissional de saúde.
Desenvolvimento e Emoções:
Tanto os processos intelectuais quanto os processos emocionais afetam todo o corpo pela interação entre o SNC, SI e SE, através dos neurotransmissores e liberação ou supressão de hormônios. Uma das possíveis causas de morte precoce do homem primitivo devia-se não apenas ao ambiente hostil que habitava, mas também à síndrome de tensão crônica produzida pela constante reação de ataque ou fuga, que lhe suprimia o sistema imunitário.
Com o desenvolvimento, o homem passou a viver em sociedades, e pode ainda modificar o ambiente a sua volta, de forma a torná-lo, não somente mais confortável, mas também mais seguro.
No entanto, a vida em sociedade trouxe um novo desafio, o relacionamento interpessoal, o qual passou a ser outra fonte de tensões. Em prol dos relacionamentos e da educação, a livre expressão da sexualidade e de emoções tais como raiva, inveja, medo e outras, tornou-se mal vista. Estas emoções passaram a ser reprimidas, às vezes de forma tão efetiva, que nem chegam ao limiar da consciência.
Mas mesmo as repressões das emoções não livram o indivíduo do sofrimento, apenas enterra a dor em níveis mais profundos. Ainda que reprimidas, elas continuam a atuar passivamente no organismo, levando à secreção excessiva ou deficiente de hormônios, que suprimem ou ativam demasiadamente o sistema imunitário (como no caso das doenças auto-imunes).
Além disto, vida na sociedade moderna trouxe de volta os dragões que solapavam a tranquilidade do homem primitivo. Desta vez, eles vêm travestidos no medo da violência que assola as grandes cidades, do desemprego, da solidão e abandono, da perda de papel social e de outros. Com isto, o homem atual torna a conviver com a síndrome de tensão crônica, causada pela reação de fuga ou luta. Mais cruel ainda, ele passa a viver com a sensação de desamparo e desesperança, imobilizado frente às solicitações e desafios para os quais, muitas vezes, não se sente preparado, o que pode gerar depressão.
As mais recentes pesquisas no campo da psiconeuroimunologia buscam explicar como os pensamentos e emoções se traduzem em moléculas de informações que atuam em todo o organismo.

O Momento do Diagnóstico

A vida constitui-se de um constante fluxo de mortes e renascimentos; de perdas e aquisições. Mas alguns momentos nos quais isto acontece, ficam mais demarcados na consciência. Um destes, é o momento do diagnóstico de câncer. Sendo uma doença séria, potencialmente fatal e cercada de mitos e inverdades, o câncer traz várias perdas. A primeira é a perda da saúde – que acaba com a fantasia de imortalidade e indestrutibilidade, que mobiliza sentimentos de negação, medo, raiva e desespero. Freqüentemente ouvimos expressões tais como: “parece que o chão sumiu debaixo dos meus pés”; “parecia um pesadelo”, “aquilo não podia estar acontecendo conosco” e outras. Com isto, aparece a perda da identidade – do referencial de si, não ter controle sobre a própria vida. Aquilo que antes parecia uma certeza (quem sou eu, o que eu faço, etc...) mudou e novas perspectivas terão que ser encontradas. O trabalho psicoterápico é de suma importância, para que o medo não engesse a vida que se tem a viver. E a pessoa necessita reencontrar o sentido da vida e da experiência, novos caminhos e sua verdade própria.
As emoções e o tratamento:
O processo de tratamento, ainda que realizado com sucesso, é doloroso fisicamente e psicologicamente. Novas perdas poderão ocorrer, como por exemplo, a perda da autonomia – o paciente vive agora com limitações de horários, o tempo passa a ser medido pelo horário de remédios e tratamentos; perda do papel social - passa muitas vezes de provedor e cuidador da família para o papel daquele que precisa ser assistido, gerando frequentemente sensações de fracasso e de isolamento; perdas pelas mutilações – cirurgias podem curá-lo, mas levam pedaços da pessoa e causam o luto pela parte perdida. Estas perdas dão origem a pensamentos do tipo: “eu não sou mais eu mesmo”, “onde está minha parte?”, “não estou mais comigo mesmo”, “onde ficou aquele meu eu?”.
Durante o tratamento, muitas emoções são mobilizadas e é fato reconhecido entre os profissionais que lidam com a doença, que os indivíduos que podem expressar livremente a cólera, desgosto, medo e que mantém a esperança e o espírito de luta, possuem mais condições de cura ou sobrevivência de longo prazo. O organismo reage às mensagens emocionais e mentais, estejam elas conscientes ou não, reduzindo ou ampliando as funções orgânicas, por uma complexa interação entre as substâncias químicas que circulam na corrente sanguínea e os hormônios segregados pelas glândulas.
Manter a auto-estima e a vontade, encarar a vida com uma atitude positiva, é a base fundamental e essencial na recuperação da saúde. O processo de cura pode se iniciar antes mesmo do tratamento em si, na medida em que paciente e terapeutas (sejam eles médicos, psicoterapeutas, enfermeiros e outros) agem como parceiros terapêuticos, dividindo decisões e responsabilidades, e compartilhando a esperança. A responsabilidade compartilhada estimula a adesão e a cooperação do paciente, com o seu próprio processo e na busca do seu terapeuta interior. Através do respeito, da escuta compassiva e honesta, e de uma postura transparente, seus terapeutas podem ser os facilitadores de um novo renascimento.
Transcender as emoções consideradas negativas, não é reprimi-las ou suprimi-las. Ao reprimir uma emoção a energia se acumula no subconsciente e ali permanece exercendo pressão. O papel do terapeuta é remover os obstáculos mentais e físicos, e encorajar o paciente a adotar uma nova atitude mental que libera a força curadora. Esta força restaura a harmonia e traz a possibilidade de restabelecimento da saúde física, mental, emocional e espiritual.
Mas pode haver ainda, perda pela morte , quando não há mais tentativas de cura física. Os pacientes sabem que vão morrer e têm decisões a tomar, o que causa o luto antecipatório – pessoas queridas vão ser deixadas, sonhos e objetivos que não serão mais realizados.
A espiritualidade: o papel da fé e da esperança
A velhice ou o refletir sobre a morte, leva o indivíduo a ver a vida sob o prisma da eternidade, que é basicamente a realidade da psique. Para Jung a psique se constitui da mesma energia que o corpo, mas com intensidade e freqüência de vibração mais elevadas, que podem superar a velocidade da luz. Uma parte da psique não se submete a ação redutora do cérebro e permanece independente de vida e morte, transcende tempo e espaço e ao núcleo do Eu e abrange desde o Eu desperto até o Eu sutil.
A cura tem varias faces. A transformação exterior ou visível, é iniciada pela manifestação e objetivação no mundo, da atitude mental que se constitui a fé ou a crença em si mesmo. E a fé muitas vezes não pertence ao domínio da lógica estatística; é a junção do pensamento e do sentimento, ou seja, da mente com o coração, de forma completa e inflexível.
Através da fé, representada pelas atitudes e crenças mentais, se constrói o próprio céu ou o inferno. Enquanto a fé traz um sentimento de segurança e confiança na própria grandeza essencial, sua falta é um grave fator limitante do processo de cura.
A crença em um prognóstico desfavorável pode se constituir em uma profecia auto-induzida, enquanto a fé na capacidade psíquica e espiritual de superação pode ser uma cura de auto-realização. A fé constitui-se um patrimônio íntimo, um reservatório de energias.
A fé na cura se assenta na crença em um poder superior e nas capacidades de auto-cura e na daquele que exerce o papel de curador. Existe uma interação entre as crenças do terapeuta e as do paciente e o organismo deste reage diretamente a ela. A fé e a esperança induzem a um estado de relaxamento, que neutraliza ou diminui a tensão, ampliando a possibilidade de cura. Além disto, tais sentimentos aumentam a prontidão em assumir atitudes mais assertivas.
O sentimento de esperança e a fé trazem alterações fisiológicas. Mesmo quando não se consegue alcançar a cura, a esperança concretiza a realização de muitas coisas. A falta de esperança equivale à decisão de não mais lutar, não mais viver, que obstaculiza a possibilidade de cura. Cabe ao terapeuta amplificar a vontade do paciente, lembrando-se que a vontade é uma função central de extrema importância do Eu essencial, na experiência de autoconsciência.
Muito embora o ser humano seja por essência, bio-psico-sócio-espiritual, a espiritualidade somente agora passou a ser vista como uma qualidade humana. Pela espiritualidade o medo se desvanece e o indivíduo perde a ilusão de separatividade. Com isto, pode alcançar a consciência de que tudo está perenemente e permanentemente interligado.
Seguir a trilha de desenvolvimento espiritual envolve buscar oportunidades de crescimento em todos os acontecimentos, transcendendo o medo, com a confiança que a vida cuida da própria vida.
Todos os indivíduos têm necessidade de significado, de sentido para a vida. As vivências espirituais não são menos reais do que as necessidades biológicas e sociais. E dão novo sentido e reorganização à vida, despertam valores universais, tais como empatia, ética, compaixão e amor incondicional. Esta é uma experiência do sagrado extrinsecamente terapêutica. E para Maslow, adoecemos não apenas porque entramos em contato com o patológico, mas também porque nos isolamos do lado saudável.
Referências:
Macieira, RC. O sentido da vida na experiência de morte .Ed. Casa do Psicólogo, São Paulo, 2001
Macieira, RC. (org). Despertando a cura: do brincar ao sonhar. Ed. Livro Pleno, Campinas, 2004
Rita Macieira é professora do IJEP
Rita <rita@macieira.info>

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