WACQUANT, Loïc. 1999. As Prisões da Miséria. Paris: Raisons d'Agir. 190 pp.
Sérgio Paulo Benevides
Mestre pelo PPGAS-MN-UFRJ
Examinar uma política pública não é tarefa livre de dificuldades. Muitas vezes é difícil determinar seu impacto, verificar que efeitos tem sobre o problema que se tinha proposto resolver, quais são suas conseqüências indiretas. No entanto, talvez a primeira dificuldade seja anterior a tudo isso. Porque é necessário, sobretudo, perceber que também a caracterização de um determinado problema faz parte da construção de uma política.
É dessa premissa que parte Loïc Wacquant em As Prisões da Miséria, ao examinar a orientação de repressão ao crime que resultou naquilo que o livro chama de "Estado penal". A definição da própria violência a ser combatida é parte essencial da formulação da estratégia para combatê-la. E, percebendo-se isso, pode-se ir mais longe: se o problema de que se fala explicitamente não é um simples dado, anterior à política adotada para solucioná-lo, mas criado no seio dela, o que, então, motiva a construção de tal política?
Trata-se de um projeto: uma forma de velar os efeitos de uma outra política, dessa vez uma política econômico-social que marginaliza uma parcela da população. Ao mesmo tempo, é também uma maneira de reeducar os segmentos mais baixos do mercado de trabalho para as novas regras do jogo – empregos menos seguros, com condições mais precárias. O crescimento do Estado penal acompanha, conforme o argumento de Wacquant, a tão aclamada retirada do Estado da economia, bem como a diminuição dos recursos destinados a programas sociais. E a articulação desses três elementos – ampliação do sistema penal, liberalização econômica e abandono ou redução das políticas sociais – faz parte de um programa que, a partir do thatcherismo britânico e do governo Ronald Reagan nos Estados Unidos, se desenvolveu na América do Norte, para depois alçar vôo em direção à Europa e à América Latina, senão a outras regiões também.
Wacquant recompõe o trajeto do discurso de defesa das estratégias coercitivas sobre a delinqüência que resultaram no desenvolvimento de um Estado penal e acompanha as conseqüências dessa política em um livro que poderíamos chamar de "engajado". Não nos deixemos contaminar imediatamente por idéias negativas que porventura nos pareçam ligadas a essa palavra e que poderiam servir para desqualificar o minucioso trabalho que Wacquant nos apresenta. As Prisões da Miséria é engajado não por ser tendencioso – característica que lhe seria injusto atribuir –, mas por apresentar-se clara e abertamente como uma intervenção em um debate político. E esse é um grande mérito seu, porque com isso trata tal debate como uma questão que vai muito além da escolha técnica da melhor estratégia para a resolução de um problema social dado como evidente.
Inicialmente, a questão é desnaturalizar um certo discurso a respeito do que se identifica como "a delinqüência", "a violência urbana", "as incivilidades" que seriam ao mesmo tempo causa e resultado dessa violência e "as áreas sensíveis", bairros pobres e "degradados", onde esse "mal das grandes cidades" é gerado. Tal discurso localiza na "excessiva generosidade" das políticas sociais e na tolerância com os pequenos delitos a origem da violência. É importante ressaltar neste ponto dois aspectos. Primeiro, não se está falando de uma tendência genérica apenas tangível. Ao contrário, identificam-se os autores e difusores dessa voga, como William Bratton, ex-chefe da polícia da cidade de Nova Iorque, ou Charles Murray, James Q. Wilson e George Kelling, que, conforme Wacquant, produziram textos importantes para a disseminação de tais idéias. Segundo, esse discurso não é apenas falatório inócuo, mas incorpora mesmo a produção de tristes resultados, como o aumento da população carcerária americana: "[...] em 1975, o número de detidos havia caído para 380.000 [...]. Dez anos mais tarde, a quantidade de prisioneiros saltou para 740.000, antes de ultrapassar 1,5 milhão em 1995 para depois atingir dois milhões no fim de 1998 [...]." (:72)
A difusão da defesa do uso de estratégias coercitivas contra os pequenos crimes como forma de combater a violência em geral baseia-se na disseminação da idéia-chave da política conhecida como "tolerância zero": para cortar o mal pela raiz seria necessário reprimir até os menores delitos, as "incivilidades" que perturbam o "bom cidadão". Resultado: monta-se um aparato repressor policial-penal que acaba por criminalizar a miséria. Note-se que, para isso, a "segurança" é definida em termos estritos. Não se está preocupado em assegurar condições de salário, saúde etc. à população citadina em geral. Nem, por outro lado, se adota a mesma estratégia de intolerância com, por exemplo, os crimes de colarinho-branco.
Em Manhattan, na administração do prefeito Rudolph Giuliani, forjam-se os argumentos que justificam a construção de um Estado policial-penal – com as conseqüências práticas desse modelo apontadas por Wacquant: por exemplo, o aumento do efetivo policial a ponto de se ultrapassar o número de 46.000 empregados em 1999 (38.600 deles, agentes uniformizados); isto, à custa de uma redução do número de empregos no setor de serviços sociais, que, no mesmo ano, baixou para apenas 13.400 empregados. De fato, a criminalidade diminuiu nos últimos anos, mas isso tanto em Nova Iorque quanto em outras cidades americanas que não aplicaram a mesma política, conhecida em muitos lugares como de "tolerância zero", mas que, ironicamente, é chamada pelas autoridades locais de programa de "qualidade de vida". Ironicamente porque essa "qualidade de vida" resultou, por exemplo, na criação de uma Unidade de Luta contra os Crimes de Rua, responsável pela detenção, em dois anos, de mais de 45.000 pessoas por simples suspeição – em 37.000 casos não havia, desde o início, motivo algum que justificasse as detenções e, em mais 4.000, os processos não foram levados adiante. Integrantes dessa mesma unidade policial foram os responsáveis, em 1999, pelo assassinato do imigrante guineense Amadou Diallo, de 22 anos, morto com 42 tiros, que gerou uma série de protestos contra a política do prefeito Giuliani. Protestos que, por sua vez, foram tratados novamente como caso de polícia e assim reprimidos.
Conforme uma pesquisa citada por Wacquant, quase 80% dos homens jovens negros e latinos de Nova Iorque foram presos e revistados ao menos uma vez. Tristemente, o caso Diallo não era o primeiro exemplo de brutalidade policial – em 1998, o imigrante haitiano Abner Louima havia sido submetido a torturas sexuais em uma delegacia do Brooklin. E o que ocorre em Nova Iorque é apenas um exemplo daquilo que se dá no plano nacional: "Em probabilidade acumulada sobre a duração de uma vida, um homem negro tem mais de uma chance em quatro de purgar pelo menos um ano de prisão, e um latino, uma chance em seis, contra uma chance em 23 para um branco." (:86) Assim, mais de um termo dos negros que têm entre 18 e 29 anos nos Estados Unidos está sob a ação do sistema policial-penal de alguma forma – efetivamente presos ou, por exemplo, sob liberdade condicional. E não porque os negros tenham uma inclinação maior para o crime. Estima-se que eles representem 13% do total de consumidores de drogas – e, no entanto, compõem mais de um terço das pessoas detidas e três quartos das pessoas presas por violação das leis antinarcóticos. Essa constatação se torna mais assustadora quando lembramos que, em geral, os que respondem ao sistema penal não podem votar – uma nova forma de exclusão de quadros votantes três décadas depois de se aprovar a legislação de direitos civis que estendeu o direito de voto aos negros. Ou seja: a "qualidade de vida" do Estado penal americano é para poucos.
O objetivo do livro de Wacquant é poder servir de referência onde quer que se apresentem discussões acerca de políticas que tomem como modelo o desenvolvimento do Estado penal americano. No entanto, As Prisões da Miséria estende-se, sobretudo, a um debate europeu. E a Grã-Bretanha herdeira do thatcherismo é identificada como a grande porta de entrada da estratégia policial-penal de exclusão dos "indesejáveis" na Europa Ocidental – estratégia que se amplia em direção à Suécia, Holanda, Bélgica, Espanha, Itália e França. O resultado é muito semelhante: aumento notável da população carcerária e incremento predominante de negros e estrangeiros (ou filhos de estrangeiros) – turcos e marroquinos, por exemplo – entre os presos.
Essa estratégia policial-penal, portanto, não é exatamente um meio de garantir o cumprimento das regras para o bom funcionamento da sociedade, como se poderia pensar de uma perspectiva que se ocupasse essencialmente do caráter normativo dos fenômenos sociais. Conforme a perspectiva sobre a qual Wacquant trabalha, trata-se de um instrumento de construção de uma determinada política aliada à generalização da insegurança salarial e social, um instrumento para encerrar a pobreza, para excluir os indesejáveis. E também, aliada à defesa da idéia de que qualquer emprego é melhor que nenhum, a criminalização da miséria contribui para conformar o trabalho a uma situação de precariedade que ascendeu com o neoliberalismo em seu caminho para sepultar o keynesianismo e outras opções mais à esquerda.
Ainda que servisse apenas para montar esse quadro geral a respeito das políticas de repressão ao crime nos Estados Unidos e na Europa, o livro de Wacquant já seria de considerável importância. No entanto, pode-se ir além, uma vez que em As Prisões da Miséria há também uma forma de examinar políticas públicas – uma forma preciosamente exemplar, porque ultrapassa o olhar ingênuo, porque percebe que os alvos declarados da estrat┌gia a ser analisada são também parte dela, e porque, assim, pode passar às questões seguintes, sobre a extensão das conseqüências de tais políticas, livre da miopia que sempre se apresenta como risco diante de temas como esse ao qual Wacquant se dedica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário