segunda-feira, 29 de outubro de 2018

"Navegar é preciso; viver não é preciso."


Navegar é preciso

Poema de Fernando Pessoa
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso."

Quero para mim o espírito desta frase, transformada
A forma para a casar com o que eu sou: Viver não
É necessário; o que é necessário é criar.

Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande, ainda que para isso
Tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso
Tenha de a perder como minha.

Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho
Na essência anímica do meu sangue o propósito
Impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
Para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

***
Comentário
Além de interpretar seus diversos heterônimos, Pessoa era também mestre em interpretar palavras e simbolismos, de modo que muitas de suas poesias têm vários graus de interpretação – geralmente (mas não necessariamente) um mais profundo do que o outro, como nesse caso.
Esta é a origem da frase citada no poema: "Navigare necesse; vivere non est necesse" - latim, frase de Pompeu, general romano, 106-48 aC., dita aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra (cf. Plutarco, in Vida de Pompeu).
A primeira interpretação que muitos chegam, principalmente em focando somente a frase e não o contexto do poema, é a de que navegar, explorar o mundo ou até mesmo ser um guerreiro disciplinado é mais importante do que viver uma vida rotineira, sedentária e monótona.
A segunda interpretação envolve um olhar das entrelinhas da etimologia do jogo de palavras nesta frase. Nesse caso, navegar é preciso no sentido de ser uma atividade, uma ciência precisa; Já viver não é preciso no sentido de que a vida envolve não somente o lado racional, como também o emocional e o espiritual – viver não é nem nunca será, portanto, uma atividade precisa. Viver é deliciosamente ou terrivelmente impreciso, dependendo dos olhos de quem vê.
A interpretação derradeira e mais profunda (na minha opinião é claro) no entanto envolve parte do conceito das interpretações anteriores, com algo a mais. Pessoa quis dizer que para engrandecer sua pátria e colaborar com a evolução da humanidade, não lhe é necessário viver a vida egoisticamente como se esta fosse somente sua, e sim dedicar a vida – ou “perdê-la” – em prol da humanidade como um todo (sua pátria é o mundo e não Portugal).
Qualquer semelhança com alguns ensinamentos de Jesus não é mera coincidência. Mas além disso podemos ir um pouco mais além: a vida continua sendo imprecisa, mas navegar pelo oceano do mundo é mais necessário do que viver ancorado a sua aldeia (e dogma) local. O misticismo de sua Raça (com “R” maiúsculo) não é o misticismo dos portugueses ou dos homens de “raça branca” (na verdade raça não existe, apenas a espécie homo sapiens), mas o misticismo dos grandes sábios – esses que, como desejava Pessoa um dia o ser, viveram não para si, mas para toda a sua Raça.

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