Concepções de Infância ao Longo da História e a Evolução Jurídica do Direito da Criança
Resumo :O
direito da criança evoluiu ao longo do tempo visto que, nos dias
atuais, construir uma sociedade mais justa e igualitária significa
tratar dos direitos de todos os cidadãos, inclusive, da criança e do
adolescente que também são considerados pela atual Constituição
Brasileira, como sujeitos de direito. A problemática consiste em
averiguar se, essa evolução dos direitos possibilitou, de fato, maior
proteção para as crianças, especialmente por parte da família e da
sociedade. Os objetivos do artigo são: analisar os conceitos de criança e
os seus contextos sociais e familiares; descrever as concepções de
infância no cenário histórico brasileiro – a desproteção e a evolução
dos seus direitos; conhecer a legislação de proteção à infância da
doutrina da Situação Irregular até a doutrina de Proteção Integral;
discorrer sobre a concepção de infância na atualidade em consonância com
a Constituição Federal do Brasil e Estatuto da Criança e do Adolescente
(Lei n° 8.069/90).
Palavras-chave: Direito da Criança; Concepções de Infância; Doutrina da Proteção Integral.
Abstract: The
right of the child has evolved over time, since today, building a more
just and equal society means treating the rights of all citizens,
including children and adolescents who are also considered by the
current Brazilian Constitution, as subjects right. The problem is
whether this evolution of rights has actually made it possible for
children to be more protected, especially by the family and society. The
objectives of the article are to analyze the concepts of children and
their social and family contexts; describe the conceptions of childhood
in the Brazilian historical scenario - the deprotection and evolution of
their rights; to know the legislation of protection of infancy of the
doctrine of Irregular Situation until the doctrine of Integral
Protection; to discuss the conception of childhood in the present time
in line with the Federal Constitution of Brazil and the Statute of the
Child and Adolescent (Law n ° 8.069 / 90).
Keywords: Children's Law; Conceptions of Childhood; Doctrine of Integral Protection.
Sumário: 1 Criança – Conceitos, Contextos Sociais e Familiares. 2 Concepções de Infância – A desproteção e a evolução dos direitos. 3 Legislação de proteção à Infância
- da Situação Irregular a Proteção Integral. 3.1 Primeiro Momento de
Proteção à Infância. 3.2 Segundo Momento de Proteção à Infância. 3.3
Terceiro Momento de Proteção à Infância 4 Concepção de infância na
atualidade em consonância com a Constituição Federal e Estatuto da
Criança e do Adolescente.
INTRODUÇÃO
Analisar
a concepção de infância e a evolução jurídica do direito da criança ao
longo da história remete há alguns anos atrás, quando a preocupação dos
governantes era unicamente inibir a delinquência infantil,
principalmente dos menores de classes pobres, como forma de proteger a
sociedade. Não havia lei para proteger a criança.
Percebe-se,
entretanto, que houve evolução, principalmente acerca do entendimento
histórico e doutrinário da infância e também quanto aos seus direitos no
âmbito jurídico.
É
no sentido, de avaliar essa evolução que o presente estudo apresenta
uma retrospectiva histórica e evolutiva acerca da ausência de direitos
da criança até a sua configuração no momento histórico presente,
buscando traçar um paralelo com as concepções de infância ao longo do
tempo.
O
estudo apresenta como problema, averiguar se, essa evolução dos
direitos possibilitou, de fato, maior proteção para as crianças,
especialmente por parte da família e da sociedade.
O
artigo tem como objetivos analisar os conceitos de criança e os seus
contextos sociais e familiares; descrever as concepções de infância no
cenário histórico brasileiro - a desproteção e a evolução dos seus
direitos; conhecer a legislação de proteção à infância da doutrina da
Situação Irregular até a doutrina de Proteção Integral; discorrer sobre a
concepção de infância na atualidade em consonância com a Constituição
Federal do Brasil e Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n°
8.069/90).
A
metodologia utilizada para a elaboração deste artigo foi a pesquisa
bibliográfica, qualitativa e de natureza descritiva, realizada através
da leitura de livros, revistas, periódicos, artigos e dissertações que
tratam acerca do tema objeto do estudo.
A
escolha deste tema se justifica por duas razões. Primeira, devido a
aproximação com o contexto escolar, o trabalho realizado com crianças, o
encantamento com as leituras acerca da infância. A segunda razão, é
devido o interesse de pesquisar os diversos tratamentos de descaso à
criança ao longo dos anos, passando pelas doutrinas da Situação
Irregular e da Proteção Integral até o reconhecimento da criança como
sujeito de direito.
Por
descrever ao mesmo tempo o entendimento histórico e doutrinário sobre
as concepções de infância e a evolução dos direitos da criança no
contexto jurídico nacional, trata-se de um estudo relevante para os
acadêmicos do Direito e das demais áreas do conhecimento, bem como para
os profissionais que atuam ou pretendem atuar na área do Juizado da
Infância e da Adolescência.
O artigo está dividido em quatro itens. No primeiro são apresentados os conceitos de criança e seus contextos sociais e familiares.
O segundo trata acerca das concepções de infância – a desproteção e a evolução histórica do direito da criança;
No
terceiro item descreve-se a legislação de proteção à infância da
doutrina da Situação Irregular até a doutrina de Proteção Integral;
O
quarto e último item discorre sobre a concepção de infância na
atualidade em consonância com a Constituição Federal e Estatuto da
Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90).
Ao final deste, são apresentadas as considerações finais acerca do estudo e as referências.
1 CRIANÇA – CONCEITOS, CONTEXTOS SOCIAIS E FAMILIARES
Os
estudos acerca da infância e o direito da criança é um tema
relativamente novo, principalmente quando se considera que, desde a
Antiguidade e durante muitas décadas, elas não tiveram nenhum tipo de
proteção.
Para
Carvalho (2010), o modo de tratar a criança ao longo do tempo se
modificou e continua em processo de transformação de acordo com a
sociedade que a mesma está inserida. Pode-se verificar historicamente,
que o espaço no âmbito familiar e social que hoje ela ocupa, a tem
valorizado um pouco mais a cada dia. Na
sociedade atual, a criança ocupa um espaço bastante expressivo. Ela é
sujeito de direito, é reconhecida na sua peculiar condição de ser humano
em processo de desenvolvimento e tem liberdade para comunicar
pensamentos, exigir, questionar.
As
crianças, nos dias atuais, possuem um mercado próprio para consumo,
leis específicas, espaços próprios e ciências que se debruçam sobre a
infância. O encantamento das
ciências, principalmente das Ciências Sociais, colaborou para que o
conceito de infância sofresse alterações significativas ao longo da
história.
Compreender
o que foram esses conceitos, analisar a infância do ponto de vista
histórico, pode revelar bastante sobre a sua atual concepção.
A concepção de infância que
temos hoje foi construída ao longo do tempo. Conforme Belloni (2009), a
mudança de visão sobre infância, no começo do século XX, pode ser vista dentro de duas concepções, ligadas aos significados das expressões da palavra: a primeira relacionada ao passado, ligada ao termo infante como
aquele que está impossibilitado de falar, aquele que não tem voz; e,
posteriormente, uma concepção mais contemporânea, sendo infante-criança aquele que está sendo criado, com voz e participação.
Este
cenário no qual valoriza-se a criança, porém, não faz parte da
realidade infantil desde os tempos remotos. Percorreu-se um longo
caminho para que a mesma fosse valorizada, deixando de “ser objeto” e
passando a “ser sujeito” de direito, sendo-lhe assegurado o
direito de ter suas necessidades - físicas, cognitivas, psicológicas,
emocionais e sociais - atendidas de forma integral e integrada, ficando a
família, o Estado e a sociedade incumbidos desse dever.
Belloni (2009), comenta que a concepção de infância estava diretamente ligada ao fato de que as crianças eram percebidas como adultos imperfeitos, não como seres humanos em desenvolvimento. Dessa
forma, essa fase da vida humana tinha pouco interesse de ser conhecida.
Séculos mais tarde, surgiria um sentimento de que as crianças são
especiais e diferentes dos adultos, e, portanto, merecedoras de serem
estudadas por si sós.
Considerando o homem como um ser social, o conceito de infância também é determinado
socialmente, isto é, está intimamente relacionado à maneira como o
homem produz seu modo de existência e se organiza em sociedade. Desde
modo, a infância pode ser tratada enquanto uma categoria social e
historicamente construída.
Para conceituar criança, a Convenção sobre os Direitos da Criança (aprovada pela Assembleia
Geral das Nações Unidas-ONU, em 1989) afirma “criança são todas as
pessoas menores de dezoito anos de idade”. Já para o Estatuto da Criança
e do Adolescente (1990), criança é considerada a pessoa até os doze
anos incompletos, enquanto entre os doze e dezoito anos, idade da
maioridade civil, encontra-se a adolescência.
Etimologicamente, a palavra infância vem do latim, infantia, e refere-se ao indivíduo que ainda não é capaz de falar.
A infância
é definida, por Schultz e Barros (2011), como a fase compreendida entre
o nascimento e a puberdade, possui modos específicos de sentimentos,
ações e comportamentos que devem ser compreendidos de maneira a se
respeitar as diferentes culturas de determinado tempo e espaço,
relacionando-se, ainda, com a troca de conhecimentos que se estabelecem
entre crianças, adolescentes e adultos.
Os
conceitos apresentados mostram que a idade define a condição conceitual
de infância e adolescência. A partir de 12 anos deixam de ser crianças e
passam a ser adolescentes, após os 18 anos já são consideradas como
pessoas jovens ou adultas.
No
entendimento de Dias (2009), crianças e adolescentes são pessoas que se
encontram em pleno desenvolvimento físico e mental, portanto, ambos são
indivíduos que precisam receber cuidados de pessoas adultas.
Acredita-se,
assim, que a primeira e mais significativa relação social que a criança
estabelece é travada na família. As crianças nascem no seio familiar e
cabe aos pais cuidarem delas até que se tornem capazes.
Dias
(2009) explica que, fazer parte de uma família favorece à criança
noções de segurança, poder, autoridade, hierarquia, além de lhe permitir
aprender habilidades diversas, tais como: falar, organizar seus
pensamentos, distinguir o que pode e o que não pode fazer, adaptar-se às
diferentes circunstâncias, flexibilizar, negociar, seguindo as normas
da sua família.
O autor a seguir, também conceitua da seguinte maneira
A
família funciona como o primeiro e mais importante agente socializador,
sendo assim, é o primeiro contexto no qual se desenvolvem padrões de
socialização em que a criança constrói o seu modelo de aprendiz e se
relaciona com todo o conhecimento adquirido durante sua experiência de
vida primária e que vai se refletir na sua vida escolar. O contato com
outros companheiros também contribui, entre tantas outras coisas, para
que o aluno se acostume à rotina escolar, passando a ter interesse pelos
objetos, atividades e conhecimentos escolares - isto favorece o seu
desenvolvimento pessoal e intelectual (CARVALHO, 2010, p. 41).
Dessa
forma, é inegável a relevância da família nos anos iniciais da vida
humana, sendo assegurado no capítulo III, do Estatuto da Criança e do
Adolescente, o direito à convivência familiar e comunitária.
O mencionado Estatuto prevê ainda, no caput do artigo 4°, que
É
dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder
Público assegurar com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos
referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao
lazer, a profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária (BRASIL/ECA, 1990).
Assim,
a família é a primeira responsável, a sociedade é a segunda responsável
- ambas possuem responsabilidade conjunta e solidária - e o Estado é o
terceiro responsável por assegurar a efetivação dos direitos acima
mencionados, este último possuindo responsabilidade subsidiária. Nem
sempre o formato familiar descrito funcionou (e funciona) tão
perfeitamente.
2 CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA – A DESPROTEÇÃO E A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS
Para
uma concepção mais ampla acerca da infância, é importante conhecer os
tipos de tratamentos a que as crianças eram submetidas e a evolução
jurídica dos seus direitos.
De
acordo com Azambuja (2016, p. 83), “exemplos históricos de desproteção
jurídica à criança são encontrados desde a Antiguidade, entre os povos
egípcios e mesopotâmios, romanos, gregos, medievais e europeus”.
Para
esses povos as crianças não mereciam nenhum tipo de proteção, na
verdade, nunca houve nenhum tipo de proteção, era como se não
existissem.
Barros
(2005, p. 71) comenta que, no Oriente Médio, o Código de Hamurabi que
prevaleceu de 1728 a 1686 a.C. o artigo 193 “previa o corte da língua do
filho que ousasse dizer aos pais adotivos que eles não eram seus pais,
e, a extração dos seus olhos se aspirasse voltar à casa dos pais
biológicos”; o artigo 195 “caso o filho batesse no pai, sua mão era
decepada”.
Por outro lado, o mesmo código em seu artigo 154, dizia que: se um homem abusasse sexualmente de sua própria filha, a pena máxima era a sua expulsão da cidade. Ou seja, a punição das crianças era muito severa e cruel enquanto a dos adultos era amena.
Ainda no contexto da desproteção,
Em
Roma (449 a.C.) a Lei das XII Tábuas - 1º permitia ao pai matar o filho
que nascesse disforme, mediante o julgamento de cinco vizinhos; 2º o
pai tinha legítimo o direito de vida e de morte sobre os filhos,
inclusive para vende-los. Em Roma e também na Grécia antiga, o pai como
chefe da família, podia castigar, condenar e expulsar a mulher e os
filhos, visto que não possuíam nenhum tipo de direito. Em Esparta, as
crianças doentes ou portadoras de malformações congênitas eram
sacrificadas, pois, desde cedo serviam para atender interesses
políticos, sendo selecionadas, pelo porte físico, para ser guerreiros,
ou seja, eram objeto de direito estatal (AZAMBUJA, 2016, P. 56).
Muito
pior que o homem ser supervalorizado pelas sociedades antigas onde
prevalecia o império machista com seu paternalismo, é a total falta de
compaixão, o total descaso para com as crianças e principalmente a
perversidade para com as portadoras de deficiência, que não tinham
sequer direito à vida.
Vanuchi
(2010, p. 52), cita outra situação relevante de sacrifício dos
infantes, no reinado do paganismo, quando “Herodes, rei da Judeia mandou
executar todas as crianças menores de dois anos, na tentativa de
atingir Jesus Cristo, conhecido como rei dos judeus”.
A
história antiga mostra o triste cenário da convivência das crianças com
os seus pais que também eram os seus opressores e agressores
permanentes.
A
ótica atual sobre a infância é consequência das constantes
transformações pelas quais passamos, sendo assim, é de suma importância
nos darmos conta destas transformações para compreendermos o cenário que
se faz presente.
Até
o século XII, o índice de mortalidade infantil era muito alto devido
precárias condições de higiene e saúde. Desse modo, havia nos períodos
medievais uma insensível postura dos pais com relação aos filhos.
Conforme Heywood (2004), “os bebês abaixo de dois anos, em particular,
sofriam um descaso assustador, pois, os pais consideravam pouco
aconselhável investir muito tempo ou esforço em um pobre animal
suspirante, que tinha tantas probabilidades de morrer com pouca idade”.
As
crianças que conseguiam sobreviver com as precárias condições e descaso
não possuíam identidade própria, apenas vindo a tê-la quando
conseguissem realizar atividade semelhantes àquelas feitas pelos
adultos, com as quais estavam misturadas.
O
tratamento social dado à criança era semelhante ao do adulto. Ser
criança era viver um breve período de vida, pois logo se misturavam com
os de mais idade.
Nesse sentido, o autor complementa
Adultos,
jovens e crianças se misturavam em toda atividade social, ou seja, nos
divertimentos, no exercício das profissões e tarefas diárias, no domínio
das armas, nas festas, cultos e rituais. O cerimonial dessas
celebrações não fazia muita questão em distinguir claramente as crianças
dos jovens e estes dos adultos. Até porque esses grupos sociais estavam
pouco claros em suas diferenciações (ÁRIES, 1981, p.156).
Não
havia nessa época, atividades, objetos, vestimentas ou leis próprias
para a infância. As crianças cedo entravam no universo adulto e não
dependiam tanto dos seus pais. Eles sim precisavam de seus filhos, pois
quanto maior o número de filhos mais pessoas teriam para trabalhar.
De
acordo com Áries (1981), nas famílias pobres havia uma preocupação
desde cedo para a criança trabalhar nas lavouras ou serviços domésticos.
Já as crianças que pertenciam às famílias nobres aprendiam as artes de
guerra ou os ofícios eclesiásticos.
A
particularidade do mundo infantil que distingue a criança do adulto não
existia. Igualmente não havia a percepção de que a criança precisava de
cuidados e de pessoas para zelar por sua integridade.
Como
explica Áries (1981), nos séculos XIV, XV e XVI, as crianças eram
vistas como um adulto em miniatura. Ainda nos remetendo à situação de
fome, miséria e a falta de saneamento básico pelas quais as pessoas da
Idade Média viviam, a morte de uma criança não era recebida com tanta
comoção. Rapidamente a tristeza passava, e aquela criança era
substituída por outro recém-nascido para cumprir sua função já
pré-estabelecida.
Constata-se, portanto, que a afeição pela infância, o sentimento de proteção do ser vulnerável não era inerente à época.
O mencionado autor, ainda tratando do sentimento com relação à criança, afirma que,
As
pessoas se divertiam com a criança pequena como um animalzinho, um
macaquinho impudico. Se ela morresse então, como muitas vezes acontecia,
alguns podiam ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito
caso, pois outra criança logo a substituiria. A criança não chegava a
sair de uma espécie de anonimato. A infância foi ignorada socialmente e
isso é perceptível nas Artes, pois, até o século XII, não houve sequer a
tentativa de representá-la. Não há crianças caracterizadas até o final
do século XVIII, por sua expressão peculiar (ÁRIES, 1981, p.10).
Dessa
forma, esses indivíduos permaneceram no anonimato durante um longo
período histórico que compreende a Antiguidade até a Idade Média. Num
percurso histórico, o conceito de infância foi sofrendo modificações. No
século XVI, ocorreram mudanças nas concepções referentes à criança e a
infância. Do século XVI para o XVII, na Europa, começam a perceber a
criança como um ser diferente do adulto. Surge o que diversos autores
denominaram um sentimento de infância. Sentimento esse a princípio
distorcido, uma vez que as crianças eram vistas como objeto lúdico dos
adultos.
Houve
uma época, por volta do século XVII, segundo Júnior (2012), que as
crianças foram tratadas como o centro das atenções e tinham permissão
para tudo até completar seis anos de idade. A partir dos sete, lhe era
cobrada uma postura de responsabilidades semelhantes à de uma pessoa
adulta. Em razão disso e para que atendessem aos desejos dos adultos, as crianças eram severamente castigadas, punidas fisicamente, espancadas com chicotes, ferros e paus.
Nesse momento, lembra Áries (1981), a infância estava começando a ser descoberta na Europa
como uma idade específica da vida, sentimento de infância antes
inexistente na Idade Moderna, coincidia com a época em que estava
ocorrendo a colonização do Brasil. Assim, os europeus, enquanto
colonizadores trouxeram seus valores, costumes e ideias referentes à
infância para o Brasil.
Dentro
dessa nova construção moderna, foram sendo soterradas concepções de
criança como um adulto em tamanho reduzido e paulatinamente foi cedendo
lugar para a afirmação da infância como uma construção social.
Nesse
contexto, comenta Júnior (2012), com o advento da Revolução Industrial,
no século XVIII, a escolarização se estendeu a todas as camadas
sociais, com a missão de educar para o trabalho as crianças, impondo
sobre elas uma mentalidade de obediência e disciplina. Nas indústrias,
além da inserção do trabalho da mulher constata-se a presença de
crianças que representava mãos-de-obra baratas, disciplinadas e com
baixo poder reivindicatório. As atividades de trabalho infantil, que
sempre estiveram presentes na sociedade medievais, sejam elas domésticas
ou agrícolas, continuaram acontecendo.
As
crianças eram submetidas a longas jornadas de trabalho nas fábricas,
dispendiam bastante força física e chegavam muitas vezes ao esgotamento,
o que continuava
contribuindo com os altos índices de mortalidade. O trabalho infantil
era visto culturalmente como forma inicial de educação doméstica e de
provimento material do orçamento da família.
No Brasil,
segundo Júnior (2012), o trabalho infantil é um fenômeno social
presente ao longo da história, suas origens remontam à colonização
portuguesa e à implantação do regime escravista. Foi a partir do século
XIX, que surgiram os primeiros entendimentos sobre o significado de
infância.
A
criança tornou-se indivíduo central no contexto familiar, ou seja, sua
casa transformou-se num espaço de afetividade. A partir de então, a
criança passou a ser vista como indivíduo de investimento afetivo,
econômico, educativo e existencial.
O Estado, por sua vez, assume outro papel com relação à criança
No
século XIX, o Estado, que se interessa cada vez mais pela criança,
vítima, delinquente ou simplesmente carente, adquire o habito de vigiar o
pai. A cada carência paterna devidamente contatada, o Estado se propõe
substituir o faltoso, criando novas instituições. (...) É verdade, não
obstante, que a política de assumir e proteger a infância traduziu-se
não apenas numa vigilância cada vez mais estreita da família, mas também
na substituição do patriarcado familiar por um “patriarcado de Estado”.
Até o final do século XIX, a criança foi vista como um instrumento de poder e de domínio exclusivo da Igreja (BADINTER, 1985, p.288-289).
Somente
no início do século XX, a Medicina, a Psiquiatria, o Direito e a
Pedagogia contribuíram para a formação de uma nova mentalidade de
atendimento à criança, abrindo espaço para uma concepção de reeducação
não apenas religiosa, mas também científica.
Barros
(2005, p. 68), comenta que, analisando-se a história do Brasil a partir
do período colonial, não há registro de direitos assegurados para a
infância,
As
primeiras crianças, chegadas antes do descobrimento do Brasil, vieram
na condição de órfãs do rei ou como pajens, com o compromisso de casar
com os súditos da Coroa. Vieram nas embarcações, em condições trágicas,
as crianças eram abusadas sexualmente pelos marujos rudes e violentos,
com a desculpa de que não haviam mulheres a bordo. Somente as crianças
órfãs não eram violentadas porque ficavam trancafiadas nas embarcações.
Desde
a chegada da Companhia de Jesus ao Brasil, no século XVI, os religiosos
assumiram o papel de defensores dos direitos infanto juvenis até o
início do século XX. Isso significa dizer que, durante todo esse período
o amparo à infância brasileira foi exercido pela Igreja Católica.
Na
Idade Contemporânea, Pereira (2008), destaca os avanços cronológicos
ocorridos nas políticas de proteção social para as crianças e
adolescentes, visto que, em 1919, foi criado o Comitê de Proteção da
Infância, cujas manifestações trataram das obrigações coletivas com
relação às crianças. Mais tarde, com a primeira Declaração dos Direitos
da Criança (1959), os Estados passaram a ter suas legislações próprias
em defesa desses direitos.
E posteriormente, afirma o autor:
Em
1946, foi criado o Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas
para a Infância (UNICEF), que declara em seu Artigo 19 – Direitos da
Criança: Toda criança terá direito às medidas de proteção que a sua
condição de menor requer, por parte da sua família, da sociedade e do
Estado. Em dezembro de 1948, é proclamada a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, em cujo texto os direitos e liberdades das crianças e
adolescentes estão implicitamente incluídos, inclusive, em seu Item II,
observa: a todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio é
assegurado o direito a mesma proteção social (JÚNIOR, 2012, p. 16).
A
Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela Assembleia
Geral da Organização das Nações Unidas, em 1948, afirmou direitos de
caráter civil e político, incluindo os direitos econômicos, sociais e
culturais de todos os seres humanos, envolvendo, por conseguinte, as
crianças. Para assegurar o cumprimento dos direitos humanos às minorias
(crianças) foi aprovada em 1959, na Assembleia Geral das Nações Unidas, a
Declaração Universal dos Direitos da Criança, trazendo em seu conteúdo o
primeiro conjunto de valores da Doutrina da Proteção Integral
Prevê o princípio 1 desta Declaração, o seguinte: toda
criança, absolutamente sem qualquer exceção, será credora destes
direitos, sem distinção ou discriminação por motivo de raça, cor, sexo,
língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional
ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição, quer sua ou
de sua família (ONU, 1959).
Segundo (Barros, 2005, p. 72)
Tratava-se
do início de um complexo processo de transição que resultaria na
superação do Direito do Menor pelo Direito da Criança e do Adolescente, e
consequentemente, na substituição da Doutrina da Situação Irregular
para a Doutrina da Proteção Integral. A partir
de 1985, o Direito da Infância e da Juventude se consolida em nível
mundial com a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, cujo
marco de proteção social à infância e adolescência forneceu também as
bases para a doutrina da proteção integral, que fundamentou o Estatuto
da Criança e do Adolescente – que atualmente assegura os direitos das
crianças e dos adolescentes do Brasil.
Vale
destacar ainda registros antigos, do mesmo período histórico que
envolvem crianças, no Estado do Amazonas, local onde se realiza a
presente pesquisa, com relatos de lendas e fatos ocorridos no seio da
floresta amazônica, durante o período áureo da borracha (1830/1860), nas
obras de Ferreira de Castro “A Selva”, Álvaro Maia “Beiradão”, entre
outras, cujas características são o contato e a experiência dos
escritores no mundo do seringal.
Maia (1999) em suas obras, apresenta as figuras femininas, sejam velhas ou crianças, e afirma que as mesmas eram tratadas no seringal como mercadorias, objeto de disputa ou moeda de troca.
Benchimol
(1992), narra alguns fatos passados, destacando como as figuras
femininas eram tratadas nos seringais. Por conta da abstinência sexual
prolongada, seringalistas e alguns seringueiros cometiam atos extremos
de abusos contra mulheres velhas e meninas em idade precoce para o sexo,
que eram possuídas através do estupro ou do aliciamento.
Ferreira
de Castro (1972), por sua vez, comenta que, a escassez se transformava
em excesso e cita o caso do amasiamento de um seringalista chamado José
Arruda com três meninas, de nove, dez e doze anos de idade, vivendo na
mesma barraca. O delegado colocou o seringalista no tronco, bateu nele,
entretanto, quando conversou com as meninas elas o defenderam afirmando
que ele lhes dava bóia (que significa alimentação) e roupa.
Os
demais momentos históricos e a evolução dos direitos da criança no
Amazonas são semelhantes aos ocorridos no Brasil, conforme se trata nos
itens seguintes.
3 LEGISLAÇÃO DE PROTEÇÃO À INFÂNCIA – DA SITUAÇÃO IRREGULAR A PROTEÇÃO INTEGRAL
Neste item, serão expostos os momentos históricos jurídicos de proteção à criança, que compreende
desde o período da ausência de normas protetivas, perpassando pelo
Direito do Menor, até o surgimento do Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei n° 8069, de 13 de julho de 1990).
3.1 Primeiro momento de proteção à infância
Não
havia norma de proteção à criança e ao adolescente, pois não havia
diferenciação clara entre crianças, adolescentes e adultos.
No
Brasil, durante o período pré-republicano a atenção à infância era
através de ações em prol do abandono, prevalecendo um modelo
caritativo-assistencial.
As
crianças abandonadas eram acolhidas por famílias substitutas ou
institucionalizadas nas Rodas dos Expostos. Sobre este assunto a autora
explica:
As
Rodas criadas conforme o modelo de acolhimento infantil, em vigor na
Europa durante o período colonial brasileiro, foi reproduzido e
disseminado em larga escala por aqui. Provavelmente, foi um dos modelos
assistenciais que mais perdurou na história brasileira, pois a primeira
Roda dos Expostos foi criada em 1750 e a última encerrada em 1950, ou
seja, durante duzentos anos consolidou-se como o principal modelo de
acolhimento infantil (MARCILIO,1999, p. 83).
No
âmbito da educação, as práticas pedagógicas instituídas pelos jesuítas
no século XVI (após a colonização) eram representadas pelo binômio
amor-repressão, que aliou a educação à imposição de castigos corporais,
durante vários séculos. Vale mencionar que, inicialmente este modelo
educacional era restrito às crianças da classe nobre da sociedade. Até a
abolição da escravatura, em 1889, a escravidão também deixou sua marca
na história da infância brasileira, submetendo crianças negras à
condição de absoluta exploração.
Um
interesse jurídico especial pela infância surge em decorrência da
abolição da escravidão, como esclarece Cústodio (2014), pois, meninos e
meninas empobrecidos circulam pelos centros urbanos das pequenas cidades
procurando alternativas de sobrevivência e “perturbam” a tranquilidade
das elites locais. É nesse cenário que o sistema de controle penal é
colocado em ação visando estabelecer um controle jurídico específico
sobre a infância.
Porém,
tanto o Código Criminal do Império, de 1830, quanto o Código Penal da
República, de 1890, aplicam o direito penal comum aos menores de 18
anos, submetendo-os muitas vezes a trabalhos forçados, castigos
corporais, prisão perpétua e pena de morte. Diante das críticas humanitárias à aplicação do Direito Penal comum aos menores de 18 anos surge o Direito do Menor.
3.2 Segundo momento de proteção à infância: Direito do Menor
Neste
segundo momento de proteção à infância, com o Direito do Menor, o
Estado passa a atuar nos casos de situação irregular do menor –
delinquência, abandono ou ausência de representação legal. Nas demais situações o Estado continuou omisso.
Segundo
Custódio (2014), em 1926, o presidente do Brasil, Washington Luís,
atribuiu ao Juiz de Menores do estado do Rio de Janeiro José Candido
Albuquerque de Mello Mattos, conhecido como o primeiro juiz de menores
do Brasil e por sua preocupação com a menoridade, a responsabilidade de
sistematizar uma proposta que atingisse os menores em situação
irregular. Assim, em 12 de outubro de 1927 seria aprovado o primeiro
Código de Menores Brasileiro, também conhecido como Código de Mello
Mattos. É importante frisar que, este consolidou toda a legislação
produzida desde a proclamação da república.
A
Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor foi criada pela Lei nº 4.513,
em 01 de dezembro de 1964, integrando o Sistema Nacional de Previdência e
Assistência Social, vinculado ao Ministério da Previdência e
Assistência Social, tendo por objetivo implantar a Política Nacional do
Bem-Estar do Menor.
A
Política Nacional do Bem-Estar do Menor tinha como base os princípios
da doutrina da segurança nacional, seu foco central era o atendimento
dos menores marginalizados socialmente.
Desse
modo, afirma Custódio (2014), no século XX, sob as vertentes da justiça
e da assistência, foram criadas as primeiras leis que disciplinaram o
sistema de garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes como o
Código de Menores de 1927, posteriormente, em 1979, o 2º Código de
Menores (lei nº 6.697/1979) que também adotava a doutrina da situação
irregular. Assim classificando, em seu artigo 2º, o menor em situação
irregular:
Art.
2º Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o
menor: I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e
instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta,
ação ou omissão dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade
dos pais ou responsável para provê-las; Il - vítima de maus tratos ou
castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; III - em perigo
moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente
contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos
bons costumes; IV - privado de representação ou assistência legal, pela
falta eventual dos pais ou responsável; V - Com desvio de conduta, em
virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; VI - autor de
infração penal. (BRASIL,1979).
Este
Código de Menores foi implantado durante o regime militar, Lei nº
6.697, de 10 de outubro de 1979, proposto pela Associação Brasileira de
Juízes de Menores, foi aprovado nas Comemorações relativas ao Ano
Internacional da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU). A nova
lei possui como maiores expoentes os juristas Allyrio Cavallieri e
Ubaldino Calvento.
Tratando-se
dos pontos relevantes, Rizzini (2009, p. 41) afirma “o Código de
Menores de 1979, foi de relevante significado para a infância
brasileira, visto que a responsabilidade sobre as crianças abandonadas,
institucionalizadas e delinquentes passou a ser da justiça”.
Prates (2006), por sua
vez, acrescenta que, além de contribuir para a mudança da concepção de
proteção e assistência, ofereceu tratamento apropriado para o ‘menor
infrator’ e algumas garantias à sua situação de pessoa em
desenvolvimento.
Também
Martins (2006), comenta que, o Código de Menores de 1979 revogou o de
1927 e trouxe para o Brasil a “doutrina da situação irregular”, porém,
com a mesma política assistencialista
das legislações anteriores, com poucas modificações em relação ao
código anterior, ou seja, não houveram mudanças no conceito de infância.
Baseados em estudos e sob a ótica da sociedade, o tratamento de caráter assistencialista
e filantrópico desenvolvido e direcionado ao menor não foi considerado
adequado para a solução do problema, pois, já existiam concepções mais
complexas acerca da infância.
Durante
a década de 80, um conjunto de fatores, tais com: as precárias
condições de vida da maioria das crianças e dos adolescentes; as
contundentes críticas às diretrizes e ao conjunto de práticas
governamentais de assistência; o acentuar-se das discussões sobre
direitos da criança e do adolescente; o contexto sociopolítico propício à
reivindicação e reconhecimento legal de direitos; e a articulação de
setores da sociedade civil, concretizada no movimento em defesa da
criança e do adolescente colaborariam para uma significativa mudança
neste cenário de proteção à infância.
Era
o início da substituição do Direito do Menor pelo Direito da Criança e
do Adolescente, e consequentemente, na substituição correspondente da
Doutrina da Situação Irregular para a Doutrina da Proteção Integral.
3.3 Terceiro momento de proteção à infância: Direito da Criança e do Adolescente
A
transição da “doutrina da situação irregular do menor” para a “doutrina
da proteção integral” estabeleceu-se gradativamente no decorrer da
década de oitenta, com ênfase no processo de elaboração da nova
Constituição.
Como expõe o autor
“Esta
doutrina (da Proteção Integral) afirma o valor intrínseco da criança
como ser humano; a necessidade especial de respeito à sua condição de
pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da
juventude, como portadora de continuidade do seu povo e da espécie e o
reconhecimento da sua vulnerabilidade o que torna as crianças e
adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da
sociedade e do Estado, o qual deverá atuar através de políticas
específicas para promoção e defesa de seus direitos” (COSTA,1992, p.
19).
Isso significa dizer que, neste momento ocorre uma importante mudança na forma em que as crianças e adolescentes brasileiros são percebidos. A
Doutrina da Proteção Integral foi essencial para a consolidação de um
novo ramo do direito no Brasil: o Direito da Criança e do Adolescente.
Segundo
Saraiva (2010), com a Constituição da República do Brasil, de 5 de
outubro de 1988, revogou-se a expressão “menor” do ordenamento jurídico
brasileiro, substituindo por crianças e adolescentes. Entretanto, os
titulares de direitos são, agora, crianças e adolescentes, conquista
esta frágil e tardia.
Ao tratar da ordem social, o texto constitucional prevê que,
Art.
227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e
ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL/CF,
1988).
Nesse sentido, os direitos fundamentais da criança e do adolescente têm seu campo de incidência amparado pelo status de
prioridade absoluta, ele requer uma hermenêutica própria comprometida
com a proteção integral e o melhor interesse da criança, ficando a
família, a sociedade e o Estado incumbidos de assegurá-los.
No contexto dos direitos da infância e da juventude,
A
Lei 8.069/1990, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é
um referencial do Direito Infanto-Juvenil no Brasil, em virtude da sua
fundamentação na doutrina de proteção integral, que nasce por força da
sua peculiar fase de desenvolvimento. Essa lei regulamenta um comando
previsto nos art. 6º, 7º, 203 e 227 da Constituição Federal Brasileira
de 1988, assegurando o exercício dos seus direitos fundamentais
(CUSTÓDIO, 2014, p. 18).
Trata-se
de direitos fundamentais que devem ser garantidos para todos as
crianças e adolescentes, posto que, como medida de proteção deve
abranger todos os direitos essenciais fundamentados na Declaração
Universal dos Direitos Humanos e demais documentos de semelhante teor.
Conforme Saraiva (2010), a partir
do conjunto de tratados, convenções internacionais e das determinações
constitucionais, ocorre em 1990, a publicação do Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA), onde direitos e garantias podem ser divididos em
três grandes sistemas: o primeiro, trata das políticas públicas
dirigidas à infância e juventude; o segundo, elenca as medidas dirigidas
a crianças e adolescentes em situação de risco pessoal ou social; e o
terceiro, trata especificamente dos adolescentes em conflito com a lei.
O
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi, portanto, um marco
revolucionário no Direitos da infância e da juventude, visto a adoção da
doutrina da Proteção Integral, principalmente por levar em conta os
direitos próprios e especiais das crianças e dos adolescentes enquanto
pessoas em fase de desenvolvimento e que necessitam de proteção diferenciada, especializada e integral.
4 CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA NA ATUALIDADE EM CONSONÂNCIA COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Analisar
o contexto atual da infância no Brasil, significa reconhecer a sua
evolução histórica, os seus significativos avanços e a mudança dos
sentimentos familiares, sociais e de direito que também evoluíram, e
verificar como estão sendo aplicados na prática.
Segundo
Júnior (2012), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) promoveu
grandes mudanças na política de atendimento às crianças e adolescentes
com a criação de instrumentos jurídicos para assegurar a garantia dos
direitos fundamentais, conforme citam os artigos 3º, 4º e 7º - direito à
vida, à saúde, à convivência familiar e comunitária.
Com
o mesmo grau de importância no contexto dos direitos fundamentais,
Freire Neto (2011), cita também o artigo 5º que estabelece o seguinte -
crianças e adolescentes não serão objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão
ou qualquer tipo de atentado; e, o artigo 15º que trata sobre o direito à
liberdade, ao respeito e à dignidade, enquanto direitos garantidos
também na Constituição Federal.
Isso
significa que, através desses dispositivos, a legislação busca defender
plenamente os direitos das crianças e dos adolescentes, diante de
qualquer arbitrariedade por parte do Estado, da sociedade ou da família.
Outro
aspecto relevante, cita Bitencourt (2009), é que “com o ECA, foram
criados os Conselhos de Direitos da Crianças e do Adolescente que atua
em conjunto com o Estado e com a sociedade, e os Conselhos Tutelares que
atuam no caso de violação dos direitos individuais das crianças e dos
adolescentes que se encontram em situação de risco”. De acordo com o
artigo 131 do ECA, o Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não
jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos
direitos da criança e do adolescente; e, o artigo 132 estabelece que,
em todo município brasileiro deverá haver pelo menos um Conselho
Tutelar.
A
criação dos Conselhos faz parte da política de atendimento às crianças e
adolescentes, estabelecido no artigo 88, inc. I a VII do Estatuto da
Criança e do Adolescente, especialmente no sentido de conclamar a
sociedade civil para participar e atuar na elaboração das políticas
públicas.
A
concepção de infância no contexto da proteção integral, nas palavras de
Trindade e Silva (2005, p. 19), considera que “a maioria das crianças e
dos adolescentes está distante de seu direito em sua forma plena. Visto
que a grande parcela deles se encontra em situação de carência
econômica, social e familiar, o que reflete no fato de se tornarem
adultos de alguma forma já violentados”.
As
palavras do autor apontam uma realidade que vai de encontro ao direito
da proteção integral, entretanto, é necessário que se reflita sobre os
papéis desempenhados pelo Estado, pela sociedade e pela família, de
maneira a fazer valer direitos e garantias que propiciem o pleno
desenvolvimento das crianças e dos adolescentes.
Pesquisas
atuais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/2014) e
Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF/2015) acerca do cenário
da infância e da adolescência no Brasil, apontam que
No Brasil há 63 milhões de crianças e adolescentes. Desse total, 46% são menores de 14 anos, e vivem em domicílios com renda per capta
de até meio salário mínimo. 132 mil famílias são chefiadas por crianças
e adolescentes entre 10 e 14 anos, que cuidam de outras crianças de
idades ainda menores. Em 2014, foram mais de 91 mil denúncias de
violações de direitos de crianças e adolescentes. Em 2015, foram
registradas 17.588 denúncias de violência sexual contra crianças e
adolescentes, um total superior a 23 mil vítimas, 70% delas meninas. Há
ainda que citar os recentes casos de estupros coletivos como os
ocorridos em 2015, com adolescentes no Rio de Janeiro e no Piauí, como
graves violações de direitos humanos que se somam às estatísticas de
violências registradas no país (2015).
Os
casos de abusos contra crianças e adolescentes fazem refletir sobre a
banalidade que se tornou a violência e o descaso com os direitos de
proteção integral estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente. Outro fato de indignação popular e alarmante é a
divulgação, a exposição e o julgamento moral nas redes sociais a que
foram submetidas as adolescentes vítimas de estupros coletivos.
Quanto
aos tipos de violências praticados no Brasil contra crianças e
adolescentes, temos o seguinte: Em 2013 ocorreram 73% de negligência,
50% de violência psicológica, 43% de violência física e 28% de violência
sexual. Em 2014 ocorreram 74% de negligência, 49% de violência
psicológica, 43% de violência física e 25% de violência sexual (UNICEF, 2013).
A
pesquisa aponta a negligência como o tipo de violência de maior
incidência contra as crianças e adolescentes, que por sinal, até
evoluiu. Isso significa que os responsáveis – Estado, sociedade e
família – estão falhando com o compromisso de zelar e garantir os
direitos. Muito embora a violência sexual apresente menor percentual,
ela não ocorre sem que a criança ou o adolescente tenha sofrido junto
violência física e psicológica.
O
Brasil foi referência mundial na redução de mortalidade infantil no
período de 1990 a 2012, com a redução de 68% da taxa de óbitos de
crianças menores de 1 ano. Entretanto, conforme a DATASUS (2011), hoje
ainda morrem muitas crianças e as maiores vítimas da mortalidade
infantil são as crianças indígenas. No quesito educação, há mais de 3
milhões de crianças fora da escola, a maioria delas são pobres, negras,
indígenas, ou possuem algum tipo de deficiência. São crianças e
adolescentes que vivem nas periferias das grandes cidades, na Amazônia e
na área rural. A maioria delas deixa de estudar para trabalhar e ajudar
no sustento da família (IBGE-PNAD/2013).
Aqueles
que deixam de estudar para trabalhar, representam outro grave problema
que afeta crianças e adolescentes no Brasil, visto que, as pesquisas
apontam que quase 2 milhões deles, de 5 a 15 anos de idade trabalham e
que esse índice tem crescido nos últimos quatro anos.
Os
dados atuais mostram a face mais trágica da violação dos direitos das
crianças e adolescentes no Brasil com o elevado número de homicídios de
meninos e meninas até 19 anos que de 1990 a 2014 passou de 5 para 11,1
mil casos ao ano. Isso significa que, em 2014, trinta crianças e
adolescentes foram assassinados a cada dia. Dos adolescentes que morrem
no Brasil, 36,5% são assassinados. Esse número coloca o país em segundo
lugar no ranking dos mais violentos com o público infanto-juvenil,
perdendo apenas para a Nigéria (UNICEF, 2015).
O
cenário de violências se torna ainda mais sombrio quando se verifica
que esses índices aumentam a cada dia e nenhuma ação consistente está
sendo tomada pelos responsáveis, para eliminar ou pelo menos minimizar
essa problemática.
De
uma maneira simples, as palavras de Tossato (2009), para os dias
atuais, considerando às mudanças de concepção e respeito a situação
peculiar de desenvolvimento biopsicossocial, ser criança significa “ter
na cabeça, fantasias; nos olhos, o brilho da poesia; no corpo, o
movimento e a música do mundo... É ter curiosidade, fazer muitas
perguntas, investigar! É transformar e ser transformada por meio das
brincadeiras e de suas infinitas possibilidades de criação, invenção e
aprendizagens”.
Embora
o Brasil possua uma das legislações mais avançadas do mundo no quesito
proteção da infância e da adolescência, ainda não conseguiu combater a
violência e as desigualdades sociais, étnicas e geográficas - principais
razões para que as políticas públicas não consigam atingir a todos os
brasileiros. Como se pode ver, apesar dos avanços, ainda há muito a ser
feito, ainda não é possível festejar a diversidade. O Brasil ainda não
possui política pública consistente que vá ao encontro do direito da
proteção integral, que seja capaz de tornar visíveis suas crianças e
adolescentes.
CONCLUSÃO
A
elaboração do presente estudo permitiu realizar uma retrospectiva
histórica e evolutiva acerca da concepção de infância, traçar um
paralelo com a evolução jurídica do direito da criança desde a
inexistência de leis protetivas até a sua configuração de proteção
integral do momento histórico presente.
Verificou-se
que, a criança no contexto social e familiar dos povos da Antiguidade,
não era considerada como sujeito de direito, na verdade era como se já
nascesse adulta, ou considerada como um ser inerte. No período da
Modernidade, houve uma tímida evolução com o sentimento da infância em
alta, passaram a ter participação social na vida familiar, escolar com
um profundo ideal religioso.
Somente
a partir da Constituição Federal Brasileira de 1988 e do Estatuto da
Criança e do Adolescente de 1990, que criança e adolescente deixaram de
ser vistas como objeto e foram reconhecidos como pessoas que têm direito
de suprir suas necessidades físicas, cognitivas, psicológicas,
intelectuais, emocionais e sociais de forma integral e integrada.
O
Estatuto da Criança e do Adolescente em consonância com a Constituição
Federal, elegem a família, a sociedade e o Estado como os responsáveis para
assegurar a garantia dos direitos fundamentais das crianças e
adolescentes brasileiros, nos artigos 3º, 4º e 7º - direito à vida, à
saúde, à convivência familiar e comunitária; o artigo 5º quando menciona
que crianças e adolescentes não serão objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão
ou qualquer tipo de atentado; e, o artigo 15º que trata sobre o direito à
liberdade, ao respeito e à dignidade.
Hoje,
a concepção de infância no contexto da proteção integral, evidencia uma
realidade trágica que vai de encontro ao que está escrito nos artigos e
nas leis, em vista do alarmante e crescente índice de criminalidade e
violência contra crianças e adolescentes. A violência é praticada em
grande escala, porém, não se reconhece nenhum tipo de dispositivo legal,
manifestação ou políticas públicas em defesa da infância e da juventude
brasileira.
Diante
do descaso para com as crianças e os adolescentes, pode-se concluir que
o Brasil se encontra em um período de retrocesso evolutivo e de
desproteção dos direitos da infância.
Acredita-se
que os objetivos deste estudo foram alcançados, tendo em vista o
conhecimento acerca das concepções de infância ao longo do tempo, sua
evolução histórica e jurídica, com abordagens que demonstram desde a
situação de desproteção à posterior concepção de proteção integral,
estabelecida pela Constituição Federal (1988) e pelo Estatuto da Criança
e do Adolescente (1990), vigentes até o momento presente.
Por
fim, a análise do momento histórico presente, permitiu constatar a
crescente condição de miséria, de desigualdade e violência a que são
submetidas as crianças e os adolescentes atualmente, no Brasil. Tamanha
negligência, omissão e descaso, coloca em cheque a responsabilidade e
competência do Estado, da sociedade e da família.
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Antonio José Cacheado Loureiro, o autor
Universidade do
Estado do Amazonas (UEA); Mestre em Direito Ambiental (UEA),
Especialista em Direito Penal e Processual Penal e Direito
Público(ESBAM), Especialista em Direito Penal Militar, Direito Ambiental
e Direitos Humanos (UNIASSELVI), Especialista em Direito do Trabalho e
Previdenciário (PUC-Minas), Advogado, Professor de Direito Penal e
Processual Penal da Universidade do Estado do Amazonas.