Princípio da não-intervenção e soberania nacional
A venda sobre os olhos da Justiça não significa apenas que não se deve interferir no direito, mas que ele não nasceu da liberdade. (Adorno e Horkheimer)
Análise do princípio da não intervenção em confronto com os novos paradigmas do Estado pós-moderno, sob o enforque jurídico das relações internacionais. Iniciamos com a análise jurídica; após, apontamos a importância e os efeitos da ausência de consenso, regional ou global, acerca dos conceitos “democracia”, “liberalismo” e “direitos humanos” enquanto categorias jurídicas. Concluímos que a cooperação é vinculada à convergência de orientação de valores da Política Internacional, da qual depende a efetividade do Direito Internacional Público.
Introdução
A globalização é uma categoria ainda em construção, cujos conteúdos vêm sendo historicamente agregados e remodelados numa constante qualificação dos direitos ditos humanos. Com atraso de dois séculos, disseminou pelo globo o ideário da Revolução Francesa, qual seja: que a democracia é essencial às aspirações individuais e coletivas e à articulação de interesses; que o liberalismo econômico é o sistema que conduzirá ao bem-estar e desenvolvimento sociais; que o homem é universal e que seus direitos naturais devem ser garantidos.
Todavia, os conceitos “democracia”, “liberalismo” e “direitos humanos” são juridicamente indeterminados e não há um consenso, regional ou global, do que sejam ou devam ser. Como já alertava Kuhn, “um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma[1]”. E o que ouvimos é um discurso político de teor iluminista, centrado na liberdade e na felicidade, a despeito da permanência de conflitos violentos e do fato de os discursos e as práticas sobre os direitos humanos não chegarem aos povos sob a forma de igualdade, felicidade e liberdade, mas sim de culpabilização, penalização e punição, integrando um movimento mundial de obsessão punitiva crescente[2].
Condição Humana e não-intervenção
A discriminação indisfarçada por categorias jurídicas demonstra a ausência de consenso: os direitos de prisioneiros de guerra valem para todos os homens, desde que ocidentais ou aculturados e defensores do liberalismo econômico e dos regimes democráticos. Aqueles que sejam capturados e que transcendam tais categorias não terão seus mínimos direitos respeitados pela autoridade que os detiver – e esta busca a legitimidade de seus atos na conduta dos acusados, que não são considerados seres humanos “como nós”, mas sim “os outros”, numa típica bipolaridade política: os direitos humanos são isolados dos direitos do cidadão, numa demonstração da cisão da essência humana. Veja-se, na história recente, as condições dos prisioneiros mantidos no centro de detenção e interrogatórios da base militar norte-americana de Guantánamo[3]; e a decisão dos delegados da Comissão de Direitos Humanos contra investigações sobre abusos no Irã e na Chechênia e bloqueio da discussão sobre o Zimbábue. A alternância da jurisdição penal pela militar para punir determinados atos à revelia do Direito Internacional equivale, em termos éticos, ao uso da violência para impor convicções, eis que se trata de interpretação das regras ditas universais em conformidade com um poder particular.
Assim, as lideranças ocidentais pregam seu modelo social, político e econômico, sob a justificativa de que a democracia e a economia de mercado irão transformar o planeta numa sociedade internacional pacífica e livre de todos os problemas que são historicamente verificados: fome, miséria, guerras religiosas e étnicas. Pode-se perceber que, mais uma vez, todo o pensamento desenvolvido sobre direitos humanos e aspirações de Paz e Justiça permanece distante da realidade. O arcabouço jurídico jamais alcança o substrato, sequer para dar substância aos ditos direitos preexistentes. Por outra vertente, da concepção de um Direito que não sucede a categoria “liberdade”, mas sim a categoria “opressão”, como bem colocaram Adorno e Horkheimer[4], compreende-se o modelo de “sociedade internacional” que foi construído pelos Tratados de Paz de Westphalia (1648), e cujos pilares são o princípio da não intervenção, a soberania dos Estados e a unilateralidade no recurso à coerção ou mesmo à guerra. Quando tais princípios passaram a integrar o sistema constitucional dos Estados, sobrevieram modificações nos parâmetros da ordem mundial, que diluíram os cânones do paradigma estatocêntrico, introduzindo o Direito de Ingerência, sob fundamento humanitário, a “guerra preventiva[5]” e o sistema multilateral do Conselho de Segurança das Nações Unidas, para a legitimação da guerra. Aqueles que detêm o poder apresentam o direito humanitário como um imperativo moral para a comunidade internacional, afastando a soberania estatal e o princípio da não intervenção. Em pleno apogeu dos princípios de Westphalia, europeus ocidentais clamavam pela ajuda humanitária aos cristãos (“civilizados” como “nós”) martirizados pelo Império Otomano (o inimigo, “os outros”) e engendraram a intervenção francesa de 1860 na Síria para socorrer os maronitas. Até a Cruz Vermelha, organismo símbolo do Direito Humanitário, encontra-se ausente nas categorias que não sejam cristãs. O Direito de Ingerência também pode ser encarado como uma nova fase de expansionismo agressivo do velho sistema neocolonial. O direito transformou-se em dever (de ingerência humanitária), e passou a exigir liberdade de acesso e atuação, em áreas de catástrofe natural ou social, para as organizações não-governamentais. Seria, assim, uma modalidade do direito de passagem pacífica para assistência humanitária. Mas o que se discute é a consagração do “Direito de ingerência” de Estados mediante uso da força, para socorro a vítimas do desrespeito aos direitos humanos[6].
O princípio absoluto da não intervenção incorporou os novos parâmetros estabelecidos na ordem global e passou a admitir como exceções a intervenção – inclusive armada – para o (r)estabelecimento de regimes democráticos, a proteção da propriedade privada de seus súditos e a defesa dos direitos humanos. Todavia, a questão transcendeu a assistência humanitária e passou a incluir outras áreas, tais como as violações de garantias, a proteção do meio ambiente e o controle de armamentos e tecnologia bélica. O princípio outrora basilar encontra-se em constante construção categórica e permanente qualificação dos direitos mediante a agregação do modelo universal. A seu turno, o modelo concebido pelos detentores do poder decisório é transmitido aos governados pela institucionalização, nos seus ordenamentos jurídicos, do ideário da revolução francesa segundo as concepções norte-americanas, dado o pretenso papel messiânico e civilizatório dos Estados Unidos em relação ao resto do mundo. Nesse contexto, a finalidade dos demais Estados reduz-se à tarefa de organizar, de modo seguro e eficiente, as atividades de mercado, pois a civilização capitalista procura tornar o Direito uma simples técnica de organização eficiente da vida econômica[7]. Tal vácuo moral entre os Estados é uma tradição com raízes em Maquiavel, e consiste na racionalização e legitimação de políticas baseadas nos interesses econômicos e/ou na estratégia militar. O interesse comum dos Estados passa por um processo de cristalização antes de ser percebido como real e necessário. Para o Imperium, já não existe um sistema internacional, ou seja, o Imperium outorga-se o direito de ser o único a deter uma soberania inviolável.
Soberania e direitos humanos
O direito natural – como fundamento para os Direitos Humanos Universais -, o antigo direito das gentes e a problemática axiológica da guerra justa se acham submetidos a uma reconceitualização sob o prisma do hegemon, ou seja, a concepção de que a guerra imperial se legitima por carregar a bandeira da defesa dos direitos humanos e dos regimes democráticos, quando em verdade o modelo livre-cambista afasta intervenções legítimas. Do conceito de soberania formulado por Jean Bodin em 1576 (“poder absoluto e perpétuo de uma República”) ao conceito de soberania relativizada, que passou a permitir um crescente controle sobre as ações dos Estados soberanos por outros Estados soberanos, presenciamos a assistência emergencial nos países da África Negra e a intervenção das forças de paz na Iugoslávia e Haiti; a intervenção militar norte-americana no Iraque e na Somália, a ausência das lideranças ocidentais em Ruanda e Indonésia permitindo o extermínio de milhões de pessoas em guerras étnicas; a presença do hegemon no Iraque e Kosovo em defesa de milhares; as ameaças veladas aos governantes da América Latina e do Sudoeste Asiático. A implantação de instituições ad hoc para a aferição de responsabilidades por violações à concepção ocidental de direitos humanos foi regra, com a instalação de diversos tribunais de exceção e cortes marciais. Todavia, atores estatais ainda sustentam grande poder nas relações internacionais, e os Estados Unidos são o exemplo.
No eixo axiológico ocidental, a outrora venerada “razão de Estado” cedeu seu lugar à valoração do homem em si, agora sujeito e objeto de um Direito Internacional cujas normas não detém executoriedade. A proliferação global do modelo, legitimado pelo procedimento, não pode encobrir os problemas verificados nos países intitulados “democráticos” nem o sentido trágico da dicotomia Direitos Humanos versus Identidade Cultural. O debate atual sobre a governabilidade internacional, ou seja, sobre as ações intencionais geradoras de uma ordem política, busca caracterizar a complexa relação de poder existente em âmbito mundial e seus desdobramentos no plano institucional e jurídico, quer dos Estados, quer do Direito Internacional Público, e resolver o dilema da ordem ou da governabilidade em um sistema supostamente anárquico. A formação de normas e regras busca garantir a governabilidade desse sistema, mas a intenção dos principais atores é uma variável fundamental para a compreensão da ordem internacional. Como disse Visscher[8], a necessidade de coexistência desperta a consciência de certos valores sociais que modelam e sustentam uma concepção teleológica e funcional do poder. Segundo Wight[9] as questões chave da história das Relações Internacionais são a) a questão da “anarquia sistêmica”; b) a questão do “intercurso” ou intercâmbio contínuo entre as unidades do sistema; e c) a questão da existência (ou não) de uma comunidade valorativa “superior” no plano internacional, e sua caracterização.
Soberania e auto-determinação
Cientistas Políticos usam o termo "anarquia" para designar a estrutura de poder na sociedade de Estados soberanos. Para eles, não existindo autoridade que estabeleça normas de conduta aos Estados e uma respectiva ação disciplinar, há anarquia – ainda que se observe, em termos relativos, uma estabilidade no cenário internacional. Segundo Hobbes, a essência da anarquia internacional reside no fato de inexistir um ator internacional com autoridade legítima sobre todos os demais Estados. Outros falam em governabilidade precária, com significado analítico e por ausência de legitimidade da potência hegemônica no comando dos assuntos globais. O domínio do governo internacional trata de questões perenes da teoria do direito internacional público: Quais são os “interesses comuns” numa sociedade de Estados? Ocorre que sequer há uma sociedade internacional no sentido atribuído pelos contratualistas. E para aqueles que aceitam a noção de pacto entre as nações, nunca houve consenso global. E isso porque na noção de “contrato” subjaz a de capacidade das partes, licitude do objeto e ausência de vício formal. O pacto internacional somente se dá entre nações civilizadas, consoante as cartas da Sociedade das Nações e das Nações Unidas – o que exclui dois terços da humanidade, sob o prisma do hegemon e reduz as potencialidades de formação de um “contrato” internacional global. O corpus teórico das relações internacionais é derivado da experiência européia, pois, como bem colocou Waltz, a teoria é escrita nos termos do poder hegemônico[10], e a importância das Nações Unidas foi questionada por ocasião da invasão da coalizão anglo-americana ao Iraque sem autorização de seus órgãos, ficando evidente que somente eventualmente seu sistema de segurança coletiva funciona. Os construtivistas[11] entendem o sistema internacional como socialmente construído, não se diferenciando ontologicamente de outros sistemas sociais; por conseqüência, o estudo das instituições internacionais não pode tratar valores, idéias e a cultura como variáveis endógenas, mas sim em constante construção interativa de novas formas de identidade, cultura e valores comuns. Nas bases da nova ordem internacional, as possibilidades de cooperação são maiores na medida em que ocorra convergência de orientação de valores. E é este quadro que delineia um modelo de Direito Internacional Público que não tem suficiente justiça para ser efetivo direito, o mínimo de autodeterminação para ser inter-nacional, nem uma altura adequada de fins para ser público[12].
Vejamos o caso das armas nucleares, tidas como garantidoras da autodeterminação dos povos: recentemente, um país do grupo “civilizado” efetuou testes nucleares, violando o consenso “civilizado” estabelecido pelo Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares, de 1996. A ocorrência de protesto por parte de diversos países do grupo deu a dimensão da noção atual de soberania, mas não garante que o protesto tenha se revestido duma ação disciplinadora. É fato que a soberania interna do Estado francês não se rendeu ao suposto interesse comum, ainda que verifiquemos uma ação inibidora do protesto internacional. E isso porque a Política Internacional avizinha-se do Direito Internacional Público, dando-lhe ou retirando-lhe a efetividade. O do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (tnp) deveria ser a barreira legal capaz de conter a proliferação de armas nucleares, e será revisto em 2005. Todavia, as potências nucleares ignoram as obrigações assumidas de desarmamento, dispostas no Artigo VI do TNP[13].
A idéia de Estado-nação formou-se para combater o supranacionalismo da cristandade, adquiriu legitimidade com os Tratados de Paz de Westphalia e está em franco declínio nos processos de jurisdicionalização da vontade hegemônica. Fala-se em sociedade internacional, em pacto global, em crise das estruturas de autoridade baseadas no Estado-nação, em interdependência. E os agentes transferem para foros internacionais (Nações Unidas e seus organismos e agências) o aparato burocrático-administrativo que, idealmente, representa os interesses do povo nos limites do contrato social. Quando se fala em "ordem" na sociedade internacional, necessariamente implica ser esta resultante de um pacto entre todas as nações para o controle de todas as nações. É nesse contexto que se perpetua a "governabilidade" internacional, ainda que a relação entre Estados soberanos tenda a ser anárquica. Mesmo no pensamento kantiano, os Estados considerados em suas relações externas permanecem em um plano não-jurídico e num estado de guerra permanente, ainda que se não tenha como deflagrado o conflito. A solução, para ele, seria a celebração de um pacto internacional (‘contrato social primitivo’) que vinculasse os povos à não ingerência nos litígios internos de uns e outros e garantira mutuamente os Estados em relação a ataques de outros Estados. Tal pacto não deveria instituir nenhuma forma de poder soberano, mas sim uma Federação dissolúvel ad nutum – vale dizer, uma Confederação[14].
Desde Tucídides até Maquiavel, pensadores detêm-se na questão de como unidades autônomas – representantes da identidade cultural de um determinado povo – se envolvem em conflitos com outras unidades devido a necessidades variadas (econômicas, estratégicas ou políticas). O recente fim do conflito ideológico entre o capitalismo e o comunismo não significou uma nova fase de paz entre os Estados. Megablocos de natureza econômica e pretensões de unificação política não significam, necessariamente, a instituição de instâncias supranacionais. Paradoxalmente, é do próprio capitalismo que surge a maior ameaça à soberania estatal, a ver, a imposição de normas flexíveis de interesse de empresas transnacionais.
Soberania e jurisdição
Pergunta-se: a vontade dos Estados determina a normogênese ou a jurisdição compulsória? Ou ainda, num grau anterior: a vontade do povo determina a normogênese ou a jurisdição? O Direito, segundo Eros Roberto Grau, "[…] não é uma ciência e as decisões no seu âmbito tomadas não são decisões cientificamente determinadas. O Direito, como afirmei, é uma prudência. […] Assim, todos os que aplicam o Direito, ao fazê-lo, exercitam uma prudência, segundo e conforme a lógica da preferência [e não a da conseqüência, que é científica][15]”. Na contemporaneidade, a premissa original da soberania dos Estados tem sofrido alterações, mas não mutações que a descaracterizem de plano. O modelo de soberania externa absoluta e a ausência de normas no sistema internacional foi antes um ideal que uma realidade da política internacional. Em termos de aceitação de jurisdição internacional, a verdade é que os Estados comparecem perante os Tribunais Internacionais não como suma potestas, mas como membros de tratados nos quais declararam sua vontade e criaram a obrigação de lá comparecer. A obrigação jurídica estabelecida no tratado internacional não é provida de executoriedade, todavia. A competência Corte Internacional de Justiça (CIJ) tem por pressuposto indispensável o consentimento das partes: é o que consagra o artigo 36º do seu Estatuto. E a alegação de falta de jurisdição foi o fundamento legal de sua decisão no caso Iugoslávia vs. países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Alguns anos antes[16], a CIJ decidiu que as resoluções dos órgãos das Nações Unidas não impõem uma obrigação a todos os Estados, não constituindo sequer fonte de direito para decidir a questão posta sob sua jurisdição por ato de vontade dos Estados envolvidos.
É no princípio do monopólio da jurisdição, atributo natural do Estado soberano, que encontramos a resistência para sua internacionalização, sob a alegação de que o poder soberano dos Estados Nacionais inviabilizaria a efetividade das decisões dos Tribunais Internacionais implementados. A saída recentemente encontrada foi o princípio da subsidiariedade, estipulando que a atividade jurisdicional do Tribunal Penal Internacional seja complementar àquela dos Estados Nacionais[17]. Há, ainda, a questão das pretensões de jurisdição do Tribunal sobre crimes cometidos por cidadãos de Estados não-signatários, incluindo funcionários públicos e elementos das Forças Armadas – o que potencialmente atingiria cidadãos norte-americanos que se encontrem em território de países signatários, fazendo com que o acordo celebrado entre terceiros Estados[18] venha a suprimir a autodeterminação do povo que detém a hegemonia militar. Ressalte-se, ainda, que o Tribunal Penal Internacional tem competência para julgar pessoas físicas, e não pessoas morais de Direito Internacional Público.
Contudo, consideremos que os Tribunais Internacionais outrora implementados foram concebidos por Estados-nações considerados potências política, econômica e militar, os Estados Unidos e Grã-Bretanha[19]. Sob esse prisma, o Tribunal Penal Internacional pode ser visto como uma iniciativa da União Européia (como parte do rearranjo internacional após a queda do Muro de Berlim) que afeta os interesses da potência hegemônica – e, por conseqüência, a pretensão de governabilidade global.
O enfoque simplista da sociedade internacional sem governo nunca se adequou à realidade. Desde o início da comunidade ocidental (Pax romana), e até a sociedade dita moderna, com os Tratados de Paz de Westphalia (1648), Estados soberanos nunca agiram de forma anárquica. Estados nunca se comportaram como membros de uma sociedade política porque não há pacto social global, malgré as Nações Unidas. Todavia, os Estados jamais se comportaram de forma caótica, desconsiderando totalmente regras previamente convencionadas. A conduta dos Estados sempre foi determinada por princípios, normas, regras e procedimentos – é bem verdade que sob o prisma europeu – e formada por instituições tradicionais que tiveram seu nascedouro e inspiração em categorias européias. E são estas as instituições que darão aos ocidentais a previsibilidade do comportamento dos “outros” – mas não tornam possível um governo mundial. É exatamente a isso que chamamos ordem internacional.
É até possível que estejamos caminhando para o fim das unidades territoriais conhecidas como Estados, mas devemos reconhecer que somente o Estado é capaz de conduzir a ordem mundial, num sistema chamado de "anarquia regulada", sendo a única instituição responsável pelo balanço de poder. A comunidade internacional seria, considerada a globalização, a referência para a análise dos fenômenos afetos a todos, e os Estados continuariam respondendo por assuntos locais, e as coletividades estatais deteriam poderes de intervenção nos Estados que assim convencionassem.
Governabilidade
Mas, o quê será governado, por quem e, principalmente, como? Apesar de se falar em "comunidade internacional", uma sociedade de Estados não teria qualquer projeto político comum, mas tantos projetos nacionais quantos Estados façam parte do pacto. Governabilidade internacional, tal como concebida pelas instituições do Direito Internacional Público clássico, é necessariamente restrita. E o mais interessante é notar que a globalização cultural, sendo peça ideológica de uma estratégia de domesticação em escala planetária, resultaria na configuração de um mundo integrado e organizado nos moldes de um gigantesco Estado-nação, cujo centro irradiador seria, necessariamente, um império capitalista sem possibilidades de governo. Segundo Negri e Hardt[20], apesar de a criação do Império trazer devastadoras e violentas estruturas de opressão e exploração, ela também cria as condições para a libertação, pois os seus paradigmas favorecem a visibilidade dos processos hegemônicos e a consciência ontológica dos seus conteúdos e efeitos.
Um outro problema relativo à governabilidade é o da igualdade como um valor ocidental que não pode ser efetivamente implantado e aceito por todos. Boaventura Souza Santos enfrentou a questão[21] e sugere que os direitos humanos só poderiam se efetivar legitimamente numa sociedade global se transcendessem o desafio do multiculturalismo, definindo os direitos não como abstratos e universais de acordo com a tradição ocidental, mas a partir de valores das diversas culturas que compõem a comunidade internacional.
Conclusão
Ao cabo, observa-se o debate em torno do papel das Organizações internacionais, governamentais e não-governamentais, na formação de normas e instituições internacionais: com a hegemonia norte-americana, a capacidade das Nações Unidas para gerir a paz a nível global se fragilizou e acabou por ter só um papel de controle organizativo de pós-guerra – quer na Iugoslávia, quer no Iraque[22]. A governabilidade se efetiva mediante normas jurídicas, e as normas de Direito Internacional Público se efetivam pelo uso da força militar ou econômica, em última instância. No século XIX, a governabilidade internacional se efetivou mediante um governo de facto composto pelas potências. Assim foi o Concerto Europeu. No século XX, a governabilidade pelo Imperium buscou legitimidade – e a obteve – nas resoluções das organizações internacionais. A História demonstra que a consciência de um interesse comum surge com a necessidade de ação no plano concreto. A governabilidade é sempre uma imagem fiel dos interesses comuns dos Estados e é relacionada ao poder: trata-se de como obrigar os outros a fazerem o que queremos que eles façam – ou como forçar a ordem no mundo para que esta se conforme ao interesse norte-americano. Assim principia o século XXI.
Notas
Informações Sobre o Autor
Margareth Leister
Procuradora da Fazenda Nacional em São Paulo
Professora da PUC-SP