Brasil - Brasília - Distrito Federal - 30 de julho de 2018
Nos territórios proibidos do Rio, um pastor caminha entre fuzis e narcos
O dia a dia de André Assis, o evangélico que leva a palavra de Deus aonde o Estado só chega com blindados
Por MARÍA MARTÍN -
14/10/2017
-
04:40:46
O pastor André Assis, de 45 anos, leva a palavra de Deus aonde o Estado
não leva nem água nem luz: no coração das favelas do Rio de Janeiro.
Tem os sapatos gastos de esquivar buracos nas calçadas e perde a voz
pregando para adolescentes armados com fuzis e os bolsos cheios de
cocaína. E reza para que um dia um desses jovens que baixa a arma ao
vê-lo passar abandone essa vida e o siga. Eles só têm dois caminhos à
frente: morte ou cárcere. O pastor quer ser a terceira opção.
É madrugada de sexta-feira em Costa Barros, um dos complexos de favelas
com mais manchetes policiais do Rio de Janeiro. O pastor estaciona seu
Fiat Uno caindo aos pedaços no pátio de um conjunto habitacional com
vista para um rio fétido de esgoto. Uma porca recém dada a luz arranca
do chão, silenciosamente, o pouco de verde que existe no caminho. Assis é
seguido por três irmãos, todos de paletó e uma flanela cor de laranja
para limpar o pó dos sapatos. Por alguns minutos, atravessando vários
becos, o que se vê é um bairro morto, sujo e escuro, até chegar a uma
quadra de basquete, onde se prepara o baile dessa noite. Já se ouve o
funk. Várias adolescentes aguardam nos bares mais próximos ensaiando
poses sexys diante das câmeras de seus celulares.
Um homem troncudo com uma pistola e um radiotransmissor na cintura e um
jovem de chinelo abraçado a um fuzil cortam a passagem. O pastor não os
conhece, mas os saúda e os convida para fazer uma oração. O homem da
pistola acena com a cabeça e olha para o outro lado, mas o jovem larga
sua arma, fecha os olhos e se agacha para que Assis ponha a mão em sua
cabeça. Juntos, eles rezam, enquanto os auxiliares do pastor distribuem
folhetos com orações. Despedem-se sem cerimônias, e o rapaz pega de novo
o seu fuzil. O ritual se repete naquele que parece ser o coração do
tráfico de drogas da favela. Os grupos de adolescentes ameaçadores que
vigiam as ruas se desarmam diante do chamamento do pastor. Ninguém
questiona ou se incomoda com a sua presença, nem tampouco com a da
reportagem. O pastor representa a única autoridade - além de seus chefes
- que eles respeitam. E temem.
Faz dez anos que Assis se movimenta pelo submundo do crime do Rio de
Janeiro, onde uma pessoa morre assassinada a cada 80 minutos. Seu
propósito de salvar almas do tráfico e do consumo de drogas começou nas
prisões e acabou levando sua Igreja Assembleia de Deus Tempo de
Restauração a territórios infranqueáveis, ali onde as autoridades só
entram com blindados e disparos.
A travessia do pastor é ingrata. A fé de seus seguidores concorre com
armas, mulheres, drogas e poder, mas, cedo ou tarde, alguns dos
traficantes acabarão procurando ele. Jackson, um jovem de 23 anos com
orelhas de abano, procurou o Assis quando os seus próprios companheiros o
condenaram à morte depois do desaparecimento de uma quantia
significativa de dinheiro. Não foi ele quem roubou, mas ali onde impera a
lei do tráfico a justiça é feita à bala, arbitrariamente. Jackson, que
fumou o seu primeiro baseado aos oito anos e era um dos seguranças do
chefe de sua favela, agora usa paletó, leva uma Bíblia na mão e segue os
passos do pastor, procurando evangelizar as pessoas, tomando a si
próprio como exemplo. Após fugir da sentença de morte, Jackson vai se
casar e formar uma família, embora ainda viva no centro de recuperação
onde Assis leva quem deseja segui-lo.
“Criei este lugar porque percebi que meu trabalho estava incompleto"
O Instituto Revivendo com Cristo é um local humilde, com um refeitório
comunitário e quartos onde mal cabe uma cama. Neles dormem até 55 homens
que trocaram as drogas e o crime pela oração. Aqui ouvem-se tiros ao
outro lado do muro, mas ninguém se espanta, muito menos o pastor. Faz
parte da rotina de Antares, uma favela paupérrima, a três horas de
distância da praia de Ipanema –depois de pegar uma van, dois ônibus e um
metrô.
Os alunos, como Assis chama seus pupilos, fazem jejum de purificação e,
ajoelhados em bancos de igreja de costas para o que seria o altar,
rezam todos juntos em voz alta. Para ganhar algum trocado, fabricam
desinfetante concentrado e o vendem nas ruas enquanto pregam o
Evangelho. E na hora de comer fazem uma fila militar, levantando as mãos
e agradecendo a Deus aos gritos. O ritual arrepia. “Criei este lugar
porque percebi que meu trabalho estava incompleto. Uma vez, numa das
situações mais chocantes da minha vida, um traficante me chamou. Chorava
e implorava que o tirasse dali. Não pude ajudar, não tinha aonde
levá-lo”, conta o pastor.
O trabalho do pastor é mais uma demonstração da penetração das igrejas
evangélicas nos lugares mais recônditos do Brasil, onde o catolicismo
perde influência desde que deixou de sair às ruas para se refugiar nas
sacristias. Em muitas favelas do Rio, que sangram com o recrudescimento
da violência e a grave crise econômica, o gás, a água e a conexão de
internet são distribuídos pelos traficantes, com pagamento de taxas
abusivas. Aqui não chegam os técnicos da companhia de luz, tampouco há
suficientes creches, nem bibliotecas, muito menos saneamento básico. Há,
porém, um número cada vez maior de templos evangélicos. Nos últimos 40
anos, os evangélicos passaram de 5,2% a 22,2% da população, além de ter
consolidado uma bancada parlamentar capaz de pautar a agenda do
Congresso. “A igreja passou a ser um show, mas Jesus vivia no meio dos
pecadores, das prostitutas, dos bandidos. E acredito que essa é a minha
missão”, diz Assis.
"Fiz muita maldade com os outros. Vi muitas mães chorando por minha culpa"
Luiz, de 28 anos, também se aproxima para revelar sua história. Até
duas semanas atrás, o demônio se manifestava através de seu corpo,
adverte. “Quando tocávamos nele, rosnava como um animal e virava os
olhos”, ilustra o pastor. Luiz agora tem o olhar perdido. Com 13 anos,
sobreviveu a um acidente de trânsito em que perdeu a mãe e os irmãos.
Seu pai, uma lembrança efêmera, só apareceu para buscar os documentos
que lhe servissem para receber uma indenização. “Não dormiu comigo nem
uma noite”, recorda com raiva. Luiz era uma presa fácil para o
narcotráfico. Naquela época, a única coisa que ele fazia era cheirar
cocaína. Matou gente, entre eles um estuprador, além de ameaçar e
maltratar suas mulheres.
Perdido no vício, Luiz chegou a liderar um ponto de venda de drogas em
sua favela - uma posição relativamente respeitada dentro do crime. Diz
que ganhava 6.500 reais por semana, 20 vezes mais do que receberia hoje
como pintor. Há um ano, a polícia entrou na comunidade onde traficava e
atirou os seis disparos que agora ele mostra pelo corpo. Uma bala rasgou
seu pescoço. Outra deixou-lhe um buraco na cabeça. Perdeu 10% de massa
encefálica. Após se recuperar, procurou o pastor. “Fiz muita maldade com
os outros. Vi muitas mães chorando por minha culpa. Antes não me
importava com Deus, mas agora estou me fortalecendo”, afirma.
“Sou como uma garça branca. Vivo pisando no barro, mas nunca me sujo”
O trabalho de Assis tem seus sobressaltos. Vários grupos de traficantes
armados que se dizem evangélicos estão destruindo, no Rio, os lugares
de culto de religiões afro-brasileiras, como a umbanda e o candomblé. A
onda de intolerância, que já era preocupante, sai do controle ao contar
com um braço armado. Dados de 2015 da Comissão de Combate à Intolerância
Religiosa indicam que o Rio lidera esse tipo de ataques, cujas
principais vítimas são os fiéis das religiões de matriz africana.
Após as últimas agressões, uma antiga foto do pastor rezando com
traficantes começou a circular nas redes sociais. Acusaram-no de
promover a destruição dos santuários alheios. O pastor se desesperou e
foi à delegacia para denunciar a injúria. “Acho que devem predicar, mas
nunca usando a força ou a violência”, diz ele, convencido, de todo
jeito, de que o demônio vive nessas religiões. Por via das dúvidas,
Assis esclarece que seu trabalho é sustentado com doações e que nunca
aceitou um centavo do crime. “Sou como uma garça branca. Vivo pisando no
barro, mas nunca me sujo”, define. O pastor adora metáforas com
pássaros.
De Costa Barros, Assis dirige durante meia hora até o enorme Complexo
da Maré, outro território governado pelo narcotráfico, disputado
diariamente a tiros por criminosos e policiais. São as 2h da madrugada, e
parece que ninguém dorme. No meio da calçada, duas senhoras vendem vaca
atolada em grandes panelas de alumínio, os feirantes preparam os postos
para o dia seguinte, os bares estão lotados e as famílias, incluindo
avós e bebês, assistem a movimentação nas portas das suas casas de
tijolo.
Em cada esquina há grupos de adolescentes vendendo cocaína, maconha e
lança-perfume. Os carros passam com as pontas dos fuzis saindo pela
janela, e as motos com meninos armados para a guerra aceleram ao passar.
Dependentes de crack perambulam como mortos-vivos nos becos mais
escuros. Sorriem alheios à desgraça, enquanto duas viaturas policiais e
seus respectivos agentes passam a noite estacionados a cerca de 200
metros da festa do crime. “Há uma barreira invisível, e todos sabemos
qual é. Se a atravessam, bang, bang!”, provoca um dos líderes dos
traficantes.
“O senhor acha que eu não quero sair desta vida? Que não gostaria de poder ir ao shopping com minha mulher?
É uma péssima noite para o pastor fazer seu trabalho. A festa, numa
quadra esportiva oculta num beco, é regada a whisky Chivas 12 anos
misturado com energético, e ninguém parece ter vontade de escutar a
palavra de Deus. Os mais de 20 homens, exibindo armas e ouro no pescoço,
nem sequer descem do camarote improvisado para ver o pastor. As
mulheres, com decotes e vestidos apertados, sentadas todas juntas, estão
ocupadas demais alimentando suas redes sociais.
Um homem na faixa dos 30 chama a atenção pelos dois quilos de ouro em
colares pendurados sobre sua camiseta Calvin Klein, todos com imagens de
Jesus e Nossa Senhora. É um traficante foragido da Justiça, tem uma
arma na cintura e, como muitos deles, ora todos os dias. A reportagem
indaga como é possível servir a Deus e, ao mesmo tempo, ser membro da
maior facção criminosa do Rio. Ele escuta a pergunta, mas responde
diretamente ao pastor. “O senhor acha que eu não quero sair desta vida?
Que não gostaria de poder ir ao shopping com minha mulher? Se pudesse
voltar 17 anos atrás, faria tudo diferente. Hoje não posso sair da
favela, não sou um homem feliz, mas deixar essa vida é complicado”,
justifica. Ele afirma que certas palavras, como as do pastor, mexem com
ele. “Realmente tocam o coração, mas outra coisa é se entregar a elas”,
afirma. “Quando conseguir estabilizar minha família, poderei sair.
Agora, não.”
O traficante relata que foi “criado no Evangelho”, mas que matou sua
primeira mulher pela “ânsia do mal”. De qualquer forma, diz, não dá um
passo sem antes consultar Deus. “Outro dia me roubaram 100.000 reais, e
eu tinha certeza de quem havia sido. Estava nervoso e pedi a Deus que me
dissesse se era realmente quem eu pensava. Prometi que, se me ajudasse,
não o mataria”, conta. No dia seguinte, acordou com a imagem do traidor
na cabeça, o mesmo de quem desconfiava, e correu para ajustar as
contas. “O cara começou a tremer e confessou. Havia gastado tudo, nem
sequer podia me devolver uma parte. Mas cumpri minha promessa. Dei um
tapa nele e fui embora.”
"Me sinto como aquele beija-flor num incêndio, que faz milhares de viagens carregando apenas algumas gotas de água no bico"
A festa nas ruas da Maré não termina. O aniversariante, também cheio de
ouro no pescoço, mostra-se eufórico em pleno show de fogos de
artifício. Rodeado por seus soldados, aponta o fuzil para o céu. Todos
fazem silêncio. As famílias que olham da porta das casas procuram
discretamente a proteção da parede. Após cinco rajadas de tiros
estrondosos, ele solta um grito triunfal. O pastor decide ir embora. São
4h da manhã.
–Pastor, não fica frustrado?
–Eu não me iludo, mas sei que cada uma dessas visitas servirá para
alguma coisa. Me sinto como aquele beija-flor num incêndio, que faz
milhares de viagens carregando apenas algumas gotas de água no bico. Os
outros animais da florestas riem dele, mas o beija-flor está fazendo a
sua parte.