terça-feira, 6 de agosto de 2013
A memória dos neurônios
Envelhecimento
Drauzio VarellaA memória dos neurônios
Como médico, acompanhei inúmeros pacientes que enfrentaram situações típicas daquelas em que costumamos dizer: “Se isso acontecesse comigo, eu queria morrer!” Em quase trinta anos de cancerologia, no entanto, ouvi tal pedido apenas três vezes. Não me refiro, é lógico, às súplicas inconsequentes dos momentos de dor lancinante, cansaço extremo ou gripe forte, como chegam a fazer os mais dramáticos. Falo de três pessoas lúcidas, sem dores ou outra aflição aguda, que se sentaram diante de mim para dizer: “Doutor, chega, por favor”. Ainda assim, a esse pedido seguiram-se vários dias de hesitação e arrependimento, nos três casos.
A intensidade do apego à existência tem raízes evolucionistas. Nos 3,5 bilhões de anos em que a vida caminhou pela Terra até nascermos você e eu, nossos antepassados competiram ferozmente pelas reservas alimentares, cresceram e multiplicaram-se. No decorrer desse tempo, milhões de gerações de indivíduos que lutaram com mais determinação pela sobrevivência deixaram mais descendentes, e esses herdaram as características genéticas dos pais. Por isso, agarrar-se à vida a qualquer preço é característica fundamental de todas as espécies que habitam o planeta.
Há, entretanto, algumas situações humanas em que a lei da sobrevivência a qualquer preço talvez não mereça ser respeitada, na visão da maioria. É o caso da deterioração do sistema nervoso central. Poucos de nós encontraríamos justificativa para viver numa cama, com descontrole esfincteriano, na dependência total dos outros, sem reconhecer os filhos ou entender qualquer palavra ao redor, para sempre. E, pior, sem condições físicas sequer para dizer: “Chega, pelo amor de Deus”.
Expectativa de vida
O século 20 trouxe um aumento da expectativa de vida ao nascer, sem paralelo na história da humanidade. Em 1900, a média de vida na Europa desenvolvida era 45 anos. Hoje, está por volta de 80 em diversos países. Nos 5 milhões de história do Homo sapiens, jamais aconteceu tal feito: em apenas 100 anos, quase dobrar a vida média da espécie. Esse recorde nos deixa curiosos: quanto viverão nossos filhos? E os netos, então?
No momento, duas linhas de pensamento dividem a ciência:
1) A primeira acha que existe limite de duração para o corpo humano. Para eles, a vida média da população nos países industrializados vai ficar ao redor de 85 anos.
Chegaram a essa conclusão analisando os índices de mortalidade associados às principais doenças modernas. A conclusão foi pessimista: nem acabando com as mortes por câncer, doença cardiovascular e diabetes, a média de vida da humanidade ultrapassaria 95 ou 100 anos.
2) Para o segundo grupo, não há limite inerente à duração da vida humana. Contando com os avanços científicos que virão, uma criança nascida hoje poderá viver 100 ou 110 anos; talvez mais.
A discussão entre as duas correntes está longe de acadêmica; dela depende o futuro das políticas sociais dos países. Nos Estados Unidos, em 1990, para cada 100 trabalhadores de 18 a 64 anos, havia 20 aposentados com mais de 65 anos. Se as projeções estiverem corretas, com o aumento da longevidade, os mesmos 100 trabalhadores terão que pagar aposentadoria para 36 aposentados, em 2050.
Vamos admitir a hipótese de que as previsões mais otimistas estejam corretas: que possamos viver mais de 100 anos e receber regularmente nossos salários mensais. Nesse caso, será fundamental investirmos na melhora da qualidade de vida na velhice. Para tanto, podemos reduzir o número de calorias ingeridas, aumentar a atividade física e evitar muitas doenças preveníveis. Mas, como preservar a memória e a agilidade intelectual? Como manter a integridade do sistema nervoso central se é sabido que os neurônios morrem à medida que envelhecemos?
A resposta virá depois de uma explicação de ciência básica.
A morte dos neurônios
Em 1955, H. Brody publicou, em Nova York, o primeiro estudo que deu suporte à convicção de que os neurônios são destruídos com o passar dos anos. Tomou 20 cérebros de indivíduos cujas idades variavam entre alguns meses e 95 anos. Fez cortes histológicos desses cérebros, corou-os com uma substância que deixa os neurônios bem visíveis e contou-os numericamente. Brody encontrou perda significante de neurônios com a idade, inclusive em áreas essenciais para manter a capacidade de planejamento e em centros que controlam a percepção de estímulos sensoriais.
Estudos posteriores mostraram que no córtex cerebral, estrutura sem a qual não haveria por que termos orgulho da condição humana, até 40% dos neurônios desaparecem com a idade. Em centros ligados à gênese e controle das emoções, a perda atingiria 25% a 50%.
Com o advento das técnicas mais modernas para obtenção de imagens radiológicas, como a tomografia computadorizada e a ressonância magnética, foi possível a obtenção de radiografias nítidas do sistema nervoso central. Empregando essa tecnologia, diversos autores documentaram redução do volume cerebral com a idade.
Em 1992, S. Rapoport, do National Institute on Aging, estudando ressonâncias magnéticas cerebrais de homens de diferentes idades, concluiu que o volume total do cérebro diminui 10% nos homens com mais de 60 anos, quando comparado com o grupo de 25 anos ou menos. Rapoport e seu grupo afirmaram que as imagens obtidas sugerem redução das dimensões da massa cinzenta, camada cerebral onde se situam os corpos dos neurônios (os neurônios parecem aranhas, com um corpo central e muitas patas compridas, chamadas axônios, que estabelecem conexões à distância com outros neurônios).
Estudo semelhante conduzido por M. de Leon na Universidade de Nova York, comparando imagens cerebrais de jovens de 20 a 30 anos, com as de adultos de 60 a 70, mostrou que a redução de volume, embora pequena, era significante e comprometia não só a massa cinzenta, mas também a branca, situada mais internamente e que contém os axônios.
Essas evidências experimentais explicam a deterioração neurológica progressiva de grande parte das doenças da senectude: Alzheimer, demência senil, Parkinson e tantas outras. O que não conseguem explicar são os casos dos idosos lúcidos. A perda de tantos neurônios afetou a qualidade dos contos de Jorge Luís Borges? Os quadros de Matisse?
Embora não explicasse a velhice inteligente, a teoria da morte continuada dos neurônios forneceu as bases anatômicas para a impressão geral de que a idade estaria irreversivelmente ligada ao descontrole motor, à perda da memória e do controle emocional.
A vida dos neurônios
A teoria da morte inexorável foi seriamente contestada, pela primeira vez, por H. Haug, da Universidade de Lübeck, na Alemanha. Num estudo com 120 cérebros, Haug fez uma observação simples: o tecido cerebral encolhe, quando cortado e corado para os exames de rotina no microscópio. E mais, o tecido jovem encolhe mais do que o velho. A partir daí, Haug desconfiou de que as ideias anteriores poderiam estar incorretas: se esticarmos uma borracha contendo dez alfinetes, eles vão parecer mais separados do que se deixarmos a borracha contrair. Com a densidade dos neurônios aconteceria a mesma coisa: nas lâminas de tecido cerebral infantil, mais retrátil, os neurônios apareceriam mais próximos, concentrados. No velho, tecido menos retrátil, neurônios mais separados, densidade menor.
A partir da publicação desse trabalho, em 1984, a conclusão de que a idade estaria irreversivelmente associada à perda neuronal sofreu o primeiro abalo: talvez fosse devida a mero artefato histológico.
O achado instigou a curiosidade dos neurocientistas. Nos anos que se seguiram, vários laboratórios se dedicaram ao estudo da questão, alguns procurando desenvolver métodos de processamento do tecido nervoso que evitassem o “encolhimento”; outros tentando corrigir os erros de medida provocados por esse fenômeno. Os resultados foram conflitantes até que, em 1987, ocorreu o segundo abalo na teoria da morte neuronal obrigatória.
Nesse ano, o grupo de R. Terry, da Universidade da Califórnia, mostrou que havia outro problema com os trabalhos que serviram de base para a crença na morte de neurônios: os cérebros mais velhos empregados nos primeiros estudos, seriam realmente de idosos sadios ou haveria casos de Alzheimer e demência senil entre eles, doenças definitivamente associadas à perda de células cerebrais?
O argumento do grupo de Terry era consistente: à época da publicação daqueles estudos iniciais, os métodos para caracterizar essas patologias cerebrais eram antiquados, muito menos sensíveis do que os modernos. Sem perceber, os pesquisadores teriam incluído idosos já doentes em seu material, influenciando os resultados finais.
Para demonstrar que estavam certos, Terry e seu grupo estudaram 51 cérebros de pessoas consideradas normais, depois de submetê-las a uma bateria exaustiva de testes de avaliação da capacidade intelectual. Encontraram diminuição no número de neurônios longos, com a idade. Em compensação, notaram um aumento dos curtos. Os neurônios encurtam, mas não morrem, concluíram.
No mesmo ano, Coleman e Flood publicaram uma revisão rigorosa dos trabalhos anteriormente publicados e concluíram que a teoria da morte dos neurônios com a idade havia sido estabelecida com base em trabalhos experimentais que apresentavam problemas técnicos capazes de comprometer as conclusões finais.
Com o advento de técnicas tridimensionais, mais precisas para a contagem de neurônios, diversos pesquisadores demonstraram que o envelhecimento não está associado à perda inevitável de neurônios, salvo em condições patológicas:
1) A. Peters e M. Moss da Universidade de Boston estudaram os cérebros de macacos rhesus, espécie de macacos com organização social caracterizada por rígida hierarquia e machos-dominantes ditatoriais. Em mais de dez anos de pesquisas, nas quais foram contados neurônios em áreas cerebrais ligadas à visão, controle motor e resolução de problemas complexos, os autores não conseguiram demonstrar que houvesse perda significante de neurônios com a idade.
Em artigo publicado na revista Science, em 1996, Peters afirmou: “Quando começamos a estudar os macacos, assumimos que haveria perda de neurônios do córtex cerebral, com a idade. Levou muito tempo para descobrirmos que não há”.
2) Nos últimos 20 anos, J. Morris e L. Berg, da Universidade de Washington, estão acompanhando 200 pessoas idosas que eram saudáveis ao entrar no estudo. Anualmente, os pesquisadores testam as habilidades cognitivas de cada indivíduo e entrevistam seus familiares na tentativa de identificar sinais precoces de demência senil. Quando os participantes do estudo morrem, os pesquisadores examinam o tecido cerebral e contam os neurônios presentes numa área cerebral crítica para a retenção da memória. Em pessoas com idades de 60 a 90 anos, os autores não foram capazes de demonstrar diferenças no número de neurônios presentes nessa área.
Em contraste, estudos da mesma área conduzidos entre portadores de doença de Alzheimer avançada mostram perdas de até 65% dos neurônios e, em casos de demência senil, 50%. Esses números deixam claro que nas doenças neurodegenerativas a perda de neurônios está definitivamente associada às deficiências neurológicas que as caracterizam.
3) Em 1993, o grupo de M. Albert, de Harvard, analisou as ressonâncias magnéticas cerebrais de 70 indivíduos saudáveis de diferentes idades. Comparando as dimensões das diversas áreas cerebrais entre indivíduos com idade de 30 a 80 anos, os autores não encontraram diferença nas dimensões da substância cinzenta e apenas 8% de redução no volume da substância branca dos mais velhos. Na conclusão do trabalho Albert diz: “Pensava-se que nós perdíamos neurônios cada dia de nossas vidas. Isso não é verdade”.
Perda da memória
Embora não pareça haver perda significativa de neurônios nos circuitos do hipocampo (estrutura situada profundamente, no meio do cérebro, crucial para a estruturação da memória), com a idade surgem deficiências funcionais nesses circuitos. Testes de aprendizado aplicados em roedores e primatas não humanos deixam claro existir redução na capacidade de reter informações, à medida que o animal envelhece.
Trabalhos recentes, empregando a melhor tecnologia disponível, confirmam a existência de fenômeno semelhante nos seres humanos. A conclusão é coerente com a impressão popular de que os velhos têm dificuldade progressiva para lembrar de fatos recentes, embora muitas vezes nos surpreendam pela lembrança detalhada de acontecimentos remotos.
Os estudos atuais mostram que há distinção clara entre o déficit associado ao envelhecimento “normal”, e aquele que representa manifestação inicial da doença de Alzheimer, por exemplo. A diferença mais importante é a de que as pessoas idosas saudáveis são capazes de reter novas informações, embora possam apresentar retardo para gravá-las na memória. Nos casos patológicos, em que ocorre perda substancial de neurônios, como vimos na doença de Alzheimer e demência senil, surge incapacidade progressiva e irreversível para memorizar informações recém-adquiridas.
Se não ocorre perda significante de neurônios no caso do envelhecimento “normal”, como se explicaria, então, a falta de memória de que tantas pessoas se queixam?
É provável que a perda de memória associada à maturidade seja consequente a um longo processo multifatorial:
1) O processo de aprendizado envolve circuitos de neurônios que se conectam a partir de diferentes centros cerebrais. Para aprender um caminho novo através das ruas de uma cidade, é preciso captar as imagens no lobo temporal, centro da visão, integrá-las com os circuitos de neurônios ligados à percepção tridimensional do espaço, à função coordenadora do cerebelo e com a circuitaria do lobo frontal, onde a informação será processada para se tornar consciente.
Os neurônios não estão ligados uns nos outros como os fios elétricos: suas terminações não se tocam, ao contrário, deixam um espaço livre microscópico, entre um axônio e outro, chamado sinapse. Na sinapse, são liberados íons e os mediadores químicos necessários para a condução do estímulo, que corre numa velocidade vertiginosa, medida em milissegundos.
A preservação desse mecanismo implica não apenas a estimulação adequada nas fases de desenvolvimento cerebral, como o uso continuado pelo resto da vida. A transmissão de estímulos nervosos envolve mediadores químicos liberados num dos terminais da sinapse e receptores que os captam na outra. É um processo que depende de treinamento para ser conservado. Quanto mais repetido for ele, maior o repertório que poderá ser gravado na memória.
O ato repetitivo explica por que velhos atores são capazes de memorizar textos enormes, enquanto pessoas muito mais jovens não conseguem guardar um simples recado telefônico.
2) É importante lembrar, que a perda de memória está muitas vezes ligada ao número de bits armazenados. Uma criança que conviva com trinta pessoas terá menor probabilidade de esquecer o rosto de uma delas, do que um adulto de esquecer um rosto entre milhares de outros.
No mundo moderno, boa parte das queixas de falta de memória das pessoas maduras está relacionada com o fluxo de informações. Calcula-se que o número de informações acumuladas no cérebro de um homem de 50 anos seja pelo menos três vezes maior do que o contido no cérebro de um rapaz de 25. Tal fato dá ideia da dificuldade que os neurocientistas encontram para desenvolver testes de avaliação de memória que possam ser aplicados nas diversas faixas etárias.
3) Mesmo sem morte de neurônios, a memória pode se deteriorar em razão de outras alterações neurológicas.
O grupo de A. Peters, da Universidade de Boston, estudando cérebros de macacos rhesus verificou que nos macacos mais velhos, a mielina (camada que envolve as terminações nervosas como a capa dos fios elétricos) apresentava sinais de degeneração não encontrados nos jovens. Quanto mais intensa a desmielinização encontrada, maior o déficit das funções cognitivas do animal. Os neurônios precisam estar bem encapados para funcionar direito.
Em 1995, L. Callahan demonstrou que com a idade pode ocorrer mudança na morfologia das sinapses (espaço livre entre os terminais de dois neurônios), alterando a condução do estímulo mesmo em neurônios aparentemente íntegros.
J. Morrison e colaboradores do Mount Sinai, em Nova York, mostraram que pequenas diminuições na concentração de receptores (moléculas que captam sinais químicos) existentes nas sinapses podem provocar deficiências importantes da memória com a idade.
O grupo de A. Arnsten, de Yale, demonstrou com elegância que não só essa perda de receptores, mas também a de neurotransmissores, como a dopamina e acetilcolina (moléculas que transmitem sinais entre neurônios), pode estar associada às dificuldades de memorização dos mais velhos.
4) O decréscimo na produção de estrógeno característico da menopausa interfere com os eventos neurológicos que conduzem às deficiências cognitivas e de memória (esse é um dos argumentos mais fortes dos defensores da reposição hormonal para as mulheres). No homem, a relevância dos hormônios nesses déficits, embora pouco clara, não deve ser menos importante.
A memória do futuro
O dogma de que os neurônios morrem a cada dia que passa parece abandonado na neurociência atual. Se essas células não são destruídas com o tempo, a deterioração progressiva da inteligência e da motricidade não é obrigatória na velhice.
A circuitaria de neurônios envolvida no mecanismo de memorização tem sido mapeada com rigor. As moléculas responsáveis pela transmissão e recepção de sinais entre neurônios começam a ser conhecidas e manipuladas. Os genes que codificam muitas delas já podem ser clonados e inseridos em bactérias-escravas para produção industrial. Em alguns anos, muitas deficiências cognitivas tradicionalmente associadas à idade poderão ser prevenidas, tratadas com eficácia, ou adiadas por 10 ou 20 anos. Quem sabe?
Herpesvírus
Imunologia
Herpesvírus
Embora façam parte da mesma família, cada um desses vírus age de forma diversa e afeta sistemas diferentes do organismo. As espécies de Herpesviridae mais disseminadas entre os seres humanos são: HSV-1, que causa o herpes labial; HSV-2, responsável pelo herpes genital; varicela zoster, causador da catapora e herpes-zóster; Epstein-Bar, que causa a mononucleose; e o citomegalovírus.
Saiba mais
- Doenças e Sintomas
Herpes-zóster (Cobreiro)
- Entrevista
Citomegalovírus
Os sintomas das infecções causadas por herpesvírus variam, mas em geral se caracterizam por uma infecção latente nas células nervosas que pode ser reativada por fatores biológicos ou ambientais. As pessoas imunodeprimidas, como as infectadas pelo HIV, estão mais sujeitas às infecções pelo vírus. A contaminação em geral ocorre por contato direto ou indireto, por meio de troca de secreções orais e fluidos corpóreos.
Ácido úrico/Hiperuricemia
Doenças e Sintomas
Ácido úrico/Hiperuricemia
Os níveis de ácido úrico no sangue podem subir 1) porque sua produção aumentou muito, 2) porque a pessoa está eliminando pouco pela urina, 3) por interferência do uso de certos medicamentos.
Como consequência dessa taxa de ácido úrico elevada (hiperuricemia), formam-se pequenos cristais de urato de sódio semelhantes a agulhinhas, que se depositam em vários locais do corpo, de preferência nas articulações, mas também nos rins, sob a pele ou em qualquer outra região do corpo.
Estudos recentes realizados no Instituto do Coração de São Paulo mostram que níveis elevados de ácido úrico no sangue aumentam o risco de desenvolver acidentes cardiovasculares.
Sintomas
O depósito dos cristais de urato nas articulações, em geral, provoca surtos dolorosos de artrite aguda secundária, especialmente nos membros inferiores (joelhos, tornozelos, calcanhares, dedos do pé), mas pode comprometer qualquer articulação. Nem todas as pessoas com hiperuricemia desenvolverão gota, um tipo de artrite secundária, de caráter genético e hereditário, que acomete mais os homens adultos.
Nos rins, a hiperuricemia é responsável pela formação de cálculos renais (litíase renal) e insuficiência renal aguda ou crônica (nefropatia úrica).
Diagnóstico
O diagnóstico de certeza é dado por um exame que mede a concentração de ácido úrico no sangue e exige oito horas de jejum para ser realizado.
Tratamento e prevenção
Portadores desse distúrbio metabólico devem evitar o estresse físico, o uso de diuréticos e de anti-inflamatórios, assim como devem evitar a ingestão excessiva de alimentos e bebidas ricos em purina (carne vermelha, frutos do mar, peixes, como sardinha e salmão, e miúdos).
Como leite e derivados parecem melhorar a eliminação do ácido úrico, devem ser incluídos na dieta que, acima de tudo, precisa ser saudável e favorecer o controle da obesidade e da hipertensão.
Além da alimentação pouco calórica, quando necessário, podem ser indicados medicamentos para inibir a produção de ácido úrico (alopurinol) ou para aumentar sua excreção (probenecide e sulfinpirazona). Algumas pessoas precisam dos dois tipos porque têm excesso de produção e dificuldade de excreção dessa substância.
Recomendações
* Beba bastante água para ajudar o organismo a eliminar o ácido úrico;
* Prefira os alimentos não industrializados; adote uma dieta saudável, rica em frutas, verduras, leite e derivados;
* Evite o consumo de bebidas alcoólicas, especialmente de cerveja que é rica em purina;
* Não se automedique. Consulte um médico para orientar o tratamento e peça ajuda ao nutricionista para eleger uma dieta que ajude a controlar a taxa de ácido úrico e a manter o peso em níveis adequados.
Como é construído o pulmão?
Sistema respiratório
Daniel Deheinzelin é médico pneumologista. Livre-docente pela Faculdade de Medicina da USP, integra o corpo clínico do Hospital Sírio-Libanês (SP).Como é construído o pulmão?
Para realizar essa troca, o pulmão é composto de uma membrana muito fina, chamada membrana alveolar, que separa aproximadamente um litro de sangue de cinco litros de ar. Esse volume corresponde à capacidade máxima de ar que o pulmão de um adulto de 70 kg suporta.
Se a superfície da membrana alveolar de um pulmão fosse estendida como um tapete, ele teria o tamanho de uma quadra de tênis, por volta de 130 m2. A extensão dos vasos sanguíneos em contato com essa membrana é um pouco menor, 115 m2 mais ou menos. O mais impressionante, porém, é que essa área inteira é “lavada” por somente 200 ml de sangue. Portanto, para recobri-la por inteiro, a camada de sangue em contato com a membrana tem de ser muito fina. Tão fina que, nesses vasos, passa um glóbulo vermelho por vez, algo que não ocorre nos demais órgãos do corpo.
Outro fato intrigante é que essa quadra de tênis é feita apenas com um litro de tecido. Por isso mesmo, as perguntas mais frequentes sobre o pulmão refletem o desejo de saber como a quadra de tênis se mantém com tão pouco tecido e como está dobrada para caber dentro do tórax. Para ter uma ideia, o desafio é igual a fazer uma dobradura com uma folha de papel sulfite, que se encha e se esvazie de forma cíclica, e caiba dentro de um dedal.
Como construir um sistema que leve ar e bombeie sangue ao mesmo tempo para algumas centenas de milhões de unidades de troca, os alvéolos?
A solução ocorre durante a fase de morfogênese do feto, ou seja, na fase em que os órgãos se formam. Enquanto o sistema respiratório se divide em série, com uma unidade ligada à outra, o sistema vascular se divide em paralelo, de forma que a partir de um ramo inicial da artéria pulmonar, as divisões estabeleçam contatos em diferentes áreas de ventilação. Imagine uma tela de bordado. A tela é formada pelas unidades respiratórias e os fios que se entrelaçam na tela são os vasos sanguíneos, isto é, os capilares pulmonares. Entendemos por capilares, as ramificações das artérias que, ao se juntarem novamente, formam as veias pulmonares que levam o sangue oxigenado de volta para o coração.
Esse padrão só tem início após a 15a divisão dos brônquios, que constituem as vias de condução do ar. Após entrar pelo nariz e boca, o ar chega aos pulmões pela traqueia, que se divide em brônquio principal direito e esquerdo. A partir daí, ocorre a divisão em brônquios lobares, seguida de bifurcações sucessivas. A cada divisão, o tamanho de um dos ramos e seu diâmetro guardam relação constante com o ramo de origem. Essa relação é muito importante para evitar danos causados pelo fluxo de ar, porque esse tipo de ramificação reduz a turbulência. É como se fosse uma árvore de cabeça para baixo. O tronco é a traqueia e os brônquios e suas divisões são os galhos, cada vez mais finos e em maior número. Como o sistema arterial e venoso segue essas divisões em paralelo, temos três árvores misturadas em uma só.
Como é possível sustentar toda essa árvore com uma camada de tecido que tem menos de uma micra de espessura? A árvore é mantida por uma série de fibras, formadas por diferentes proteínas, que dão estabilidade ao sistema. Essas fibras são todas interconectadas e se dividem em três eixos principais. O sistema axial parte do centro do pulmão em direção à periferia assim como os aros de uma roda de bicicleta. Esse sistema é mais rígido e está diretamente ancorado nos brônquios. Ele se liga também à periferia do pulmão e forma uma camada contínua, a pleura, que reveste o órgão como a parede de uma bexiga. Interconectado a tudo isso, fica o sistema septal, que forma a parede de cada alvéolo. O sistema septal é como uma rede de pesca que pode aumentar ou diminuir de tamanho conforme o pulmão se enche ou esvazia. De fato, uma vez que normalmente só fazemos força para encher os pulmões, são as propriedades elásticas desse sistema de fibras que fazem o pulmão esvaziar. Novamente, é como a bexiga, que uma vez cheia tende a esvaziar para que suas paredes voltem à condição de repouso.
Essa visão do pulmão facilita compreender por que, por exemplo, no enfisema, a pessoa sente muita falta de ar. Esse sintoma surge como consequência da destruição do sistema septal, as paredes dos alvéolos. Para além da perda de superfície de troca que resulta dessa destruição, vamos ter uma desigualdade entre as áreas onde o ar penetra e os vasos sanguíneos, a chamada desigualdade ventilação/perfusão. Essa desigualdade, que decorre de alterações nessa arquitetura tão complexa, é a principal causa dos distúrbios nas trocas gasosas que caracterizam as doenças pulmonares.
Weibel ER. What makes a good lung? Swiss Med Wkly. 2009 Jul11;139(27-28):375-86.
Pacientes vão poder escolher o tratamento que querem receber no fim da vida
Pacientes vão poder escolher o tratamento que querem receber no fim da vida
O CFM (Conselho Federal de Medicina) publicou nesta sexta-feira (31/08/2012) uma resolução que autoriza as pessoas a escolherem qual tipo de tratamento querem receber no final de suas vida.
Agora, em caso de doença crônica-degenerativa (como câncer, Alzheimer ou Parkinson) ou situação irreversível, o indivíduo — plenamente lúcido, saudável ou não e maior de 18 anos — poderá declarar ao médico se prefere a morte natural ou passar por tratamentos invasivos que prolonguem sua vida. Até o momento, essa decisão só podia ser tomada pela família, não pelo paciente.
Para oficializar a decisão, o paciente deverá fazer o testamento vital, conhecido também como “diretiva antecipada de vontade”. Trata-se de um documento ou simplesmente uma observação no prontuário médico que expressa a sua vontade nessa situação. Não há necessidade de assinatura, registro em cartório nem testemunhas.
A pessoa que optar pelo registro do testamento vai definir, junto com o médico, a quais procedimentos não quer ser submetido em caso terminal, podendo, por exemplo, expressar que não deseja procedimentos de ventilação mecânica (uso de respirador artificial), tratamentos medicamentosos ou cirúrgicos dolorosos ou extenuantes, ou mesmo a reanimação na ocorrência de parada cardiorrespiratória.
O testamento vital é uma escolha facultativa, podendo ser feito e modificado em qualquer momento da vida, mesmo por aqueles que se encontram saudáveis.
Ainda, caso preferir, a decisão do paciente poderá ser passada ao médico por meio de representante legal. A resolução ressalta que a escolha dos familiares ou representantes não será, em hipótese alguma, priorizada, nem deverá prevalecer sobre a vontade do indivíduo.
Os médicos vão continuar obrigados a oferecer todos os cuidados paliativos e tomar todas as medidas necessárias para curar o doente, sendo obrigados a seguir o Código de Ética Médica que vigora desde abril de 2010. Permanece proibida, portanto, a eutanásia, ainda que a pedido do paciente ou de seu representante legal.
No Brasil, um estudo realizado em 2011 pela Universidade do Oeste de Santa Catarina mostrou que 61% dos entrevistados (entre eles médicos, advogados e estudantes) levariam em consideração o desejo expresso pelos pacientes em estado terminal. Já no exterior, os dados apontam que aproximadamente 90% dos médicos atenderiam às vontades antecipadas de seus pacientes.
Critérios para fazer o testamento vital
* Qualquer pessoa com idade igual ou maior a 18 anos ou que esteja emancipada judicialmente poderá fazer o testamento vital;
* O interessado deve estar plenamente lúcido e responsável por seus atos perante a Justiça;
* Menores de idade que estejam casados civilmente podem fazer testamento vital, pois o casamento lhes emancipa automaticamente;
* Crianças e adolescentes não estão autorizados e nem seus pais podem fazê-lo em nome de seus filhos;
* Pela Resolução 1.995/2012 do CFM, o testamento pode ser feito pelo médico em sua ficha médica ou no prontuário do paciente, desde que esteja expressamente autorizado pelo indivíduo;
* Não será exigido testemunhas ou assinaturas;
* Caso o paciente manifeste interesse, poderá registrar seu testamento em cartório. Contudo, este documento não será exigido pelo médico para cumprir sua vontade. O registro no prontuário será suficiente;
* Independentemente da forma – se em cartório ou no prontuário –, essa vontade não poderá ser contestada por familiares. O único que pode alterá-la é o próprio paciente.
Cirurgia cardiovascular
Cirurgia cardiovascular
Hoje, já são realizados alguns procedimentos que utilizam robôs. O cirurgião senta-se em frente de um console tridimensional e, como num jogo eletrônico, dirige os movimentos que o robô executa para corrigir os defeitos que possam existir no coração.
CORAÇÃO PULMÃO ARTIFICIAL
Drauzio – Nos anos 1960, quando você começou a atuar na área, como era a cirurgia cardiovascular?
Sergio Almeida de Oliveira – Comecei em 1963, no início da fase moderna da cirurgia do coração, porque já tinha sido desenvolvido e posto em prática o coração-pulmão artificial, possibilitando o que nós chamamos de circulação extracorpórea.
Esse equipamento que permitia parar o coração e tratar as doenças internas, congênitas ou adquiridas, começou a ser utilizado de fato em 1955 depois de um longo trabalho com coração-pulmão artificial realizado por um cirurgião da Filadélfia chamado Gibbon. Nas várias tentativas que fez utilizando o equipamento, ele operou muitos pacientes que não resistiram e, em 1963, apesar de ter conseguido operar uma paciente que sobreviveu, estava tão assustado com os resultados, que desistiu da experimentação.
Por causa das dificuldades até então encontradas, em 1964, em Minnesota, uma cidade do Estado de Minneapolis (USA), Lillehein teve a ideia de ligar o pai ou a mãe à criança, como se fosse uma volta à vida intrauterina e usar o coração e o pulmão de um deles para fazer uma circulação cruzada. Isso lhe dava a oportunidade de parar o coração da criança e operar dentro dele.
CIRCULAÇÃO CRUZADA
Drauzio – Como era feita essa circulação cruzada?
Sergio Almeida de Oliveira – O cirurgião ligava a artéria e a veia da criança na artéria e veia do pai ou da mãe. O sangue era retirado da criança, oxigenado no coração e pulmão do pai ou da mãe e voltava a ser injetado na artéria da criança. O interessante é que Minneapolis está na zona leiteira dos Estados Unidos e Lillehein utilizou a bomba, a Sigma Motor, que os leiteiros usavam para extrair o leite dos animais. A circulação de um dos pais e da criança era controlada por essa bomba que retirava uma quantidade de sangue e introduzia o mesmo volume para manter o fluxo adequado nos dois organismos.
Drauzio – O contato entre o sangue de um dos pais com o da criança não trazia nenhum problema?
Sergio Almeida de Oliveira – Ele escolhia entre o pai e a mãe o que era mais compatível com a criança. Para ter uma ideia, no ano de 1954, conseguiu realizar por volta de 50 ou 60 operações e mais da metade dos pacientes sobreviveu. Alguns estão vivos ainda hoje, cinquenta anos depois de realizada a cirurgia.
Na verdade, o feito de Lillenhein chocou o mundo inteiro, porque era fantástico poder abrir o coração e corrigir a deformidade (pois não havia válvulas artificiais para substituir as defeituosas), ou fechar um septo rompido.
Drauzio – Nessa técnica, o coração permanecia parado durante toda a cirurgia?
Sergio Almeida de Oliveira – Permanecia. Essa técnica, entretanto, ainda pressupunha grandes dificuldades, por causa do risco a que estavam expostos, ao mesmo tempo, o paciente, que era uma criança, e a mãe ou o pai que serviam de doadores do coração e do pulmão como suporte.
Em função disso, os estudos de laboratório se intensificaram. Lillenhein desenvolveu com seus assistentes um modelo de coração-pulmão e na Mayo Clinic, que ficava perto de Minneapolis, conseguiram aperfeiçoar, com a colaboração de uma companhia de eletrônica, a máquina de Gibbon , aquele cientista da Filadélfia. Com ela já modificada e modernizada, em 1955, foi abandonada a circulação cruzada e começaram a operar com o coração-pulmão artificial.
Tal avanço abriu enormes possibilidades no tratamento de todas as doenças cardíacas, mas foram necessários mais alguns anos para que aparecessem os substitutos valvulares e todos os outros artefatos empregados na cirurgia cardíaca.
Nesse campo, nos últimos cinquenta anos, aconteceram coisas fantásticas. Basta lembrar que, em 1967, foi feito o primeiro transplante de coração e que, na década de 1980, surgiram as drogas imunossupressoras, especialmente a ciclosporina, que permitiram realizar os transplantes em grande escala.
No entanto, a escassez de doadores estimulou a retomada do desenvolvimento de um coração mecânico, aquele que se pode tirar da prateleira e usar no momento adequado. Não é uma empreitada fácil, mas já houve enorme progresso nesse sentido nos últimos anos.
TRANSPLANTE CARDÍACO
Drauzio – O transplante cardíaco feito pelo cirurgião africano Christian Barnard, em dezembro de 1967, provocou um estardalhaço na imprensa, pois era impressionante imaginar que os médicos tiravam o coração de um paciente e punham o de outra pessoa no lugar. Do ponto de vista técnico, a cirurgia de transplante cardíaco representou avanço importante para a cirurgia cardiológica em geral?O
Sergio Almeida de Oliveira – Representou, porque foi abrindo outras portas para o progresso nessa área. Em dezembro de 1967, Barnard teve a coragem de realizar uma cirurgia que tecnicamente estava muito bem sistematizada em laboratório e a imprensa aceitou bem esse primeiro transplante, porque o paciente sobreviveu por algum tempo.
Aqui mesmo no Brasil, há muito tempo, a equipe do professor Zerbini trabalhava na experimentação recompondo os procedimentos para transplante cardíaco já desenvolvidos. Isso permitiu que, em maio de 1968, ele fizesse o primeiro transplante (do qual tive a oportunidade de participar); em setembro, o segundo e em dezembro, o terceiro.
Depois, os transplantes foram suspensos até que o professor Adib Jatene, na direção do Instituto, em 1975, retomou-os. Essa nova etapa foi completamente diferente das que a precederam e hoje a luta é contra a carência de órgãos e não contra a dificuldade de tratar o órgão transplantado.
Drauzio – Qual foi a sobrevida desses primeiros transplantados no Brasil?
Sergio Almeida de Oliveira – O primeiro sobreviveu 28 dias e morreu por rejeição aguda. O segundo faleceu pouco mais de um ano depois, mas nesse período teve vida ativa, intensa e boa, apesar de alguns surtos de rejeição. O terceiro não teve nenhuma crise forte de rejeição, mas morreu três meses depois por causa de uma infecção.
Drauzio – Nos momentos que antecederam o transplante feito pelo professor Zerbini, eu era interno no HC e pude vivenciar a grande excitação que cercava o acontecimento. Você poderia falar sobre esses dias e se a equipe tinha noção do que representava aquela cirurgia?
Sergio Almeida de Oliveira – Estava claro o desejo de acompanhar pari passu o progresso nessa área. A cirurgia cardíaca brasileira sempre esteve muito próxima da linha de fronteira máxima do desenvolvimento da cirurgia cardíaca. No Instituto do Coração, começou-se a fazer coração-pulmão artificial muito cedo. No Dante Pazzanese e no INCOR, conseguimos produzir marca-passos e válvulas cardíacas, componentes de preço proibitivo quando importados. Com isso, o Brasil diferenciou-se muito em relação aos outros países da América Latina, porque se tornou autossustentável, ou seja, produzia os equipamentos de que necessitava.
Assim sendo, o primeiro transplante brasileiro tinha alguns significados importantes. Era uma conquista científica, pois foi o décimo quarto feito no mundo. Tive a oportunidade de ir com o professor Zerbini à Cidade do Cabo (África do Sul) em julho de 1968, quando Barnard reuniu todos os médicos que haviam feito transplante de coração para troca de experiências. Eram pouquíssimos e o Brasil estava na linha de frente junto com a elite mundial.
Naturalmente, os transplantes cardíacos despertaram polêmica. Todos os dias a imprensa questionava a propriedade de fazer uma cirurgia tão sofisticada num país que precisava vacinar toda a população e oferecer os cuidados primários de saúde. É preciso lembrar, entretanto, sobretudo hoje, que o não transplantado representa uma despesa muito maior para a sociedade. Na realidade, o transplante é um investimento que, ao contrário do que possa parecer, representa economia em vez de gastos.
Drauzio – Houve mais alguma dificuldade em relação a esse primeiro transplante no Brasil?
Sergio Almeida de Oliveira – Outro aspecto interessante que cercou o primeiro transplante foi definir o conceito de morte do doador. Na época, tivemos o aconselhamento da Justiça e um promotor assistiu à retirada do órgão que foi autorizada por ele e pela direção do HC. Neurologistas e psiquiatras acompanhavam os testes para atestar que a morte cerebral havia ocorrido. No entanto, o coração só poderia ser retirado quando parasse de bater, pois só nesse momento estaria caracterizada a morte para efeito de doação.
Por isso, foi necessário o anestesista interromper a ventilação para que cessassem os batimentos cardíacos antes de o coração ser retirado. A seguir, ele foi recuperado com perfusão e transportado para outra sala.
Mais tarde, ficou definido que, para efeito de doação de órgãos, bastava estar caracterizada a morte cerebral. Num simpósio muito importante na Universidade Católica de Roma, para o qual foram convidados os professores Zerbini e Jatene, ficou finalmente estabelecido que a morte cerebral era suficiente para a retirada de um órgão e que a doação era um ato permitido, lógico e ético do ponto de vista religioso e moralmente aceito como maneira de ajudar outras pessoas a sobreviverem.
Esse foi um passo muito importante porque, mesmo depois da morte cerebral, o paciente pode permanecer com vida vegetativa por algum tempo e o fígado, os rins, a córnea e todos os outros órgãos estarão em boas condições para serem doados.
CONCEITO DE MORTE
Drauzio – Isso lembra um pouco aquele antigo conceito de morte ligado à literatura e outras artes que a morte é determinada pela última batida do coração.
Sergio Almeida de Oliveira – O coração tem essa simbologia riquíssima. Numa expressão literária, é o primeiro que nasce e o último que morre, o que não é verdade do ponto de vista científico.
Drauzio – Não são estranhas as posturas de considerar morto o indivíduo cujo cérebro parou de funcionar e de debater o emprego de células-tronco a partir de embriões de três ou quatro dias, quando ainda não existe o menor esboço de sistema nervoso?
Sergio Almeida de Oliveira – Esses conceitos de morte são muito interessantes, quando se discute o problema da clonagem ou da utilização das células embrionárias, temas que estão na ordem do dia, difíceis de discutir e de serem solucionados.
Se imaginarmos que o blastocisto, quer dizer, o ovo recém fertilizado, na primeira semana, é um amontoado de células de dois tipos, as que vão formar a placenta que ligará o embrião ao útero e as chamadas células-tronco ou embrionárias totipotentes, se imaginarmos, ainda, que se trata de um grupo de células indiferenciadas que darão origem a todos os órgãos do organismo, sejam eles da linhagem ectodérmica, mesodérmica e endodérmica, pode-se dizer que não existe cérebro, embora do ponto de vista filosófico ou jurídico, caiba discutir se já existe vida nesse momento.
Se considerarmos para efeito de doação que esse agrupamento de células é um embrião, como reagir diante da enorme quantidade de embriões fertilizados existente nas clínicas de fertilização, alguns com defeitos e outros desnecessários, uma vez que já se conseguiu a gravidez almejada e que, por isso, algum dia serão destruídos?
É evidente que é preciso um cuidado enorme na manipulação desse material. Não se trata de utilizá-lo para clonar pessoas, para fazer uma clonagem reprodutiva, mas para tirar essas células que, por seu enorme potencial de transformação para produzir tecidos, vão ajudar muitas pessoas.
Nesse campo, não há como fazer uma afirmação categórica do que seja correto ou incorreto. No entanto, a utilização dessas células já começou em alguns países como a Espanha e a República Tcheca. Nos Estados Unidos, embora oficialmente tenha sido banido o suporte governamental, cercadas de todos os cuidados, há instituições particulares começando a trabalhar com elas.
AVANÇOS TECNOLÓGICOS
Drauzio – Quais foram os avanços na cirurgia cardiológica e na cardiologia em geral depois das experiências iniciais com a circulação extracorpórea?
Sergio Almeida de Oliveira – Dois foram os avanços mais importantes. O primeiro foi o desenvolvimento da bomba inicial, o coração-pulmão artificial que suporta o paciente durante a cirurgia cardíaca. Hoje, o oxigenador é constituído por uma membrana que lembra muito a situação fisiológica do pulmão e permite manter a pessoa por longo tempo em circulação e respiração artificiais, sem correr grandes riscos.
O segundo foi a evolução do diagnóstico. Quando estávamos na faculdade, o diagnóstico se baseava no estetoscópio, ausculta, história, percussão e levávamos horas tentando adivinhar o que havia por trás daquela chapa de raios X. Depois, passamos a contar com a cinerradiologia. O cateterismo e a coronariografia representaram avanços fantásticos, mas são invasivos. Hoje, a tomografia computadorizada, ultra-rápida e com múltiplos cortes, possibilita uma composição de detalhes finíssimos do coração, sem invasão nenhuma e o mesmo acontece com a ressonância magnética em três dimensões. Acreditam os especialistas que, dentro de três anos talvez, com o desenvolvimento de novos softwares, a tomografia multi-slice, ou seja, com multicortes e ultra-rápida, vai permitir imagens muito próximas das que obtemos com a coronariografia, reservando a atual cinecoronariografia (introdução de um cateter que filma as artérias coronárias) para o tratamento.
Como se vê, esses novos equipamentos aumentaram muito a facilidade, rapidez e benignidade do diagnóstico precoce das lesões cardíacas. A ultrassonografia evoluiu de tal forma que, através de imagens tridimensionais, é possível analisar a estrutura cardíaca na sua função.
Drauzio –
Sergio Almeida de Oliveira – Não só quantificar a função, mas fazer os controles. Em Medicina, um dos grandes problemas é a oportunidade. Firmado o diagnóstico, a doença deve ser observada, se necessário tratada com remédios, ou simplesmente acompanhada se não tiver expressão muito importante. A cirurgia só é indicada quando a doença começa a pôr em risco ou a prejudicar a qualidade de vida do paciente.
Atualmente, é possível fazer esse acompanhamento por métodos não invasivos que permitem avaliar a evolução da doença sem agredir o paciente e indicar o momento ideal para a intervenção cirúrgica.
Drauzio – Como era o equipamento das primeiras cinecoronariografias, popularmente conhecidas como cateterismo?
Sergio Almeida de Oliveira - Na realidade, esse exame começou há muitos anos, quando um médico decidiu que era possível introduzir um cateter dentro do coração e o introduziu no seu próprio coração. Depois, desceu para o laboratório de raios X para fotografar, provando que isso não matava as pessoas. Chamava-se Frossman e parece que não era cardiologista. Era um cientista curioso que buscava ultrapassar fronteiras. No entanto, foi muito criticado por essa prova definitiva realizada em si mesmo. Diziam que era um ato temerário, de insanidade. Na verdade, foi um ato de extrema coragem que contribui muitíssimo para o desenvolvimento da cardiologia.
Drauzio – Como eram os cateteres antigos?
Sergio Almeida de Oliveira – Talvez um pouco semelhantes aos atuais, mas não com a mesma sofisticação. Atualmente, eles são flexíveis, pouco traumáticos, possuem um mecanismo que possibilita controlar sua ponta e têm o poder de condução à distância. Há, ainda, os cateteres terapêuticos que dilatam, fecham ou criam novos orifícios.
Drauzio – Quando surgiu a possibilidade de tratar as artérias coronárias diretamente com os cateteres?
Sergio Almeida de Oliveira – Surgiu em 1977, dez anos depois da cirurgia coronária, quando se estabeleceu que era possível fazer com que a placa dura, depósito de colesterol dentro das artérias, fosse dilatada com um balãozinho que insuflasse e restabelecesse a luz. Depois apareceu o stent, uma pequena mola que é colocada dentro da artéria para manter a desobstrução.
Os cateteres ocupam espaço importante na terapêutica da doença coronária por métodos percutâneos, mas muitos pacientes têm lesões tão complexas que precisam ser submetidos à operação.
Drauzio – Você acha que esse procedimento não invasivo ou semi-invasivo, porque na verdade o cateter é introduzido no corpo, pode evoluir mais ainda ou já atingiu seu limite? E outra pergunta: o cateter sempre consegue atingir o local onde a placa se encontra?
Sergio Almeida de Oliveira – Geralmente, a obstrução se localiza nos segmentos proximais, segmentos maiores onde o cateter consegue chegar. A dificuldade está na natureza das placas que podem ser muito duras, ou longas, ou irregulares ou apresentar bifurcações. Embora essas dificuldades estejam sendo vencidas progressivamente, sempre aparecem novos complicadores. Por isso tratamos patologias mais simples de maneira mais simples e recorremos à cirurgia para tratar dos casos mais complicados.
Acontece que a cirurgia cardíaca também está ficando mais simplificada. Existem técnicas menos invasivas para implantar pontes de mamária ou de safena. Eu pessoalmente faço 80% das operações de revascularização sem usar coração artificial, usando equipamentos que permitem a imobilização localizada da artéria. São dispositivos muito delicados que se colocam dentro da artéria para manter a circulação e a única coisa que para é o pequeno segmento do coração em que o cirurgião vai trabalhar. Não precisar do coração-pulmão artificial simplifica bastante a cirurgia.
USO DOS EQUIPAMENTOS
Drauzio – Você poderia explicar esses equipamentos que aparecem na imagem 1?
Sergio Almeida de Oliveira – Essa é uma fotografia do coração na qual se pode ver a artéria mamária. A coronária a ser colocada está entre os dois braços desse dispositivo, que se chama polvo (octopus) e possui algumas pequenas ventosas ligadas a um sistema de vácuo que suga o coração. Há, ainda, uma haste em cujo interior existe uma parte de metal que tracionamos até imobilizar uma área do músculo cardíaco. O segmento em que o cirurgião está trabalhando fica absolutamente imóvel, mas o coração continua batendo normalmente. A visão é fantástica, porque utilizamos lupas que amplificam o campo e um pequeno tubo colocado dentro da artéria mantém a circulação e torna o local exangue, quer dizer, bastante seco e fácil de trabalhar, o que torna mais simples o procedimento. Evidentemente, essa técnica não pode ser aplicada em todos os casos.
Drauzio – E os equipamentos que aparecem na imagem 2?
Sergio Almeida de Oliveira – Existem muitos dispositivos para ajudar a expor o coração. O que se vê na imagem 2 é um conezinho bastante flexível que colocado no ápice do coração e ligado a um sistema de vácuo permite ao cirurgião puxar o coração para fora – como se fosse uma ectopia cordis – a fim de alcançar as paredes e artérias posteriores para torná-las tão visíveis quanto as anteriores. Hoje, também estão sendo desenvolvidos artifícios de sutura automática para simplificar o procedimento cirúrgico.
Drauzio – E a imagem 3?
Sergio Almeida de Oliveira – Nessa imagem pode-se ver uma estrelazinha feita de nitnol, uma liga que se usa nos estentes e funciona como sutura automática. Ela é colocada dentro do enxerto com um dispositivo para fazer um furinho na artéria, um gatilho que se abre é solto e fixa-a instantaneamente.
Atualmente, já existem dispositivos geniais que permitem fazer a sutura automática. Há um sistema constituído por uma pequena placa imantada. Basta colocá-la na borda da arteriotomia e na borda do enxerto que devem ser postas uma em cima da outra para fixá-lo e, em poucas horas, o organismo gera a cicatrização daquele tecido.
Esses recursos de sutura automática são muito importantes para a cirurgia com robóticas, totalmente endoscópica, que está sendo desenvolvida nos últimos anos. Embora em fase inicial, a julgar pela velocidade que caminha, em pouco tempo será possível fazer uma cirurgia totalmente endoscópica usando um robô.
Que vantagem isso oferece? No momento, para trabalhar através depequenos orifícios, precisamos de instrumentos muito longos, e é difícil manter a precisão, porque pequena movimentação no local em que se segura vai produzir um movimento grande na outra extremidade. O robô consegue fazer isso com precisão. Estamos falando de um robô conduzido, que não toma decisões. O cirurgião senta-se em frente de um console tridimensional (imagem 4) com imagem ampliada e câmara de iluminação e de ótica, controla os movimentos como se estivesse manobrando um
joystick. Com pinças especiais colocadas nos braços do robô vai executando o procedimento estabelecido. É evidente que se trata de um procedimento caro que exige suporte eletrônico e uma equipe grande, mas para se tornar rotina talvez não leve muito tempo
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