segunda-feira, 22 de abril de 2019

Transando Com Abel ou 14 Passos Para a Loucura: Descendo Aos Infernos de The Weeknd

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Transando Com Abel ou 14 Passos Para a Loucura: Descendo Aos Infernos de The Weeknd

By 12 de junho de 2016 4 Comments
 
Em meio às madrugadas e sua escuridão plena, ele sempre está lá. A solidão e os desejos são sempre asfixiados por sua sonoridade atmosférica, intensa e perturbadora, que conduz meu trânsito frequente entre os sites pornográficos e aplicativos sociais de relacionamento na busca de corpos anônimos que nunca serão possuídos. Investigando fotografias e perfis, após diálogos voláteis e sessões de vídeos, ansiedades, medos e sonhos se misturam ao gozo que escorre entre os dedos e fluem pelo falo. Quando o corpo dissipa a anestesia do êxtase momentâneo e artificial, os relacionamentos fracassados, as desilusões amorosas e o ceticismo no amor são os demônios que tomam minha alma em um exorcismo cotidiano. The Weeknd habita o sombrio esconderijo dos meus fetiches sexuais mais secretos, um entre-lugar onde o sexo, o prazer e a sublimação das dores e terrores existenciais reinam imperiosos. Como meu crush, espécie de amor platônico pós-moderno, ele sempre me visita em meio ao desespero e sussurra nos meus ouvidos com seu timbre inigualável: – Eu vou cuidar de você

O ensurdecedor demônio de três olhos e o monstro de múltiplos tentáculos
A solidão é uma das heranças malditas do passado colonial das populações negras, no qual corpos e, principalmente, almas foram escravizadas compulsoriamente. É muito recorrente as abordagens da historiografia das populações negras através da exploração secular da materialidade de seus corpos nas práticas mercantis atlânticas, porém as dimensões dos impactos emocionais e afetivos sobre suas almas são significativamente negligenciados nas pesquisas e estudos etnicorraciais pós-coloniais. Meu contato com a obra do psiquiatra Frantz Fanon, bibliografia obrigatória para sujeitos em processo de descolonização, despertou em mim essa preocupação que me aflige existencialmente até hoje. O racismo, além de ser analisado em suas complexidades sórdidas em sua obra, é tratado como uma doença patológica que atormenta nossa psique, sendo a solidão negra uma de suas maiores enfermidades. A partir do pensamento de Fanon, percebo que a solidão negra é uma das portas de acesso aos nossos próprios infernos que ainda resistimos discutir e problematizar. Falar sobre si para nós negrxs, apesar de ser um método terapêutico para cura de nossas feridas históricas herdadas, ainda é um exercício árduo e doloroso pois a cada discurso oral ou escrito produzido temos que encarar nossos próprios demônios. Como sempre me faz refletir Gloria Anzaldúa:
Escrever é confrontar nossos próprios demônios, olhá-los de frente e viver para falar sobre eles. O medo age como um imã, ele atrai os demônios para fora dos armários e para dentro da tinta de nossas canetas. O tigre que carregamos nas costas (a escrita) nunca nos deixa só. Por que você não está montando em mim, escrevendo, escrevendo? Ele pergunta constantemente, até sentirmos que somos vampiros sugando o sangue de uma nova experiência; que estamos sugando o sangue vital para alimentar a caneta. Escrever é o ato mais atrevido que eu já ousei e o mais perigoso. Nelie Wong [poetisa e ativista feminista] chama a escrita de “demônio de três olhos gritando a verdade.
As práticas e os relacionamentos afetivo-sexuais, como também a construção do amor na diáspora negra sofreram processos de extrema violência em suas dimensões físicas e simbólicas através da implementação dos projetos coloniais europeus na modernidade ocidental a partir do século XVI. O tráfico humano transatlântico fragmentou estruturalmente inúmeras etnias africanas, além de ter provocado o esfacelamento da individualidade humana com a invenção do signo da raça enquanto dispositivo subalternizador e opressor, processo caracterizado pela psicóloga Rita Laura Segato de “processo de outrificação”: houve o estabelecimento de hierarquias de poder e dominação construídas através de paradoxos binários, nos quais os indicadores socioculturais de gênero e cor operam simultaneamente como os principais fundamentos da estrutura da outredade do Estado colonial. Enquanto nos dias atuais há um notável crescimento das teorias e discussões acadêmicas sobre os sujeitos na pós-modernidade como um fenômeno de caráter inédito, o Estado colonial desde a modernidade europeia desmantelou o códice africano – constituído por filosofias, construções de gênero, formas de organização e sociabilidades próprias – sujeitando-o ao signo da raça, engendrando várias identidades residuais e periféricas a exemplo do negro e indígena. Como argumenta o escritor Cuti em entrevista ao escritor Akins Kintê:
Nós somos pós-modernos muito antes da tal pós-modernidade, porque o nosso ‘eu’ foi esfacelado na época da escravização. E estamos, depois de mais de um século após a abolição, ainda juntando os cacos, tentando compor nossa figura, a nossa imagem coletiva positiva. Quando falam do ‘eu fragmentado’ como um dado da contemporaneidade, já vivemos essa experiência há séculos: passar debaixo da ‘árvore do esquecimento’, perder o nome, perder a língua, perder a dignidade humana. Nós herdamos um eu coletivo esfacelado, mas não completamente. Hoje se vê muito negro confuso em termos de identidade, de religião, confuso em termos de aceitação de suas características físicas naturais.
O processo de outrificação das populações negras não estava somente vinculado ao fictício signo da raça, como também incluía o gênero enquanto um de seus principais eixos de sustentação do Estado colonial e suas práticas alterofílicas e alterofóbicas, potencializando através dos tempos a dominação e subordinação opressora de um grupo sobre o outro a partir do estabelecimento de pactos tácitos do patriarcado de supremacia branca, caracterizados por Maria Aparecida Silva Bento e Liv Sovik como branquitude e de cisgeneridade pela feminista trans brasileira Viviane Vergueiro: compreendendo sistemas complexos de mecanismos institucionais utilizados para a manutenção e proteção dos interesses e privilégios coloniais, a branquitude e a cisgeneridade mediam as relações socioculturais até nossos tempos através de dinâmicas de manipulação do silenciamento histórico, como também da naturalização e normatização das hierarquias de poder. Assim, pensando a partir da perspectiva da socióloga e feminista nigeriana Oyèrónké Oyewùmí, são insuficientes os argumentos circunscritos somente ao fenômeno da racialização das populações negras e estratificação das fronteiras etnicorraciais nas discussões acerca de como a modernidade europeia provocou efeitos devastadores nas populações negras:
Uma característica marcante da era moderna é a expansão da Europa e o estabelecimento de hegemonia cultural euro-americana em todo o mundo. Em nenhum lugar isso é mais profundo que na produção de conhecimento sobre o comportamento humano, história, sociedades e culturas. Como resultado, os interesses, preocupações, predileções, neuroses, preconceitos, instituições sociais e categorias sociais de euro-americanos têm dominado a escrita da história humana. Um dos efeitos desse eurocentrismo é a racialização do conhecimento: a Europa é representada como fonte de conhecimento, e os europeus, como conhecedores. Na verdade, o privilégio de gênero masculino como uma parte essencial do ethos europeu está consagrado na cultura da modernidade.
A escravização dos povos africanos e, principalmente, o cotidiano do tráfico humano e as relações de exploração e escravismo colonial no Novo Mundo constituíram espacialidades onde inúmeros estereótipos e projeções sobre as populações negras foram forjados. As mulheres e os homens negros sempre foram estigmatizados como indivíduos exóticos, irracionais, fetichistas, bárbaros, incivilizados, dentre outros adjetivos, classificações e juízos de valores de grande teor etnocêntrico e, sobretudo, racista. A submissão e escravização dos povos africanos geraram várias projeções imagéticas sobre as mulheres e os homens negros, que eram visualizados pelo olhar nocivo do colonizador como meros animais, desprovidos de razão, inteligência, cognoscência, humanidade e cultura. Além de seres animalescos, as populações negras escravizadas também passaram a serem coisificadas como objetos, cargas, mercadorias de grande valor e potencial mercadológico e financeiro no comércio transatlântico. Para Frantz Fanon, as fobias existentes em relação aos indivíduos negros são relacionadas ao medo de seu biológico, pois x negrx é somente vistx como um ser essencialmente biológico. Ou seja, estereotipadx a partir da sua materialidade fenotípica. Assim, houve o desenvolvimento de um processo constante de usurpação da humanidade das populações africanas a partir da dissociação simbólica entre corpo e psique, prática que construiu o imaginário coletivo racista ocidental composto por inúmeros mitos e estereótipos que foram naturalizados e normalizados, propagados historicamente através de dinâmicas citacionais de repetição, nos termos do filósofo Jacques Derrida a partir do pensamento de Judith Butler. A raça, assim como o gênero, são construtos performativos compostos por sequências de atos que operam para estabelecer a aparência da rigidez corporal e da fixidez das identidades, estabelecidos através de dinâmicas de repetições obsessivas nas relações de força, que excluem os indivíduos, estabelecem tabus e constroem os sujeitos abjetos. De acordo com Homi Bhabha:
Como forma de crença dividida e múltipla, o estereótipo requer, para uma significação bem sucedida, uma cadeia contínua e repetitiva de outros estereótipos. O processo pelo qual o ‘mascaramento’ metafórico é inscrito em uma falta, que deve então ser ocultada, cria ao estereótipo sua fixidez e sua qualidade fantasmática – sempre as mesmas histórias sobre a animalidade do negro (…) tem de ser contadas (compulsivamente) repetidamente, e são gratificantes e aterrorizantes de modo diferente a cada vez.
O colonialismo europeu e a escravização das populações negras destruíram famílias, despedaçaram relacionamentos afetivos e demonizaram as práticas sexuais, elementos disciplinados através da opressão cotidiana do terror colonial e da moral cristã-ocidental. Os processos de zoomorfização e coisificação dos corpos negros impactaram de maneira decisiva as formas de amar e se relacionar de negras e negros transplantados e suas/seus descendentes, fato presente na narrativa autobiográfica de Solomon Northup, músico negro livre sequestrado e escravizado nos Estados Unidos no século XIX, adaptada para o cinema pelo cineasta Steve McQueen no filme 12 Anos de Escravidão, que me marcou de maneira bastante profunda e sempre me faz refletir o quanto a escravidão é um monstro de múltiplos tentáculos que dilacera todos os âmbitos de nossa existência e humanidade. Na senzala obscura corpos negros amontoados dormem enquanto os olhos de Solomon, interpretado pelo ator Chiwetel Ejiofor, perfuram o silêncio em umas das cenas iniciais do filme. Em meio aos delírios insones de suas lembranças dos momentos felizes e amorosos com a família em sua vida enquanto liberto, uma mulher negra procura seu corpo frio e imóvel, implorando por sexo no desespero mudo de seu desejo. Na cena angustiante, o gozo roubado é sublimado pela necessidade de sobrevivência ao terror, ao medo e à solidão. O gozo e as lágrimas são os sinais de que a humanidade ainda não havia abandonado sua alma.

A repressão dos sentimentos constituía em uma estratégia de resistência e sobrevivência das populações negras escravizadas, utilizada principalmente por homens negros como argumenta a intelectual negra feminista bell hooks. Depoimentos e relatos de homens negros escravizados como o de Solomon Northup evidenciam o quanto o contexto da escravização colonial configurou as masculinidades negras através da brutalidade do terror colonial. A assustadora pedagogia escravocrata ensinou cotidianamente aos homens negros serem austeros, agressivos e violentos, valores do patriarcado de supremacia branca que aniquilaram nossa capacidade de amar e nos mergulharam no rio turvo de sangue do ódio. Mesmo com a abolição do trabalho escravo compulsório, a cultura de repressão dos sentimentos se perpetuou como uma das tradições herdadas do passado colonial, ainda bastante presente nas masculinidades negras pós-coloniais que reproduzem esses valores. Os altos índices de violência contra as mulheres negras que se estendem a nós LGBTQ’s, a utilização da tortura na educação infantil de crianças negras, a proliferação de comportamentos tóxicos e estilos de vida autodestrutivos são sintomas de como a repressão de sentimentos estão matando não só os homens como as comunidades negras através da proliferação de conflitos intra-raciais. Em plena concordância com bell hooks:
O sistema escravocrata e as divisões raciais criaram condições muito difíceis para que os negros nutrissem seu crescimento espiritual. Falo de condições difíceis, não impossíveis. Mas precisamos reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar. Numa sociedade onde prevalece a supremacia dos brancos, a vida dos negros é permeada por questões políticas que explicam a interiorização do racismo e de um sentimento de inferioridade. Esses sistemas de dominação são mais eficazes quando alteram nossa habilidade de querer e amar. Nós negros temos sido profundamente feridos, como a gente diz, ‘feridos até o coração’, e essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir e consequentemente, de amar. Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando.
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A partir do pensamento de Maria Aparecida Silva Bento, podemos perceber que a exclusão moral no pós-abolição nas sociedades que sofreram a experiência o colonialismo europeu institucionalizou a descriminação racial enquanto exercício de descompromisso político com o sofrimento do outro, combustível da máquina necropolítica de extermínio das populações negras, sendo a desvalorização dos indivíduos negros como seres humanos e a cultura de estigmatização, abjeção e violência seus principais mecanismos. Só os brancos possuem o privilégio de amar e ser amado, pois quando se olham no espelho veem refletido o modelo universal de humanidade que é alvo da inveja e do desejo dos outros grupos raciais não-brancos, transformando o amor em uma grande fábula protagonizada somente pela branquitude, legitimadora de sua supremacia econômica, política, social e cultural, como também da nossa suposta incapacidade de amar. Referenciando a socióloga Ruth Frankenberg, Liv Sovik localiza o conceito de branquitude como
Um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê aos outros e a si mesmo; uma posição de poder não nomeada, vivenciada em uma geografia social de raça como um lugar confortável e do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não atribui a si mesmo.
Assim, o amor e a felicidade se tornam privilégios monopolizados por brancos, joias que a escravidão nos roubou. Como declara em prantos a personagem Precious, do livro homônimo da escritora Saphire adaptado para o cinema por Lee Daniels, o amor nunca fez nada por nós. Só nos restou o escape, a sublimação, a solidão, a loucura e o flerte com a morte. E é essa herança maldita que The Weeknd transcodifica na estética de sua arte e sua música.


O cântico sombrio do jovem deus etíope
Abel Tesfaye foi criado em uma família matrifocal, na qual sua avó e sua mãe enfrentaram o abandono e a solidão da mulher negra, além do mal estar de sua própria diáspora após emigrarem da Etiópia para Toronto – Canadá na década de 1980 em busca de melhores oportunidades e condições de vida. Os traumas da Etiópia após a morte e destruição do império de Haile Selassie (1930-1974) acabaram fomentando os estereótipos fantasmagóricos sobre a África que ainda aprisionam-na em uma territorialidade imagética onde a miséria, a guerra, as doenças e o sofrimento sem fim brotam da terra como baobás. Porém, a Etiópia das histórias de seus tios não o assustou em sua infância na qual a música etíope cumpriu papel de grande relevância na formação de sua estética musical. A necessidade de sobrevivência gerou a sobrecarga de trabalho de sua mãe, fazendo com que a responsabilidade de sua criação e educação fosse transferida para sua avó, que costumava levar o pequeno Abel para a Igreja Ortodoxa Etíope que frequentava. Os laços e as relações primárias com a suas matriarcas situam o lugar privilegiado de Abel em sua família, aspecto que revela a importância da maternidade enquanto instituição e como experiência nas culturas africanas, além da fluidez de suas categorias sociais que possuem posicionamentos altamente situacionais, a exemplo das migrações diaspóricas, como reflete Oyèrónké Oyewùmí a partir das configurações das famílias Iorubás na África Ocidental:
A família Iorubá tradicional pode ser descrita como uma família não-generificada. É não-generificada porque papéis de parentesco e categorias não são diferenciados por gênero. Então, significativamente, os centros de poder dentro da família são difusos e não são especificados pelo gênero. Porque o princípio organizador fundamental no seio da família é antiguidade baseada na idade relativa, e não de gênero, as categorias de parentesco codificam antiguidade, e não gênero. (…) Na África Ocidental (da qual os Iorubá são uma parte), é a linhagem que se considera como a família. A linhagem é um sistema familiar baseado consanguineamente, construído em torno de um núcleo de irmãos e irmãs por relações de sangue. (…) Por causa da matrifocalidade de muitos sistemas familiares africanos, a mãe é o eixo em torno do qual as relações familiares são delineadas e organizadas.
Segundo uma entrevista concedida em outubro de 2015 para a revista Rolling Stone, antes de aprender o inglês Abel falava a língua amárica fluentemente, idioma oficial da Etiópia, e seu estilo vocal é inspirado por cantorxs habesha, artistas músicos de ancestralidade ligada aos povos e/ou grupos étnicos que habitam o chifre da África Oriental, destacando a cantora Aster Aweke e Michael Jackson como suas principais influências musicais, presentes nos impressionantes aspectos timbrísticos de sua voz. Na canção The Hills a intensidade vocal de The Weeknd não é linear, crescendo no decorrer do andamento sincopado e contínuo da execução instrumental, explodindo no refrão em sua potência. Em The Hills a altura vocal transita de forma descontínua entre tons graves, médios e agudos, sendo os gemidos, falsetes e a prevalência das notas altas uma característica bastante marcante de sua performance vocal. Sua voz é estridente, metálica e anestésica. Não é à toa que The Weeknd é considerado como uma espécie de “novo Michael Jackson” pela crítica musical especializada.

A estética musical de The Weeknd busca incessantemente a hibridização e experimentação, característica fundamental da música afroamericana diaspórica como argumentam Ronald Radano e Philip V. Bohlman. Classificado pela indústria fonográfica e crítica musical como PBR&B, espécie de R&B Contemporâneo, o álbum Beauty Behind The Madness é composto por elementos que remetem ao espaço urbano pós-moderno e cosmopolita pela presença de sintetizadores, programações eletrônicas, samples e beats pesados e intensos. O hip hop, o indie, o punk e o rock progressivo com os quais teve contato na adolescência foram incorporados através de samples em estruturas eletrônicas densas, provocando consequentemente o desenvolvimento do processo de renovação do gênero musical R&B, através de experimentações complexas entre o Urban Contemporary (combinações de R&B, Gospel e Soul camufladas por produções eletrônicas), o Dubstep (linhas de baixo muito fortes, padrões de bateria reverberantes, samples cortados e vocais ocasionais) e injeções intensas de Rap, produzindo colisões sonoras entre batidas e vocais de forma melódica, densa e visceral. Na banda os sintetizadores e vocais são superestimados, compostos por falsetes melódicos entristecidos e envolventes. Apesar das influências de Michael Jackson, a performance corporal de The Weeknd sempre foi centralizada em seu desempenho e execução vocal surpreendente, contrapondo a sua corporeidade rígida e engessada nos palcos, aspecto que vem sendo transformado por aulas de dança que o artista começou a fazer para melhorar seu desempenho performático.

De acordo com os créditos presentes no encarte do álbum, The Hills foi composta pelo próprio The Weeknd em parceria com os músicos Ahmad “Belly” Balshe, Emmanuel Nickerson e Carlo “Illangelo” Montagnese, sendo produzida pelo último com o auxílio de Million $ Mano. Em 27 de maio de 2015 a faixa foi lançada como o segundo single do álbum através das gravadoras XO Records, gravadora de sua propriedade, e Republic Records. É uma gravação recente e crossmedia, na qual o processo de produção é desenvolvido de maneira independente por meio de instrumentos, maquinarias e aparelhagens musicais próprias e a distribuição viabilizada por diversas mídias e plataformas de comunicação existentes no mundo digital (como as plataformas de streaming), conceito originado na década de 1990 e adotado por The Weeknd desde o início de sua carreira musical, na qual produzia suas mixtapes que foram atualmente relançadas em formato físico. Os timbres instrumentais de sua banda criam sonoridades ácidas e melancólicas marcadas pelo uso dos teclados sintetizadores, como também de bases eletrônicas em slowtempo compostas por beats que determinam um andamento sincopado de 113 BPM’s (batidas por minuto). A versão escolhida para esta apreciação musical foi uma remixagem lançada online 10 de Outubro de 2015 com participação da rapper negra Nicki Minaj, e performada ao vivo no programa televisivo Saturday Night Live. A letra da canção possui uma narrativa perturbadora de busca pelo prazer sexual e fuga da realidade a partir do consumo de drogas. Na remixagem da canção, Nicki Minaj incorpora a mulher desejada pelo eu-lírico com a qual este desabafa seus tormentos personificando-a em sua redenção momentânea de seus conflitos existenciais, estabelecendo uma interlocução não existente na versão original onde a voz do eu-lírico é unívoca e protagonista:
Lembra daquela vez que eu apareci com meu casaco, só de calcinha?/Botas de salto e cano alto que vão até o joelho, e minhas pernas estavam agarrando aquela garganta/Você me disse isso e passo a citar, porque nós tomamos umas pílulas e você fumou/Você disse: ‘Sua boceta me deixa viciado, é como se eu estivesse puxando umas carreiras de cocaína’…

Suas inegáveis contribuições estéticas para a história da Black Music não estão limitadas às questões técnicas e musicológicas, apesar de estas também serem contaminadas pelo contexto, localização e marcadores socioculturais de Abel Tesfaye, homem negro heterossexual de classe alta. O álbum Beauty Behind The Madness (2015) é um itinerário de 14 passos para a loucura, um mundo de fantasias sombrias que soa sexy e anestesiado. Sua música de alto teor autobiográfico e confessional é uma verdadeira descida aos seus próprios infernos, nos quais a sua persona misteriosa e taciturna nos convida a dançar com seus demônios. Sua visão conflituosa e frequentemente ambígua sobre mulheres e relacionamentos afetivo-sexuais revelam o quanto as masculinidades negras em nossos tempos se utilizam da arte para vivenciar a realidade através do domínio dos sentidos, experimentando em suas subjetividades o prazer e a beleza que foram historicamente sublimados por nossxs Ancestrais no passado escravocrata colonial, alguns dos elementos que fundamentam a estética artística negra nos Estados Unidos como afirma bell hooks.
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Capa do álbum Beauty Behind the Madness, do The Weeknd
A sensibilidade, a melancolia e o romantismo presentes em sua obra fonográfica desmitificam os estereótipos relacionados aos homens negros enquanto indivíduos incapacitados de amar, que aprisionam suas emoções nos cofres secretos da alma para sobreviver. A Black Music do século XX é um dos maiores exemplos de como a arte provocou a purificação, redenção e reinvindicação da nossa humanidade negra. Uma tradição de artistas que antecederam The Weeknd como Marvin Gaye, Nina Simone, Sam Cooke, Aretha Franklin, Billie Holliday, Ray Charles, dentre outros inúmerxs e maravilhosxs, sempre me fizeram pensar no amor e seu potencial subversivo enquanto catalisador de uma política revolucionária para nós negrxs. Martin Luther King nunca esteve errado.
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Martin Luther King Jr. e sua esposa Coretta King.
O sexo e o erotismo presentes na poética das letras de The Weeknd são os aspectos que mais atraíram minha atenção desde quando tive o primeiro contato com sua música, a exemplo de Often:
Ela me pergunta se eu faço isso todos os dias, eu digo frequentemente/Perguntei com que frequência ela faz sexo, não com tanta frequência/Vadias morrem para fazer isso de qualquer maneira, frequentemente/Baby, eu faço sua buceta chover, frequentemente/Frequentemente, frequentemente, garota, eu faço isso frequentemente/Faço essa buceta estourar, faça como eu quero/Frequentemente, frequentemente, garota eu faço isso frequentemente/Faço essa buceta estourar, faça como eu quero/Frequentemente…

Sem metáforas complexas e herméticas, sua sonoridade atmosférica nos conduz a uma libertinagem arrebatadora na qual a satisfação dos desejos é a maior das urgências, pois, assim como o amor, o prazer sexual no processo de escravização das populações negras foi incomensuravelmente estuprado a partir da violência colonial dos corpos de mulheres e homens negrxs, privados do direito ao gozo e ao êxtase. Os homens negros destinados à procriação, as mulheres negras como incubadoras de crianças a serem futuramente escravizadas, os incessantes abusos sexuais dos colonizadores, além da moral inquisitorial cristã que demonizou e disciplinou o sexo na modernidade ocidental traumatizaram profundamente as experiências e as práticas afetivo-sexuais negras. Como na literatura negra erótica, o sexo na poética de The Weeknd é reivindicado e praticado a partir de uma política de transgressão e libertação sexual negra dos cárceres dos tabus pós-coloniais, como podemos perceber na reflexão do escritor Cuti:
(…) É preciso lembrar que a ideia de corpo versus espírito é uma concepção bem europeia, esse empenho de separar corpo e espírito (ou alma), o material do imaterial. Essa visão de ser humano calcou nossa cabeça que o corpo é pecaminoso e o espírito não, ou seja, o corpo é do diabo e o espírito de deus. Por isso, na época da escravização, os brancos achavam que aqueles que eles escravizavam não tinham alma, eram apenas corpos. Essa divisão é bem sacana. Serviu para justificar a violência, o massacre. E o que isso tem a ver com o prazer sexual? Se você não tem alma, seu prazer é brutal, é animal. Muitos de nós incorporamos essa noção, vestindo esse estereótipo ou, no sentido oposto, achamos que o sexo é um tabu, que nós devemos ser extremamente puritanos.
Entretanto, as reinvenções das práticas racistas e fobias de gênero e sexualidade em nossos tempos ainda propagam a perniciosa cultura do ódio e aniquilação do amor tornando nossas almas frias e nossos olhos cegos, que ainda não enxergam a beleza por trás da loucura visualizada pelo The Weeknd em meio aos delírios e alucinações de um indivíduo cambiante, em fluxos de fuga constantes de si mesmo. A utilização de substâncias psicotrópicas e a procura insaciável por sexo presentes na poética de The Weeknd se transformam em instrumentos de imolação masculina, fator que demonstra a vulnerabilidade e o impulso autodestrutivo em busca da liberdade e analgesia das dores existenciais de nós homens negros na atualidade. O jogo simbólico da obra Imolação do artista plástico Sidney Amaral, na qual o próprio artista em um autorretrato tenciona suicidar-se, nos provoca a refletir sobre a crise da masculinidade negra:
Ao ver no meio da tela um homem com uma arma apontada para a cabeça a primeira coisa que se pensa é que a pessoa representada no quadro vai se matar. Mas não é verdade. Justamente por isso eu coloco o nome de Imolação. Imolação é aquilo que se faz por uma coisa maior. Você não está se matando por ser um deprimido. Você está se matando porque não quer ser escravo, não quer perder sua identidade, sua liberdade, diz o artista.
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Imolação, obra do artista plástico Sidney Amaral
Diante do precipício da loucura The Weeknd, como nós homens negros, está só e ameaça se lançar. Mesmo acreditando no amor e seu poder grandioso de salvação, a solidão nos oprime como o açoite outrora em costas negras, dilacerando nossas feridas da alma deixando-as em carne viva. Nesse momento lembro-me de uma passagem belíssima (e necessária) do romance Amada da escritora Tonni Morrison:
Aqui (…), neste lugar, somos carne; carne que chora, que ri; carne que dança descalça no capim. Amém essa carne. Amém muito. Lá fora eles não amam nossa carne. Eles a desprezam. Não amam nossos olhos; preferem arrancá-los. Também não amam a pele em nossas costas. Lá fora eles a açoitam. E, meu povo, eles não amam nossas mãos. Essas eles apenas usam, amarram, prendem, cortam fora e deixam vazias. Amém suas mãos! Amém! Levantem suas mãos e beijem-nas. Toquem-se uns aos outros com elas, batam palmas, acariciem com elas seu rosto, que este eles não amam também. Vocês têm de amar seu rosto, Vocês! (…) É de carne que eu estou falando aqui: Carne que precisa ser amada.”
Na última canção da tracklist de Beauty Behind The Madness, The Weeknd se despede de mim com uma profecia que imerge meu ceticismo em relação ao amor em uma profunda letargia, após aspirar esperanças como quem aspira linhas de cocaína:
Espero que você encontre alguém para amar…
Espero que sim, Abel. Um dia, quem sabe. A arte alivia, mas não cura a dor e o sofrimento. Como diz a bell hooks, só o amor cura.


Daniel Dos Santos (DanDan) é licenciado em História pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), mestrando em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro fundador e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Africanos e Afrobrasileiros (AfroUneb) e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Cultura e Sexualidade (CuS), nos quais desenvolve o #TheGangstaProject: Masculinidades Negras nos Videoclipes dos Rappers Jay Z  e 50 Cent. É apaixonado pelo Drake e Kanye West. Os boxeadores negros são suas principais inspirações.

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