Transando Com Abel ou 14 Passos Para a Loucura: Descendo Aos Infernos de The Weeknd
Em meio às madrugadas e sua escuridão
plena, ele sempre está lá. A solidão e os desejos são sempre asfixiados
por sua sonoridade atmosférica, intensa e perturbadora, que conduz meu
trânsito frequente entre os sites pornográficos e aplicativos sociais de
relacionamento na busca de corpos anônimos que nunca serão possuídos.
Investigando fotografias e perfis, após diálogos voláteis e sessões de
vídeos, ansiedades, medos e sonhos se misturam ao gozo que escorre entre
os dedos e fluem pelo falo. Quando o corpo dissipa a anestesia do
êxtase momentâneo e artificial, os relacionamentos fracassados, as
desilusões amorosas e o ceticismo no amor são os demônios que
tomam minha alma em um exorcismo cotidiano. The Weeknd habita o sombrio
esconderijo dos meus fetiches sexuais mais secretos, um entre-lugar onde
o sexo, o prazer e a sublimação das dores e terrores existenciais
reinam imperiosos. Como meu crush, espécie de amor platônico
pós-moderno, ele sempre me visita em meio ao desespero e sussurra nos
meus ouvidos com seu timbre inigualável: – Eu vou cuidar de você…
O ensurdecedor demônio de três olhos e o monstro de múltiplos tentáculos
A solidão é uma das heranças malditas do
passado colonial das populações negras, no qual corpos e,
principalmente, almas foram escravizadas compulsoriamente. É muito
recorrente as abordagens da historiografia das populações negras através
da exploração secular da materialidade de seus corpos nas práticas
mercantis atlânticas, porém as dimensões dos impactos emocionais e
afetivos sobre suas almas são significativamente negligenciados nas
pesquisas e estudos etnicorraciais pós-coloniais. Meu contato com a obra
do psiquiatra Frantz Fanon, bibliografia obrigatória para sujeitos em
processo de descolonização, despertou em mim essa preocupação que me
aflige existencialmente até hoje. O racismo, além de ser analisado em
suas complexidades sórdidas em sua obra, é tratado como uma doença
patológica que atormenta nossa psique, sendo a solidão negra
uma de suas maiores enfermidades. A partir do pensamento de Fanon,
percebo que a solidão negra é uma das portas de acesso aos nossos
próprios infernos que ainda resistimos discutir e problematizar. Falar
sobre si para nós negrxs, apesar de ser um método terapêutico para cura
de nossas feridas históricas herdadas, ainda é um exercício árduo e
doloroso pois a cada discurso oral ou escrito produzido temos que
encarar nossos próprios demônios. Como sempre me faz refletir Gloria
Anzaldúa:
Escrever é confrontar nossos próprios
demônios, olhá-los de frente e viver para falar sobre eles. O medo age
como um imã, ele atrai os demônios para fora dos armários e para dentro
da tinta de nossas canetas. O tigre que carregamos nas costas (a
escrita) nunca nos deixa só. Por que você não está montando em mim,
escrevendo, escrevendo? Ele pergunta constantemente, até sentirmos que
somos vampiros sugando o sangue de uma nova experiência; que estamos
sugando o sangue vital para alimentar a caneta. Escrever é o ato mais
atrevido que eu já ousei e o mais perigoso. Nelie Wong [poetisa e ativista feminista] chama a escrita de “demônio de três olhos gritando a verdade.
As práticas e os relacionamentos
afetivo-sexuais, como também a construção do amor na diáspora negra
sofreram processos de extrema violência em suas dimensões físicas e
simbólicas através da implementação dos projetos coloniais europeus na
modernidade ocidental a partir do século XVI. O tráfico humano
transatlântico fragmentou estruturalmente inúmeras etnias africanas,
além de ter provocado o esfacelamento da individualidade humana com a
invenção do signo da raça enquanto dispositivo subalternizador e
opressor, processo caracterizado pela psicóloga Rita Laura Segato de
“processo de outrificação”: houve o estabelecimento de hierarquias de
poder e dominação construídas através de paradoxos binários, nos quais
os indicadores socioculturais de gênero e cor operam simultaneamente
como os principais fundamentos da estrutura da outredade do Estado
colonial. Enquanto nos dias atuais há um notável crescimento das teorias
e discussões acadêmicas sobre os sujeitos na pós-modernidade como um
fenômeno de caráter inédito, o Estado colonial desde a modernidade
europeia desmantelou o códice africano – constituído por filosofias,
construções de gênero, formas de organização e sociabilidades próprias –
sujeitando-o ao signo da raça, engendrando várias identidades residuais
e periféricas a exemplo do negro e indígena. Como argumenta o escritor
Cuti em entrevista ao escritor Akins Kintê:
Nós somos pós-modernos muito antes da
tal pós-modernidade, porque o nosso ‘eu’ foi esfacelado na época da
escravização. E estamos, depois de mais de um século após a abolição,
ainda juntando os cacos, tentando compor nossa figura, a nossa imagem
coletiva positiva. Quando falam do ‘eu fragmentado’ como um dado da
contemporaneidade, já vivemos essa experiência há séculos: passar
debaixo da ‘árvore do esquecimento’, perder o nome, perder a língua,
perder a dignidade humana. Nós herdamos um eu coletivo esfacelado, mas
não completamente. Hoje se vê muito negro confuso em termos de
identidade, de religião, confuso em termos de aceitação de suas
características físicas naturais.
O processo de outrificação das populações
negras não estava somente vinculado ao fictício signo da raça, como
também incluía o gênero enquanto um de seus principais eixos de
sustentação do Estado colonial e suas práticas alterofílicas e
alterofóbicas, potencializando através dos tempos a dominação e
subordinação opressora de um grupo sobre o outro a partir do
estabelecimento de pactos tácitos do patriarcado de supremacia branca,
caracterizados por Maria Aparecida Silva Bento e Liv Sovik como branquitude e de cisgeneridade
pela feminista trans brasileira Viviane Vergueiro: compreendendo
sistemas complexos de mecanismos institucionais utilizados para a
manutenção e proteção dos interesses e privilégios coloniais, a
branquitude e a cisgeneridade mediam as relações socioculturais até
nossos tempos através de dinâmicas de manipulação do silenciamento
histórico, como também da naturalização e normatização das hierarquias
de poder. Assim, pensando a partir da perspectiva da socióloga e
feminista nigeriana Oyèrónké Oyewùmí, são insuficientes os argumentos
circunscritos somente ao fenômeno da racialização das populações negras e
estratificação das fronteiras etnicorraciais nas discussões acerca de
como a modernidade europeia provocou efeitos devastadores nas populações
negras:
Uma característica marcante da era
moderna é a expansão da Europa e o estabelecimento de hegemonia cultural
euro-americana em todo o mundo. Em nenhum lugar isso é mais profundo
que na produção de conhecimento sobre o comportamento humano, história,
sociedades e culturas. Como resultado, os interesses, preocupações,
predileções, neuroses, preconceitos, instituições sociais e categorias
sociais de euro-americanos têm dominado a escrita da história humana. Um
dos efeitos desse eurocentrismo é a racialização do conhecimento: a
Europa é representada como fonte de conhecimento, e os europeus, como
conhecedores. Na verdade, o privilégio de gênero masculino como uma
parte essencial do ethos europeu está consagrado na cultura da
modernidade.
A escravização dos povos africanos e,
principalmente, o cotidiano do tráfico humano e as relações de
exploração e escravismo colonial no Novo Mundo constituíram
espacialidades onde inúmeros estereótipos e projeções sobre as
populações negras foram forjados. As mulheres e os homens negros sempre
foram estigmatizados como indivíduos exóticos, irracionais, fetichistas,
bárbaros, incivilizados, dentre outros adjetivos, classificações e
juízos de valores de grande teor etnocêntrico e, sobretudo, racista. A
submissão e escravização dos povos africanos geraram várias projeções
imagéticas sobre as mulheres e os homens negros, que eram visualizados
pelo olhar nocivo do colonizador como meros animais, desprovidos de
razão, inteligência, cognoscência, humanidade e cultura. Além de seres
animalescos, as populações negras escravizadas também passaram a serem
coisificadas como objetos, cargas, mercadorias de grande valor e
potencial mercadológico e financeiro no comércio transatlântico. Para
Frantz Fanon, as fobias existentes em relação aos indivíduos negros são
relacionadas ao medo de seu biológico, pois x negrx é somente vistx como
um ser essencialmente biológico. Ou seja, estereotipadx a partir da sua
materialidade fenotípica. Assim, houve o desenvolvimento de um processo
constante de usurpação da humanidade das populações africanas a partir
da dissociação simbólica entre corpo e psique, prática que
construiu o imaginário coletivo racista ocidental composto por inúmeros
mitos e estereótipos que foram naturalizados e normalizados,
propagados historicamente através de dinâmicas citacionais de repetição,
nos termos do filósofo Jacques Derrida a partir do pensamento de Judith
Butler. A raça, assim como o gênero, são construtos performativos
compostos por sequências de atos que operam para estabelecer a aparência
da rigidez corporal e da fixidez das identidades, estabelecidos através
de dinâmicas de repetições obsessivas nas relações de força, que
excluem os indivíduos, estabelecem tabus e constroem os sujeitos
abjetos. De acordo com Homi Bhabha:
Como forma de crença dividida e
múltipla, o estereótipo requer, para uma significação bem sucedida, uma
cadeia contínua e repetitiva de outros estereótipos. O processo pelo
qual o ‘mascaramento’ metafórico é inscrito em uma falta, que deve então
ser ocultada, cria ao estereótipo sua fixidez e sua qualidade
fantasmática – sempre as mesmas histórias sobre a animalidade do negro
(…) tem de ser contadas (compulsivamente) repetidamente, e são
gratificantes e aterrorizantes de modo diferente a cada vez.
O colonialismo europeu e a escravização
das populações negras destruíram famílias, despedaçaram relacionamentos
afetivos e demonizaram as práticas sexuais, elementos disciplinados
através da opressão cotidiana do terror colonial e da moral
cristã-ocidental. Os processos de zoomorfização e coisificação dos
corpos negros impactaram de maneira decisiva as formas de amar e se
relacionar de negras e negros transplantados e suas/seus descendentes,
fato presente na narrativa autobiográfica de Solomon Northup, músico
negro livre sequestrado e escravizado nos Estados Unidos no século XIX,
adaptada para o cinema pelo cineasta Steve McQueen no filme 12 Anos de Escravidão,
que me marcou de maneira bastante profunda e sempre me faz refletir o
quanto a escravidão é um monstro de múltiplos tentáculos que dilacera
todos os âmbitos de nossa existência e humanidade. Na senzala obscura
corpos negros amontoados dormem enquanto os olhos de Solomon,
interpretado pelo ator Chiwetel Ejiofor, perfuram o silêncio em umas das
cenas iniciais do filme. Em meio aos delírios insones de suas
lembranças dos momentos felizes e amorosos com a família em sua vida
enquanto liberto, uma mulher negra procura seu corpo frio e imóvel,
implorando por sexo no desespero mudo de seu desejo. Na cena
angustiante, o gozo roubado é sublimado pela necessidade de
sobrevivência ao terror, ao medo e à solidão. O gozo e as lágrimas são
os sinais de que a humanidade ainda não havia abandonado sua alma.
A repressão dos sentimentos constituía em
uma estratégia de resistência e sobrevivência das populações negras
escravizadas, utilizada principalmente por homens negros como argumenta a
intelectual negra feminista bell hooks. Depoimentos e relatos de homens
negros escravizados como o de Solomon Northup evidenciam o quanto o
contexto da escravização colonial configurou as masculinidades negras
através da brutalidade do terror colonial. A assustadora pedagogia
escravocrata ensinou cotidianamente aos homens negros serem austeros,
agressivos e violentos, valores do patriarcado de supremacia branca que
aniquilaram nossa capacidade de amar e nos mergulharam no rio turvo de
sangue do ódio. Mesmo com a abolição do trabalho escravo compulsório, a
cultura de repressão dos sentimentos se perpetuou como uma das tradições
herdadas do passado colonial, ainda bastante presente nas
masculinidades negras pós-coloniais que reproduzem esses valores. Os
altos índices de violência contra as mulheres negras que se estendem a
nós LGBTQ’s, a utilização da tortura na educação infantil de crianças
negras, a proliferação de comportamentos tóxicos e estilos de vida
autodestrutivos são sintomas de como a repressão de sentimentos estão
matando não só os homens como as comunidades negras através da
proliferação de conflitos intra-raciais. Em plena concordância com bell
hooks:
O sistema escravocrata e as divisões
raciais criaram condições muito difíceis para que os negros nutrissem
seu crescimento espiritual. Falo de condições difíceis, não impossíveis.
Mas precisamos reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e
impedem nossa capacidade de amar. Numa sociedade onde prevalece a
supremacia dos brancos, a vida dos negros é permeada por questões
políticas que explicam a interiorização do racismo e de um sentimento de
inferioridade. Esses sistemas de dominação são mais eficazes quando
alteram nossa habilidade de querer e amar. Nós negros temos sido
profundamente feridos, como a gente diz, ‘feridos até o coração’, e essa
ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir e
consequentemente, de amar. Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar
que poderia conhecer o amor, que estaria amando.
A partir do pensamento de Maria Aparecida
Silva Bento, podemos perceber que a exclusão moral no pós-abolição nas
sociedades que sofreram a experiência o colonialismo europeu
institucionalizou a descriminação racial enquanto exercício de
descompromisso político com o sofrimento do outro, combustível da
máquina necropolítica de extermínio das populações negras, sendo a
desvalorização dos indivíduos negros como seres humanos e a cultura de
estigmatização, abjeção e violência seus principais mecanismos. Só os
brancos possuem o privilégio de amar e ser amado, pois quando se olham
no espelho veem refletido o modelo universal de humanidade que é alvo da
inveja e do desejo dos outros grupos raciais não-brancos, transformando
o amor em uma grande fábula protagonizada somente pela branquitude,
legitimadora de sua supremacia econômica, política, social e cultural,
como também da nossa suposta incapacidade de amar. Referenciando a
socióloga Ruth Frankenberg, Liv Sovik localiza o conceito de branquitude
como
Um lugar estrutural de onde o sujeito
branco vê aos outros e a si mesmo; uma posição de poder não nomeada,
vivenciada em uma geografia social de raça como um lugar confortável e
do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não atribui a si mesmo.
Assim, o amor e a felicidade se tornam
privilégios monopolizados por brancos, joias que a escravidão nos
roubou. Como declara em prantos a personagem Precious, do livro
homônimo da escritora Saphire adaptado para o cinema por Lee Daniels, o
amor nunca fez nada por nós. Só nos restou o escape, a sublimação, a
solidão, a loucura e o flerte com a morte. E é essa herança maldita que
The Weeknd transcodifica na estética de sua arte e sua música.
O cântico sombrio do jovem deus etíope
Abel Tesfaye foi criado em uma família
matrifocal, na qual sua avó e sua mãe enfrentaram o abandono e a solidão
da mulher negra, além do mal estar de sua própria diáspora após
emigrarem da Etiópia para Toronto – Canadá na década de 1980 em busca de
melhores oportunidades e condições de vida. Os traumas da Etiópia após a
morte e destruição do império de Haile Selassie (1930-1974) acabaram
fomentando os estereótipos fantasmagóricos sobre a África que ainda
aprisionam-na em uma territorialidade imagética onde a miséria, a
guerra, as doenças e o sofrimento sem fim brotam da terra como baobás.
Porém, a Etiópia das histórias de seus tios não o assustou em sua
infância na qual a música etíope cumpriu papel de grande relevância na
formação de sua estética musical. A necessidade de sobrevivência gerou a
sobrecarga de trabalho de sua mãe, fazendo com que a responsabilidade
de sua criação e educação fosse transferida para sua avó, que costumava
levar o pequeno Abel para a Igreja Ortodoxa Etíope que frequentava. Os
laços e as relações primárias com a suas matriarcas situam o lugar
privilegiado de Abel em sua família, aspecto que revela a importância da
maternidade enquanto instituição e como experiência nas culturas
africanas, além da fluidez de suas categorias sociais que possuem
posicionamentos altamente situacionais, a exemplo das migrações
diaspóricas, como reflete Oyèrónké Oyewùmí a partir das configurações
das famílias Iorubás na África Ocidental:
A família Iorubá tradicional pode ser
descrita como uma família não-generificada. É não-generificada porque
papéis de parentesco e categorias não são diferenciados por gênero.
Então, significativamente, os centros de poder dentro da família são
difusos e não são especificados pelo gênero. Porque o princípio
organizador fundamental no seio da família é antiguidade baseada na
idade relativa, e não de gênero, as categorias de parentesco codificam
antiguidade, e não gênero. (…) Na África Ocidental (da qual os Iorubá
são uma parte), é a linhagem que se considera como a família. A linhagem
é um sistema familiar baseado consanguineamente, construído em torno de
um núcleo de irmãos e irmãs por relações de sangue. (…) Por causa da
matrifocalidade de muitos sistemas familiares africanos, a mãe é o eixo
em torno do qual as relações familiares são delineadas e organizadas.
Segundo uma entrevista concedida em outubro de 2015 para a revista Rolling Stone,
antes de aprender o inglês Abel falava a língua amárica fluentemente,
idioma oficial da Etiópia, e seu estilo vocal é inspirado por cantorxs habesha,
artistas músicos de ancestralidade ligada aos povos e/ou grupos étnicos
que habitam o chifre da África Oriental, destacando a cantora Aster
Aweke e Michael Jackson como suas principais influências musicais,
presentes nos impressionantes aspectos timbrísticos de sua voz. Na
canção The Hills a intensidade vocal de The Weeknd não é
linear, crescendo no decorrer do andamento sincopado e contínuo da
execução instrumental, explodindo no refrão em sua potência. Em The Hills
a altura vocal transita de forma descontínua entre tons graves, médios e
agudos, sendo os gemidos, falsetes e a prevalência das notas altas uma
característica bastante marcante de sua performance vocal. Sua voz é
estridente, metálica e anestésica. Não é à toa que The Weeknd é
considerado como uma espécie de “novo Michael Jackson” pela crítica
musical especializada.
A estética musical de The Weeknd busca
incessantemente a hibridização e experimentação, característica
fundamental da música afroamericana diaspórica como argumentam Ronald
Radano e Philip V. Bohlman. Classificado pela indústria fonográfica e
crítica musical como PBR&B, espécie de R&B Contemporâneo, o
álbum Beauty Behind The Madness é composto por elementos que
remetem ao espaço urbano pós-moderno e cosmopolita pela presença de
sintetizadores, programações eletrônicas, samples e beats
pesados e intensos. O hip hop, o indie, o punk e o rock progressivo com
os quais teve contato na adolescência foram incorporados através de samples
em estruturas eletrônicas densas, provocando consequentemente o
desenvolvimento do processo de renovação do gênero musical R&B,
através de experimentações complexas entre o Urban Contemporary
(combinações de R&B, Gospel e Soul camufladas por produções
eletrônicas), o Dubstep (linhas de baixo muito fortes, padrões de
bateria reverberantes, samples cortados e vocais ocasionais) e
injeções intensas de Rap, produzindo colisões sonoras entre batidas e
vocais de forma melódica, densa e visceral. Na banda os sintetizadores e
vocais são superestimados, compostos por falsetes melódicos
entristecidos e envolventes. Apesar das influências de Michael Jackson, a
performance corporal de The Weeknd sempre foi centralizada em seu
desempenho e execução vocal surpreendente, contrapondo a sua
corporeidade rígida e engessada nos palcos, aspecto que vem sendo
transformado por aulas de dança que o artista começou a fazer para
melhorar seu desempenho performático.
De acordo com os créditos presentes no encarte do álbum, The Hills
foi composta pelo próprio The Weeknd em parceria com os músicos Ahmad
“Belly” Balshe, Emmanuel Nickerson e Carlo “Illangelo” Montagnese, sendo
produzida pelo último com o auxílio de Million $ Mano. Em 27 de maio de
2015 a faixa foi lançada como o segundo single do álbum através das
gravadoras XO Records, gravadora de sua propriedade, e Republic Records.
É uma gravação recente e crossmedia, na qual o processo de
produção é desenvolvido de maneira independente por meio de
instrumentos, maquinarias e aparelhagens musicais próprias e a
distribuição viabilizada por diversas mídias e plataformas de
comunicação existentes no mundo digital (como as plataformas de
streaming), conceito originado na década de 1990 e adotado por The
Weeknd desde o início de sua carreira musical, na qual produzia suas mixtapes
que foram atualmente relançadas em formato físico. Os timbres
instrumentais de sua banda criam sonoridades ácidas e melancólicas
marcadas pelo uso dos teclados sintetizadores, como também de bases
eletrônicas em slowtempo compostas por beats que
determinam um andamento sincopado de 113 BPM’s (batidas por minuto). A
versão escolhida para esta apreciação musical foi uma remixagem lançada
online 10 de Outubro de 2015 com participação da rapper negra Nicki
Minaj, e performada ao vivo no programa televisivo Saturday Night Live.
A letra da canção possui uma narrativa perturbadora de busca pelo
prazer sexual e fuga da realidade a partir do consumo de drogas. Na
remixagem da canção, Nicki Minaj incorpora a mulher desejada pelo
eu-lírico com a qual este desabafa seus tormentos personificando-a em
sua redenção momentânea de seus conflitos existenciais, estabelecendo
uma interlocução não existente na versão original onde a voz do
eu-lírico é unívoca e protagonista:
Lembra daquela vez que eu apareci com
meu casaco, só de calcinha?/Botas de salto e cano alto que vão até o
joelho, e minhas pernas estavam agarrando aquela garganta/Você me disse
isso e passo a citar, porque nós tomamos umas pílulas e você fumou/Você
disse: ‘Sua boceta me deixa viciado, é como se eu estivesse puxando umas
carreiras de cocaína’…
Suas inegáveis contribuições estéticas
para a história da Black Music não estão limitadas às questões técnicas e
musicológicas, apesar de estas também serem contaminadas pelo contexto,
localização e marcadores socioculturais de Abel Tesfaye, homem negro
heterossexual de classe alta. O álbum Beauty Behind The Madness
(2015) é um itinerário de 14 passos para a loucura, um mundo de
fantasias sombrias que soa sexy e anestesiado. Sua música de alto teor
autobiográfico e confessional é uma verdadeira descida aos seus próprios
infernos, nos quais a sua persona misteriosa e taciturna nos convida a
dançar com seus demônios. Sua visão conflituosa e frequentemente ambígua
sobre mulheres e relacionamentos afetivo-sexuais revelam o quanto as
masculinidades negras em nossos tempos se utilizam da arte para
vivenciar a realidade através do domínio dos sentidos, experimentando em
suas subjetividades o prazer e a beleza que foram historicamente
sublimados por nossxs Ancestrais no passado escravocrata colonial,
alguns dos elementos que fundamentam a estética artística negra nos
Estados Unidos como afirma bell hooks.
A sensibilidade, a melancolia e o
romantismo presentes em sua obra fonográfica desmitificam os
estereótipos relacionados aos homens negros enquanto indivíduos
incapacitados de amar, que aprisionam suas emoções nos cofres secretos
da alma para sobreviver. A Black Music do século XX é um dos maiores
exemplos de como a arte provocou a purificação, redenção e
reinvindicação da nossa humanidade negra. Uma tradição de artistas que
antecederam The Weeknd como Marvin Gaye, Nina Simone, Sam Cooke, Aretha
Franklin, Billie Holliday, Ray Charles, dentre outros inúmerxs e
maravilhosxs, sempre me fizeram pensar no amor e seu potencial
subversivo enquanto catalisador de uma política revolucionária para nós
negrxs. Martin Luther King nunca esteve errado.
O sexo e o erotismo presentes na poética
das letras de The Weeknd são os aspectos que mais atraíram minha atenção
desde quando tive o primeiro contato com sua música, a exemplo de Often:
Ela me pergunta se eu faço isso todos
os dias, eu digo frequentemente/Perguntei com que frequência ela faz
sexo, não com tanta frequência/Vadias morrem para fazer isso de qualquer
maneira, frequentemente/Baby, eu faço sua buceta chover,
frequentemente/Frequentemente, frequentemente, garota, eu faço isso
frequentemente/Faço essa buceta estourar, faça como eu
quero/Frequentemente, frequentemente, garota eu faço isso
frequentemente/Faço essa buceta estourar, faça como eu
quero/Frequentemente…
Sem metáforas complexas e herméticas, sua
sonoridade atmosférica nos conduz a uma libertinagem arrebatadora na
qual a satisfação dos desejos é a maior das urgências, pois, assim como o
amor, o prazer sexual no processo de escravização das populações negras
foi incomensuravelmente estuprado a partir da violência colonial dos
corpos de mulheres e homens negrxs, privados do direito ao gozo e ao
êxtase. Os homens negros destinados à procriação, as mulheres negras
como incubadoras de crianças a serem futuramente escravizadas, os
incessantes abusos sexuais dos colonizadores, além da moral
inquisitorial cristã que demonizou e disciplinou o sexo na modernidade
ocidental traumatizaram profundamente as experiências e as práticas
afetivo-sexuais negras. Como na literatura negra erótica, o sexo na
poética de The Weeknd é reivindicado e praticado a partir de uma
política de transgressão e libertação sexual negra dos cárceres dos
tabus pós-coloniais, como podemos perceber na reflexão do escritor Cuti:
(…) É preciso lembrar que a ideia de
corpo versus espírito é uma concepção bem europeia, esse empenho de
separar corpo e espírito (ou alma), o material do imaterial. Essa visão
de ser humano calcou nossa cabeça que o corpo é pecaminoso e o espírito
não, ou seja, o corpo é do diabo e o espírito de deus. Por isso, na
época da escravização, os brancos achavam que aqueles que eles
escravizavam não tinham alma, eram apenas corpos. Essa divisão é bem
sacana. Serviu para justificar a violência, o massacre. E o que isso tem
a ver com o prazer sexual? Se você não tem alma, seu prazer é brutal, é
animal. Muitos de nós incorporamos essa noção, vestindo esse
estereótipo ou, no sentido oposto, achamos que o sexo é um tabu, que nós
devemos ser extremamente puritanos.
Entretanto, as reinvenções das práticas
racistas e fobias de gênero e sexualidade em nossos tempos ainda
propagam a perniciosa cultura do ódio e aniquilação do amor tornando
nossas almas frias e nossos olhos cegos, que ainda não enxergam a beleza
por trás da loucura visualizada pelo The Weeknd em meio aos delírios e
alucinações de um indivíduo cambiante, em fluxos de fuga constantes de
si mesmo. A utilização de substâncias psicotrópicas e a procura
insaciável por sexo presentes na poética de The Weeknd se transformam em
instrumentos de imolação masculina, fator que demonstra a
vulnerabilidade e o impulso autodestrutivo em busca da liberdade e
analgesia das dores existenciais de nós homens negros na atualidade. O
jogo simbólico da obra Imolação do artista plástico Sidney
Amaral, na qual o próprio artista em um autorretrato tenciona
suicidar-se, nos provoca a refletir sobre a crise da masculinidade
negra:
Ao ver no meio da tela um homem com
uma arma apontada para a cabeça a primeira coisa que se pensa é que a
pessoa representada no quadro vai se matar. Mas não é verdade.
Justamente por isso eu coloco o nome de Imolação. Imolação é aquilo que
se faz por uma coisa maior. Você não está se matando por ser um
deprimido. Você está se matando porque não quer ser escravo, não quer
perder sua identidade, sua liberdade, diz o artista.
Diante do precipício da loucura The
Weeknd, como nós homens negros, está só e ameaça se lançar. Mesmo
acreditando no amor e seu poder grandioso de salvação, a solidão nos
oprime como o açoite outrora em costas negras, dilacerando nossas
feridas da alma deixando-as em carne viva. Nesse momento lembro-me de
uma passagem belíssima (e necessária) do romance Amada da escritora Tonni Morrison:
Aqui (…), neste lugar, somos carne;
carne que chora, que ri; carne que dança descalça no capim. Amém essa
carne. Amém muito. Lá fora eles não amam nossa carne. Eles a desprezam.
Não amam nossos olhos; preferem arrancá-los. Também não amam a pele em
nossas costas. Lá fora eles a açoitam. E, meu povo, eles não amam nossas
mãos. Essas eles apenas usam, amarram, prendem, cortam fora e deixam
vazias. Amém suas mãos! Amém! Levantem suas mãos e beijem-nas. Toquem-se
uns aos outros com elas, batam palmas, acariciem com elas seu rosto,
que este eles não amam também. Vocês têm de amar seu rosto, Vocês! (…) É
de carne que eu estou falando aqui: Carne que precisa ser amada.”
Na última canção da tracklist de Beauty Behind The Madness,
The Weeknd se despede de mim com uma profecia que imerge meu ceticismo
em relação ao amor em uma profunda letargia, após aspirar esperanças
como quem aspira linhas de cocaína:
Espero que você encontre alguém para amar…
Espero que sim, Abel. Um dia, quem sabe. A
arte alivia, mas não cura a dor e o sofrimento. Como diz a bell hooks,
só o amor cura.
Daniel Dos Santos (DanDan) é licenciado em História pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), mestrando em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro fundador e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Africanos e Afrobrasileiros (AfroUneb) e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Cultura e Sexualidade (CuS), nos quais desenvolve o #TheGangstaProject: Masculinidades Negras nos Videoclipes dos Rappers Jay Z e 50 Cent. É apaixonado pelo Drake e Kanye West. Os boxeadores negros são suas principais inspirações.
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