Por Alain de Botton
(escritor e filósofo)
THE NEW YORK TIMES -19 de março de 2020
"Camus nos tempos do Coronavírus"
Camus nos lembra que o sofrimento é aleatório, o que é a coisa mais gentil que se pode dizer sobre isso.
Autor nos toca, em nossos tempos atuais, não porque é um vidente, mas porque avalia corretamente a natureza humana.
Para ele a peste está dentro de todos e ninguém é imune.
Em janeiro de 1941, Albert Camus começou a escrever uma história sobre
um vírus que se propaga incontrolavelmente de animais para humanos e
acaba destruindo metade da população de “uma cidade comum” chamada Orã,
na costa argelina. “A Peste”, publicado em 1947, é descrito
frequentemente como o maior romance europeu do pós-Guerra.
Um
clima de normalidade estranha paira no ar quando o livro começa. Os
habitantes da cidade levam vidas ocupadas, voltadas ao dinheiro e
distantes da natureza. E então o horror tem início, no ritmo de um livro
de suspense. O narrador, doutor Rieux, se depara com um rato morto.
Depois outro e mais outro. Em pouco tempo a epidemia toma conta de Orã. A
doença é transmitida de cidadão para cidadão, espalhando o pânico em
todas as ruas.
Para escrever o livro, Camus mergulhou fundo na
história das pestes. Ele leu sobre a Peste Negra, que dizimou estimados
50 milhões de pessoas na Europa no século 14, sobre a peste italiana de
1630, que fez 280 mil mortos nas planícies da Lombardia e do Vêneto,
sobre a grande praga de Londres, em 1665, e sobre as pestes que
devastaram cidades do litoral da China nos séculos 18 e 19.
Camus
não escreveu sobre uma peste em particular, e seu livro tampouco foi
apenas, como já foi sugerido, uma história metafórica sobre a ocupação
nazista da França. Ele se interessou pelo tema porque pensava que os
incidentes históricos reais aos quais chamamos pestes não passam de
concentrações de uma precondição universal, instâncias dramáticas de uma
regra perpétua —que todos os seres humanos correm o risco de ser
exterminados aleatoriamente a qualquer momento, por um vírus, um
acidente ou as ações de nosso próximo.
Os moradores de Orã se
negam a aceitar a situação. Mesmo quando um quarto da cidade está
morrendo, eles não param de imaginar razões por que isso não vai
acontecer com eles. São pessoas modernas, com telefones, aviões e
jornais. Com certeza não vão morrer como os miseráveis de Londres no
século 17 ou
Cantão no século 18.
“É impossível que seja a peste
—todos sabem que ela desapareceu do Ocidente”, fala um personagem.
“Sim, todos sabiam disso”, acrescenta Camus, “exceto os mortos”.
Segundo Camus, quando se trata de morrer, não existe progresso na
história, não há como escaparmos de nossa fragilidade. Estar vivos
sempre foi e sempre será uma emergência; é uma “condição subjacente”
verdadeiramente inescapável. Com ou sem peste, a peste sempre está
presente, se o que queremos dizer com isso é a suscetibilidade à morte
súbita, um evento que pode tornar nossas vidas instantaneamente sem
sentido.
Foi isso que Camus quis dizer quando falou do “absurdo”
da vida. Reconhecer esse absurdo não deve nos levar ao desespero, mas à
redenção tragicômica, um abrandamento do coração, um afastar-se do
julgamento e da moralização, aproximando-nos da alegria e gratidão.
“A Peste” não quer nos incutir pânico, porque o pânico sugere uma
condição perigosa, mas de curto prazo, da qual poderemos com o tempo nos
safar, voltando à segurança. Mas nunca pode haver segurança — e é por
isso que, para Camus, devemos amar os outros seres humanos, condenados
como nós, e trabalhar, sem esperança e sem desespero, pelo alívio do
sofrimento. A vida é uma unidade de cuidados paliativos, nunca um
hospital.
No auge do contágio, quando 500 pessoas por semana
estão morrendo, um padre católico chamado Paneloux faz um sermão que
explica a peste como sendo o castigo enviado por Deus pela depravação
humana. Mas Rieux, o médico, acompanhou uma criança morrendo e sabe que a
verdade é outra —o sofrimento é distribuído aleatoriamente, ele não faz
sentido, é simplesmente absurdo, e essa é a coisa mais gentil que se
pode dizer sobre ele.
O médico trabalha incansavelmente para
reduzir o sofrimento daqueles que o cercam. Mas ele não é herói. “Isto
tudo não diz respeito a heroísmo”, fala Rieux. “Pode parecer uma ideia
ridícula, mas a única maneira de combater a peste é com decência.” Outro
personagem pergunta o que é decência. “Fazer meu trabalho”, responde o
médico.
Finalmente, depois de mais de um ano, a peste perde
força. Os habitantes da cidade festejam. O sofrimento acabou. As coisas
podem voltar ao normal. Mas Rieux “sabia que esta crônica não podia ser
uma história de vitória definitiva”, escreve Camus. “Só podia ser um
registro do que precisava ser feito e do que, sem dúvida, teria de ser
feito novamente contra esse terror.” A peste, ele prossegue, “não morre
nem desaparece nunca”; ela “aguarda com paciência nos quartos, nas
adegas, nas malas, nos lenços e nos papéis” pelo dia em que novamente
“acordará seus ratos para mandá-los morrer em alguma cidade feliz”.
Camus nos toca, em nossos tempos atuais, não porque é um vidente mágico
capaz de apreender o que os melhores epidemiologistas não podem, mas
porque avalia corretamente a natureza humana. Ele sabe, como nós não
sabemos, que “cada um de nós tem essa praga dentro de si, porque ninguém
no mundo está imune, ninguém”.
Tradução de Clara Allain
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