‘O inverno está chegando’, alerta o cientista Miguel Nicolelis, temendo uma catástrofe
O inverno está chegando. A frase tornou-se famosa no seriado de sucesso “Game of thrones”. Quando dita, significava prenúncio de horror e enorme mortandade. Desta vez, ao ouvi-la, o Papo Reto percebeu que o tem o mesmo significado, só que no mundo real. E bem perto de nós, no Brasil. “As pessoas não percebem que o inverno está chegando”, disse o médico e cientista Miguel Nicolelis, uma das vozes mais veementes na defesa do isolamento social como forma de combater a epidemia do coronavírus, enquanto a vacina não vem. Seriamente preocupado, Nicolelis lembra que o pior pico da primeira onda deu-se justamente no inverno do ano passado. Com a situação fora de controle agora, o cientista teme que as próximas semanas signifiquem uma catástrofe ainda maior, com as pessoas saindo às ruas, enchendo bares, praias. Como se 400 mil mortes fossem apenas coisa de ficção.
Você tem conseguido dormir?
Não é muito fácil, principalmente olhando diariamente o que está acontecendo, não só no Brasil, mas como também em lugares como a Índia. Eu durmo muito tarde, ou muito cedo, dependendo do ponto de vista. E me encontro com uma insônia crônica já.
Tem pesadelos recorrentes?
Não, pesadelo, não. Mas o que eu achei curioso é que semana passada, pela primeira vez na minha vida, eu tive um sonho onde só existiam números. Só gráficos na tela do computador, e números de cálculos, sem nenhuma pessoa. Nenhum som. Só números. E é uma coisa curiosa, porque analiso números há 40 anos, eu vivo disso. Acordei e cheguei à conclusão de que realmente eu estava passando de todos os limites.
O Brasil ainda corre risco de colapso funerário? O que exatamente aconteceria?
É só você olhar para a Índia. Lá está tendo claramente isso, e eu acabei de ver uma cidade no interior de Pernambuco onde a lotação do cemitério é total e eles não sabem o que fazer. Então é quando você tem um pico de mortes, decorrente do colapso que tivemos no sistema de saúde, e você não consegue dar conta dos corpos das vítimas. As pessoas estão achando que porque nós tivemos uma pequena queda, pelo menos aqui em São Paulo... mas os números continuam altíssimos. O inverno está chegando. Muito pouca gente está falando disso. O inverno está chegando e foi no inverno do ano passado que nós tivemos o pico da primeira onda. Dessa vez, nós tivemos uma explosão no verão. Não estão se dando conta de que o inverno está chegando em poucas semanas e com as aberturas que estão acontecendo prematuramente. Nós estamos no que eu chamo de estratégia sanfona. Abre e fecha. Você nunca soluciona o problema de verdade, nunca controla. Você nunca está à frente, você só reage à dinâmica.
Provavemelmente, será chamado a falar na CPI da Covid no Senado?^O que dirá a eles sobre a atuação do governo federal na crise sanitária?
Eu ainda não fui chamado, não recebi nenhum convite. Vou te responder a mesma coisa que meu pai dizia quando eu perguntava a ele em quem ele votou: o voto é secreto. No momento em que eu for chamado, falo o que devo falar.
E a mim, o que diria?
Pra você eu diria que foi catastrófica. Talvez junto com o primeiro-ministro do Reino Unido (Boris Jhonson), lá no início, foram as piores do G-20. E agora estamos vendo a Índia. Outra catástrofe. A Índia deve ter uma subnotificação de dez a 20 vezes dos mortos. Imagine que devem estar morrendo 40 mil pessoas na Índia diariamente. E aqui no Brasil desde o começo foi uma catástrofe. A crônica da morte anunciada. Existe uma cadeia de erros crassos.
É correto chamar o presidente Bolsonaro de genocida?
Depende de como é usado o termo. Existem vários juristas dizendo que o termo genocida tem um sentido muito preciso no Direito Penal Internacional. Eles se opõem ao uso da palavra. Eu diria que ela (a gestão Bolsonaro) é criminosa. Pra mim é o suficiente a dizer. Foi uma gestão criminosa. Por omissão, por incompetência, por inépcia. O mínimo a se dizer é que foi uma gestão criminosa.
Já teve um bate-boca com algum negacionista?
Não, porque eu não saio de casa. Estou há 14 meses trancado. Nesse tempo, eu conto nos dedos de uma mão às vezes em que saí. E sempre com meu próprio carro, às vezes para dar uma volta. Fui ver minha mãe uma vez. Eu não tive a oportunidade de debater (pessoalmente) com nenhum negacionista. Eu debati nas entrevistas, na televisão, quando puseram pessoas que falaram bobagem.
E nas redes sociais, os negaciostas conseguem te tirar do sério?
Tirar do sério, não, porque as redes sociais têm o botão de bloqueio. Eu não debato com gente que ofende, com gente que ameaça. O que me tirou do sério foram os erros do governo federal, também aqui em São Paulo, que foi outra catástrofe. Negar que São Paulo que foi o maior espalhador do vírus na pandemia e que precisava de um lockdown real, pra ver se a gente continha... Deixa chegar o maior complexo hospitalar do Brasil à situação que chegou... Ninguém me tirou do sério, mas a situação do Brasil me tirou do sério várias vezes, porque não precisava ser assim.
O Brasil chegará a um milhão de mortos?
É muito difícil fazer uma previsão tão a longo prazo. Tinham várias previsões no começo da pandemia que se baseavam numa dinâmica linear do vírus, como se o vírus tivesse o mesmo comportamento ao longo das estações. Mas que nós vamos chegar a 500 mil mortos por volta de junho, eu não tenho muita dúvida. É quase certeza. Até semana passada, morreram mais pessoas nos primeiros quatro meses de 2021 do que no ano inteiro passado. É um número assustador, e tem outra estatística que eu levantei pouco tempo atrás, é que em abril nós vamos ter o menor diferencial entre nascimentos e mortes da história do Brasil. Já teve o menor, que foi uma diferença de 47 mil nascimentos a mais que mortes em março, pra você ter uma ideia, em 2019, a média mensal era de 126 mil nascimentos a mais do que mortes. Em abril, está na casa dos 15 mil. Claro que faltam dados ainda, mas estamos correndo o risco de termos mais mortes do que nascimentos no Brasil pela primeira vez na história.
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