domingo, 16 de agosto de 2020
Qual o país “mais sofrido do mundo”? E países em guerra conseguiram algum “cessar-fogo” durante a pandemia?
Aproveitar a vida: entenda a importância e o valor de viver o agora
Aproveitar a vida: entenda a importância e o valor de viver o agora
Como a questão da morte pode nos ajudar a viver melhor?
Você conhece o valor de viver cada momento?
O que posso fazer para aproveitar melhor a vida?
Mudanças internas
Ações práticas
Por que não conseguimos viver no presente?
Função do passado
Expectativas para o futuro
Como o autoconhecimento pode nos ajudar a aproveitar a vida?
sexta-feira, 14 de agosto de 2020
Noam Chomsky: “Somente um novo ‘acordo verde’ pode nos salvar de um novo desastre pior do que essa pandemia”
Noam Chomsky: “Somente um novo ‘acordo verde’ pode nos salvar de um novo desastre pior do que essa pandemia”
quarta-feira, 12 de agosto de 2020
Juíza de Curitiba associa homem negro a grupo criminoso 'em razão da sua raça'
RACISMO ESTRUTURAL
Juíza de Curitiba associa homem negro a grupo criminoso 'em razão da sua raça'
Inês Marchalek Zarpelon disse o réu, um homem negro de 48 anos, "seguramente" integrava a organização, "em razão de sua raça"
domingo, 9 de agosto de 2020
O VOTO DA POBREZA - Maria Lucia Victor Barbosa
O voto da pobreza
A pobreza, que como categoria social costuma ser medida estatisticamente, sobretudo através de critérios baseados em níveis de renda, é visível a olho nu. Incomoda a todos em geral e é uma das maiores desgraças da existência, especialmente para os que são pobres.
Essa questão é ainda o grande dilema brasileiro em que pese ser moda dizer que agora só existe classe média. Mas a pobreza existe e, aglomerada especialmente nos grandes centros, compõe o submundo de onde emerge o contraste. Como um anel degradante, o qual se costuma denominar de periferia, circunda o urbano de luxos e lojas, de prédios e praças, de casas e carros, de tudo mais que fulgura e brilha e que esmaece e acinzenta na medida em que se aproxima do “território” das favelas, dos bairros pobres, dos cortiços, onde uma cultura de mundo cão mantém leis e códigos peculiares, símbolos e crenças, valores e aspirações.
Verdadeiro espanto como arte de sobreviver, desafio ao absurdo, antítese de maneira alguma revolucionária, essa massa degradada por sua condição miserável está a merecer sempre novas reflexões apesar de quantas já tenham sido feitas.
Explodindo em violência e tragédia o cotidiano do pobre, feito de carências de toda espécie é, ao mesmo tempo, pleno de malandragem, de fantasia, de misticismo, de magia, de festa, de humor como o avesso da miserabilidade.
Não há só desespero como deveria ser. Freqüentemente, é a esperança que reina soberana sobre os pobres e um imediatismo de quem não tendo muito a planejar para o futuro faz das pequenas coisas grandes prazeres como se fossem conquistas sobre a desgraça.
Existem também certas dimensões a serem aprendidas na pobreza. Não basta quantificá-la, medi-la ou mesmo tentar explicá-la através de seu aspecto mais evidente, o econômico. Mesmo porque a pobreza é também categoria política e padece de recursos políticos.
A época mais privilegiada da proximidade entre pobreza e “mercadores de esperança” se dá nas campanhas eleitorais, quando persuasivos candidatos incluem em seus roteiros a periferia e se tornam pródigos em promessas e favores ao tentar a difícil caça aos votos.
Nem sempre, contudo, dinheiro ou favores, exclusivamente, conquistam o voto. O candidato para se impor precisa de algo mais, e a “compra do voto” é algo complexo. Para o indivíduo pobre a busca de identidade com o candidato é vital. Vem através de um discurso que aborde problemas cotidianos, de uma retórica exaltada, da ênfase na diferença entre ricos e pobres, do clamor por vingança contra algo ou alguém convertido em bode expiatório. Colocar-se ao lado dos “pobres e oprimidos é uma tática usada por candidatos de todos os partidos. Levam vantagem aqueles que souberem fazer o papel de “médium do psiquismo coletivo”. Ideal também para o candidato adicionar ao personagem do homem comum ingredientes de sonho e fantasia. Especialmente, saber explorar emoções.
Segundo Almond e Powell, nas “atitudes políticas” existem componentes afetivos que, para além do julgamento racional, manejam sentimentos de atração e repulsão, de simpatia ou antipatia, de admiração ou menosprezo, etc. É sobre tais forças que se alicerçam a personalização do poder e os laços que ligam o político à sua clientela.
A grande massa pobre é capaz de fermentar emoções de uma maneira mais intensa dos que indivíduos de outras classes sociais que, tendo recebido certos lustros de educação formal, reagem de maneira um pouco mais comedida diante dos fatos e acontecimentos. Assim, a clientela política composta pela imensa maioria pobre constitui terreno fértil para as pregações que apelam para sentimentos e atingem as emoções. Compartilhando com as demais classes sociais o gosto pela política em seu aspecto lúdico, os pobres adaptam seu universo específico de valores e aspirações à imagem ideal do político. Apostam em candidatos como num jogo, procuram obter nas campanhas eleitorais o máximo de vantagens possíveis, escolhem aquele que o coração mandar.
Se as maneiras de auferir vantagens variam conforme a classe social, seria ingenuidade supor que os mais pobres sejam seres angelicais imunes ao sistema. Como a maioria dos indivíduos os pobres querem que as coisas mudem ou melhorem desde que o esforço seja feito por outros. O político em campanha pode ser esse outro que melhora o presente e promete um radioso futuro mercadejando esperanças.
Numa sociedade como a nossa, em que o poder é personalizado, que a dependência de um pai Estado faz parte da história, que sempre se suspira por um salvador da pátria, viceja a política populista e o êxito dos que mantêm as caridades oficiais. Há uma democracia marota de faz-de-conta e, na troca de favores entre candidatos e eleitorado, legitima-se o a malandragem do jogo político numa sociedade onde política sempre foi um “negócio do rei”.
Maria Lucia Victor Barbosa
Maria Lucia Victor Barbosa é professora universitária formada em Sociologia e Administração Pública e tem especialização em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UNB). Possui experiência em planejamento e execução de programas sociais para populações de baixa renda. É autora de “O voto da pobreza e a pobreza do voto – A ética da malandragem” (Jorge Zahar, 1988), “América Latina – Em busca do paraíso perdido” (Saraiva, 1995), “Fragmentos de uma épo-ca” (UEL, 1998), “Contos da meia-noite” (UEL, 1999) e “A colheita da vida” (UEL, 2000).
‘‘O Voto da Pobreza e a Pobreza do Voto – a Ética da Malandragem’’
AUTORA: Maria Lucia Victor Barbosa________________________________________________________
Em novembro de 1988, lancei meu
primeiro livro, ‘‘O Voto da Pobreza e a Pobreza do Voto – a Ética da
Malandragem’’, editado por Jorge Zahar. Neste trabalho analisei
especialmente o voto da grande maioria da população brasileira, que como
se sabe é pobre, e a influência sobre essa classe dos meios de
comunicação e dos líderes populistas. Agora constato, que apesar de já
terem se passado mais de onze anos, pouca coisa mudou em termos de
comportamentos e atitudes dos menos desfavorecidos.
Isso se deve ao
fato de que, à medida que falta a um indivíduo a capacidade de formular
explicações mais racionais e científicas, ele tende a fazer sua leitura
de mundo através apenas de emoções e sentimentos. Assim, a grande massa
pobre é capaz de fermentar emoções de maneira mais intensa do que os
indivíduos de outras classes sociais, que tendo recebido certos lustros
de educação formal, reagem de maneira um pouco mais comedida diante dos
fatos e acontecimentos.
Por conta disso, a clientela política
composta pela pobreza constitui terreno fértil para a pregação que apela
para sensibilidade. Compartilhando com as demais camadas sociais o
gosto pela política no seu aspecto lúdico e de sonho, os pobres adaptam
seu universo específico, composto de valores e aspirações, à imagem
ideal do político. Apostam em candidatos como num jogo, procuram obter
nas campanhas eleitorais o máximo de vantagens possíveis, escolhem
aquele que ‘‘o coração mandar’’.
Por outro lado, entre os eleitores
de classes mais elevadas vai aos poucos se formando uma consciência mais
nítida e, assim, candidatos e governantes são julgados com mais rigor à
luz de determinados critérios, entre os quais se incluem a honestidade,
a competência e a postura ética.
Tudo isso que pode parecer apenas
uma teoria está sucedendo na realidade, pois o que se vê hoje são
vereadores, prefeitos, deputados estaduais, deputados federais e
senadores sendo cassados e alguns presos, por envolvimento em atos
ilícitos, enquanto ministros caem pelos mesmos motivos. Ora, tais coisas
não acontecem sem a pressão da opinião pública.
Em Londrina não
poderia ser diferente, sendo que nesta cidade as atenções estão
concentradas na série de pesadas e graves acusações sobre o desvio de
milhões de reais por parte do Poder Público. Segundo o estampado na
imprensa, o gigantesco e estarrecedor esquema de corrupção teria sido
feito para beneficiar a campanha do deputado estadual Antonio Carlos
Belinati, filho do prefeito Antonio Belinati, e do governador Jaime
Lerner, que se reelegeu tendo novamente como vice Emília Belinati,
mulher do prefeito. (‘‘O Estado de S. Paulo’’, do dia 20).
No meio do
fogo cerrado estão a Autarquia do Meio Ambiente (AMA) a Companhia
Municipal de Urbanização (Comurb) e o Serviço de Telecomunicações de
Londrina S/A (Sercomtel), sendo que a lama vai respingando no Poder
Legislativo com acusações feitas também a deputados estaduais e a
vereadores.
Nunca se viu em Londrina um escândalo de tamanha
proporção, sendo que 87 entidades – entre elas a Associação Industrial e
Comercial de Londrina (Acil), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),
Lojas Maçônicas, representantes da Igreja Católica etc. – têm levado a
efeito manifestações em que exigem esclarecimento dos fatos e punições
aos culpados. Tais atos culminaram com o pedido de cassação do prefeito
Antonio Belinati, sendo que para isso deveria ser formada na Câmara de
Vereadores uma Comissão Processante (CP) que, em última instância,
poderia desfechar, depois de analisado o processo, a cassação do
prefeito.
Na quinta-feira passada, os vereadores se reuniram para
decidir se formavam ou não a CP. Presentes também na Câmara dois grandes
grupos: o das entidades que exigem a cassação e é composto por pessoas
da classe média; e o grupo contra a cassação, uma massa de pobreza que
defende apaixonadamente o prefeito.
O clima era tenso, apesar de não
ter havido embates corporais, ficando a platéia apenas nos vitupérios
lançados a plenos pulmões. Também o pugilato entre o presidente da
Câmara, vereador Renato Araújo (PPB), e um rapaz que o teria xingado, e
sobre o qual o vereador arremessou um exemplar da Constituição, não
aconteceu, pois Renato Araújo foi contido por seus pares. De todo modo, a
sessão que contou com boatos sobre a ida do prefeito à Câmara e
manobras de todo o tipo para ganhar tempo, foi encerrada pelo presidente
sem a formação da CP.
O segundo round está marcado para terça-feira
que vem, e não se pode prever o que vai acontecer, pois o prefeito
Antonio Belinati, dono de uma carreira política de 30 anos, ainda está
cheio de aspirações que incluem o governo do Estado do Paraná para si
próprio, o Senado para sua esposa, a prefeitura para o filho, e,
provavelmente, demais cargos para outros familiares. Naturalmente,
portanto, ele vai continuar lutando com todas as suas forças.
Para se
manter no cargo e tentar realizar seus sonhos, o prefeito conta com o
fervoroso voto da pobreza, pois os mais pobres dizem coisas como a
moradora de um dos conjuntos habitacionais de Londrina, Maria de Lourdes
Barbosa, que afirmou: ‘‘Ele (Belinati), mesmo tirando dinheiro, como
dizem, fez muita coisa por nós. Somos a favor dele, que foi na favela e
se preocupou com a gente. Por isso a gente veio aqui’’. (Folha de
ontem).
Do lado dos que exigem a cassação do prefeito, aparece o
pensamento do corretor Israel Klein: ‘‘É preciso acabar com os maus
políticos. Enquanto o povo estiver votando por uma lata de óleo, uma
cesta básica e uma mentira, não vamos mudar esse País’’ (Folha de
ontem).
Diante da gravidade do assunto é necessário que tudo seja
esclarecido, e nesse sentido o Poder Judiciário não pode falhar. Afinal,
as coisas estão mudando no Brasil, e Londrina não é exceção.
sábado, 8 de agosto de 2020
A natureza jurídica da pandemia da Covid-19 como um desastre biológico
Direito em pós-graduação
A natureza jurídica da pandemia da Covid-19 como um desastre biológico
1. O emergir das doenças zoonóticas
Segundo a OMS, os coronavírus são zoonóticos1,
o que significa que são transmitidos de animais para pessoas. Já em
2016, em publicação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
sobre as questões e problemas ambientais globais emergentes, esta
descreveu um “aumento mundial no surgimento de doenças e epidemias,
particularmente de zoonoses – doenças que podem ser transmitidas entre
animais e humanos.” 2 As doenças zoonóticas são constantemente associadas a mudanças ou a distúrbios ecológicos3,
numa relação direta entre a degradação dos ecossistemas e o surgimento e
a difusão dos patógenos da vida selvagem para humanos.4 Aproximadamente 60% de todas as doenças infecciosas em humanos tem origem zoonótica5, havendo, em média, uma nova doença infecciosa surge em humanos a cada quatro meses.6
Nos anos recentes, houve o surgimento de várias doenças zoonóticas,
tais como a AIDS, o Ebola, a gripe aviária, a MERS, a SARS, o Zika
vírus, entre outras. Portanto, as zoonoses são verdadeiras ameaças ao
desenvolvimento econômico, à integridade dos ecossistemas, assim como ao
bem-estar animal e humano.7
Apenas na última década, os custos diretos tidos em medidas de resposta
e controle ao surgimento de zoonoses foram na monta de U$ 20 bi,
enquanto os indiretos chegaram a incríveis 200 bi.8
2. A Pandemia da Covid-19
O surgimento de um novo vírus, primeiro identificado,
em Wuhan na China, em Dezembro de 2019, é o responsável pela
disseminação da doença denominada Covid-19, que pode causar diversos
sintomas, sendo o mais grave o desenvolvimento de doença respiratória
grave. Após ocasionar as primeiras mortes e se espalhar rapidamente em
nível global, a Covid-19 foi, primeiro, declarada como Emergência de
Preocupação Internacional, em 30/01/20, para, em 11/03/20, ser declarada
como Pandemia pela Organização Mundial de Saúde.9
Enquanto este artigo está sendo redigido, a Covid-19 já infectou
1.182,827 pessoas e levou a óbito 63.924 pessoas ao redor do mundo.10
Infelizmente, quando este artigo estiver sendo lido os valores já serão
outros. Após o primeiro caso diagnosticado no país, em 26/02/202011, o Brasil já soma 9.391 infectados e 376 mortos, como números oficiais.12
3. Sentido jurídico de desastres e a Covid-19
Como já tivemos a oportunidade de afirmar13, a formação do sentido de desastres encontra-se numa relação semântica pendular entre: (i) causas e (ii) consequências altamente específicas e complexas, convergindo para a descrição de fenômenos socioambientais de grande apelo midiático14 e irradiação policontextual (econômica, política, jurídica, ambiental) capazes de comprometer a (iii) estabilidade do sistema social. Os desastres consistem, conceitualmente, em cataclismo sistêmico de causas que, combinadas, adquirem consequências catastróficas.
(i) Uma concepção dominante de catástrofe nos remete aos impactos humanos e sociais ocasionados pela natureza15, tais como terremotos, tornados, incêndios. Esta concepção naturalística de catástrofes tende a vincular os desastres a eventos naturais desencadeadores de danos humanos e à propriedade, dotados estes de grande magnitude. Subjaz a esta noção mais tradicional de desastres, uma distinção cartesiana entre homem/natureza, concebendo desastres como aqueles eventos naturais, não habituais e de intensidade irresistível16.
No entanto, a evolução tecnológica e científica da Sociedade Contemporânea ocorrida, principalmente, após a industrialização, desencadeou a ampliação da capacidade de intervenção do homem sobre a natureza, havendo, em quase todos desastres denominados naturais, algum fator antropogênico17, o que frequentemente torna as fronteiras entre estes conceitos turvas. Apesar de tais dificuldades conceituais, para fins didáticos, os desastres são constantemente descritos e classificados segundo suas causas, como “naturais”, mistos ou antropogênicos. Os desastres naturais são aqueles decorrentes imediatamente de fenômenos naturais, atribuíveis ao exterior do sistema social, sendo frequentemente classificados em categorias de desastres geofísicos, meteorológicos, hidrológicos, climatológicos e biológicos18. Entre os exemplos de desastres biológicos, encontram-se as epidemias e as infestações de insetos19.
Note-se, portanto, que as pandemias são frequentemente passíveis de se configurarem em desastres biológicos, geralmente sob a classificação de naturais, em dicotomia aos desastres antropogênicos, com as devidas ressalvas já observadas aqui neste texto sobre o critério da “causalidade natural”20. Em suas especificidades, este consiste em um verdadeiro desastre ao sistema de saúde pública mundial.
(ii) No que diz respeito à segunda dimensão constitutiva do sentido de desastre, há um destaque para as consequências de um evento para o seu enquadramento como desastre. Os desastres são constantemente descritos como eventos que acarretam perdas de vidas humanas, saúde pública, de propriedades ou mesmo ambientais. A UNDRR, responsável pela uniformização conceitual em nível internacional, descreve desastre como “uma perturbação grave do funcionamento de uma comunidade ou sociedade em qualquer escala devido a eventos perigosos que interagem com condições de exposição e capacidade, levando a um ou mais dos seguintes itens: perdas e impactos humanos, materiais, econômicos e ambientais.”21 Importante destacar que o sentido de desastre não se refere a um plano individual, mas diz respeito a eventos que atuam no plano da sociedade (societal disasters), geralmente entendidos como eventos de grandes perdas para um número substancial de pessoas e bens22.
Para o Centre for Research on the Epidemiology of Disasters, desastre é a situação ou o evento que supera a capacidade local, necessitando um pedido de auxílio externo em nível nacional ou internacional, bem como um evento imprevisto e, frequentemente, súbito, que causa grande dano, destruição e sofrimento humano23. Para o referido centro de pesquisa da Universitè Catholique de Louvain – Belgium, ao menos um dos critérios que seguem deve ser preenchido para a configuração de um evento danoso à condição de desastre: (a) 10 ou mais mortes humanas (efetivas ou presumidas); (b) pelo menos 100 pessoas atingidas (necessitando de comida, água, cuidados básicos e sanitários; desalojados e feridos); (c) ter sido declarado estado de emergência; (d) ter havido um pedido de ajuda internacional24.
Os números da Covid-19 são capazes de demonstrar, sem a necessidade de maior aprofundamento, que esta se enquadra como desastre, também a partir da análise de sua intensidade, superando não apenas o número de óbitos (a), mas o número de atingidos (b), como também, a declaração de Estado de Emergência (d). Não bastassem todos estes “atributos”, a presente pandemia tem um gravíssimo efeito colateral econômico.
(iii) A análise sistêmica dos desastres demonstra, por sua vez, o fato desses se tratarem de fenômenos dotados de alta complexidade e constituídos por causas multifacetadas e consequências graves. A interação entre estes fatores ressalta a relevância de uma análise sistêmica de tais fenômenos para a formação de seu sentido. Sistemicamente, os desastres são provenientes de circunstâncias naturais, tecnológicas ou sociopolíticas. Esta combinação de fatores exógenos e endógenos ao sistema social, é capaz de ocasionar a perda de sua estabilidade sistêmica. O comprometimento da estabilidade sistêmica repercute, assim, na quebra das rotinas coletivas inerentes às comunidades, na sociedade e na necessidade de medidas urgentes (e, geralmente, não planejadas) para gerir (restabelecer) a situação25. Os desastres são fenômenos extremos capazes de atingir a estabilidade sistêmica social, num processo de irradiação e retroalimentação de suas causas e efeitos policontextualmente (econômicos, políticos, jurídicos, científicos).
Em nível de Direito Internacional dos Desastres26, a perda da capacidade de resposta ao evento em face de uma desestabilização sistêmica também compõe o conceito de desastres proposto pelo Projeto de Artigos para a Proteção de Pessoas em Eventos de Desastres da Comissão de Direito Internacional da AGNU.27 O sistema normativo brasileiro adota uma descrição conceitual de desastres também a partir de uma simbiose entre os três elementos acima descritos (causas, consequências e estabilidade).28 A perda da estabilidade sistêmica também é uma constante na conceituação dos desastres, representada, no Direito brasileiro, pelo institutos da decretação de situação de emergência29 ou de estado de calamidade pública30.
Note-se inevitável, aqui também, considerarmos a Pandemia causada pelo novo coronavírus como um verdadeiro desastre, tendo este desencadeado uma desestabilização social sistêmica, o que redundou em decretações generalizadas (em nível nacional, estadual e mesmo municipal) de Situação de Emergência e de Estado de Calamidade. Apenas para fins de exemplo de tal situação destacam-se a declaração, em nível federal, de Emergência em Saúde Pública 3132 e do Estado de Calamidade Pública33.
Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do Coronavírus (Covid-19).
1Disponível em https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/who-china-joint-mission-on-covid-19-final-report.pdf, p. 08. Acesso em 03/04/20.
2 UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. UNEP 2016 Report: Emerging Issues of Environmental Concern. Nirobi: UNEP, 2016. p. 04.
3 Idem, ibidem. p. 19.
4 Idem, ibidem. p. 04.
5 Idem, ibidem. p. 18; WOOLHOUSE, M.E.J. and GOWTAGE-SEQUERIA, S. Host range and emerging and reemerging pathogens. Emerging Infectious Diseases, 11, 2005. p. 1842–1847. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3367654/ pdf/05-0997.pdf.
6 Idem, ibidem. p. 18; McDERMOTT, J. and GRACE, D. Agriculture-assocaited disease: Adapting agriculture to improve human health. In: Fan, S. and Pandya-Lorch, R. (eds), Reshaping agriculture for nutrition and health. International Food Policy Research Institute, Washington, D.C. 2012. http:// ebrary.ifpri.org/cdm/ref/collection/p15738coll2/id/126825.
7 Idem, ibidem. p. 19.
8 WORLD BANK. People, pathogens and our planet: Vol. 1. Washington, DC: WB, 2010. Disponível em http://documents.worldbank.org/ curated/en/2010/01/12166149/people-pathogens-planet-volume-one- towards-one-health-approach-controlling-zoonotic-diseases. Acesso em 04/04/20.
9Informação prevista em https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19---11-march-2020. Acesso em 05/04/20.
10 Informação disponível em tempo real: https://www.worldometers.info/coronavirus/?fbclid=IwAR0zkpRD_zQZb4UkziGI_Xvv75s5Q3eynf7-f9pOspxGbgHbe7OqpGBrIBI. Acesso em 05/04/20.
11 Disponível em https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46435-brasil-confirma-primeiro-caso-de-novo-coronavirus. Acesso em 03/04/20.
12 Disponível em https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/03/casos-de-coronavirus-no-brasil-em-3-de-abril.ghtml. Acesso em 03/04/20.
13 CARVALHO, Délton Winter de. Desastres Ambientais e sua Regulação Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2020. p. 52-60.
14 Sugerman, Stephen D. “Roles of Government in Compensating Disaster Victims. Issues in Legal Scholarship. Symposium: Catastrophic Risks: prevention, compensation, and recovery. Article 1. Berkeley: UC Berkeley Electronic Press, 2007. p. 3.
15 Ségur, Philippe. La catastrophe et le risqué naturels. Essai de definition juridique. Revue du droit public, p. 1693 e ss.
16 Idem.
17 Farber, Daniel; Chen, Jim; Verchick, Robert. R. M.; Sun, Lisa Grow. Disaster Law and Policy. 2a ed. New York: Aspen Publishers, 2020. p. 3.
18 Vos, Femke; Rodriguez, Jose; Below, Regina; Guha-Sapir, D. Annual disaster statistical review 2009: the numbers and trends. Brussels: Cred, 2010. p. 13.
19 Tipologia esta adotada nacional e internacionalmente.
20 FARBER, Daniel. “Navegando a Interseção entre o Direito Ambiental e o Direito dos Desastres.” In: FARBER, Daniel; CARVALHO, Délton Winter de. Estudos Aprofundados em Direito dos Desastres. 2ª ed. Curitiba: Appris, 2019. p. 27-28.
21 Disponível em http://www.un-spider.org/node/7661. Acesso 05/04/20.
22 Sugerman, Stephen D. “Roles of Government in Compensating Disaster Victims.” Issues in Legal Scholarship. Symposium: Catastrophic Risks: prevention, compensation, and recovery. Article 1. Berkeley: UC Berkeley Electronic Press, 2007. p. 1.
23 Vos, Femke; Rodriguez, Jose; Below, Regina; Guha-Sapir, D. Op. cit., p. 12.
24 Idem.
25 Porfiriev, Boris N. “Definition and delineation of disasters.” In: QUARANTELLI, E. L. (Ed.) What is a Disaster? New York: Routledge, 1998. p. 62.
26 CARVALHO, Délton Winter de. Op. Cit. p. 66-76.
27 Art. 3º, desastre é “um evento de calamitoso ou uma série de eventos que resultam em ampla perda de vidas, grande sofrimento e angústia humana, deslocamento em massa ou danos materiais ou ambientais em larga escala, comprometendo seriamente o funcionamento da sociedade.”
28 Art. 2.º, II, do Dec. 7.257/10 desastre é o “resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem sobre um ecossistema vulnerável, causando danos humanos, materiais ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais.
29 Art. 2.º, III, do Dec. 7.257/10.
30 Art. 2.º, IV, do Dec. 7.257/10.
31 Portaria 188/20 do Ministério da Saúde que “declara Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional em decorrência da Infecção Humana pelo novo Cornonavírus (2019-nCoV).”
32 Lei 13.979/20 que “dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.”
33 Decreto Legislativo n. 06/20 que “reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.” Reconhece-se que apesar do Estado de Calamidade Pública ter se dado com o fim específico de aliviar o controle fiscal de gastos públicos, este também demonstra cabalmente uma perda de estabilidade inerente aos desastres.