sexta-feira, 24 de junho de 2022

Ingenuidade


Ingenuidade



(evangelhista da silva)



                                                      Quero uma mulher que me procure                                                         se  dispa e me escute
caia na cama, no chão, na lama, na grama
e não se cale, grite! grite! grite!



Fale insistidamente que é minha propriedade
que me quer e logo se vá e tão logo se volte
eternamente virgem, sempre que a saudade reclamar
no desvario de me consumir.



E, quando estiver ao meu lado,
esqueça o passado e entregue-se-me
à fúria apaixonada fingindo que me quer.



E nestes momentos de puro sexo
cheiroso, ardente, lento e abrupto
                                                     só nós dois interpretaremos a vida                                                    
para cair no delírio eterno de gozar.



Lauro de Freitas, 06 de abril de 1999.








terça-feira, 21 de junho de 2022

Sinos Mudos Soaram À Meia Noite


Grande velho e histórico famoso sino da igreja Zygmunt em Cracóvia, Polônia


Sinos Mudos Soaram À Meia Noite





*Raymundo Evangelhista________________________________________________




Caros leitores, imaginar que perpassa em vossa mente neste instante, é algo, talvez, inusitado. Apesar de que tudo de muito ainda mais absurdo acontecia em terras de Tupinambás e Negros remanescentes. Santo Antônio de Jesus, como era conhecida aquela maloca, era um repositório de tudo o que não presta. Já se nos bastava a presença de estrangeiros que por lá chegavam para saquear e sacanear com os nativos, - a nossa gente. Ouçam atentamente o triste fim de um povo: - Era noite de inverno. Chovia copiosamente como que a prenunciar um dilúvio. Os filhos daquelas plagas que ainda estão vivos podem contar a história. Assim narrou-me o fato, Frederico Costa, meu amigo mais velho. Foi uma coisa do outro mundo, Seu moço, os sinos da Igreja da Praça dos Tupinambás não mais dobravam. Estavam em silêncio há mais de trinta anos. Um certo padre, muito escroto, depois de retirar o sineiro, (aquele que esticava as cordas para fazer os sinos soarem ao longo do infinito), transformou os sinos em um relógio eletrônico que ficou quebrado para sempre. Os sinos, Seu moço, foram vendidos para o ferro velho a troco de banana. Pois bem, Seu moço, eu durmo com as galinhas. Você sabe muito bem disso. Eu tenho lhe falado. Bem, mais tarde eu acostumo acordar para beber água. Naquela noite mística e chuvosa, os galos não cantavam; e os cachorros não latiam. Era um silêncio profundo. Só me restava naquele momento ouvir a poesia cantada pela chuva ao cair no telhado da nossa choupana. De repente, Seu moço, uma badalada, duas, três, e eu arrepiado como um gato assombrado... quatro, cinco, seis, sete, e eu se me perguntava que estava acontecendo meu Deus... Eram os sinos da igreja... e continuava. Não parava não. Oito, nove, dez, onze, doze. Doze badaladas. Os sinos, Seu moço, anunciavam que era meia noite. Peguei do meu relógio de bolso e conferi. Abri a porta e pude ver Tolentino, D. Helena, Zé Pilingocha, e outras pessoas assombradas. Isso sem falar nas crianças que não entendiam nada, visto que dormiam profundamente. Imaginava eu que era o fim do mundo. Lá, no centro da cidade, o tumulto era generalizado. Com os meus aprendizados espíritas absorvidos por meu amigo, irmão e camarada, Estêvão, que você conheceu aqui em nossa casinha, me tornara destemido. Eu fui ver. E vi. Homens, sob a chuva, de camisola e calcinha que pediam socorro desesperadamente. Tudo aquilo não passava de um comportamento histérico. Era um terror infundado sem motivo. Bastava ter um pouco de calma para entender a fenomenologia do fato inusitado. Eu parecia um pinto molhado. Não tinha medo. Eu queria tão somente encontrar meios para explicar o porquê do soar dos sinos em doze badaladas à meia noite. Não havia um cientista sequer desses nossos dias, aqui na cidade, que tagarela de tudo que pudesse explicar. Isso me faz lembrar o escritor José de Alencar em seu livro Senhora quando enaltece a personagem principal Aurélia: "Não havia porém em Aurélia sequer o ridículo pedantismo de certas moças que, tendo colhido em leituras superficiais algumas noções vagas, se intrometem a tagarelar de tudo." Seu moço, é muito bonita esta  descrição feita pelo autor a personagem. Sim, como eu ia falando. Na verdade eu não queria àquela hora incomodar o meu amigo Estêvão. Estêvão sim, só Estêvão levar-me-ia a entender tal fenômeno. Em meio a tanto conflito, se não bastasse, o centro da maloca encheu de políciais, corpo de bombeiros e ambulâncias como se estivessemos em um estado de guerra. Eu percorri dezenas de buracos a observar o comportamento das pessoas. O pavor era tanto que muitos não resistiram a inexplicação do fenômeno e morreram do coração. Infartaram. Outros enloqueceram. Logo logo surgiram Chefes Políticos de Religiões dando palpites: o padre falara que foram os anjos anunciando boas novas para o nosso povo; o pastor disse que era satanás, o diabo, amedrontando as ovelhas perdidas;  o pai de santo, todo de branco, disse que jogou os búzios  e falou em maus agouros; o espírita comedido arguiu que poderia ter sido um irmão obsessor anunciando o desabamento da Igreja de Roma; o chefe de polícia, de pronto, saiu a procura de algum larápio que por ventura poderia ter tentado furtar o cofre de ouro que fica no subsolo da igreja. E assim, por volta das 02h da madrugada, daquela sexta feira, enquanto os bachareis, mestres, doutores, pós-doutores e demais figuras folclóricas, em suas teses filosóficas, levantavam a sua argumentação... Eis que uma bola de fogo do tamanho do Planeta Azul desce dos céus. Só me restou sair correndo e cansando até chegar a casa. O pânico generalizou. Era o fim do mundo mesmo. Eu corria e olhava para o universo. A bola de fogo descia lentamente. Peguei meus filhos e fui parar de carona, em cima de um caminhão de bananas, na Ilha de Itaparica. Por lá chegando às 4h30min da madrugada. Soube que de Santo Antônio de Jesus só houvera sobrado o Bairro da Joeirana. Tão somente aquele lugar. Lá onde houve uma explosão de fogos, em 11 de dezembro de 1998, matando 64 seres humanos: homens, mulheres, jovens e crianças pretas.


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*Raimundo José Evangelista da Silva nasceu em Santo Antônio de Jeus. É poeta, escritor, professor e bel. em direito. Graduou-se em Letras e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Católica do Salvador em 1989, logo especializando-se em Linguística Textual pela UFBA e Instituto Anísio Teixeira em 1993. Bacharel em Direito pela FABAC - Faculdade Baiana de Ciências - Lauro de Freitas/BA em 2011. Especializou-se em Advocacia Criminal pela Faculdade Verbo Jurídico/RS em 2018. Tem 5 livros de poemas publicados. Crônicas, contos e poemas publicados em seu Blogger/Raymundo Evangelhista, Recanto das Letras, Pensador, Jornal A Tarde, Jornal da Bahia, Tribuna da Bahia, Facebook, Instagram e Twitter.




sábado, 18 de junho de 2022

José (por ele mesmo) - Carlos Drummond de Andrade

                     



E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

(Carlos Drummond de Andrade) 




quinta-feira, 16 de junho de 2022

Eu Amo!



Eu Amo!



[evangelhista da silva]



Amo a vida
e amo o ente encantado
espiritualizado e cheio de amor
amo insistidamente
o uni(verso), o mar, as estrelas
o sol quando nasce e dorme.



Eu Amo!



A lua ao despontar no infinito
amo o desconhecido
e tudo que eu não posso ver.



Eu Amo!



A força do amor está em mim
posso ver o belo:
as flores, os amores, as crianças,
a vida.



Eu Amo!

  

                          A imortalidade, a criação e vida                          
a poesia, e todas as marias,
nas manhãs, e noites, e tardes chuvosas
em noites enluaradas e sol a brilhar.



Eu Amo!



As manhãs, tardes e noites de amar
a arte de sonhar está em mim
sonho e realizo
amo da música a sinfonia
a alegria, o sentimento de ver a vida.



Eu Amo!



A vida é bela
sou feliz, - existo!
existo e sou feliz
eu tenho um irmão amado - Jesus
aquele que é amor, paz e justiça.



Eu Amo!



O cantar dos pássaros, o marulhar das ondas
a linda canção enamorada
com frequência infinita de existir.



Eu Amo!



Fortemente os desejos imaginados
apoio-me no amor e confesso:
jamais amei tanto quanto agora
descobri em mim uma explosão adormecido.



Eu Amo!



Em mim o amor que sempre vive
chegou-me de volta com uma força explosiva
e explodem amor e vida.



Eu Amo!



E neste instante eu sou o uni(verso) a sorrir
todo este encantamento irradia o meu ser
assim de agora em diante sinto que a vida
é felicidade infinita
e o uni(verso) é sinfonia
e graça de mulher
a cantar.



Santo Antônio de Jesus, 21/06/2017, às 14h16min.

quarta-feira, 15 de junho de 2022

O Assassínio do Amor


        O Assassínio do Amor




[evangelhista da silva]


Um infarto agudo do miocárdio
manifestamente provocado
pelo assassínio do amor
mortificado pela mulher.


Poderosa e Santificada
no altar das deusas
perpetuada.


Vitimou o poeta.


Assim se vai
assim se foi
a última e derradeira
ave libertina
do adeus.


Desta forma
morri.


Morreu.




Bahia, 20/06/2017, às 15h20min.


Os Roedores

 


Os Roedores



[evangelhista da Silva]



Os roedores roeram a poesia.


Os ratos sócio-ambientais
sacanas e morimbundos
roeram a minha poética
lascaram as páginas
dos meus versos
em reversos.


Santo Antônio de Jesus, 04/01/2017. às 21h28min

É sábado


 

É Sábado




[evangelhista da silva]



O mundo explode lá fora, e eu aqui tão só e vazio
abandonado pela saudade, tristeza e solidão
certamente aguardando à morte aportar.


E todos se foram, e eu aqui
aqui, no mesmo lugar de outrora
visto ter perdido o trem da morte.

Os raros amigos que tive, o trem levou
hoje é sábado e não vou à feira
sorver a cerveja com xebeu e embriagar-me.


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Que saudades de Julieta!
uma explosão de amor e entrega
que eu não soube viajar.


Filho, aos 17 criado com avó era uma criança
não sabia matar a ânsia de amar Julieta
saciando a sua fúria de amor e sexo.


Hoje, neste sábado frustrado de lembranças,
saudades, amor e recordações, não mais vou à feira
fixo-me na estação aguardando o trem da morte.


E nesta espera de merda e desespero
aguardo que todos desembarquem
para a vida recomeçar.



Santo Antônio de Jesus, 09/01/2016, (12 h 46 min)


segunda-feira, 13 de junho de 2022

O Navio Negreiro [...] VI - Existe um povo que a bandeira empresta P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…[...] In Memoriam: Jornalista Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira





 O Navio Negreiro (no português original)




Antônio Frederico de Castro Alves






I
‘Stamos em pleno mar… Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm… cansam
Como turba de infantes inquieta.

‘Stamos em pleno mar… Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro…
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro…

‘Stamos em pleno mar… Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes…
Qual dos dous é o céu? qual é o oceano?…

‘Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas…

Donde vem? Aonde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste Saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest’hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento…
E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! Ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia…

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! Águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! Dá-me estas asas.

II

Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!

Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.

Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!

Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir…

O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!
Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu…
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu!

III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais … inda mais… não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí… Que quadro d’amarguras!
É canto funeral! … Que tétricas figuras! …
Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

IV

Era um sonho dantesco… o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros… estalar de açoite…
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar…
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra irônica, estridente…
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais …
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos… o chicote estala.
E voam mais e mais…
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
“Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!…”
E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais…
Qual um sonho dantesco as sombras voam!…
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!…

V

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?…
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa…
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!…
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus…
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão…
São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe… bem longe vêm…
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N’alma — lágrimas e fel…
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis…
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus …
… Adeus, ó choça do monte,
… Adeus, palmeiras da fonte!…
… Adeus, amores… adeus!…
Depois, o areal extenso…
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos… desertos só…
E a fome, o cansaço, a sede…
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p’ra não mais s’erguer!…
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d’amplidão!
Hoje… o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar…
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar…
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder…
Hoje… cúm’lo de maldade,
Nem são livres p’ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute… Irrisão!…
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!…
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! …

VI

Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!…
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa… chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! …
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança…
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!…
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! … Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

Antônio Frederico de Castro Alves, poeta, nasceu em Muritiba, BA, em 14 de março de 1847, e faleceu em Salvador, BA, em 6 de julho de 1871. É o patrono da Cadeira nº 7 da Academia Brasileira de Letras, por escolha do fundador Valentim Magalhães.

Castro Alves foi um discípulo de Victor Hugo a quem chamava “mestre do mundo, sol da eternidade”. Poeta social, lírico, um dos primeiros abolicionistas e, ao poetar sobre a escravidão, inflamava-se eloquentemente, chegando a elevar-se pelo arrojo das metáforas, pelo atrevimento das apóstrofes, pelas ideias do infinito, amplidão, pelo voo da imaginação, o que motivou o título dado por Capistrano de Abreu de “condoreiro”, que comparou sua poesia ao voo de um condor.

O ideal para Castro Alves é o gênio (homem) símbolo das lutas pela justiça e pela libertação. Vive seu espírito em constantes conflitos à procura de soluções. Esse ideal faz com que o poeta busque na retórica a sua forma de expressão que muitas vezes se apresenta vazia e sem nexo, apoiada apenas em combinações sonoras. Esse abuso é uma influência da época que muito prestigiava a oratória. Um defeito a ser apontado no seu estilo é o abuso e a superposição de imagens e de aposições. Porém, alcança um belo sublime, bem distante das frivolidades românticas.