Sex, 15/05/2015 às 10:18
Quem mata quem na terra de ninguém?
Graciela Chatelain | Psicóloga social, presidente do Centro Interdisciplinar de Estudos Grupais Enrique Pichon-Rivière
Em dezembro de 1995, fui convidada pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) a realizar a reconstituição da história de vida de crianças e adolescentes, vítimas da violência extrema na cidade de Salvador, através da visão dos pais e da comunidade. Para esse projeto, reuni dados de 21 jovens, dos quais 20 eram crianças e adolescentes que foram alvos de fuzilamento ou chacinas: chacina de Lobato (três adolescentes e um jovem), chacina do IAPI (dois adolescentes e dois jovens), fuzilamento na Fonte do Capim (uma adolescente grávida e três jovens), sequestro em São Cristóvão e posterior fuzilamento (um adolescente e dois jovens).
Depois de ter realizado a reconstituição da história de vida de todos eles, nos encontramos com a pergunta: por que eles? E poderíamos levantar algumas hipóteses: porque eram curiosos; porque eram rebeldes; porque transgrediam; porque desconheciam o perigo de contestar a lei da arma; porque correram para se defender ou apenas por estar assistindo a um show; porque na sua maioria eram negros, pobres e moravam em bairros periféricos. Por que eles?
Nunca deveria existir um motivo para matar uma criança, 19 adolescentes, nem oito jovens. Se essa criança ou esse adolescente for infrator, seguramente podemos nos perguntar sobre qual é sua história para chegar a cometer uma infração, quais as causas? Mas em todo caso, no Brasil existe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prevê medidas de proteção e medidas socioeducativas para esses meninos, além de existirem também medidas pertinentes para os pais ou responsáveis.
Todos esses meninos tinham famílias e moravam com elas. Seus pais eram trabalhadores. Em três casos eram profissionais de classe média. Os outros pertenciam à classe média baixa ou eram de baixa renda. Todos esses meninos trabalhavam e/ou estudavam, moravam com seus pais. Mas parece que ser adolescente, ser negro e morar em bairros pobres ou invasões é suficiente motivo para que, se estiver correndo, se pense que está em infração. Por isso primeiro disparam contra eles e depois se averigua a situação. Logo são taxados de marginais. E a palavra marginal em Salvador tem um peso muito grande, especialmente porque não se questiona a marginalização institucional e social existente.
Uma vez num programa de rádio, 20 anos atrás, me perguntaram se não seria necessário reduzir a idade que prevê o Estatuto sobre maioridade, e eu respondi que se as crianças ou adolescentes roubavam ou matavam era porque não tinham seus direitos garantidos.
Agora, quando revisei esse texto por conta da comemoração dos 20 anos da fundação do Centro Interdisciplinar de Estudos Grupais Enrique Pichon-Rivière (Cieg), me dei conta da sua vigência, especialmente em dois aspectos: o projeto de lei de redução da maioridade penal e o ocorrido na chacina do Cabula, quando 12 jovens foram mortos pela polícia, em fevereiro deste ano.
O trabalho de reconstituição da história de vida que realizei entre 1993 e 1996 é um retrato do que continua acontecendo nesta cidade depois de 20 anos. Hoje, parece que se acrescenta outro argumento para matar um adolescente: além de ser negro e pobre, trabalha para o tráfico de drogas ou rouba bancos sem armas.
Uma resposta para esses policiais que participaram da chacina do Cabula seria: "É que nossos meninos são 'demais', eles são muito sabidos". E uma resposta para essa autoridade que comparou um policial com um jogador de futebol para argumentar o acontecido no Cabula, seria: "Lamentável comparar a vida de uma pessoa com uma trave e uma bola com um tiro".
Alguém chamou essa comparação infeliz de metáfora, também lamentável. A metáfora é poética, criatividade, e essa comparação foi falta de humanidade.
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