terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Nietzsche (A ORIGEM DA TRAGÉDIA) proveniente do espírito da música

capa

eBookLibris

A ORIGEM DA TRAGÉDIA

Proveniente do Espírito da Música

Friedrich Nietzsche

eBooksBrasil


A Origem da Tragédia
Proveniente do Espírito da Música
Friedrich Nietzsche

Tradução e notas
Erwin Theodor

Versão para eBook
eBooksBrasil

Fonte Digital
Digitalização do livro em papel
Editora Cupolo 1948
Diagramação adaptada aos formatos de eBook disponíveis.
Os negritos foram substituídos por itálicas ou omitidos.
A tradução foi compulsada, nos casos de dúvida, com o original alemão e a tradução para o inglês preparada por Ian C. Johnston do Malaspina University-College, Nanaimo, BC, Canadá. Textos disponíveis na web.
As notas editorais estão indicadas por [N.E.] e as do tradutor por [N.T.].

Capa:
Pablo Picasso, The Tragedy, 1903

© 2006 — Friedrich Nietzsche

Índice



TÍTULO DO ORIGINAL:
DIE GEBURT DER TRAGÖDIE AUS DEM GEISTE DER MUSIK


FRIEDRICH NIETZSCHE

A ORIGEM DA TRAGÉDIA

PROVENIENTE DO ESPÍRITO DA MÚSICA

PREFÁCIO E TRADUÇÃO DIRETA POR:
ERWIN THEODOR


PREFÁCIO

Está fora de dúvida que o livro mais emocionante e característico de Nietzsche é “Assim falava Zarathustra”, a obra, porém, que melhor externa a “essência pessoal” do jovem Nietzsche é este primogênito: A ORIGEM DA TRAGÉDIA.
A tradução presente é baseada no primeiro volume das “Obras Completas”, publicadas pelo Nietzsche-Archiv e por C. G. Naumann — Leipzig.
A este livro acrescentou Nietzsche no ano de 1886, além do “Ensaio de autocrítica”, explícitas palavras, que não foram publicadas, mas que se encontram citadas nas páginas XXVII e seguintes da introdução à ORIGEM DA TRAGÉDIA, escritas por D. Elisabeth Förster-Nietzsche para o primeiro volume das “Obras Completas” publicado pelo “Alfred Kröner Verlag” em 1912.
“Para acrescentar à Origem da Tragédia — Livro proveniente de experiências sobre estados estéticos de dor e alegria, tendo no fundo uma metafísica da arte. Ao mesmo tempo confissão de romântico (é quem mais sofre que exige mais profundamente a beleza — ele cria a mesma); e, finalmente, obra de juventude, cheia de coragem e melancolia juvenis.
“Experiências psicológicas fundamentais: com o nome de “apolínico” classifica-se a permanência arrebatadora num mundo imaginário e sonhado, no mundo da aparência bela, como redenção da realização; com o nome dionisíaco torna-se, por outro lado, ativa a realização sentindo-se subjetivamente a evolução, como o prazer intrépido do criador que conhece, ao mesmo tempo, a fúria do destruidor.
“Antagonismo de ambas as experiências, e dos desejos que as fundamentam. A primeira quer a aparência eternamente; diante da mesma torna-se o homem involuntário, calmo como o mar, curado, de acordo consigo e com a existência; a segunda experiência impele à realização, ao desejo da evolução, isto é, à criação e destruição. A realização, intimamente sentida e apresentada, seria o trabalho contínuo de um descontente, arqui-rico, sempre tenso e sempre impelido, de um Deus, que só pode sobrepujar a dor da existência por eterna modificação e mudança: a aparência como sua redenção conseguida a todo momento, mas apenas por alguns instantes; o mundo como conseqüência de visões divinas e redenções na aparência.
“A metafísica da arte contrapõe-se à concepção unilateral de Schopenhauer que compreende a arte partindo não do artista mas sim do preceptor: porque traz em si a libertação e redenção no gozo do irreal, contrapondo-se, assim, à verdade (experiência de um indivíduo que sofre e desespera de si e sua verdade) — Remissão na forma e sua eternidade (como Platão deve ter experimentado: apenas este experimentou também na concepção a vitória sobre sua sofredora sensibilidade por demais irritável). A isto opõe-se o segundo fato: Arte compreendida, partindo do artista, e principalmente do músico: a tortura do dever de trabalho como impulso dionisíaco.
“A arte trágica, rica em ambas as experiências, é classificada como a confraternização do Apolo e Dionísio: a este fenômeno liga-se a maior importância, por parte de Dionísio; mas este fenômeno se nega — nega-se voluntariamente. Isto significa a contraposição ao ensinamento Schopenhaueriano da resignação como concepção trágica do mundo!
“Contra a teoria de Wagner, pela qual a música seria o meio e o drama o fim.
“Desejo do mito trágico como ponto terminal, em que floresce tudo que deve desenvolver-se (“religião”, quer dizer religião pessimista).
“Desconfiança contra a ciência, apesar de ser fortemente sentido o alívio que traz consigo seu otimismo atual: “alegria” do homem teórico.
“Repugnância profunda pelo cristianismo. Por quê? A decadência do ser alemão atribui-se-lhe.
“Não se pode justificar o mundo senão esteticamente: Desconfiança contra a moral (ela pertence ao mundo dos fenômenos).
“A felicidade da existência é possível somente como felicidade na aparência (— o “ser” como a imaginação do que sofre na realização).
“A felicidade na realização é somente possível na destruição do verdadeiro, da “existência”, da aparência bela, na destruição pessimista da ilusão: na destruição mesmo do seu mais belo brilho, atinge a felicidade dionisíaca o seu auge.”
Desde 1869 começou Nietzsche a preocupar-se com as idéias da “Origem da Tragédia” e já nas conferências que pronunciou em 1870 no Museum de Basiléia: “o drama musical grego” e “Sócrates e a Tragédia”, encontramos a expressão provisória das idéias coligidas nesta obra. Publicou seu livro pela primeira vez em 1872 na editora E.W. Fritzsch-Leipzig, sob o título: A Origem da Tragédia, proveniente do espírito da música. Nova edição foi publicada em 1886, com prefácio escrito em Sils-Maria, sob o titulo A Origem da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. Segundo o costume atual, porém, leva esta tradução o primeiro título, apesar de nela se achar incluído o prefácio de 1886. (Ensaio de uma Autocrítica).
Não podemos separar esta obra do Wagnerianismo, que por essa época foi preponderante do espírito de Nietzsche. A obra, como a conhecemos, pode ser quase chamada de fragmentária, pois o jovem Nietzsche desejou fazer vasto trabalho sobre os gregos, mas foi, por razões diversas, levado a modificar seu plano de trabalho, terminando o livro por uma apologia de Wagner. Já se encontram neste livro os prenúncios de sua filosofia posterior. O próprio Nietzsche o afirma na Vontade de Potência, introdução:
“Minha filosofia: arrancar o homem da aparência, seja o perigo qual for. E nada de medo, mesmo com risco da própria vida!”
E será esta a fórmula que o leitor atento encontrará em toda extensão da ORIGEM DA TRAGÉDIA.
Diz Virgil J. Barbato em seu maravilhoso “Nietzsche, Tendances et Problèmes” que “ L’Origine de la Tragédie est un manifeste, dont le contenu a préoccupé l’auteur même pendant la guerre. Il est, pourtant, rempli de considérations esthétiques”. Chamando o próprio Nietzsche em nosso auxílio (Prólogo a Richard Wagner — A ORIGEM DA TRAGÉDIA) vemos que os leitores “verão, caso lerem atentamente este livro, com que sério problema alemão nós nos preocupamos, problema que por nós é colocado no centro das esperanças alemãs, como vértice e ponto de mudança.”
Podemos considerar a Origem da Tragédia como a experiência de fazer do espírito grego a força formadora do espírito moderno, sendo uma experiência plena de vontade e capacidade. Alois Riehl, em seu livro Friedrich Nietzsche (Tradução italiana) resumiu muito bem o conteúdo e o objeto de Nietzsche quando disse: “La Nascita della Tragedia è una metafísica dell’arte, che trasforma l’arte in Metafísica. È la teoria della costante autoredenzione del mondo mediante l’arte”.
O próprio Nietzsche, que mais tarde rejeitou este primeiro grau de seu espírito, tem amor especial a esta obra, chamando-a mesmo de “predileta”. E classifica a sua obra no ECCE HOMO — pág. 104, Tradução de Lourival de Queiroz Henkel: “O início é sobremodo singular. Pela minha experiência íntima, fora-me dado descobrir o único símbolo e paralelo que à história é dado possuir, tendo sido o primeiro também a conceber o maravilhoso fenômeno dionisíaco. Ao mesmo tempo, pelo fato de ter reconhecido Sócrates como um decadente, experimentara de maneira indubitável quão pouco o meu instinto psicológico estava ameaçado por qualquer idiossincrasia moral: a própria moral, considerada como sintoma da decadência, é uma inovação, uma particularidade de primeira ordem na história da consciência. Como passara alto, de um só pulo, em todos os dois casos, acima das conversas fiadas do otimismo contra o pessimismo!” E como ressoa, prenunciador, após a segunda catástrofe mundial, o que Nietzsche continua dizendo na página 108 do livro mencionado: “Eu anuncio o advento de era trágica: a arte mais sublime na afirmação da vida, a tragédia, renascerá quando a humanidade, sem sofrimento, tiver atrás de si a consciência de ter sustentado as guerras mais rudes e mais necessárias.”
Nada mais nos resta acrescentar se não o desejo de que esta tradução contribua para que Frederico Nietzsche, tão caluniado e tão pouco compreendido, receba, entre nós, o lugar de destaque que merece entre os grandes pensadores de todo mundo....
“Subi aos vossos navios! O que necessitamos é de uma nova justiça! E de nova libertação! E de novos filósofos! A terra moral é redonda, também. E a terra moral possui os seus antípodas! E os antípodas também têm direito à existência! Há um mundo novo ainda por descobrir, e até mais de um! Aos vossos navios, todos a bordo, filósofos!” (A ALEGRE CIÊNCIA).
São Paulo, em Janeiro de 1948.
Erwin Theodor.

BIOGRAFIA

[imagem]
Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em Rocken, nas proximidades de Lü zen (Alemanha), aos 15 de Outubro de 1844 e faleceu em Weimar aos 25 de Agosto de 1900.
Pertencente a uma família de pastores protestantes, perdeu muito cedo seu pai (1849), passando a infância e os princípios da juventude na casa materna em Naumburg. Estudou de 1858-1864 no Ginásio Estadual de Pforta, passando posteriormente às Universidades de Bonn e Leipzig, onde se dedicou à Filologia Clássica. Os acontecimentos decisivos para seu desenvolvimento espiritual, durante o tempo em que freqüentava a Universidade de Leipzig foram o conhecimento travado com Richard Wagner e a leitura das obras de Schopenhauer. Por sugestão de seu professor, o filólogo Friedrich Wilhelm Ritschl, que desde logo reconheceu em seu aluno capacidade extraordinária, conseguiu Nietzsche, em 1869, ainda antes de terminar seus estudos, o lugar de professor de filologia clássica em Basiléia — Suíça — passando a professor efetivo em 1870. Sofreu aqui radical transformação espiritual.
Rebelando-se contra a estreiteza da filologia como ciência (por essa época o campo de tais estudos era, ainda, pouco amplo), abraça a filosofia. Tomou parte na guerra franco-alemã de 1870 como enfermeiro voluntário. Após 10 anos (1879) teve que renunciar à cadeira de professor, em virtude de seu precário estado de saúde. Seu trabalho filosófico, porém, aumenta dia a dia, multiplicando-se as obras publicadas. Ele vive, feliz e isolado, alternadamente na Itália e na Suíça até que, em Janeiro de 1889, em Turim, sofre um colapso, tendo-se-lhe perturbado a lucidez de espírito (paralisia atípica). Passou seus últimos onze anos, depois de curta permanência na clínica de Psiquiatria de Jena, na casa materna, e após a morte da mãe (1897), com sua irmã (Elisabeth Förster-Nietzsche) em Weimar, no atual “Arquivo-Nietzsche”. Sua sepultura encontra-se em Rocken.

ENSAIO DE UMA AUTOCRÍTICA

O que quer que sirva de base a este livro de duvidoso valor: deve ter sido uma questão de grande atração e importância e, ademais, uma questão muito pessoal, — atesta-o a época em que foi escrito, apesar da qual foi escrito, o período turbulento da guerra franco-alemã de 1870/71. Enquanto ressoava por toda Europa o fragor da batalha de Wörth, encontrava-se o pensador e enigmático especulador, a quem cabe a paternidade deste livro, num canto qualquer dos Alpes, muito pensativo e preocupado, portanto simultaneamente muito tranqüilo e intranqüilo, confiando ao papel as suas idéias a respeito dos gregos, — o fundo deste livro estranho e pouco compreensível, ao qual deve ser dedicado este prólogo atrasado (ou epílogo?). Algumas semanas após, ele próprio se encontrava sob os muros de Metz ainda sem haver-se livrado da interrogação que colocara a esta pretendida “alegria” dos gregos e da arte grega: até que ele afinal, naquele mês de tensão enervante, enquanto era discutida em Versalhes a paz, também se pôs em paz consigo; e, convalescendo lentamente duma enfermidade que contraíra durante a campanha, pôde determinar em si mesmo a “Origem da tragédia proveniente do espírito da Música” — Da Música? Música e tragédia? Gregos e música de tragédia? Gregos e a obra prima do pessimismo? A mais bela, mais invejada, mais sedutora maneira de viver dos homens que até o presente existiram, os gregos — o que? Precisamente eles necessitavam da tragédia? E, o que é mais — da arte? Para que — arte grega?...
Fácil é adivinhar agora onde se colocara a grande interrogação, no que concerne ao valor da existência. É o pessimismo necessariamente, sinal da decadência, da ruína, dos defeitos, dos instintos cansados e debilitados? como acontecia com os hindus, como sucede a nós, homens e europeus “modernos”? Existe, porventura, um pessimismo da força? Uma inclinação intelectual para o duro, o mal, o problemático da existência, proveniente de saúde transbordante, de plenitude de existência? Há, por ventura, um sofrimento em virtude de superabundância? Uma valentia tentadora do olhar mais perspicaz, que exige o terrível como exigiria um inimigo, inimigo digno, no qual experimentar a sua força? No que deseja experimentar o que é “o medo”? O que significa justamente entre os gregos da melhor, da mais forte, da mais valorosa época, o mito trágico? E o fenômeno monstruoso do dionisíaco? O que? Dele nasceu, foi a tragédia que dele se originou? — E de outro lado, a causa da morte da tragédia, o socratismo da moral, a dialética, a sobriedade e alegria do homem teórico — o que? Não poderia ser precisamente este socratismo um sinal do “ocaso”, do cansaço, da enfermidade, dos instintos que se dissolviam anarquicamente? E a “alegria” grega “do helenismo posterior somente um arrebol? A vontade epicúria contra o pessimismo somente uma precaução do paciente? E a ciência, ela mesma, a nossa ciência — sim, o que é que significa, visto como sintoma da vida, toda ciência? Para que?, pior ainda, de onde procede toda ciência? Como? Constituirá a ciência somente um temor e um refúgio do pessimismo? Uma delicada, mas necessária defesa contra a verdade? E, falando moralmente, algo como covardia e falsidade? Falando imoralmente, uma astúcia? Ó Sócrates, Sócrates, teria sido este o teu segredo? Ó misterioso irônico, teria sido esta a tua... ironia?

2.

O que então compreendi, algo horrível e perigoso, um problema com chifres, não necessariamente um touro, mas, em todo caso, um problema novo; hoje diria ter sido o problema da ciência — ciência tomada pela primeira vez em sentido problemático, duvidoso. Mas o livro em que meu ardor e suspeitas juvenis se manifestaram, que livro impossível deveria surgir de tal assunto anti-juvenil! Composto de precoces e prematuros acontecimentos pessoais, recentes ainda, que jaziam todos no umbral do comunicável, colocados no terreno da arte, pois o problema da ciência não pode ser reconhecido no terreno da ciência — um livro talvez para artistas com inclinação secundária, de capacidade analítica e retrospectiva, (isto é, para uma classe excepcional de artistas, que é necessário procurar, e que nem sequer se deseja encontrar...) saturado de inovações psicológicas e mistérios artísticos, com uma metafísica-artística no fundo; uma obra da juventude, plena de coragem e melancolia juvenis, independente, tenaz e autônoma, mesmo onde parece curvar-se a uma autoridade e a uma veneração particular, enfim, uma obra de principiante, também em todos os maus sentidos da palavra, apesar de seu problema senilíssimo, acometido de todos os erros da juventude, sobretudo com seu “extenso em demasia”, “assalto e impulso”[1], e de outro lado, com respeito ao êxito que colheu (particularmente junto ao grande artista, ao qual se dirigia, como para um diálogo), Richard Wagner, um livro provado, quero dizer que satisfaz, pelo menos, os “melhores de seu tempo”. Já por isto deveria ser tratado com alguma consideração e com silêncio; não quero, no entanto, ocultar o quanto me parece desagradável agora, como se me apresenta estranho depois de dezesseis anos, diante de um olhar mais idoso, cem vezes mais mimoseado, mas de maneira alguma mais frio, de modo a também não se tornar mais estranho àquele assunto, do qual se atreveu a aproximar este livro temerário, pela primeira vez, — ver a ciência através do artista, a arte, porém, através da vida...

3.

Repito: hoje se me apresenta este livro como impossível; chamo-lhe pesado, mal escrito, importuno, fantástico, sentimental, aqui e acolá adocicado até o feminino, desigual no tempo, sem desejo para o “asseio” lógico, muito convencido e, em virtude disso, ensoberbecendo-se das demonstrações, desconfiado contra a decência da demonstração mesmo, como livro para iniciados, como “música” para tais que, batizados para a música, estão unidos para comuns e raras experiências artísticas desde o começo das coisas, como sinal de reconhecimento para parentes sangüíneos in artibus, um livro orgulhoso e entusiasta que se declarou, desde o princípio, mais contra o profanum vulgus dos “letrados” do que contra o “povo”, mas que, como seu efeito demonstrou e demonstra, deve saber atrair seus partidários para novos caminhos ocultos e novos sítios de baile. Aqui falava em todo caso — confessava-se isto tanto com curiosidade quando com desdém — uma voz estranha, o discípulo de um “deus ainda desconhecido” que, por enquanto, se ocultou sob o capuz do erudito, sob o pesadume e a melancolia dialética do alemão, mesmo sob os maus modos do Wagneriano; encontrava-se aqui um espírito com necessidades estranhas, ainda anônimas, uma memória repleta de perguntas, experiências, obscuridades aos quais, mas como ponto de interrogação, se juntou o nome de Dionísio; aqui falava — dizia-se com desconfiança — algo parecido com uma alma mística, quase frenética, que tartamudeia com dificuldade e caprichosamente, incerta quase se deseja comunicar-se ou ocultar-se, em uma língua estranha. Ela deveria ter cantado e não falado, esta nova alma. Lastimável que não me atrevesse a dizer, como poeta, aquilo que naquele tempo disse como prosador. Talvez o conseguisse! Ou, pelo menos, como filólogo: — pois ainda hoje falta aos filólogos descobrir e desbravar quase tudo, neste terreno! Principalmente que há um problema e que os gregos, enquanto não encontrarmos uma resposta para a pergunta “o que é o dionisíaco?”, se nos apresentam, como dantes, desconhecidos e irrepresentáveis.!

4.

Sim, o que é o dionisíaco? Este livro contém a resposta: — é um “conhecedor” que fala, um iniciado, discípulo de seu deus. Talvez eu discorresse agora com mais precaução e menos eloqüência sobre uma questão psicológica tão difícil como é a origem da tragédia entre os gregos. Questão fundamental é a relação do grego com a dor? Posto, pois, que tal fosse verdade — e Péricles (ou Tucídides) no-lo dá a entender na grande oração fúnebre, — de onde procederia o desejo contrário que surgiu, cronologicamente, antes: A ânsia do feio, a estrita e firme devoção dos antigos helenos ao pessimismo, ao mito trágico, à imagem de todo terrível, mau, enigmático, destruidor, sinistro no fundo da existência, — de onde procederia então a tragédia? Talvez do desejo, da força, da saúde superabundante, de plenitude? E que significação tem então, fisiologicamente, tal loucura, da qual nasceu tanto a arte trágica quanto a cômica, a loucura dionisíaca? O que? Não será talvez necessariamente a loucura o sintoma da degenerescência, da ruína, da cultura tardia? Há porventura — (uma pergunta para alienistas) neuróticos de saúde? da juventude do povo? — O que indica aquela síntese de deus e bode no sátiro? Por qual acontecimento pessoal, por que impulso teve o grego de representar-se o entusiasta dionisíaco e homem primitivo, como sátiro? E no que se refere à origem do coro trágico, existiam naqueles séculos, em que florescia o corpo grego e a alma grega se derramava plena de vida, exuberante, porventura entusiasmos endêmicos? Visões e alucinações que se comunicavam a congregações religiosas e comunidades culturais, inteiras? Como? se os gregos, justamente na pujança da juventude, tivessem a vontade do trágico e fossem pessimistas? se fosse precisamente a loucura, para empregar um conceito de Platão, que trouxe à Hélade as maiores bênçãos? E se, pelo contrário, se tornavam os gregos, precisamente na época de sua dissolução e fraqueza, cada vez mais otimista, mais superficiais, mais afeitos à representações, portanto mais ardorosos segundo a lógica e o racionalismo do mundo, isto é, também mais “alegres” e mais “científicos”? Como? Poderia, em desafio a todas as “idéias modernas” e preconceitos do gosto democrático, a vitória do otimismo, a sensatez preponderante, o utilitarismo prático e teórico, que é igual à democracia, da qual é contemporâneo, ser um sintoma de força que submerge, da velhice próxima, do cansaço psicológico? E não precisamente o pessimismo? Era Epicuro um otimista, quando paciente? Como se vê é uma quantidade de perguntas difíceis, com que se sobrecarregou este livro, juntemos-lhe a questão mais difícil! O que significa, sob o ponto de vista da vida, — a moral?...

5.

Já no prólogo a Richard Wagner é exaltada a arte — e não a moral — como a atividade propriamente metafísica do homem. No livro mesmo, reaparece múltiplas vezes a frase de que só é justificada a existência do mundo como fenômeno estético. De fato, o livro todo conhece somente um senso e contra-senso de artista por trás de todo e qualquer acontecimento — um “deus” se assim se deseja, mas decerto somente um deus-artista, completamente induvidável e imoral, que quer permanecer igual a seu próprio prazer e magnificência, tanto no edificar como no destruir, no bem como no mal, que se livra do sofrimento das contradições, criando mundos por escassez de abundância e superabundância. O mundo, em cada instante a conseguida salvação de Deus, como a sempre variável, a eternamente nova visão daquele que mais sofre, do mais contraditório, que só se sabe redimir na aparência. Esta metafísica do artista, toda ela, pode chamar-se um espírito que um dia defenderá, aconteça o que acontecer, contra a significação e interpretação morais da existência. Aqui se manifesta, quem sabe se pela primeira vez, um pessimismo “além do Bem e do Mal”, aqui fala e se formula aquela “perversidade de caráter” contra a qual não se cansou Schopenhauer de lançar, de antemão, as suas piores maldições, — uma filosofia que se atreve a colocar a própria moral no mundo das aparências, de degradá-la. E não somente entre as “aparências” (no sentido do terminus technicus ideal) como também entre as “ilusões”; com aparência, imaginação, engano, interpretação, acomodação. Talvez se possa calcular da melhor maneira a profundidade desta inclinação imoral do cauteloso e hostil silêncio com que é tratado, no livro todo, o cristianismo — o cristianismo como a mais extravagante desfiguração do tema moral que até o momento tem ouvido a humanidade. Em verdade não há maior contradição para a interpretação e justificação puramente estéticas do mundo, como é ensinada neste livro, do que a doutrina cristã, que é e quer ser somente moral, e que, com suas medidas absolutas, como, por exemplo, com sua veracidade de Deus, exila a arte, toda a arte para o reino da mentira, isto é, nega, maldiz e condena.
Por trás de uma tal maneira de pensar e avaliar, que deve ser hostil à arte, enquanto é legítima, senti desde o princípio a hostilidade à vida, a grande e rancorosa repugnância contra a existência em si, pois toda a vida se fundamenta em aparência, arte, ilusão, ótica, necessidade de perspectiva e do erro. Foi o cristianismo desde o princípio, essencial e fundamentalmente, repugnância e tédio da vida na vida, que se revestiu, se ocultou, se fantasiou sob a crença numa existência “diferente” ou “melhor”. O ódio ao mundo, a maldição às afeições, o medo da beleza e da sensualidade, um ALÉM inventado para melhor poder maldizer o AQUI, no fundo uma inclinação para o nada, o fim, o descanso, em direção ao “sabbath dos sabbaths” — tudo isto me parecia — assim como a inflexível vontade do cristianismo de só deixar valer os valores morais, como a mais perigosa e mais lúgubre de todas as formas de uma “vontade para o desaparecimento”, pelo menos um sinal de profunda enfermidade, cansaço, esgotamento, empobrecimento da vida — pois diante da moral (principalmente da cristã, isto quer dizer, da moral incondicional) deve a vida continuamente ficar sem razão, em virtude de ser algo essencialmente imoral; deve, finalmente, a vida, esmagada sob o peso do desprezo e do eterno não, como indigna de ser desejada, ser sentida como algo sem valor. A própria moral — como? Não seria a moral uma “vontade para a negação da vida”, um instinto secreto de destruição, um princípio de ruína, um começo do fim? E, portanto, o perigo dos perigos?... Contra a moral, pois, se volveu então, com este livrinho de valor duvidoso o meu instinto, como um instinto afirmativo da vida, inventando uma doutrina e uma valorização fundamentalmente contrárias, puramente artística, anticristãs. Como a devemos chamar? Como filólogo e homem das palavras a batizei, não sem alguma liberdade — pois quem saberia o verdadeiro nome do Anticristo? — com o nome de um deus grego — a chamei de dionisíaca.

6.

Compreende-se qual problema me atrevi tocar com este livro? Quanto sinto agora não ter tido então a coragem (ou a imodéstia) de permitir-me, em consideração a tais idéias e riscos próprios, também uma linguagem própria, — que procurei penosamente exprimir com fórmulas Kantianas e Schopenhauerianas valorizações estranhas e novas, que tanto se contrapunham ao espírito de Kant e Schopenhauer, quanto ao gosto destes. O que pensava Schopenhauer sobre a tragédia? “O que dá a todo trágico o impulso para a elevação — diz ele, — ”O Mundo Como Vontade E Representação” — é o esclarecimento do conhecimento de que o mundo, a vida, não poderiam dar verdadeira satisfação, e que, portanto, nosso apego não teria valor: nisto consiste o trágico, — ele conduz, portanto, à resignação”. Ó, quão diferente era o que Dionísio me dizia! Ó, quão afastada de mim, precisamente naquela época, se achava toda resignação, — mas há algo pior neste livro, que sinto mais ainda do que ter obscurecido com fórmulas Scho­pe­nha­ue­ria­nas pres­sen­ti­men­tos dio­ni­sí­acos: O fato de haver estragado completamente o grandioso problema grego, como se me apresentou, com a mistura de assuntos os mais modernos! O haver concebido esperanças onde nada havia de esperar, onde tudo indicava claramente um fim próximo! Que eu, fundando-me na última música alemã, comecei a confabular com um “ser alemão”, como se estivesse este a ponto de se descobrir e de se reencontrar — e isto numa época em que o espírito alemão, que, não havia muito, teve a vontade de dominação sobre a Europa, a força para guiar a Europa, abdicou última e definitivamente sob o pretexto pomposo da fundação de império, se converteu à mediana, à democracia, e às “idéias modernas”. De fato, neste ínterim, aprendi a pensar desesperançado e desconsideradamente deste “ser alemão”, e igualmente da atual “música alemã”, como sendo totalmente romântica e a menos grega de todas as possíveis formas artísticas, sobretudo uma estragadora de nervos, duplamente daninha num povo que ama a bebida e que honra a inclareza como virtude, e isto em sua dupla propriedade de narcótico embriagador e, ao mesmo tempo, ofuscante. À parte, naturalmente, de todas as esperanças precipitadas e de utilização errônea para o presente, com que, naquele tempo, estraguei o meu livro, continua o grande ponto de interrogação dionisíaco, como lá foi colocado, também no tocante à música: como seria uma música, não mais de proveniência romântica, como a alemã, mas de proveniência dionisíaca?...

7.

Mas, meu caro, o que é que é romantismo se seu livro não é romântico? Pode-se levar o ódio contra a “atualidade”, a verdade e as “idéias modernas” mais adiante, do que foi levado em sua metafísica-artística? — Que prefere crer no nada, no diabo mesmo, do que no “agora”? Não zumbe o ódio e o desejo de destruição sob toda sua arte vocal de contraponto e sedução auditiva, uma resolução irada contra tudo que é “agora”, um desejo não muito distante do nihilismo prático e que parece dizer: “melhor ser nada verídico do que vós terdes razão, do que ficar com a razão a vossa verdade”! Ouvi, senhor pessimista e divinizador da arte, ouvi com ouvido bem aberto um único trecho de vosso livro, não aquela passagem sem eloqüência, que poderia soar para corações e ouvidos jovens como capciosa e atraente: não é esta, porventura, a legítima e real confissão romântica de 1830 sob a máscara do pessimismo de 1850? Atrás dela já preludia o final romântico comum e usual, — ruína, colapso, volta e queda ante uma fé antiga, ante o deus antigo... O que? não é vosso livro pessimista, também um pedaço de anti-helenismo e romantismo, mesmo algo “tão embriagador quão ofuscante”, em todo caso um narcótico, um ponto de música mesmo, de música alemã. Mas ouça —: “Imaginemos uma geração vindoura, com este olhar impávido, com este traço do heróico para monstruoso, pensemos e reflitamos no passo atrevido destes matadores de dragões, a audácia orgulhosa com que dão as costas a todas estas doutrinas de enfraquecimento do otimismo, “para viver resolutamente” no todo e absoluto. Não seria necessário que o homem trágico desta cultura, com sua auto-educação para a seriedade e o terror desejasse uma arte nova, a arte do consolo metafísico, a tragédia, como desejaria à Helena que lhe pertence, exclamando com Fausto:
“Não teria eu de, ó força desejada,
trazer à vida a figura única e amada!”[2]
“Não seria necessário?”... Não, três vezes não! Ó, vós, jovens românticos não seria necessário!! Mas é muito provável que assim finde, que vós assim findais, isto é, “consolados”, como está escrito, apesar de toda auto-educação para a seriedade e o terror, “consolados metafisicamente”, enfim, como acabam os românticos, de maneira cristã...
Não! antes vós devíeis aprender a arte do consolo do mundo de CÁ — devíeis aprender a rir, se vós, meus jovens amigos, de toda forma, quereis continuar pessimistas: — é possível que depois, como “risonhos”, mandeis ao diabo todo “consolo metafísico” — precedido pela própria metafísica, ou, para exprimi-lo na linguagem daquele maléfico dionisíaco, cujo nome é Zaratustra:
“Levantai vossos corações, ó meus irmãos, alto, mais alto ainda! E não me esqueçais as pernas! Levantai também vossas pernas, bons dançarinos, e, melhor, firmar-vos-eis na cabeça!
Esta coroa de risonho, esta grinalda de rosas, eu mesmo cingi esta coroa, eu mesmo santifiquei o meu riso. Não encontrei nenhum outro, bastante forte para isto, hoje.
Zaratustra o bailarino, Zaratustra o leve, aquele que ensaia as asas, pronto a voar, acenando a todos os pássaros, pronto e findo, um bem-aventurado frívolo:
Zaratustra, o adivinho, Zaratustra o verdadeiramente risonho, não um impaciente, nem um absoluto, um que gosta de saltos e pulos: eu mesmo cingi esta coroa!
Esta coroa de rinsonho, esta coroa de grinalda de rosas: a vós ó meus irmãos, arremesso esta coroa! Santifiquei o riso, homens superiores, aprendei a rir!”
ASSIM FALAVA ZARATUSTRA!
Sils-Maria, Oberengadin — em Agosto de 1886.

PRÓLOGO A RICHARD WAGNER

Para manter afastadas de mim todas as possíveis dúvidas, agitações e mal-entendidos, a que darão lugar as idéias unidas nesta obra, em virtude do caráter estranho de nossa publicidade estética, e a fim de, também, poder escrever o prefácio com o mesmo prazer contemplativo, cujo sinal ela leva em cada folha, eternizando boas e enlevantes horas, represento-me o instante em que Vós, ó meu ilustre amigo, recebereis este livro; como Vós, talvez após um passeio vespertino pela neve hibernal, reparando no Prometeu desalgemado no frontispício, ledes o meu nome e estais imediatamente convencido de que, contenha este livro o que contiver, o autor tem algo sério e importante a dizer, e também que ele, em tudo que pensava, correspondia convosco como com uma pessoa presente e que somente poderia escrever algo relacionado com esta presença. Vós lembrar-vos-eis então que eu, quando da publicação de Vossa sublime Dissertação Festiva sobre Beethoven, isto é, de permeio à inquietude e grandiosidade da guerra recém-deflagrada comecei a meditar sobre este assunto.
Equivocar-se-iam aqueles que pensassem destes ensaios não serem mais do que uma oposição de excitação patriótica e gozo estético, de seriedade corajosa e jogo alegre; muito ao contrário verão estes com admiração, caso lerem atentamente este livro, com que sério problema alemão nós nos ocupamos, um problema que por nós é colocado no centro das esperanças alemãs, como vértice e ponto de mudança.
Para estes mesmos será, talvez, ofensivo, verem ser tomado tão a sério um problema estético, isto se eles não reconhecerem na arte mais do que um alegre passatempo, um soar de campânulas prescindível para a “gravidade da existência”, como se nos fosse desconhecido o alcance desta comparação.
Que sirva de aviso a essas pessoas sérias, que estou convencido ser a arte a preocupação mais elevada e a verdadeira atividade metafísica desta vida, no sentido que lhe é dado pelo homem ao qual quero ter, como meu insigne precursor neste trajeto dedicado esta obra.
Basiléia, em fins do ano de 1871.

A ORIGEM DA TRAGÉDIA


1.

Teremos ganho muito para a ciência estética ao chegarmos não só à compreensão lógica, mas também à imediata segurança da opinião de que o progresso da arte está ligado à duplicidade do Apolínico e do Dionisíaco; de maneira parecida com a dependência da geração da dualidade dos sexos, em lutas contínuas e com reconciliações somente periódicas. Estes nomes tomamos emprestados aos gregos, que manifestam ao inteligente as profundas ciências ocultas de sua concepção artística não em idéias, mas nas figuras enérgicas e claras de seu mundo mitológico. A ambas as divindades artísticas destes, Apolo e Dionísio está ligado o nosso reconhecimento de que existe no mundo grego uma enorme contradição, na origem e nos fins, entre a arte plástica — a de Dionísio; — ambos os impulsos, tão diferentes, marcham um ao lado do outro, na mor parte das vezes em luta aberta e incitando-se mutuamente para novos partos, a fim de neles poder perpetuar a luta deste contraste, que a palavra comum “arte” somente na aparência consegue anular; até que eles afinal, através de milagroso ato metafísico do “desejo” helênico, aparecem unidos, produzindo por fim, nesta união, a obra de arte, tanto dionisíaca quanto apolínica, da Tragédia Ática.
Para melhor apreciarmos ambos os impulsos imaginemo-los, antes de mais nada, como mundos de arte separados do sonho e da embriaguez; fenômenos fisiológicos entre os quais é possível notar uma contradição como a existente entre o apolínico e o dionisíaco. No sonho se apresentaram primeiramente, segundo a opinião de Lucrécio, as esplêndidas figuras divinas às almas humanas. No sonho via o grande escultor a fascinante estrutura dos membros de seres sobre-humanos, e o poeta helênico, inquirido sobre os segredos da produção poética, seria da mesma forma lembrado ao sonho e teria dado ensinamentos parecidos, como aos de Hans Sachs nos Mestres-Cantores:
Meu amigo, eis a obra do poeta,
Percebe seus sonhos e os interpreta.
Acredita, o verdadeiro, o humano destino
É-lhe mostrado ao sonhar:
Toda a arte poética e todo poetar,
Nada mais é que uma interpretação com tino.[3]
O belo brilho dos mundos de sonho, em cuja produção o homem é um artista perfeito, é condição de existência para toda arte plástica, e também, como veremos, de uma parte essencial da poesia. Gozamos a imediata compreensão da figura, todas as formas falam conosco, nada há de indiferente e desnecessário. Na vida mais elevada desta verdade de sonho ainda temos o sentimento transparente de sua aparência; pelo menos é esta a minha experiência, para cuja continuidade e normalidade teria eu de citar diversos testemunhos e os ditos dos poetas. O filósofo tem mesmo o pressentimento de que também sob esta realidade em que vivemos e somos, se encontra oculta uma bem diferente, e que portanto também ela é aparência; e Schopenhauer indica mesmo o dom que a alguns homens e todas as cousas parecem meros fantasmas ou sonhos, como sinal de aptidão filosófica. Assim como o filósofo se porta, perante a realidade da existência, assim se comporta o homem, artisticamente impressionável, perante a realidade do sonho; ele gosta de contemplar, e contempla atentamente; pois é por estas imagens que ele interpreta a vida, e com estes acontecimentos se exercita para a mesma. E não são só as imagens agradáveis e alegres que experimenta em si com aquela compreensão ilimitada; também o grave, melancólico, triste, sombrio, os repentinos impedimentos, as imposições do acaso, as esperanças angustiosas; enfim, toda a “divina comédia” da vida com o inferno, passam por ele, não só como um jogo de sombras — pois ele vive e sofre com estas cenas — e mesmo assim não sem aquele pensamento, passageiro na aparência; e talvez haja quem se lembre, como eu também me recordo, de ter, de permeio com os perigos e sustos do sonho, exclamando para si encorajadoramente: “É um sonho! Quero continuar a sonhá-lo!” Assim como também dizem existirem pessoas capazes de continuar a causalidade de um mesmo sonho por três e mais noites consecutivas. Fatos que atestam claramente que o nosso ser interior, o fundamento comum de todos nós, recebe o sonho como necessidade prazenteira, e com profunda alegria.
Esta necessidade prazenteira do conhecimento do sonho foi exprimida, da mesma forma, pelos gregos mediante o seu Apolo, como deus de todas as formas criativas e, ao mesmo tempo, o deus-adivinho. Ele que, segundo a sua raiz, é o “Brilhante”, a divindade da luz, domina outrossim o belo brilho do mundo-fantasia interior. A verdade excelsa, a perfeição destes estados em contraposição à realidade cotidiana, inteligível em partes, assim como a consciência profunda da natureza, que sana e auxilia em sono e sonho e, ao mesmo tempo, a analogia simbólica da capacidade de adivinhar, e, em geral, de todas as artes, pelas quais se faz a vida possível e digna de ser vivida. Mas mesmo aquela tênue linha, que a representação sonhada não deve atravessar, para não parecer patológica pois, em caso contrário, nos enganaria a aparência como verdade nua e crua, não deve faltar a imagem do Apolo: aquela limitação medida, livre de sentimentos mais selvagens, aquela tranqüilidade sábia do deus-escultor.
Seu olhar deve ser “radiante”, correspondente à sua origem, também quando irado se deve refletir nele o brilho formoso. E assim valeria para Apolo, num sentido excêntrico, aquilo que diz Schopenhauer do homem preso no véu de Maia, Mundo como Vontade e Representação, I Volume: “Como no mar tormentoso, que, limitado por todas as partes, eleva e abaixa com bramidos montanhas de água, está num barco o marinheiro confiando na frágil embarcação, assim se situa, num mundo de torturas, tranqüilo o indivíduo apoiado no véu e confiando no principium individuationis”. Sim, poder-se-ia dizer de Apolo que nele recebeu a confiança inabalável naquele “principium” a sua mais excelsa expressão, e deseja-se mesmo designar Apolo como o magnífico quadro divino do principii individuationis, de cujo gosto e olhar falariam para nós todo o desejo e sabedoria da “aparência”, inclusive a sua beleza.
No mesmo capítulo descreveu-nos Schopenhauer o tremendo espanto que se apodera do homem quando ele, repentinamente, se engana nas formas de conhecimento do fenômeno, no qual o princípio da razão, em alguma de suas representações, parece sofrer uma exceção. Quando juntamos a este espanto o êxtase agradabilíssimo que no mesmo romper do principii individuationis brota do mais íntimo do homem, mais ainda, da natureza, então lançamos um olhar ao ser do Dionisíaco, que mais ainda se aproxima de nós pela analogia da embriaguez. Ou por meio da bebida narcotizante, que por todos os homens e povos primitivos é cantada em hinos, ou por ocasião do imenso aproximar da primavera, que atravessa toda a natureza cheia de alegria, acordam aquelas emoções dionisíacas, em cujo aumento desaparece o subjetivo sob completo esquecimento de si mesmo. Na Idade Média alemã também se dobravam, sob idêntica força dionisíaca, hordas sempre crescentes, cantando e dançando de lugar para lugar: nestes dançarinos de São João e São Vito reconhecemos os coros báquicos dos gregos, com sua pré-história na Ásia Menor, até Babilônia e aos Sakéos entusiastas[4]. Existem homens que, por falta de experiência ou por estupidez, se afastam de tais aparecimentos como de “doenças populares”, ironizando-as ou as lamentando, no sentir da própria saúde: estes pobres não suspeitam de como se torna cadavérica e fantasmagórica esta sua saúde, quando por eles passa, tormentosa a vida ardente de entusiastas dionisíacos.
Sob a magia do dionisíaco não só se fecha novamente a aliança entre homem e homem; também a natureza estranha, inimiga ou subjugada, torna a celebrar sua festa de reconciliação com seu filho perdido, o homem. Espontaneamente oferece a terra as suas dádivas, e pacíficas se aproximam as feras das rochas e do deserto. O carro de Dionísio está coberto de flores e coroas; sob seu jugo marcham a pantera e o Tigre. Transformando-se a “Canção da alegria”[5] de Beethoven numa pintura, e não se ficando atrás com a imaginação quando os milhões[6] no pó se afundam; então é possível aproximar-se do Dionisíaco. Agora é o escravo homem livre, agora todas as cadeias fixas, inimigas se rompem que, pela penúria, pelo capricho ou pela “moda insolente” foram estabelecidas entre os seres humanos. Então, por ocasião do evangelho da harmonia mundial, cada qual se sente com o seu próximo, não somente unido, reconciliado, fundido mas uno, como se o véu da Maia tivesse sido partido e somente ainda revoluteasse ante o misterioso Uno-Primitivo. Cantando e dançando se externa o homem como membro de uma comunidade elevada. Ele esqueceu o andar e o falar e está em caminho de, dançando, elevar-se nos ares. Seus movimentos manifestam encantamento. Assim como agora falam os animais e a terra produz leite e mel, também dele soa algo de sobrenatural. Ele se sente um deus, vagueia ele mesmo agora tão extasiado e excelso como, em seus sonhos, via vagar os deuses. O homem não é mais artista, é obra de arte; a potência artística da natureza inteira, para a máxima satisfação do Uno Primitivo, aqui se externa sob os estremecimentos da embriaguez. A argila mais nobre, o mármore mais precioso aqui é trabalhado. É o homem. E aos golpes de cinzel do artista Dionisíaco mundial, soa o chamado misterioso de Eleusis: “Vós vos precipitais, ó milhões? Pressentes o criador, ó mundo?

2.

Consideramos até o momento o Apolínico e seu contraste, o Dionisíaco, como forças de arte que emergem da própria natureza sem mediação do artista humano, e nas quais se contentam por enquanto e de modo direto os seus impulsos artísticos, por um lado como o mundo configurado pelos sonhos, cuja perfeição se encontra sem qualquer relação com a elevação intelectual ou a formação artística individual, por outro lado como verdade embriagadora, que também não leva em consideração o indivíduo, mas que chega a procurar destruí-lo e redimi-lo por um sentimento místico de união. Com respeito a estes estados artísticos imediatos da natureza, é qualquer artista um “imitador”, i. e. ou o artista Apolínico dos sonhos ou o artista Dionisíaco da embriaguez ou, finalmente, — como por exemplo na tragédia grega — ao mesmo tempo artista do sonho e da embriaguez; como tal devemos imaginá-lo, como ele, na bebedice Dionisíaca e no místico auto-abandono, cai vacilante, solitário, e separado dos coros entusiastas; e como se lhe revela, por influência do sonho apolínico, seu próprio estado; isto é, sua unidade com o fundo mais íntimo do mundo numa visão alegórica.
Depois destas suposições e comparações gerais aproximamo-nos dos Gregos, para reconhecer em que grau e até que ponto estavam neles desenvolvidos aqueles impulsos artísticos da natureza; e é por meio deste reconhecimento que seremos capazes de entender melhor a relação do artista grego com seu original primitivo, ou apreciar a expressão Aristotélica: “a imitação da natureza”.
Dos sonhos dos gregos só é possível falar, apesar de toda a literatura e das numerosas anedotas referentes aos sonhos, com suposições; mas, não obstante, com uma certa segurança; com a capacidade plástica, incrivelmente segura e certa, de seu olhar juntamente com seu claro e franco “desejo da cor” não nos poderemos abster de, para vergonha de todos os pósteros, também para a causalidade lógica e o contorno, cores e grupos, pressupor uma sucessão de cenas comparadas com seus melhores quadros, cuja perfeição nos permitiria, se uma comparação fosse possível, considerar os gregos que sonham como Homeros, e Homero como um grego que sonha; num sentido mais profundo, do que quando o homem moderno, com respeito a seus sonhos, se compara com Shakespeare.
Pelo contrário não necessitamos falar só de conjeturas, quando falamos da enorme diferença que separa os gregos Dionisíacos dos bárbaros dionisíacos. Em todos os pontos do mundo antigo — para aqui deixar de lado o mundo novo — de Roma a Babilônia temos comprovações da existência de festas dionisíacas, cujo tipo se compara ao tipo grego, no melhor dos casos, como o sátiro barbudo, a quem o bode emprestou nome e atributos, se compara ao próprio Dionísio. Quase em todos os lugares se situava, como nestas festas, uma desenfreada indisciplina sexual, cujas ondas passavam por cima de todo sentimento de família e de suas leis veneráveis. Justamente as bestas mais selvagens da natureza aqui se desencadeavam, até aquela mescla abominável de luxúria e crueldade, que sempre me pareceu a “bebida das bruxas”[7], propriamente dita. Contra os sentimentos febris de tais festas, cujo conhecimento veio ter com os gregos por todos os caminhos de mar e terra, estavam estes, ao que parece, durante um bom lapso de tempo completamente seguros e protegidos pela figura de Apolo, que aqui se erigia em todo o seu orgulho, e que não podia opor a cabeça de Medusa a nenhum poder mais perigoso que a este, poder dionisíaco grotescamente rude. É a arte dórica na qual se perpetuou esta atitude majestosa e repelente. Mais duvidosa e mesmo impossível se tornou esta resistência quando afinal, provenientes da raiz mais profunda do helênico, impulsos semelhantes abriram seu caminho: então se resumia o atuar do deus délfico em tirar ao poderoso adversário, mediante uma reconciliação oportuna, a arma destruidora das mãos. Esta reconciliação é o momento mais importante na história do culto grego: onde quer que se fixe o olhar são visíveis as transformações oriundas deste acontecimento. Foi o armistício entre dois adversários, com firme demarcação de limites, que tinham que ser conservados agora, e com a remessa periódica de presentes honoríficos; no fundo, porém, o abismo, entre eles existente, não tinha sido vencido. Se, porém, olhamos para o poder dionisíaco, que sob a pressão daquele tratado de paz se manifestou, então reconhecemos, em comparação com aqueles sakéos babilônicos, o retorno do homem ao tigre e ao macaco, nas orgias dionisíacas dos gregos o significado de festas de redenção do mundo e dias de glorificação. É somente neles que a natureza alcança seu júbilo artístico, é só com eles que o rompimento do principii individuationis se torna um fenômeno artístico. Aquela abominável bebida de bruxas, de luxúria e crueldade não tinha poder aqui; somente a estranha mistura e dualidade nos afetos dos entusiastas dionisíacos a ela recorria — assim como os remédios nos fazem lembrar os venenos mortais —, aquela aparência de que dores provocam o prazer, e que o júbilo tira sons lastimosos do peito. Da alegria suprema soa o grito de horror, ou um lamento anelante sobre uma perda irreparável. Daquelas festas gregas irrompe um impulso sentimental da natureza, como se ela tivesse que lamentar seu desmembramento em indivíduos. O canto e a linguagem mímica de tais entusiastas diferentemente dispostos, foi para o mundo grego-homérico algo de novo e inaudito: e principalmente a música dionisíaca lhe provocou sobressalto e terror. Se a música já era, aparentemente, conhecida como uma arte Apolínica, então só o era como ondulação do ritmo, cuja força criativa era desenvolvida para a representação de estados apolínicos. A música Apolínica era arquitetura dórica em sons, mas em sons somente indicados, como são próprios da cítara. Cuidadosamente se manteve à distância, como não-Apolínico, o elemento que perfaz o caráter da música Dionisíaca, e com isto da música propriamente dita, a força comovedora do som, o curso unitário da melodia e o mundo incomparável da harmonia. No ditirambo dionisíaco é impelido o homem para o maior aumento de suas aptidões simbólicas. Algo jamais sentido se precipita para a manifestação, a destruição do véu da Maia, o fato de ser uno como gênio da espécie e até mesmo da natureza. Agora o ente Natureza deve exprimir-se simbolicamente, é necessário um novo mundo dos símbolos, primeiramente todo o simbolismo corporal, não somente o simbolismo da boca, do rosto, da palavra, mas o mimismo completo da dança, que movimenta todos os membros em ritmo. Depois crescem intempestivamente as outras forças simbólicas, as da música em ritmo, dinamismo e harmonia. Para se compenetrar deste desencadeamento geral de todas as forças simbólicas, o homem já deve ter alcançado aquela altura de abandono próprio que deseja expressar-se simbolicamente; portanto, o servidor ditirâmbico de Dionísio e somente compreendido por seu semelhante! Com que assombro devê-lo-ia fitar o grego apolínico! Com um assombro tanto maior quanto a ele se juntava o terror, pois reconhecia que tudo aquilo não lhe era tão estranho, e até que sua consciência Apolínica somente lhe cobria este mundo dionisíaco como um tênue véu.

3.

A fim de que compreendamos isto devemos tirar, uma por uma, as pedras daquele edifício artístico da cultura apolínica. Aqui nós nos apercebemos, em primeiro lugar, das admiráveis figuras dos deuses do Olimpo, que estão no espigão deste edifício, e cujos feitos são representados em relevos que iluminam vasto domínio. Mesmo que Apolo esteja entre eles, como uma divindade enfileirando com as outras, e sem pretensão a uma das primeiras posições, não nos devemos deixar enganar. O mesmo impulso que se manifestou em Apolo fez com que nascesse todo o mundo Olímpico, e neste sentido devemos considerar Apolo como pai do mesmo. Qual o imenso mister de que se originou uma tão brilhante comunidade de entes olímpicos?
Quem, tendo outra religião em coração e espírito, se aproximar destes deuses do Olimpo, a procurar neles elevação moral, mais ainda: santidade, espiritualização incorporal, olhares dum amor misericordioso, este lhes voltará as costas, desencorajado e desenganado. Aqui nada recorda o ascetismo, a espiritualidade e o dever: aqui somente se nos mostra uma existência exuberante e triunfal, em que tudo que exista é divinizado, seja bom ou mau. E então o observador ficará surpreendido ante esta exuberância fantástica de vida e inquirirá qual a bebida miraculosa com que gozaram a existência tais homens insolentes, para que, onde quer que olhassem lhes sorria Helena, — o quadro ideal de sua própria existência, “flutuando em doce sensualidade”. A este observador porém, que já inicia a sua caminhada de retorno, devemos exclamar: “Não te afastes antes de ouvir o que declara a sabedoria popular grega dessa vida, que diante de ti se estende com uma alegria tão inexplicável. Há uma lenda segundo a qual o rei Midas perseguiu na floresta, durante longo tempo, o sábio Sileno, companheiro de Dionísio, que se esquivava. Quando finalmente Sileno lhe caiu nas mãos pergunta-lhe o rei o que é o melhor e o mais conveniente para o homem. Firme e imóvel se cala o demônio; até que, forçado pelo rei, declara, entre gargalhadas, o seguinte: “Miserável geração monodiária[8], filho do acaso e da fadiga, porque é que tu me forças a dizer o que não te é proveitoso ouvir? O melhor para ti, é inacessível: É não ter nascido, não ser, ser nada — em segundo lugar, porém é... morrer em breve”.
Como se relaciona com esta sabedoria popular, o mundo das divindades olímpicas? Como a visão cheia de encantos do mártir torturado se relaciona com os seus tormentos.
Agora se nos abre, por assim dizer, o mágico monte Olimpo e nos mostra suas raízes. O grego conhecia e sentia os sustos e horrores da existência: mas, a fim de poder viver, os cobria com as brilhantes figuras de sonho dos Olímpicos. Aquela enorme desconfiança para com as forças titânicas da natureza; aquela Moira reinante sobre todos os conhecimentos, sem compaixão; aquele abutre do grande amigo da humanidade, Prometeu; aquela sorte espantosa do sábio Édipo; aquela maldição de raça dos Atridas, que força Orestes ao matricídio; enfim, toda aquela filosofia do deus da floresta, juntamente com seus exemplos míticos, em virtude da qual morreram os melancólicos etrúrios — foi suplantada continuamente pelos gregos por aquele mundo médio dos olímpicos; pelo menos coberta e afastada dos olhares. A fim de poder viver foram os gregos obrigados a criar esses deuses da maior necessidade; acontecimento que nós devemos representar certamente de tal maneira que a primitiva, titânica ordem divina do terror se transformasse por aquela ordem de beleza apolínica, com paulatinas transformações, na olímpica ordem divina da alegria; como rosas que brotam de espinhosa sebe. Como poderia ter suportado a existência aquele povo tão sensível, tão desejoso, tão inclinado aos sofrimentos, se ela não lhe fosse apontada como rodeada de uma glória superior, em seus deuses? Aquele mesmo impulso que chama a arte à vida, como o complemento sedutor à continuação da vida e perfeição da existência, fez também nascer o mundo olímpico em que se representou a “vontade” helênica como um espelho transfigurante. Assim os deuses justificam a vida humana vivendo-a eles mesmos — a por si só suficiente Teodisséia!
A existência sob o raio de sol brilhante de tais deuses e sentido como o digno de ser ambicionado, e a verdadeira dor dos homens homéricos se refere à separação desta, principalmente à morte próxima: de modo que agora poderia dizer-se deles, invertendo a verdade silênica: “o pior para eles é a morte próxima, o pior em segundo lugar é o fato de terem de morrer alguma vez”. Quando a queixa se faz ouvir uma vez, então ela ressoa sobre Aquiles, que tão breve existência desfrutou, sobre os seres humanos que mudam e passam como as folhas, sobre o desaparecimento do tempo heróico. Nem para o maior herói é indigno o desejo de continuar vivendo, nem que seja como jornaleiro. Com tal ímpeto exige, no degrau apolínico, o “desejo” esta vida, tão unido se sente o ser homérico a ele, que mesmo o lamento se torna um seu canto de louvor.
Agora é necessário dizer que esta harmonia, contemplada tão ansiosamente pelo homem moderno, a unidade do homem com a natureza, à qual Schiller aplicou a palavra “ingênuo”[9], não é um estado tão simples, que por si mesmo se produza ou que é inevitável, que nós deveríamos encontrar no limiar de toda e qualquer cultura, como se fosse o paraíso da humanidade: isto somente se poderia crer numa época que procurava imaginar o “Emílio” de Rousseau como um artista e que pensava haver achado em Homero um tal artista Emílio, educado rente ao coração da natureza. Onde encontramos o “ingênuo” da natureza somos forçados a reconhecer o maior efeito da arte apolínica; que em primeiro lugar tem sempre de vencer um país de Titãs e de matar monstros e que deve ter-se tornado vencedor de profundezas espantosas de considerações sobre o mundo, por meio de fortes e alegres ilusões. Mas quão poucas vezes é alcançada a ingenuidade, o enlace total na formosura da aparência! Como é sublime, por isso, Homero que se porta, frente a esta cultura popular apolínica, como o único artista imaginativo ante a capacidade imaginativa do povo e da natureza em geral. A “ingenuidade” homérica somente pode ser entendida como a completa vitória da ilusão apolínica: é esta uma das ilusões tantas vezes usadas pela Natureza para o alcance de seus propósitos. O fim verdadeiro é coberto por uma imagem ilusória: para esta estendemos as mãos, e aquele a natureza atinge por nosso engano. Junto aos gregos queria-se fitar a “vontade” a si mesma, na transfiguração do gênio e do mundo artístico; para se glorificarem, suas criaturas deviam sentir-se dignas de serem glorificadas, dever-se-iam de ver numa esfera mais elevada, sem que este mundo acabado da contemplação devesse atuar como imperativo ou censura. Esta é a esfera da beleza, em que refletiam suas imagens, os Olímpicos. Com este reflexo de beleza lutou a vontade helênica contra o talento do sofrimento correlativo ao artístico e da sapiência do sofrimento; e como monumento de sua vitória se nos apresenta Homero, o artista ingênuo.

4.

A respeito deste artista ingênuo, a analogia do sonho nos subministra alguns ensinamentos. Se nós nos representarmos aquele que sonha, como ele, de permeio à ilusão do sonho, e sem interrompê-la, se daqui deduzirmos uma profunda vontade interna da contemplação do mesmo; se, por outro lado, a fim de podermos sonhar com este profundo prazer interno na contemplação devemos ter esquecido o dia e sua horrível importunidade, então devemos interpretar todos estes fenômenos, sob a direção de Apolo, intérprete de sonhos, da seguinte maneira: Por mais certas que nos pareçam ambas as metades da vida, a parte desperta e a adormecida, a primeira como a mais preferida, mais digna, mais importante, mais merecedora de ser vivida, e mesmo a única vivida, quero eu, apesar de todas as aparências de um paradoxo, sustentar para aquele misterioso fundo de nosso ser, cuja manifestação somos, a valorização contrária do sonho. Porque, quanto mais descubro na natureza aqueles poderosos impulsos de arte e neles um desejo fervoroso à aparência, à redenção pela aparência, tanto mais me sinto impelido à acepção metafísica, que o verdadeiramente-existente[10] e Uno-Primitivo[11], como o contraditório e que eternamente sofre[12] necessita para a sua redenção contínua ao mesmo tempo a visão encantadora, a aparição prazenteira, aparição que nós, totalmente presos e compostos da mesma, necessitamos sentir como o verdadeiro-inexistente[13], isto é, como um perseverante vir-a-ser em tempo, lugar e causalidade; por outras palavras, como uma realidade empírica. Prescindindo por um momento, de nossa própria “realidade”, considerando a nossa existência empírica, como a do mundo em geral, como uma representação do Uno-Primitivo produzida em cada momento, deve valer-nos o sonho como a aparição das aparições, como a aparência das aparências, e assim como uma satisfação ainda mais alta do desejo primitivo à aparição[14]. É esta a razão de ter o núcleo da natureza aquele prazer indescritível no artista ingênuo e na obra de arte ingênua, que também nada mais é senão “aparência das aparências”. Rafael é, ele próprio, um daqueles “ingênuos” imortais, que nos representou numa pintura simbólica aquela despotenciação da aparência para a aparência, o processo primitivo do artista ingênuo e ao mesmo tempo da cultura apolínica. Em sua Transfiguração a parte inferior nos mostra, com o rapaz possesso, os seus portadores desesperados, os discípulos perplexos e amedrontados, o reflexo da eterna dor-primitiva[15], da única razão do mundo: a “aparência” e aqui o reflexo da eterna contradição, do pai das cousas. Deste brilho se eleva agora, como um perfume de ambrosia, um novo mundo de aparências, semelhante a uma visão, da qual não se apercebem aqueles presos na primeira aparência — um flutuar luminoso no mais puro deleite, na aparição brilhante de olhos mui abertos. Aqui temos, no mais elevado simbolismo artístico, aquele mundo de beleza apolínica e seu fundamento, a terrível sapiência de Sileno, diante de nossos olhares, e compreendemos por intuição sua necessidade recíproca. Apolo porém, mais uma vez de nós se aproxima como a divinização do principii individuationis, em que se processa unicamente o sempre atingido objeto do Uno-Primitivo, sua redenção pela aparência. Demonstra-nos ele, com sublimes gestos, como é necessário todo aquele mundo de dor, a fim de que por ele cada um seja impelido à produção da visão redentora e depois, em contemplação da mesma, possa sentar-se tranqüilamente em seu barco, no meio do oceano.
Esta divinização do individualismo somente conhece, quando pensada como imperativo e dando preceitos, uma lei, o indivíduo, isto é, a manutenção dos limites do indivíduo, a medida em sentido helênico, Apolo como divindade ética, exige dos seus a medida e, para conservá-la, conhecimento próprio. E assim corre de par em par com a necessidade estética da beleza, a exigência do “conhece-te a ti mesmo” e do “nada em demasia”, enquanto que presunção e imoderação se consideravam como os verdadeiros demônios inimigos da esfera não apolínica, portanto como predicados do tempo ante-apolínico, da época dos titãs, e do mundo extra-apolínico, quer dizer do mundo bárbaro. Em virtude de seu amor titânico para com os homens foi Prometeu despedaçado pelos abutres; por causa de seu saber excessivo, que decifrava o enigma da esfinge, teve Édipo de cair num abismo desnorteante de crimes: assim interpretava o deus délfico o passado grego.
“Titânico” e “bárbaro” também se afigurava ao grego apolínico o efeito, que originava o Dionisíaco; sem poder ocultar-se contudo que ele mesmo era interiormente aparentado com aqueles Titãs e Heróis caídos. Sentia ainda mais: Toda a sua existência, com toda a sua beleza e moderação descansava sobre um fundamento oculto do sofrer e do reconhecer, fundamento que por sua vez lhe era descoberto pelo dionisíaco! E, eis aí! Apolo não conseguia viver sem Dionísio! O “titânico” e o “bárbaro” tinham-se tornado, por fim, necessidade tão imperativa quanto o apolínico! E afiguremo-nos como, neste mundo erguido sobre a aparência e a moderação, artificialmente contido, soava o som estático das festas dionisíacas em melodias mágicas que a cada instante seduziam mais; como se fazia ouvir nestas todo o excesso da natureza em prazer, sofrimento e reconhecimento, mesmo por gritos penetrantes. Imaginemos o que poderia significar, perante esta canção popular demoníaca, o artista salmodiante de Apolo, com o sonido fantástico da harpa! As musas das artes de “aparência” empalideciam diante uma arte que em sua embriaguez dizia a verdade; a sabedoria de Sileno exclamava: Ai! ai! contra os alegres Olímpicos. O indivíduo com todos os seus limites e suas medidas se afogava aqui no esquecimento próprio dos estados dionisíacos e olvidava os conceitos apolínicos. O excesso se descobria como verdade; a contradição, o deleite nascido das dores, falava de si, do coração da natureza. E assim, onde quer que penetrasse o dionisíaco, se anulava e extinguia o apolínico. Mas é igualmente certo que lá, onde se conseguira resistir ao primeiro ataque, se exprimiam a reputação e a majestade do deus délfico, mais fixas e mais ameaçadoras do que nunca. Eu somente posso compreender o estado dórico e a arte dórica como uma continuação do acampamento bélico do apolínico: uma educação tão bélica e áspera, uma arte tão obstinada e seca, rodeada por baluartes, uma política tão cruel e desconsiderada poderiam ser de duração extensa apenas numa oposição ininterrupta ao ser titânico e bárbaro do Dionisíaco.
Até aqui foi tratado aquilo que indiquei no início desta dissertação: como o dionisíaco e o apolínico, incitando-se mutuamente em partos consecutivos dominaram o ser helênico, como da “idade de bronze” com suas lutas de titãs e sua rude filosofia popular se desenvolveu, sob o governo do impulso apolínico do belo, o mundo homérico; como novamente é devorado este esplendor “ingênuo” pela corrente impetuosa do dionisíaco, e como se eleva ante esta potência nova o apolínico, como a majestade impassível da arte dórica e da concepção do mundo.
Deste modo se divide a história mais antiga da Grécia na luta daqueles dois princípios hostis, em quatro grandes etapas artísticas; vemo-nos forçados então a continuar inquirindo sobre o plano último deste vir-a-ser e deste obrar, caso não admitamos o último período atingido, o da arte dórica, como o término e propósito daqueles impulsos artísticos, e então se nos oferece a excelsa e altamente elogiada obra de arte da tragédia ática e do ditirambo misterioso depois de longa luta antecedente, se glorificou em tal filho, que é, ao mesmo tempo, Antígone e Cassandra.

5.

Aproximamo-nos agora do objeto verdadeiro de nossa investigação, que tende ao conhecimento do gênio dionisíaco-apolínico e de sua obra de arte, pelo menos à compreensão, cheia de pressentimento, daquele mistério introitivo. Perguntamo-nos então onde é que se faz notar aquele novo germe pela vez primeira no mundo helênico, germe que, posteriormente, evolui até chegar à tragédia e ao ditirambo dramático. Isto nos esclarece, figuradamente, a própria antiguidade, quando coloca lado a lado, em imagens, gemas etc., Homero e Arquíloco como os antepassados e portadores de fachos da poesia grega, no sentimento seguro que somente estas figuras, totalmente originais e das quais emana sobre todo o mundo posterior grego um rio de fogo, são dignas de consideração. Homero, o velho sonhador caído em si, o tipo do artista apolínico, ingênuo, vê então, admirado, a cabeça apaixonada do servidor guerreiro das musas: Aquíloco, arrastado ferozmente pela existência; e a estética moderna só consegue acrescentar interpretativamente que ao artista “objetivo” se contrapõe aqui o primeiro “subjetivo”. Pouco valor tem, para nós, tal interpretação, e isto por somente conhecermos o artista subjetivo como um artista mau, e exigirmos de qualquer espécie e elevação de arte antes de mais nada e inicialmente o vencer do subjetivo, o redimir do “eu”, o conter e calar de qualquer desejo e vontade individuais e, mais ainda, nem conseguirmos crer sem objetividade, sem contemplação pura e desprovida de interesse, em produção realmente artística, por menor que seja. Por isso nossa estética deve inicialmente resolver aquele problema: como é que se torna possível o lírico como artista? Ele que, segundo a experiência de todos tempos diz sempre “eu” e que, à nossa frente, canta toda a escala cromática de suas paixões e seus desejos! Precisamente este Arquíloco nos assusta, ao lado de Homero, pelo grito de seu ódio e de sua ironia, pelas exclamações viciadas de seus desejos; não será ele, este chamado primeiro artista subjetivo, o verdadeiro anti-artista? Mas então por que a veneração que a ele, ao poeta, tributou, em notáveis expressões o oráculo de Delfos, o centro da arte “objetiva”?
Sobre o processo de seu poetar iluminou-nos Schiller por uma observação psicológica, a ele mesmo inexplicável, mas que não parece duvidosa, pois ele confessa não ter tido, como estado preparatório para o poetar, diante de si nem em si uma série de imagens, com causalidade ordenada de pensamentos, mas sim uma disposição musical! (“Em mim a sensação não tem, inicialmente um objeto claro e determinado. É só mais tarde que este se forma. Uma certa sensação musical de espírito se antepõe, e somente a esta se segue a idéia poética”). Se acrescentarmos agora o fenômeno mais importante de todo o lirismo antigo, que em todos os lugares se apresenta como a união natural, e até mesmo como a identidade do lírico com o músico, em contraposição do qual se nos figura o nosso lirismo mais moderno como uma imagem divina sem cabeça, então podemos com fundamento na nossa metafísica estética, representada anteriormente, explicar-nos de maneira seguinte o lírico: Primitivamente, como artista dionisíaco, se unificou totalmente com o Uno-Primitivo, sua dor e sua contradição e produz a cópia deste Uno-Primitivo como música, mesmo quando esta fora denominada com razão uma repetição do mundo e uma segunda moldagem do mesmo; agora, porém, se lhe torna visível esta música, sob influência do sonho apolínico, como uma visão comparativa do sonho. Aquele reflexo, sem imagem ou conceito da dor primitiva na música, com sua redução na aparência, produz agora um segundo reflexo, como única igualdade ou exemplo. Sua subjetividade já foi abandonada pelo artista no processo dionisíaco; a imagem que então lhe mostra sua unidade com o coração do mundo, é uma cena do sonho que faz perceptível aquela contradição e dor, conjuntamente com o prazer da aparência. O “eu” do lírico soa então do abismo da existência: sua “subjetividade” no sentido dos estéticos modernos é imaginação. Quando Arquíloco, o primeiro lírico dos gregos, manifesta seu amor extravagante e, ao mesmo tempo, seu desprezo às filhas de Lycambes, não é a sua paixão que baila à nossa frente em dança desenfreada, vemos Dionísio e as mônades, vemos o bêbedo entusiasta Arquíloco, caído no sono — como nas Bacantes no-lo descreve Eurípides, o sono nos cumes dos Alpes no sol do meio-dia — e então Apolo dele se acerca e o toca com os louros. O encanto dionisíaco-musical do dormente lança, por assim dizer, centelhas de imagens em seu redor, poesias líricas que, em seu maior desenvolvimento, se denominam tragédias e ditirambos dramáticos.
O plástico e ao mesmo tempo o seu aparentado épico estão imersos numa contemplação pura das imagens. O músico dionisíaco é, sem qualquer imagem, apenas dor primitiva e eco primitivo do mesmo. O gênio lírico sente nascer e crescer do místico abandono próprio e do estado unitário um mundo de imagens e igualdades que têm um colorido, causalidade e velocidade bem diferentes daquele mundo do plástico e do épico. Enquanto este último vive nestas imagens, e somente nelas, com agrado prazenteiro, não se cansando de as fitar até nos menores traços, enquanto que, mesmo a imagem do Aquiles zangado, é para ele somente e apenas um quadro, cuja expressão irada ele frui com aquele desejo do sonhar na aparência — de modo dele estar, por este espelho da aparência, preservado contra a unificação e o fundir-se com suas formas — então, comparando, as imagens do lírico nada mais são do que ele mesmo e, por assim dizer, apenas diversas objetivações dele, em virtude do que, como ponto médio móvel deste mundo, ele pode dizer “eu”; só que esta individualidade não é a mesma do que a do homem desperto, empírico-real, mas a única individualidade verdadeiramente existente e eterna, que jaz no âmago de todas as cousas, por cuja cópia o gênio lírico vê até o seu fundo. Figuremo-nos uma vez como ele se descobre a si de permeio a estas cópias como “não-gênio”, isto é, sua “subjetividade”, toda a turba de paixões e movimentos subjetivos do desejo, dirigidos a um objeto determinado, para ele real. Se agora parece como se o gênio lírico e, com ele ligado, o não-gênio fosse uma unidade e como se o primeiro dissesse de si mesmo aquela palavrinha “eu”, então esta aparência já não nos poderá seduzir, como seduziu aqueles que classificavam o lírico como poeta subjetivo. Em verdade é Arquíloco, o homem apaixonadamente ardente, que ama e odeia, nada mais que uma visão do gênio mundial e que exprime simbolicamente sua dor primitiva, naquele exemplo do homem chamado Arquíloco; enquanto que aquele Arquíloco, que quer e deseja subjetivamente, nunca poderá ser poeta. Mas não é mesmo necessário que o lírico só veja diante de si o fenômeno do homem Arquíloco como reflexo da aparência eterna; e a tragédia prova o quanto se pode afastar o mundo visionado pelo lírico desse fenômeno que em verdade está demasiado perto.
Schopenhauer, que não ocultou a dificuldade que o lírico apresenta para a consideração filosófica da arte, acredita ter achado uma saída, à qual não o posso acompanhar: — porque a ele somente, em sua profunda metafísica da música, foi dado o meio com o qual poderia ter sido afastada definitivamente aquela dificuldade; como creio tê-lo feito aqui, segundo seu espírito e para sua honra. Ele ao contrário indica como a essência própria da canção o que segue (O mundo como vontade e representação I):
“É o sujeito da vontade, quer dizer, da vontade própria, que enche a consciência daquele que canta, freqüentemente como um desejo desligado, satisfeito (alegria), mas talvez mais freqüentemente ainda como um reprimido (tristeza), sempre como afeto, paixão, estado de ânimo agitado. Ao lado deste, porém, e ao mesmo tempo com ele se sente o que canta, pelo aspecto da natureza que o rodeia como sujeito do conhecimento puro, desprovido de vontade, cuja inabalável tranqüilidade de alma entra então em contraste com o impulso da vontade sempre limitada, sempre indigente ainda; o sentimento deste contraste, desta mudança e aquilo que se expressa no conjunto da canção e o que constitui o estado lírico. Neste se nos aproxima, se assim podemos dizer, o conhecimento puro, a fim de nos libertar da vontade e de seu impulso. Seguimos, mas apenas por alguns instantes, sempre a vontade; a recordação de nossos fins pessoais nos arranca da contemplação tranqüila; mas também novamente nos tira da vontade a bela vizinhança próxima, na qual se nos oferece o conhecimento puro, desprovido de desejo. Por isso se misturaram maravilhosamente na canção e na disposição lírica a vontade (o interesse pessoal dos fins) e a contemplação pura da vizinhança que se apresenta; se buscam e se imaginam relações entre ambas, a disposição subjetiva, a afeição da vontade comunicam à vizinhança, e esta novamente àquela, sua cor em reflexo. A prova de todo este estado de alma tão mesclado e dividido é a canção verdadeira”.
Quem poderia desconhecer nesta descrição, que aqui se caracteriza o lirismo como uma arte alcançada imperfeitamente como uma arte que está sempre saltando e que poucas vezes alcança o fim, mesmo como uma semi-arte, cuja essência devesse consistir na vontade e na contemplação pura; isto é, que o estado não-estético e o estético estivessem admiravelmente misturados? Nós, pelo contrário, asseveramos que toda a contradição segundo a qual, segundo um medidor de valores, divide Schopenhauer as artes, a contradição do subjetivo e a do objetivo, são impróprios na estética em virtude do sujeito, o indivíduo desejoso e que fomenta seus propósitos egoístas, só poder ser considerado como inimigo, e não como origem da arte. Mas, sendo o sujeito artista, este está já redimido de sua vontade individual e se converte em médium, através do qual festeja o sujeito que realmente existe, sua redenção na aparência. Por isto, para nossa humilhação e realce, deve estar diante de nossa vista, que toda a comédia artística não se representa para nós, talvez para nossa melhoria ou para nossa imitação, e mais que nós somos, tampouco, os criadores verdadeiros daquele mundo de arte; mas sim podemos supor de nós mesmos que somos, para o verdadeiro criador da mesma, imagens e projeções artísticas, o que têm na significação de obras de arte nossa maior dignidade, pois só como fenômeno artístico são justificados eternamente a existência e o mundo; enquanto que nossa consciência sobre esta nossa significação não é mais do que a que têm guerreiros pintados numa tela, da batalha nela representada. Daqui resulta que todo o nosso saber artístico é, no fundo, uma completa ilusão, em virtude de nós, como conhecedores, não sermos com aquele ser uno e idêntico, que se proporciona, como criador e espectador único, um gozo eterno. Somente enquanto o gênio se fundir no ato da produção artística com aquele artista-primitivo[16] do mundo, sabe ele algo sobre a essência eterna da arte; pois naquele estado é ele, milagrosamente, idêntico àquela imagem sinistra da fábula, que pode virar os olhos e se fitar a si mesma; então ele representa simultaneamente o sujeito e o objeto, ao mesmo tempo poeta, ator e espectador.

6.

No tocante a Arquíloco descobriu a investigação erudita que ele introduziu a canção popular na literatura, e que, por isso, lhe compete aquela posição única, ao lado de Homero, na consideração geral dos gregos. O que, porém, é a canção popular em comparação com a epopéia totalmente apolínica? Que mais do que o “perpetuum vestigium” de uma união do Apolínico e do Dionisíaco; sua monstruosa propagação que por todos os povos se estende e que se multiplica em produções sempre novas, é-nos uma prova de quão forte é aquele duplo impulso artístico da natureza; que, de maneira análoga, deixa suas marcas na canção popular, como os movimentos orgiásticos de um povo se eternizam em sua música. Deveria ser mesmo demonstrável historicamente que todo período mui produtivo em canções populares é, ao mesmo tempo, excitado do modo mais forte por correntes dionisíacas, que devemos considerar sempre como fundamento e suposição da canção popular.
A canção popular é para nós, inicialmente, um espelho musical do mundo, como melodia original, que procura agora uma figura de sonho paralela e que a exprime na poesia. A melodia é então o primitivo e o comum, que por isso pode também sofrer múltiplas objetivações em textos múltiplos. Ela é também o mais importante e o mais necessário na apreciação ingênua do povo. A melodia produz a poesia de si, e isto sempre novamente; nada mais nos quer exprimir a forma de estrofes da canção popular, fenômeno que sempre fitei com assombro, até encontrar esta solução. Quem considera, segundo esta teoria, uma coleção de canções populares — por exemplo a do rapaz corneteiro[17] — este achará exemplos intermináveis de como a melodia, que continuamente produz, joga centelhas de imagens em seu redor; que em seu colorido, em sua mudança repentina e até em sua precipitação louca, manifestam uma força totalmente estranha à aparência épica e seu correr tranqüilo. Do ponto de vista da epopéia, é simplesmente condenável este mundo de imagens, desigual e irregular, do lirismo; e tal fizeram decerto as rapsódias épico-festivas das cerimônias apolínicas na época de Terpandro.
Vemos, portanto, no poetar da canção popular, a língua esforçada o mais possível para imitar a música; pelo que se inicia com Arquíloco um novo mundo da poesia que é, em seu fundo mais íntimo, contrário à poesia homérica. Com isto indicamos a única relação possível entre poesia e música, palavra e som; a palavra, a imagem, o conceito procuram uma expressão análoga à música e sofrem agora em si o poder da música. Neste sentido podemos distinguir duas correntes principais na história lingüística do povo grego, segundo a língua imitasse o mundo das imagens e dos fenômenos, ou o da música. Reflita-se, uma vez mais e profundamente, sobre a diferença lingüística do colorido, da construção sintática, da espécie de palavras entre Homero e Píndaro e entender-se-á o significado deste contraste. Sim, quando refletimos a este respeito, torna-se-nos claro que entre Homero e Píndaro devem ter ressoado os sons orgiásticos da flauta do Olimpo, que ainda na época de Aristóteles, de permeio a uma música infinitamente mais evoluída, arrastavam ao entusiasmo delirante, e que decerto incitaram à imitação, em seus efeitos primitivos, todos os meios de expressão dos contemporâneos. Quero recordar aqui um conhecido fenômeno dos nossos dias, que pode parecer contrário à nossa estética. Experimentamos sempre de novo como uma sinfonia de Beethoven impele os ouvintes a expressões figuradas, seja porque a composição dos diversos mundos de imagens, produzidos por uma seqüência de sons, se comporte fantasticamente colorida ou, até, contraditória; exercer a respeito de tais composições sua pobre crítica, é não reparar no fenômeno que é facilmente explicável, isto é próprio daquela estética. Sim, mesmo quando o compositor se exprimiu em imagens sobre uma composição, como quando indica uma sinfonia como “Pastoral” e uma composição leve como “Cena junto ao ribeirinho”, uma outra como “Alegre reunião dos camponeses”, então todas estas são representações comparativas, nascidas da música — e não objetos imitados pela música — representações que nada nos podem ensinar sobre o conteúdo dionisíaco da música e que não têm valor exclusivamente ao lado de outras imagens. Este processo de uma descarga da música em imagens devemos transmitir, em mente, a uma multidão popular juvenil e criadora, no tocante à lingüística, a fim de compreendermos a origem da canção popular em estrofes e como toda a riqueza idiomática se excita pelo novo princípio de imitação da música.
Se podemos considerar a poesia lírica como a fulguração imitativa da música em imagens e idéias, então perguntaremos: “como que cousa aparece a música no espelho da alegoria e das idéias?” Aparece como vontade, tomada a palavra em sentido Schopenhaueriano, isto é, como contraste da disposição estética, puramente contemplativa e involuntária. Distingue-se aqui, o mais rigorosamente possível, a idéia do ser dado fenômeno, porque a música, segundo a sua natureza, não pode ser vontade, pois, como tal, deveria ser banida totalmente do domínio da Arte — por a vontade ser o inestético em si; mas ela aparece como vontade. Para exprimir seus fenômenos em figuras ou imagens necessita o lírico de todas as forças da paixão; desde o murmurar da inclinação até o borbulhar da loucura; sob o impulso de falar em exemplos apolínicos da música compreende ele a natureza e a si apenas como o eterno desejoso, cobiçoso e anelante. Quando, porém, interpreta a música em imagens, ele mesmo descansa na quietude oceânica da consideração apolínica, apesar de tudo o que ele divisa pelo médium da música estar em movimento agitado e apressado. E quando ele próprio se vê pelo mesmo médium, então lhe aparece sua própria imagem no estado dum sentir não satisfeito, seu próprio desejar; querer, gemer e exultar é-lhe uma comparação com que se interpreta a música. Este é o fenômeno do lírico. Como gênio apolínico ele interpreta a música pela imagem da vontade, enquanto que ele mesmo completamente desprendido da ânsia da vontade, é uma figura pura e serena como o sol.[18]
Toda esta discussão aceita que o lirismo é tão dependente do espírito da música, como a própria música que, em sua total ilimitação, não necessita nem da imagem, nem da idéia, apenas as suportando ao seu lado. A poesia do lírico nada pode exprimir que já não esteja contido na maior generalidade e indiferença da música, que o impeliu à linguagem figurada. Não se pode esgotar com a linguagem o simbolismo universal da música por esta se referir simbolicamente à contradição e dor primitivas no coração do Uno-Primitivo, simbolizando com isto uma esfera que está sobre todos e ante todos os fenômenos. Comparando com esta, todo fenômeno nada mais é que alegoria; por isto a língua, como órgão e símbolo dos fenômenos, não pode nunca e em nenhum lugar exprimir o profundo sentido da música, mas permanece, quando se prontifica a imitar a música, somente em contato externo com ela, enquanto que seu sentido mais profundo, apesar de toda eloqüência lírica, não se pode acercar de nós por mais um passo, sequer.

7.

Devemos agora chamar em nosso auxílio todos os princípios artísticos discutidos até o momento, a fim de acharmos os caminhos certos no “labirinto”, nome que somos obrigados a dar à origem da tragédia grega. Presumo não afirmar nada de absurdo quando digo que o problema desta origem não foi ainda, até hoje, apresentado seriamente e, muito menos, resolvido, mesmo que se tenham já tantas vezes jungido e desunido, combinatoriamente, os pedaços esparsos da tradição antiga. A tradição afirma com toda segurança que a tragédia se origina do coro trágico e que fora, primitivamente, somente coro e nada mais que coro; pelo que temos a obrigação de fitar este coro trágico como o verdadeiro drama primitivo, sem nos conformar com as expressões artísticas correntes, segundo as quais ele não passa de um espectador idealista ou que tenha de representar o povo perante a região principesca da cena. Este último pensamento explicativo mencionado, que soa com tanta elevação para alguns políticos — como se fosse representada, no coro popular, a imutável legislação moral dos atenienses democráticos, que permanecia sempre com a razão sobre os apaixonados excessos e diversões dos reis — que pode ser apresentado por um dito de Aristóteles como o mais verídico possível, é destituído, no entanto, de importância, para a formação primitiva da tragédia, e isto por ser excluído todo e qualquer contraste entre povo e príncipe daquelas origens unicamente religiosas. Assim também é excluída qualquer esfera político-social, mas consideraríamos, por termos em vista a forma clássica do coro por nós conhecido de Ésquilo e Sófocles, blasfêmia falar aqui da suposição de uma “representação constitucional popular”, blasfêmia diante da qual não recuariam muitos outros. A representação constitucional popular não é conhecida pelas antigas constituições “in praxi” e esperamos que nem a “pressentiram” em sua tragédia.
Muito mais célebre que esta explicação política do coro é o pensamento de A. W. Schlegel, que nos recomenda considerarmos o coro, por assim dizer, como o conteúdo e o extrato da multidão dos espectadores, como o espectador ideal. Esta opinião, confrontada com aquela tradição histórica de que primitivamente a tragédia não passava de coro, se identifica com aquilo que ela é: rude, anti-científica mas brilhante suposição, e que só conservou seu brilho pela forma concentrada de expressão, pela prevenção tipicamente germânica contra tudo que se diz “ideal”, e por nossa surpresa momentânea. Pois surpreendemo-nos ao compararmos o tão nosso conhecido público dos teatros, e inquirimo-nos se há uma possibilidade de idealizar por este público algo de analógico ao coro trágico. Negamo-lo tacitamente e admiremos agora a audácia da afirmação de Schlegel, como a natureza totalmente diversa do público grego. Pois sempre supusemos que o espectador propriamente dito, fosse ele quem fosse, deveria estar certo de ter à sua frente uma obra de arte e não uma realidade empírica; enquanto que o coro trágico dos gregos é obrigado a reconhecer como existências corpóreas as figuras da cena. O coro dos Oqueânicos* crê ver diante de si o titã Prometeu e se considera tão real como considera real o deus da cena. E seria isto a classe melhor e mais pura do espectador, considerar real e existente corporalmente, segundo o fazem os Oqueânicos, quanto a Prometeu. E seria o sinal do espectador ideal, correr ao palco e libertar dos martírios aquele deus. Acreditávamos num público estético e julgávamos cada espectador tanto mais capaz, quanto mais apto era de considerar a obra de arte como arte, isto quer dizer, esteticamente; e sim empírica e corporalmente. Oh! estes gregos! suspiramos, eles derrubam a nossa estética. — A isto acostumados, porém, repetíamos o conceito schlegeliano toda vez que ouvíssemos falar em coro.
Mas aquela tão expressiva tradição aqui se exprime adversamente a Schlegel, o coro por si mesmo, seu palco, portanto a forma primitiva da tragédia e aquele coro ideal não se compreendem. Que gênero de arte seria a que fosse tirada do conceito do espectador, de cuja forma própria deveria valer o “espectador em si”? O espectador sem espetáculo é um contra-senso. Tememos que a origem da tragédia não se possa explicar nem pela consideração da inteligência moral da multidão, nem do conceito do espectador sem espetáculo, e consideramos este problema profundo em demasia, para sequer sermos tocados por considerações tão superficiais.
Uma interpretação infinitamente valorosa sobre o significado do coro manifestou Schiller no célebre prólogo da “Noiva de Messina”, em que considera o mundo como um todo vivo, pelo que a tragédia é envolvida para se separar de modo total do mundo real e manter o seu fundo ideal e a sua liberdade poética.
Schiller combate, com esta sua arma principal, a compreensão comum do que se diz natural, a ilusão desejada de maneira comum na poesia dramática. Enquanto que o próprio dia no teatro seja algo artístico, a arquitetura algo simbólico e a língua métrica contenha um caráter tão ideal, e que ainda exista o engano no seu todo, não é suficiente que se considere somente isto como uma liberdade poética, o que, afinal, constitui o conteúdo de toda a poesia. A introdução do coro é o passo decisivo, com o qual se declara aberta, e honestamente, a guerra a qualquer naturalismo na arte.
É para uma tal maneira de pensar que a nossa época, que tão superior se considera, emprega o dito superior “pseudo-idealismo”. Temo porém que, com nossa atual idolatria do natural e verdadeiro, cheguemos ao pólo contrário de todo idealismo, isto é, à região da sala das figuras de cera. Mesmo neles há uma arte, como em certos romances estimados do presente, mas não se nos deve atormentar com a pretensão de que, com esta arte, se há de superar o “pseudo-idealismo” de Schiller e Goethe.
É naturalmente um terreno “ideal” no qual, segundo a opinião sensata de Schiller, perambula o coro dos sátiros gregos, o coro da tragédia primitiva, um terreno muito acima do caminho comum dos mortais. O grego edificou, para este coro, os andaimes de um estado natural fingido, colocando nesses andaimes seres naturais, fictícios. A tragédia foi erigida sobre este fundamento e já por isso foi desobrigada, desde o início, de reproduções fiéis da realidade. Apesar disto não é um mundo fantasiado entre céu e terra, e sim um mundo da mesma autenticidade e realidade, como as possuía o Olimpo, juntamente com os seus moradores, para o heleno crédulo. O sátiro como corista dionisíaco vive numa realidade religiosa, admitida sob sanção do mito e do culto. Que com ele se inicia a tragédia, que dele fala a sabedoria dionisíaca da tragédia, é para nós um fenômeno tão estranhável, como o é a origem da tragédia, proveniente do coro. Talvez consigamos obter um ponto de partida, se eu colocar a suposição de que o sátiro, o ser natural fictício, se relacione com o homem culto como se relaciona a música dionisíaca com a civilização. Desta última diz Ricardo Wagner que ela é apagada pela música, como é o brilho da lâmpada pela luz do dia. Da mesma maneira creio, se sentiu anulado o homem culto grego, em presença do coro satírico; e isto é o primeiro efeito da tragédia dionisíaca, que o estado e a sociedade, os abismos em geral entre homem e homem, cedam a um potentíssimo sentimento de unidade, o qual reconduz ao coração da Natureza. O consolo metafísico, com o qual, — como já deixei indicado atrás, — nos despede toda a verdadeira tragédia, que a vida no fundo das cousas, apesar de toda a mutação dos fenômenos, é indestrutivelmente alegre e potente; este consolo aparece com clareza como coro dos sátiros, como coro de seres naturais, que vivem por detrás de qualquer civilização e que, apesar das mudanças das gerações e da história dos povos, continuam sendo sempre os mesmos.
Com este coro se consola o heleno profundo, o único igualmente apto para as dores mais suaves e mais cruéis, que com olhar enérgico fitou o terrível impulso de destruição do que se chama história mundial, da mesma forma como como fitou a crueldade da natureza, encontrando-se em perigo de ansiar por uma negação budista da vontade. A Arte o salva, e pela Arte se lhe salva a vida.
O êxtase do estado dionisíaco, com sua destruição das barreiras e limites comuns da existência, contém em verdade, durante sua duração, um elemento letárgico, em que vem a submergir todo o experimentado, pessoalmente, em tempos idos. Assim se separa pelo abismo do passado o mundo da verdade cotidiana e da verdade dionisíaca. Logo, porém, que aquela verdade cotidiana se nos separa como tal, uma disposição ascética, negativa, da vontade é o fruto destas situações. Neste sentido parece-se o homem dionisíaco com Hamleto; ambos lançaram uma vez um olhar verdadeiro à essência das cousas, eles reconheceram, e repugnava-lhes agir, pois a sua ação nada teria podido modificar na essência eterna das cousas; eles sentem-no por vergonhoso ou ridículo que se pretenda que eles devam reintegrar o mundo que se desintegrou. O conhecimento mata a ação, à ação cabe o envelamento[19] pela ilusão — é isto o que Hamleto ensina, não aquela sabedoria barata de João o Sonhador que, em virtude de excesso de reflexão e excesso de possibilidades, não se pôde decidir à ação; não o refletir, não! — o conhecimento verdadeiro, o relance na verdade horrorosa, supera qualquer motivo que impele à ação, tanto com Hamleto como com o homem dionisíaco. Agora não há consolo que faça efeito, a ânsia passa, depois da morte, por sobre o mundo, por sobre os deuses mesmo, a existência é negada, conjuntamente com seu reflexo fugidio nos deuses, ou num Além sempiterno. Na certeza da verdade uma vez fitada verá então o homem somente o horrível ou o absurdo da existência; então ele compreenderá o simbólico no destino de Ofélia, então reconhecerá a sabedoria do deus silvestre Sileno; e isto repugna-lhe.
Aqui, no maior perigo da vontade, se aproxima, como feiticeira salvadora e sabedora da cura, a Arte. Só ela consegue dobrar aqueles pensamentos de repugnância sobre o horrível ou sobre o absurdo da existência, em representações com as quais se consegue viver. Estas são o sublime como a sujeição artística do horrível, e o cômico como a descarga artística de nojo do absurdo. O coro satírico do Ditirambo é a ação salvadora da arte grega: no mundo médio destes companheiros dionisíacos se esgotaram aqueles acessos, já anteriormente descritos.

8.

Tanto o sátiro como o pastor idílico da época moderna são o resultado de um desejo dirigido ao primitivo e natural; mas como agarra firme e impavidamente o grego a seu homem selvagem, e como brinca, envergonhada e afeminadamente, o homem da nossa época com a imagem lisonjeadora de um pastor delicado, degenerado e tocador de flauta! A Natureza, ainda não trabalhada pelo conhecimento e com as aldravas da cultura ainda inquebrantadas, esta viu o grego em seu sátiro, que não se assemelhava por isso ao macaco. Muito pelo contrário: era a imagem primitiva do homem, a expressão de seus maiores e mais fortes impulsos, como o entusiasta encantado e arrebatado pela proximidade do deus; como companheiro partilhante do sofrimento, no qual se repete a dor deste deus, como declarante de sabedorias provenientes do âmago da natureza, como emblema da onipotência sexual na natureza, que o grego está acostumado a fitar respeitosamente, contemplativo e admirado. O sátiro era algo de sublime e divino, assim deveria parecer principalmente ao olhar dolorosamente alquebrantado do homem dionisíaco. Ter-lhe-ia sido insultuoso o pastor elegante e “mimoso”; nos grandiosos e vigorosos traços descobertos da natureza descansava, com satisfação excelsa, o seu olhar; aqui estava apagada a ilusão de cultura da imagem primitiva do homem, aqui se descobria o homem verdadeiro, o sátiro barbudo que aleluiava o seu deus. Diante dele o homem civilizado desaparecia, tornando-se uma caricatura mentirosa. No que concerne a estes inícios de arte trágica, está Schiller igualmente com a razão. O coro é uma muralha viva contra a realidade que investe, porque ele — o coro satírico — reflete melhor, mais verdadeira e mais completamente, a vida do que o homem civilizado que, a maior parte das vezes, julga ser a realidade única. A esfera da poesia não está fora do mundo como uma impossibilidade fantástica de um cérebro de poeta; ela quer ser precisamente o contrário, a expressão única da verdade, e é por isso que se deve arremessar para longe o adorno mentiroso daquela suposta verdade do homem civilizado. O contraste desta verdade da natureza propriamente dita e da mentira da civilização, que se comporta como se fosse a única realidade, é parecido com o contraste entre o conjunto das cousas e da cousa em si, e do mundo todo das aparências; e assim como a tragédia, com seu consolo metafísico, indica a vida eterna daquele núcleo da existência, com o desaparecimento contínuo dos fenômenos, assim o simbolismo do coro satírico expressa, num exemplo, aquela relação primitiva entre a cousa em si e a aparição, o fenômeno. Aquele pastor idílico do homem moderno nada mais é senão uma imagem da soma das ilusões de cultura que lhe valem como sendo a Natureza; o grego dionisíaco, querendo a verdade e a Natureza em sua forma suprema, vê-se transformado magicamente em sátiro.
Sob tais disposições e conhecimentos se regozija a turba entusiasmada de servidores de Dionísio, cujo poder se modifica sob seus próprios olhos, de modo a julgarem ser gênios renovados da Natureza, sátiros. A constituição posterior do coro da tragédia é a imitação artística daquele fenômeno natural, na qual se tornou necessária, então, uma separação entre espectadores dionisíacos e transformados dionisíacos. É necessário, porém, que se tenha sempre presente que o público da tragédia ática se reencontrava no coro da orquestra e que não existia, fundamentalmente, posição diversa entre público e coro; pois tudo é um grande e excelso coro de Sátiros dançantes e cantantes ou dos que por estes sátiros se fazem representar. A palavra schlegeliana deve-se-nos manifestar aqui numa razão mais profunda. O coro é o “espectador ideal”, por ele ser o único que contempla, o contemplador do mundo das visões da cena. Um público de espectadores, tal como o conhecemos, era desconhecido aos gregos. Nos teatros destes, em virtude do terraço que se elevava em arcos concêntricos, era possível a qualquer pessoa apreciar todo o mundo civilizado situado em seu redor e julgar-se, em farta contemplação, corista. Segundo este conhecimento podemos denominar o coro, em seu primeiro degrau, na tragédia primitiva, um auto-reflexo do homem dionisíaco; fenômeno que se pode efetuar o mais claramente pelo processo do ator que, com verdadeira aptidão, vê diante de seus olhos, em forma tangível, o papel que deve representar. O coro satírico é, antes de mais nada, uma visão da multidão dionisíaca, como é, por seu turno, o mundo do palco uma visão desse coro satírico; o vigor desta visão é suficientemente forte para fazer com que o olhar se torne insensível ao efeito da “realidade” e aos homens civilizados, sentados em redor. A forma do teatro grego faz lembrar um vale solitário dos Alpes; a arquitetura da cena aparece como uma imagem luminosa de nuvens, que às bacantes, que a vêem das alturas, vagando nas montanhas, aparece como uma moldura maravilhosa em cujo meio se lhes depara a imagem de Dionísio.
Aquele fenômeno primitivo artístico, que aqui mencionamos para a explicação do coro da tragédia, é quase escandaloso para nosso erudito modo de ver os elementares processos artísticos, enquanto nada pode ser mais certo do que o fato de ser o poeta somente poeta quando se vê rodeado por figuras, que diante dele vivem e agem, e cujo ser interior consegue descortinar. Por uma fraqueza estranha da aptidão moderna, vemo-nos inclinados a representar o fenômeno primitivo estético de modo demasiadamente complicado e abstrato. A metáfora não é, para o verdadeiro poeta, uma figura retórica, mas sim uma representação que lhe aparece na realidade, no lugar do conceito. O caráter não é para ele algo total, composto de traços singulares, mas uma pessoa importunamente vivaz ante seu olhar e que apenas se distingue da visão igual do pintor pela continuidade não interrompida do viver e do agir. Por que é que Homero descreve mais conspicuamente do que todos os outros poetas? Porque vê mais. Falamos abstratamente sobre a poesia, porque todos somos maus poetas. No fundo o fenômeno estético é simples. Consiste em ter-se a capacidade de ver continuamente um jogo vivaz e viver sempre rodeado por turbas de espíritos; então é-se poeta. É só sentir o impulso de transformar-se a si mesmo e falar como proveniente de outros corpos e outras almas, então é-se dramaturgo.
A excitação dionisíaca é capaz de transmitir a uma multidão esta aptidão artística, de se ver rodeada por uma tal turba de espíritos com a qual, interiormente, sabe que é unida. Este processo do coro da tragédia é o fenômeno primitivo dramático; ver-se transformado diante de si mesmo, e então agir como se, de fato, tivesse penetrado em um outro corpo, em um outro caráter. Este processo está no princípio do desenvolvimento do drama. Aqui existe alguém diferente do rapsoda que não se funde com suas imagens, mas que semelhante ao pintor as vê com olhar contemplativo fora de si; aqui há já um abandono do indivíduo em uma natureza estranha. O ditirambo é, por isso, bem distinto de qualquer outro canto coral. As donzelas que, com ramo de louros na mão, se dirigem festivamente ao templo de Apolo, cantando nesse trajeto um hino de procissão, continuam sendo o que são e conservam o seu nome civil; o coro ditirâmbico é um coro de transformados, que esqueceram o seu passado civil, sua posição social. Tornaram-se servidores eternos de seu deus e vivem fora de quaisquer esferas sociais. Todo o outro lirismo coral dos helenos nada mais é que uma monstruosa elevação do cantor único apolínico, enquanto que no ditirambo há, ante nós, uma comunidade de atores que, mesmo entre si, se consideram transformados.
O encantamento é condição de toda arte dramática. Neste encantamento se vê o entusiasta dionisíaco como sátiro e como sátiro vê, por sua vez, o deus, isto é, ele vê em sua transformação uma outra visão fora de si, como complemento apolínico de seu estado. Com esta nova visão se completa o drama.
Segundo este conhecimento, devemos entender a tragédia grega como o coro dionisíaco, que sempre se descarrega num mundo apolínico de imagens. Aquelas partes de coro, com as quais é entrelaçada a tragédia são, pode-se dizer, o seio materno de todo o diálogo, isto é, de todo o mundo da cena, do drama em si. Em diversas descargas sucessivas irradia este fundamento primitivo da tragédia aquela visão do drama. Drama que é um fenômeno proveniente do sonho, e portanto de natureza épica; mas que não representa, por outro lado, como objetivação de um estado dionisíaco, a redenção apolínica na aparência, mas sim, pelo contrário, a divisão do indivíduo e seu unificar-se com o ser primitivo. Com isto representa o drama a sensibilidade apolínica de conhecimentos e efeitos dionisíacos, sendo por isso separado da epopéia por um abismo imenso.
O coro da tragédia grega, o símbolo de toda a multidão excitada dionisiacamente, encontra nesta nossa concepção sua explicação total. Enquanto que nós, acostumados à posição de um coro no palco moderno, especialmente tratando-se de um coro de ópera, não podemos entender como aquele coro trágico dos gregos pudesse ser mais antigo, mais original e mais importante que a “ação” verdadeira — como foi tão claramente transmitido — enquanto que, por outro lado, não podemos atinar com aquela importância e primordialidade tradicionais — porque fora composto somente por seres inferiores e servis e mesmo, primitivamente, por sátiros parecidos com bodes, enquanto a orquestra diante da cena continuava sendo um enigma para nós; chegámos agora à conclusão de que a cena juntamente com a ação só era, primitivamente, imaginada como uma visão, e que o coro é a única “realidade”, que de si origina a visão, falando desta com todo o simbolismo da dança, do som e da palavra. Este coro, vê em sua visão seu senhor e mestre Dionísio, e é, por isso mesmo, o coro servil, ele vê como o deus sofre e se glorifica, não agindo ele mesmo por esta razão. Nesta posição completamente servil diante do deus, é ele a maior expressão da Natureza, por ser a expressão dionisíaca, e externa por isso, como aquela, oráculos e sentenças sábias; sendo paciente, ele é, também, o sábio, aquele que anuncia a verdade proveniente do coração do mundo. Assim se origina aquela figura fantástica e repugnante do sátiro sábio e entusiasta, que é ao mesmo tempo “o homem ingênuo”, em contraposição ao deus; imagem e reflexo da Natureza e de seus impulsos mais potentes, e símbolo da mesma, sendo ao mesmo tempo arauto de sua sabedoria e de sua arte: músico, poeta, dançarino e visionário em uma só pessoa.
Dionísio, herói verdadeiro do palco e ponto central da visão, não existe primitivamente, segundo este conhecimento e segundo a tradição no período mais antigo da tragédia, mas é só representado como existente; quer dizer que a tragédia é, naquele tempo, somente “coro” e não “drama”. Mais tarde experimenta-se mostrar o deus como algo real e de representar, visível a todos, a figura da visão e a moldura glorificante; com isto se inicia o drama em sentido mais restrito. Então é encarregado o coro ditirâmbico de excitar o ânimo dos ouvintes dionisiacamente até um certo grau, a firn de que estes, ao aparecer o herói no palco, não vejam o homem disformemente fantasiado e mascarado, mas sim uma figura de visão, nascida de seu próprio êxtase. Imaginemos Admeto a pensar com profunda cisma em sua esposa Alceste, morta recentemente, consumindo-se totalmente na contemplação espiritual da mesma; de repente se lhe aproxima uma imagem de mulher, de formas parecidas e de andar semelhante, envolta em um véu. Imaginemos a sua repentina perturbação, sua comparação violenta, sua convicção instintiva, e teremos uma analogia do sentimento com o qual, dionisiacamente excitado, o espectador via aproximar-se o deus, no palco, com cujos sofrimentos já se tinha identificado. Involuntariamente transportou toda a imagem, tremulando magicamente ante seu olhar, naquela figura fantasiada, dissolvendo a realidade desta em uma como que fantástica irrealidade. É este o estado de sonho apolínico, no qual se envolve o mundo do dia, nascendo para o nosso olhar em mutações contínuas um mundo novo, mais expressivo, mais inteligível, mais comovedor do que aquele; e mesmo assim mais sombrio. É esta a razão de reconhecermos na tragédia uma categórica contradição do estilo: Linguagem, cor, movimento, dinamismo do discurso se separam de um lado pelo lirismo dionisíaco do coro, do outro pelo mundo apolínico do sonho, como esferas de expressão totalmente diversas. Os fenômenos apolínicos em que se objetiva Dionísio não são mais um “mar eterno”, “movimento variante e viver ardente” como o é a música do coro, nem aquelas forças sentidas e não poetizadas para a imagem, nas quais sente o servidor entusiasmado de Dionísio a proximidade do deus; a clareza e a firmeza das criações épicas falam do palco. Dionísio já não se exprime mais por forças, mas sim como herói épico, com linguagem quase semelhante a Homero.

9.

Tudo o que vem à superfície na parte apolínica da tragédia grega, no diálogo, apresenta-se-nos simples, transparente, belo. O diálogo é, neste sentido, a imagem do heleno, cuja natureza se externa na dança, por se resumir na dança a maior força potencial, que se descobre na flexibilidade e volúpia dos movimentos. Assim nos surpreende a linguagem de Sófocles por sua certeza e clareza apolínicas, de modo a julgarmos ver, imediatamente, até o fundo mais recôndito de seu ser, admirados mesmo de que o caminho até este fundo se nos apresente tão curto. Prescindindo por um momento do caráter do herói, que vem à tona, tornando-se visível — e que nada mais é do que uma figura luzente, projetada numa parede escura, isto é, aparência total —, e engolfando-nos no mito, que se projeta nestes claros reflexos, experimentamos de repente um fenômeno que está em relação inversa com um conhecido fenômeno ótico. Se nós, depois de termos experimentado fixar o sol a olho nu, nos volvermos como que ofuscados pelos raios solares, então teremos manchas coloridas, escuras diante da vista; que têm a função de remédio; invertamos, e aquelas figuras luzentes do herói de Sófocles, portanto o apolínico da máscara, são produções necessárias de um olhar ao interior e ao horrível da Natureza, são, comparativamente, manchas brilhantes para a cura de um olhar ferido pela noite terrível. Apenas neste sentido podemos crer que compreendemos bem o conceito sério e importante da “alegria grega”, enquanto que encontramos, o conceito mal entendido desta alegria, em estado de satisfação não temível, na atualidade, em toda parte.
A figura mais dolorosa do palco grego, o infeliz Édipo, foi compreendido por Sófocles como o homem nobre que, a despeito de seu saber, está destinado ao erro e à desgraça, mas que, finalmente, por seu sofrimento atroz, exerce em seu redor uma força mágica e bendita, cujo efeito ainda será sentido depois de sua morte. O homem nobre não peca, é isto o que expressa o poeta profundo; por sua ação pode desaparecer toda e qualquer lei, toda ordem natural, e mesmo o mundo moral. Precisamente por este modo de agir é que se traçará um circulo mágico, mais elevado de influências, influências estas que edificarão um mundo novo sobre as ruínas do velho e tombado[20]. É isto o que o poeta, que é, ao mesmo tempo, pensador religioso, quer exprimir. Como poeta indica-nos em primeiro lugar um processo, maravilhosamente enredado, que lentamente o juiz desfaz membro por membro, para a sua própria perdição; a alegria, genuinamente helênica, nesta solução dialética é tão grande, que por este meio penetra em toda a obra uma réstia de alegria, que quebra o gume às horrorosas condições desse processo. No “Édipo em Colcha”[21] encontramos semelhante alegria, realçada, porém, em uma transfiguração interminável. Contrapondo-se ao ancião atingido por um excesso de desgraças, que é abandonado a tudo que a ele se refere, como o sofredor — encontra-se a alegria supraterrestre que, baixando de esfera divina, nos indica atingir o herói em sua conduta puramente passiva, a sua maior atividade, que excede de muito a sua própria vida, enquanto que sua atividade e trabalho na vida precedente somente o conduziram à passividade. Assim se solta lentamente o nó do processo de Édipo, que estava enredado de modo insolúvel para a vista do mortal — e a mais profunda alegria humana de nós se apodera, nesta parelha divina da dialética. Se tivermos feito justiça ao poeta com esta declaração, ainda podemos ser inquiridos se, com isto, se esgotou o conteúdo do mito, e aqui percebe-se que toda a concepção do poeta não é mais do que, justamente, aquele quadro diáfano que nos apresenta a natureza sanativa depois de um olhar ao abismo. Édipo é parricida, é o esposo de sua mãe; Édipo é aquele que decifra os enigmas da esfinge! O que é que nos revela a misteriosa trindade destes atos do destino? Há um credo popular antiqüíssimo e especialmente espalhado entre os persas, que diz que um mágico sábio somente pode nascer de um incesto; o que nós devemos interpretar imediatamente, tendo em vista o Édipo decifrador de enigmas e libertador de sua mãe, como sendo o fato que lá, onde se quebrou, mediante forças poéticas e mágicas, a separação entre presente e futuro, a lei fixa da individualização e o feitiço em si da Natureza, deve ter-se antecipado como causa uma imensa contradição da Natureza — como naquele caso o incesto —; pois como é que se poderia forçar a Natureza ao abandono de seus segredos, se não em a enfrentar vitoriosamente, isto é, pelo artificial? Este conhecimento vejo-o firmado naquela trindade horrível dos destinos de Édipo; o mesmo indivíduo que decifra o enigma da Natureza — daquela Esfinge biforme — e também obrigado, como parricida e esposo da mãe, a quebrar as leis mais sagradas da Natureza. Sim, o mito parece querer indicar que a sabedoria, e principalmente a sabedoria dionisíaca, é um horror anti-natural e que aquele, que por sua sabedoria arroja a Natureza ao abismo da destruição também em si próprio deverá sentir a dissolução da Natureza. “O gume da sabedoria se volve contra o sábio. Sabedoria é um crime perante a Natureza”. Tais frases tenebrosas profere o mito; o poeta helênico, porém, toca como um raio solar a sublime e terrível Coluna de Memnon do mito, de modo que esta principia a soar — em melodias sofocleicas!
À glória da passividade compare-se agora a glória da atividade, a qual cerca de brilho o Prometeu de Ésquilo. O que aqui teve que dizer de nós o pensador Ésquilo, o que ele porém, como poeta, somente nos deixou adivinhar por sua imagem comparativa; isto sabia revelar-nos o jovem Goethe nas palavras atrevidas de seu Prometeu:
“Aqui estou, formo homens
À minha imagem,
Uma geração que me iguale
Para sofrer e se alegrar,
E que não te respeite,
Como eu!”[22]
O homem, elevando-se ao titânico, conquista a sua própria cultura e força os deuses a se aliar com ele, por possuir na sua própria sabedoria, em sua mãe, a existência e os seus limites. O mais maravilhoso naquela poesia do Prometeu que, segundo a sua idéia fundamental é o hino da falta de religiosidade, é o traço profundamente Esquiléico de Justiça: o sofrimento imenso de “um sozinho” num lado e a imperfeição divina e mesmo a suspeita de um “Crepúsculo dos deuses” no outro, a força de ambos estes sistemas de vida, que obriga à reconciliação e à unidade metafísica — tudo isto nos faz lembrar o ponto central e capital da consideração do mundo segundo Ésquilo, que vê reinar sobre deuses e homens as Parcas como a justiça eterna.
Com a coragem admirável, com que Ésquilo coloca na sua balança justiceira o mundo olímpico, devemos ter presente que o grego pensativo tinha fundamento firme e imóvel do pensamento metafísico em seus mistérios, e que todas as suas veleidades céticas podiam descarregar-se nos deuses olímpicos. Principalmente o artista grego sentia, tendo em vista tais divindades, um sentimento obscuro de mútua dependência e é no Prometeu de Ésquilo que se acha simbolizado tal sentir. O artista titânico acreditava obstinadamente poder criar homens e, pelo menos, poder destruir deuses e isto por sua sabedoria superior que, porém, era forçado a expiar no sofrimento, eterno. O sublime “saber” do grande gênio que, mesmo com dor eterna, é pago mui exiguamente, o orgulho áspero do artista — é isto o que representa o conteúdo e a alma da poesia esquiléica, enquanto que Sófocles entoa, preludiando, no Édipo a canção vitoriosa do santo. Mas também com a interpretação que Ésquilo deu ao mito, não foi medida a pasmosa profundeza do terror; o desejo de ser do artista, a alegria do labor artístico que se opõe a toda desgraça é antes uma luminosa imagem de nuvem e céu; que se reflete em um lago de tristeza. A lenda de Prometeu é uma propriedade primitiva de toda a comunidade popular ariana e um documento para a disposição destes no trágico e ao meditativo; não é mesmo improvável que este mito tenha a mesma importância artística para o ser ariano, que tem o mito do pecado de Adão para o semita, e que entre ambos os mitos exista um grau de parentesco como entre irmão e irmã. A pressuposição daquele mito de Prometeu é o valor excessivo, que a humanidade primitiva atribui ao fogo como sendo o verdadeiro paladino de qualquer cultura que desponta. O fato, porém, é que o homem governa livremente este fogo, e que não o recebe somente como uma dádiva celeste, como raio inflamável ou incêndio solar. Isto parecia a tais contemplativos, homens-primitivos, um ultraje, um roubo à natureza divina. Assim, apresenta-nos desde já o primeiro problema filosófico uma oposição melindrosamente insolúvel entre homem e Deus e coloca-a como um bloco de pedra no limiar de toda a cultura. O melhor e o mais excelso, de que pode participar a humanidade ela o consegue por um ultraje, sendo obrigada a arcar com todas as suas conseqüências, isto é, com todo o dilúvio de sofrimentos e desgostos com que as divindades têm de afligir o gênero humano, que nobremente se eleva.
Eis um pensamento acerbo que, pela dignidade concedida ao delito, contrasta singularmente com o mito semita do pecado de Adão, no qual foram considerados, como sendo a origem do mal: a curiosidade, o fingimento mentiroso, a sedução, a concupiscência, enfim uma quantidade de afetações principalmente femininas. Aquilo que distingue a representação ariana, é a opinião elevada do pecado ativo como a real virtude de Prometeu; com que se encontrou, ao mesmo tempo, o fundamento ético da tragédia pessimista como a justificativa do mal humano, quer dizer tanto da culpa humana quanto do sofrimento causado por ela. A desgraça na essência das cousas — a que o ariano contemplativo não dá outra interpretação — a contradição no coração do mundo se lhe manifesta como a mistura de mundos diversos, por exemplo um divino e um humano, dos quais cada um, individualmente, está com a razão, que, porém, isolado do outro, é obrigado a sofrer por sua individualidade. No impulso heróico do indivíduo isolado concernente ao geral, no intento de atravessar o limite da individualização, e de querer ser o ser uno do mundo, ele sofre em si mesmo a contradição primitiva que as cousas encerram, o que quer dizer que ele comete pecados e sofre. Assim sendo, entendem os arianos o delito como homem e os semitas o pecado como mulher, assim como também é cometido o delito-primitivo[23] pelo homem, e o pecado-primitivo[24] pela mulher. Ademais diz o coro das bruxas:[25]
“Isto tão exato não podemos considerar,
Com passos mil a mulher o faz;
Mas, por mais que ela se possa apressar,
Com um só salto vai o homem atrás.
Aquele que compreende o âmago da lenda de Prometeu — isto é a necessidade do delito, oferecida ao indivíduo que titanicamente se esforça — esse também deve, logicamente, entender o anti-apolínico de tal idéia pessimista; pois Apolo deseja acalmar os indivíduos isolados, traçando linhas limítrofes entre os mesmos e lembrando repetidas vezes as mais sagradas leis universais, com suas exigências de conhecimento próprio e moderação. Para que, porém, com esta tendência apolínica, a forma não se inteiriçasse com a rigidez e frieza egípcia, para que, sob o esforço de prescrever à onda solitária o seu caminho e o seu terreno, não se acabe o movimento de todo o lago, destruía de tempos a tempos a corrente vigorosa do dionisíaco todos aqueles círculos diminutos, nos quais o principal “desejo” apolínico procurava encarcerar o helenismo. Aquela corrente do dionisíaco, engrossando repentinamente, toma sobre seus ombros aquelas pequenas ondas, assim como o irmão de Prometeu, o titã Atlas, o fez à terra. Este impulso dionisíaco de se tornar por assim dizer o Atlas de todos os isolados, e de os carregar com ombros largos, alto e mais alto, longe e mais longe, é o que há de comum entre o Prometeico e o dionisíaco. O Prometeu esquileico é, sob este ponto de vista, uma máscara dionisíaca, enquanto que naquele traço profundo de justiça, atrás mencionado, Ésquilo revela sua descendência paterna de Apolo, o deus da individualidade e dos limites da justiça. E assim poder-se-ia exprimir em fórmula inteligível a duplicidade do Prometeu esquileico, sua natureza ao mesmo tempo apolínica e dionisíaca: “Todo o existente é justo e injusto e igualmente legítimo em ambos”. Isto é um mundo! Isto se chama um mundo!

10.

É tradição incontestável que a tragédia grega tinha por assunto, em sua forma mais antiga, exclusivamente os sofrimentos de Dionísio, e que por muito tempo o único herói existente do palco era o próprio Dionísio. Mas pode asseverar-se com a mesma certeza que nunca, até Eurípides, deixou Dionísio de ser o herói trágico, e que todas as figuras célebres do palco grego, Prometeu, Édipo etc., não são mais que máscaras daquele herói primitivo Dionísio. O fato de estar por detrás de todas estas máscaras uma divindade é a razão principal para a tantas vezes admirada “idealização” daquelas figuras célebres. Alguém afirmou serem cômicos todos os indivíduos como indivíduos, sendo com isto anti-trágicos, de onde se poderia concluir que os gregos nem podiam aturar indivíduos, na cena trágica. De fato eles parecem ter sentido assim: como, aliás, aquela distinção e apreciação de valor da “idéia”, em contraposição ao “ídolo”, à imagem, é fundada profundamente no ser helênico; o Dionísio verdadeiramente real aparece em uma multiplicidade de figuras, com a máscara de um herói combatente e, por assim dizer, enredado na rede da vontade individual. Assim como agora fala e age o deus que aparece, assemelha-se ele a um indivíduo errante, esforçante e sofredor, e aparecer com tal certeza e clareza épicas é o efeito de Apolo, decifrador de enigmas, que interpreta para o coro o seu estado dionisíaco por aquele fenômeno comparativo. Em verdade, porém, é aquele herói o Dionísio dos Mistérios, aquele que sofre, aquele deus que experimenta em si mesmo as dores da individualidade, do qual narram mitos maravilhosos ter sido ele, quando menino, esquartejado pelos titãs, e ser adorado agora, neste estado, como Zagreus; no que se indica que este esquartejamento, o sofrimento propriamente dionisíaco, é igual à transformação em ar, água, terra e fogo, e que portanto devemos considerar o estado da individualidade como algo reprovável, como sendo a fonte e o fundamento primeiro de todos os padecimentos.
Do sorriso de Dionísio originaram-se os deuses do Olimpo; das suas lágrimas, os homens. Naquela existência do deus despedaçado tem Dionísio a natureza dupla de um demônio cruel e selvagem e de um soberano meigo e afável. A esperança dos epoptes[26], porém, se dirigia a um renascimento de Dionísio, que devemos entender agora pressagiosamente como o término da individualidade; a este terceiro Dionísio que vinha, ressoava o tonitroante canto de júbilo dos epoptes. É somente nesta esperança que há um raio de alegria na face do universo lacerado e despedaçado em indivíduos, como o representa o mito pela Demetra mergulhada em luto eterno e que torna a se alegrar pela primeira vez quando se lhe diz poder mais uma vez dar à luz Dionísio. Nas considerações apresentadas temos todos os componentes de uma concepção pessimista e melancólica do mundo e juntamente com esta a doutrina dos mistérios da tragédia; o conhecimento fundamental da unidade de todo o existente, a consideração da individualidade como a razão primeira do mal, a arte como a esperança alegre de que o grilhão da individualidade possa ser quebrado, como o pressentimento de unidade restabelecida.
Indicou-se atrás que a epopéia homérica é a poesia da cultura olímpica, com que ela cantou seu próprio hino vitorioso sobre os horrores da luta com os titãs. Agora, sob a influência imensa da poesia trágica, novamente se modificam “ab ovo” os mitos homéricos e demonstram nesta metempsicose, ter sido vencida neste ínterim, a cultura olímpica por uma concepção ainda mais profunda do mundo. O obstinado Titã Prometeu anunciou a seu verdugo olímpico, que um dia a sua dominação será ameaçada pelo maior perigo, caso não se una com ele em. momento oportuno. Em Ésquilo reconhecemos a aliança do Zeus assustado e receoso do seu fim. Assim se traz, tardiamente, do Tártaro à luz a época anterior aos Titãs. A filosofia da natureza nua e selvagem fita os mundos dos mitos homéricos, que passam dançando, com o semblante descoberto da Verdade. Eles empalidecem, tremem diante do olhar relampagueante desta deusa — até que o punho poderoso do artista dionisíaco os obriga a aceitar os serviços da nova divindade. A verdade dionisíaca toma a si a esfera total do mito, como simbolismo de seus conhecimentos e exterioriza estes, em parte, no culto notório da tragédia, em parte em celebrações secretas de festas dramáticas de mistério, sempre, porém, sob o velho envoltório mítico. Que força foi essa, que libertou Prometeu de seus abutres e que transformou o mito em veículo de sabedoria dionisíaca? É a força heráclica da música, a qual, chegada na tragédia à sua maior expressão, sabe interpretar o mito com nova significação, a mais profunda, que já anteriormente tivemos que caracterizar como a faculdade mais potente da música. Porque é o destino de qualquer mito paulatinamente esconder-se na estreiteza de uma pretendida verdade histórica e ser tratado, em alguma época posterior, como um fato isolado e único com pretensões históricas; e os gregos já estavam no caminho de converter inteiramente o seu sonho mítico juvenil com perspicácia e livre arbítrio, em um conto juvenil histórico-pragmático. Pois esta é a causa porque definham as religiões: quando são sistematizadas as suposições míticas de uma religião, sob os olhos severos e racionais de um dogmatismo ortodoxo, como uma soma intangível de acontecimentos históricos e quando se principia a defender, temeroso, a autenticidade dos mitos, mas a opor-se a toda a continuidade de vida e a todo viço natural dos mesmos, quando, finalmente, morre o sentimento pelo mito, aparecendo em seu lugar a exigência da religião por fundamentos históricos. Este mito, que definhava, foi agarrado pelo gênio renascido da música dionisíaca e em sua mão mais uma vez floresceu, com cores nunca dantes apresentadas, com perfumes excitantes de pressentimento ansioso de um mundo metafísico. Depois deste último brilhar ele se desmorona, suas folhas murcham e logo são perseguidas as flores desbotadas, destroçadas, e carregadas através dos ventos pelos Lucianos escarnecedores da antiguidade. Pela tragédia alcança o mito seu conteúdo mais profundo, sua forma mais expressiva; levanta-se, ainda uma vez, semelhante a um herói ferido, e todo o excesso de força, juntamente com a quietude sábia daquele que morre, arde em seu olhar com um último brilho potente.
Que querias tu, ó Eurípides malfeitor, quando procuraste compelir a servir-te mais uma vez aquele que estava expirando? Ele faleceu entre tuas mãos violentas; e então tu necessitaste de um mito imitado, mascarado, que, como o macaco de Heracles, sabia somente enfeitar-se com a ostentação doutrora. E da mesma forma que o mito morreu para ti, desapareceu para ti o gênio da música; e, mesmo saqueando com mãos ávidas todos os jardins da música, não chegaste senão a uma música imitada e mascarada. E, em virtude de teres deixado Dionísio, também te deixou Apolo. Faze com que todas as paixões se levantem de seu pouso, cativa-os para os manter a teu lado, aguça e apronta uma dialética sofística para os discursos de teus heróis. — Também os teus heróis possuem somente paixões imitadas e simuladas, exprimindo-se apenas em discursos imitados e fingidos.

11.

A tragédia grega pereceu diferentemente de todas as outras espécies artísticas irmãs, mais antigas; ela pereceu por suicídio, em virtude de um conflito insolúvel, quer dizer que morreu tragicamente; enquanto que todas aquelas expiraram em idade avançada, sofrendo a morte mais agradável e calma possível. Pois se é condigno a um feliz estado da natureza sair da vida com bela descendência e sem luta, então nos demonstraram aquelas antigas espécies artísticas tal estado feliz da natureza. Elas desapareceram lentamente, e diante de seus olhos moribundos estava já a sua descendência e levantava, com gesto corajoso, impacientemente, a cabeça. Com a morte da tragédia grega originou-se um vácuo enorme, sentido profundamente em toda parte, e assim como uma vez, no tempo de Tibério, ouviram barqueiros gregos, numa ilhota deserta, o grito comovedor “o grande Pã está morto”, soava agora um como que lamento doloroso no mundo helênico: “A tragédia está morta! A própria poesia faleceu com ela! Fora, acabemos convosco, ó Epígones depauperados e emagrecidos! Ao Hades com vós, a fim de que lá possais satisfazer-vos com as migalhas deixadas pelos antigos mestres!”
Mas quando, apesar de tudo, floresceu ainda uma vez a nova classe de arte, que venerava na tragédia sua antecessora e mestre pôde notar-se com espanto, que, em verdade, tinha os traços de sua mãe, porém aqueles traços que esta mostrara em sua longa agonia. Esta agonia da tragédia sofreu Eurípides; aquela classe de arte ulterior é conhecida como a nova comédia ática. Nela vivia a forma degenerada da tragédia, como monumento de sua morte excessivamente penosa e violenta.
Verificando esta relação, entendemos a inclinação apaixonada que os poetas da nova comédia sentiam para com Eurípides, de modo a não estranharmos o desejo de Filemone, que se deixaria enforcar imediatamente, somente para poder visitar Eurípides no Hades, se estivesse convencido de que o falecido ainda tinha o uso da razão.[27]
Querendo-se, porém, indicar rapidamente e sem pretensões de revelar algo que esgote a questão, aquilo que tem Eurípides em comum com Menandro e Filemone e que àqueles fez efeito tão espantosamente exemplar, então é suficiente dizer que o espectador foi, por Eurípides, levado ao palco. Aquele que reconheceu qual a matéria com que formavam os trágicos prometéicos anteriores a Eurípides os seus heróis, e quanto deles estava afastada a intenção de levar ao palco a máscara fiel da verdade, este também estará esclarecido sobre a tendência totalmente divergente de Eurípides. O homem vulgar subiu com ele, da platéia à cena; o espelho, em que antigamente só se expressavam as grandes e audazes feições, mostrava agora aquela fidelidade escrupulosa, que reproduz também as linhas malogradas da Natureza. Ulisses, o heleno típico da arte mais antiga, decaiu agora, sob as mãos dos poetas mais recentes, à figura de Gréculo que, a partir deste momento, como escravo doméstico bondoso e manhoso, está no ponto central do interesse dramático. Aquilo que Eurípides se atribui, como sendo seu mérito, em “AS RÃS” de Aristófanes, que libertou, por seus remédios caseiros, a arte trágica de sua pomposa corpulência, sente-se principalmente em seus heróis trágicos. Em essência o que via e ouvia agora o espectador, no palco euripidéico, era o seu sósia, e o mesmo espectador alegrava-se por este saber falar tão bem. Não se ficou nesta alegria; aprendeu-se a falar com Eurípides, e ele disto se vangloriava na disputa com Ésquilo como, por seu intermédio, aprendeu o povo a observar, discutir, tirar conclusões artisticamente e com as mais sagazes sofisticações. Foi por esta mudança na linguagem pública, que ele possibilitou a comédia mais moderna, uma vez que, desde então, não era segredo como e com que sentenças poderiam representar-se no palco os acontecimentos cotidianos. A mediania burguesa, sobre a qual Eurípides construía todas as suas esperanças políticas, tomava agora a palavra, depois de terem fixado até então o caráter lingüístico na tragédia o semi-deus e na comédia o sátiro embriagado ou semi-homem. E assim ressalta o Eurípides aristofânico, para sua glória, a maneira pela qual representou o viver e o agir comuns, cotidianos e conhecidos de todos. O fato de agora filosofar o povo todo, administrar com sagacidade inaudita as suas terras e os seus bens e manejar os seus processos, tudo isto é mérito dele e o sucesso da sabedoria, inoculada por ele neste mesmo povo.
A uma multidão de tal forma preparada e esclarecida se podia dirigir agora a nova comédia, para a qual, de certo modo, Eurípides se tornou corifeu. Apenas que desta vez teve de ser exercitado o coro dos espectadores. Logo que este adquiriu experiência no canto da espécie sonora euripidéica, levantou-se aquela espécie dramática, semelhante ao xadrez, a comédia mais moderna, com seu contínuo triunfo da esperteza e da astúcia. Eurípides porém — o corifeu — era elogiado interminavelmente; há quem se mataria para aprender ainda mais, se não soubesse terem os poetas trágicos morrido de forma idêntica à tragédia. Com ela, porém, abandonou o heleno a crença em sua imortalidade; não só a crença em um passado ideal, mas também a crença em um futuro ideal. A palavra do conhecido epitáfio “....quando ancião, leviano e caprichoso”, aplica-se também ao helenismo decrépito. O momento, a graça, a leviandade, o capricho são suas maiores divindades; a quinta classe, a classe do escravo chega agora, pelo menos segundo o caráter, a dominar; e se ainda se pode falar em “alegria grega”, então é a alegria do escravo; escravo que não sabe responder por nada difícil, ambicionar nada de elevado, que não sabe estimar nem o passado e nem o futuro, mas só o presente. Foi este brilho da “alegria grega” contra o qual se insurgiram as naturezas profundas e terríveis dos quatro primeiros séculos do Cristianismo; a elas parecia esta fuga efeminada da seriedade e do medo, esta covarde auto-suficiência no gozo cômodo, não somente desdenhável, mas como sendo o caráter eminentemente anti-cristão. E deve-se atribuir à sua influência que o conceito, que por séculos se formou da antiguidade grega, conservou com tenacidade quase insuperável aquela cor alegre de um vermelho pálido — como se nunca tivesse existido um sexto século, com sua origem da tragédia, seus mistérios, seu Pitágoras, seu Heráclito e mesmo como se não existissem as obras artísticas da época heróica, que de fato — cada uma por si — não são explicáveis se tomarmos por fundamento tal desejo decrépito de existência e alegria próprio de escravos, e que indica uma concepção totalmente diversa do mundo, como razão de existência.
Se se afirmou em último lugar, que foi Eurípides quem levou o espectador ao palco para, com isto, o tornar apto a julgar o drama, se origina a suposição de que a arte trágica anterior não conseguiu sair de uma desinteligência com o espectador, e é-se tentado a elogiar a tendência radical de Eurípides para estabelecer, entre obra de arte e público, uma relação correspondente, como sendo um progresso sobre Sófocles...
“Público”, porém, não passa de uma palavra e não é, de modo algum, uma grandeza homogênea e permanente em si. De onde viria a obrigação do artista de se acomodar a uma força, que somente encontra a sua força no número? E se, de acordo com suas aptidões e seus intentos, ele se sentir superior a todo e qualquer espectador, como poderia sentir, diante da expressão comum de todas essas capacidades a ele subordinada, mais respeito do que diante do espectador isolado, o relativamente mais apto? Em verdade não existiu artista grego que tratasse durante uma longa vida, com maior ousadia e confiança própria, o seu público de que precisamente Eurípides; ele que, mesmo quando a multidão se arrojava a seus pés, batia, com sublime obstinação, publicamente no rosto de sua própria tendência, tendência esta, com que venceu a multidão. Se este gênio tivesse tido o menor respeito pelo pandemônio do público, ele teria sucumbido sob os rudes golpes de seus fracassos, muito antes de ter atingido ao meio de sua carreira. Vemos, fazendo estas considerações, que a nossa expressão, segundo a qual Eurípides levou o espectador ao palco, a fim de capacitá-lo a julgar, somente foi provisória, e que devemos procurar um entendimento mais profundo em sua tendência. Sabe-se, no entanto, como, pelo contrário se encontravam Ésquilo e Sófocles durante sua existência, e mesmo depois dela, em posse do favor público e que, portanto, não se pode falar de um mal-entendido entre obra de arte e público, tendo em vista estes precursores de Eurípides. O que foi que afastou o artista, tão ricamente dotado e impelido ao labor contínuo, do caminho iluminado pelo sol dos maiores artistas coberto pelo céu desanuviado da graça popular? Que consideração estranha para com o espectador o guiou para junto do mesmo? Como poderia ele, em virtude de excessivo respeito por seu público, desprezar o seu público?
Eurípides sentia-se superior — e esta é a solução do enigma apresentado à multidão, — mas não a dois de seus espectadores; a multidão ele a levava ao palco, naqueles dois espectadores venerava os únicos juízes e mestres capazes de julgar toda a sua arte. Seguindo as indicações e as advertências destes, transmitia Eurípides todo o mundo de sentimentos, paixões e experiências — que até agora se apresentaram nas platéias como coro invisível em toda a representação festiva — às almas de seus heróis de palco; cedia a suas exigências quando procurava, para estes novos caracteres, a palavra nova e o som novo, em suas vozes, somente, ouvia os louvores justiceiros de sua obra, assim como o encorajador prenúncio da vitória quando se via condenado pelo julgamento de seu público.
Destes dois espectadores é um — o próprio Eurípides. Eurípides como pensador, não como poeta. Dele poder-se-ia dizer que a plenitude extraordinária de seu talento critico, — e nisso ele se assemelha a Lessing — tinha, se não produzido, pelo menos continuamente fecundado, um impulso secundário produtivo e artístico. Com este dom, com toda a celeridade e clareza de seu pensamento crítico, ia Eurípides ao teatro, esforçando-se por reconhecer nas obras primas de seus grandes antecessores, como em quadros escurecidos, traço por traço e linha por linha. E aqui aconteceu o que não pôde ser inesperado para o iniciado nos segredos profundos da tragédia esquiléica; ele percebeu em cada traço e em cada linha algo de incomensurável, uma certeza enganadora e ao mesmo tempo uma profundidade enigmática, e, podemos dizer, uma interminabilidade do fundo. Mesmo a figura mais clara ainda era dotada de uma cauda de cometa, que parecia assinalar o incerto, o não-iluminável. Lusco-fusco idêntico se estendeu por sobre a construção do drama, principalmente sobre a importância do coro. E quão duvidosa se lhe deparava a solução dos problemas éticos! Quão questionável o tratamento dos mitos! Quanto é irregular a distribuição de felicidade e desgraça! Até na linguagem da tragédia antiga havia muito de chocante, pelo menos enigmático; o principal era a pompa, que ele considerava exagerada para situações comuns, tropos e enormidades demasiadas para a simplicidade dos caracteres. Assim estava ele, meditando febrilmente, no teatro, e confessava que, como espectador, não entendia seus grandes predecessores. Se, porém, lhe valia a razão, como a raiz em si de todo o gozo e de todo o trabalho, então ele era obrigado a inquirir, olhando em redor, se ninguém opinava semelhantemente, e se não havia ninguém que confessasse também aquela incomensurabilidade. Mas a multidão, e os melhores dentre ela, tinha somente um sorriso desconfiado para ele; entretanto ninguém lhe sabia explicar porque, ao contrário de suas dúvidas e objeções, os grandes mestres permaneciam com a razão[28]. E foi neste estado atormentado que ele encontrou o outro espectador que não entendia a tragédia, e que por isso não a considerava. Unindo-se com este, ousou principiar, partindo de seu isolamento, a luta ingente contra as obras artísticas de Ésquilo e Sófocles — não com escritos polêmicos, mas como poeta dramático que contrapunha sua idéia da tragédia à idéia que lhe foi transmitida.

12.

Estacionemos um momento antes de mencionarmos essoutro espectador com seu nome, para fazermos voltar à memória aquela impressão anteriormente descrita, da duplicidade e do incomensurável, na essência da tragédia esquiléica. Lembremo-nos de nossa própria sensação estranha perante o coro e o herói trágico daquela tragédia, que não conseguimos fazer corresponder a nossos costumes nem à tradição — até reencontrar aquela duplicidade como a origem e ser da tragédia grega, como a expressão de dois impulsos artísticos entrelaçados, do apolínico e do dionisíaco.
Tirar aquele elemento dionisíaco e possante da tragédia e reedificá-la de maneira pura e nova, sobre a base da arte, do costume e da concepção do mundo não-dionisíaco — esta é a tendência de Eurípides, que se nos revela agora com claridade ofuscante.
O próprio Eurípides apresentou enfaticamente a seus contemporâneos a questão sobre o valor e o significado desta tendência em um mito. Deverá permanecer o dionisíaco? Não deverá este ser extirpado pela força do solo helênico? Certamente, diz-nos o poeta, se fosse possível; o deus Dionísio, porém, é poderoso demais. O adversário mais compreensível — como Penteu nas “Bacantes” — deixa-se inesperadamente enfeitiçar pelo mesmo e vai depois, com este enfeitiçamento, ao encontro de sua desgraça. A sentença, dos dois anciãos Cadmo e Tirésias também parece ser a sentença do poeta encanecido. A reflexão dos mais inteligentes “isolados” não faz cair por terra aquelas velhas tradições populares, aquela sempre reproducente veneração de Dionísio, e é conveniente mostrar, perante essas forças admiráveis, pelo menos, um prudente interesse, diplomaticamente velado; no que, entretanto, é sempre possível que o Deus se sinta chocado por um interesse tão fraco, transformando finalmente o diplomata — como aqui Cadmo — num dragão. Isto nos diz um poeta, que resistiu a Dionísio com força heróica, durante uma longa vida, para, no fim dela, terminar a sua carreira com a glorificação de seu adversário e o suicídio, semelhante a quem, sentindo vertigens, se arroja de uma terra, a fim de fugir ao remoinho popular horrível, e insuportável. Aquela tragédia é um protesto contra a exeqüibilidade de sua tendência; ah! ela já tinha sido executada! O maravilhoso tinha acontecido; ao desdizer-se o poeta, sua tendência já tinha vencido. Dionísio já tinha sido escorraçado do palco trágico, e isto por uma força demoníaca, que falava pela boca de Eurípides. Também Eurípides não passava, em certo sentido, de uma máscara. A divindade que falava por sua boca não era Dionísio, nem Apolo, mas sim um demônio recém-nascido, e que se chamava Sócrates. É esta a nova contradição: o dionisíaco e o socrático, assim como a obra artística da tragédia grega, nela pereceram. Mesmo que Eurípides tente agora consolar-nos, com sua retratação, ele não o consegue; o templo maravilhoso está despedaçado, jazendo por terra; de que nos servem os lamentos de seu destruidor e sua confissão ter sido este o mais belo de todos os templos? E mesmo o fato de Eurípides ter sido transformado, pelos juízes de arte de todos os tempos, em dragão — a quem satisfará esta miserável compensação?
Aproximemo-nos agora daquela tendência socrática, com a qual Eurípides combateu e venceu a tragédia esquiléica.
Qual o fim — essa pergunta devemos dirigi-la a nós mesmos — que poderia ter a intenção euripidéica em fundamentar o drama exclusivamente no não-dionisíaco, na idealidade mais elevada de sua execução? Que forma do drama restava, se não tinha que provir do lugar no qual se originou a música, naquele misterioso lusco-fusco do dionisíaco? Somente a epopéia dramatizada, em cujo território artístico o efeito trágico é, em verdade, inacessível. Não importa aqui a essência ou o conteúdo dos acontecimentos representados, e quero mesmo asseverar que teria sido impossível a Goethe, em sua projetada “Nausikaa”, causar o suicídio daquele ser idílico — que deveria ocupar todo o quinto ato — tragicamente comovedor; tão imensa é a força do épico-apolínico, que encanta, com o desejo do brilho e da redenção, as cousas mais horríveis, pela aparência e diante de nossas vistas. O poeta da epopéia dramatizada tampouco pode fundir-se totalmente com suas imagens, como o pode o rapsoda épico; ele todo é contemplação quieta, imóvel, que vê as imagens diante de si. O artista em sua epopéia dramatizada continua rapsoda no fundo recôndito; a consagração do sonho interior está em todas as suas ações, de modo a nunca se tornar ator completo.
Como se comporta perante este ideal do drama apolínico a peça euripidéica? Identicamente ao comportamento que, para com o rapsoda solene dos tempos antigos, tem aquele dos mais recentes, e que descreve o seu ser no “Ion” platônico: “Quando digo algo triste enchem-se meus olhos de lágrimas; quando porém é terrível e horroroso aquilo que exprimo, eriçam-se os meus cabelos de terror, e o meu coração palpita fortemente”. Aqui nada mais se percebe daquele épico “estar-perdido” na aparência, da frieza sem afetos do verdadeiro ator que, justamente em sua maior atividade é totalmente aparência e prazer na aparência. Eurípides é o ator com o coração palpitante, com os cabelos eriçados; como pensador socrático ele concebe o plano, como ator apaixonado o executa. Artista verdadeiro ele não é nem no conceber e nem no executar. Assim é o drama euripidéico ao mesmo tempo frio e fogoso, capacitado a congelar-se tanto como a queimar-se; é-lhe impossível atingir o efeito apolínico da epopéia, enquanto se separou, por outro lado, o mais possível dos elementos dionisíacos, necessitando agora, para produzir efeito, de novos estimulantes, que não se podem agora achar mais entre os dois únicos impulsos artísticos, o apolínico e o dionisíaco. Estes estimulantes são pensamentos frios e paradoxais — em lugar de concepções apolínicas — e afetos fogosos — em lugar de êxtases dionisíacas — e pensamentos e afetos imitados com muita realidade, e de modo algum impregnados do éter da Arte.
Se, pelo exposto, reconhecemos não ter sido possível a Eurípides fundamentar o drama exclusivamente no dionisíaco, mas que, muito pelo contrário, sua tendência anti-dionisíaca se transformou em tendência naturalista e anti-artística, então podemo-nos aproximar do ser do socratismo estético, cuja lei principal reza mais ou menos o seguinte: “tudo deve ser inteligível, a fim de ser belo”; como paralelo à frase socrática: “só aquele que sabe, é o virtuoso”. Com este cânone na mão, media Eurípides toda cousa isolada, retificando-a segundo o seguinte princípio: a língua, os caracteres, a composição dramática, a música coral. A falta poética e o retrocesso, de que, em comparação com a tragédia sofocléica, costumamos culpar Eurípides, é em sua maior parte o produto desse processo penetrante e crítico, dessa compreensão temerária. Que o prólogo euripidéico nos sirva como exemplo da produtividade daquele método racionalista. Nada pode ser mais repulsivo à nossa técnica cênica do que o prólogo no drama de Eurípides. O fato de uma pessoa, apresentando-se no início da peça, contar como ela é, o que precede a ação, o que aconteceu até então, e mesmo aquilo que irá acontecer durante o desenrolar da peça, isto classificaria um dramaturgo moderno como uma renúncia propositada e imperdoável ao efeito do interesse excitado. Sabe-se, assim, tudo que irá acontecer; quem quererá esperar até que aconteça realmente? — em virtude de aqui, de maneira alguma, ter lugar a relação enervante de um sonho revelador da verdade para com a realidade que, posteriormente, se apresentará. De modo totalmente distinto refletia Eurípides. O efeito da tragédia nunca residia no interesse épico, na incerteza excitante do “o que está acontecendo e o que irá acontecer”, mas sim naquelas cenas retórico-líricas, nas quais se transformou a paixão e a dialética do herói principal em um rio possante e caudaloso. Tudo se preparava ao “pathos” e não à ação; e aquilo que não preparava ao “pathos”, era considerado rejeitável. O que, porém, dificulta mais o abandono deleitoso a tais cenas é um elemento que o ouvinte não possui; uma lacuna na tessitura da história dos antecedentes; enquanto o ouvinte é obrigado a refletir sobre o significado desta ou daquela figura, sobre a suposição deste ou daquele conflito de inclinações e desejos, nem sua concentração e meditação sobre o sofrer e agir das personagens principais, nem o co-sofrer[29] e temer se tornam possíveis. A tragédia esquiléico-sofocléica usava meios artificiais os mais geniais para entregar, por assim dizer casualmente, nas primeiras cenas ao espectador os fios necessários para a compreensão da peça; um processo em que se reconhece aquela nobre qualidade artística, que cobre o formal necessário, fazendo-o aparecer como casual. Em todo caso acreditava Eurípides perceber uma inquietação estranha no espectador durante estas primeiras cenas, para resolver o problema dos antecedentes, de maneira que ele perdia as belezas poéticas e o pathos da exposição. É por isso que ele colocou o prólogo diante da exposição, colocando-o na boca de uma pessoa que podia merecer a confiança de todos; uma divindade garantia muitas vezes ao público o desenrolar da tragédia, e libertava-o de qualquer dúvida sobre a realidade do mito; semelhantemente à atitude de Descartes, que somente conseguira provar a realidade do mundo empírico pela apelação à veracidade de Deus e sua incapacidade de mentir. A mesma veracidade divina é necessitada mais uma vez por Eurípides no final de seu drama, para assegurar ao público o futuro de seus heróis. É esta a função do afamado Deus ex machina. Entre a visão prévia épica e a visão final, está situada a atualidade dramático-lírica, o “drama” propriamente dito.
Conforme vimos, é Eurípides como poeta, antes de tudo mais o eco de seus co­nhe­ci­men­tos ad­qui­ri­dos cons­cien­te­men­te; e é isto pre­ci­sa­mente o que lhe concede um posto tão notável na história da arte grega. Ele deve ter-se sentido freqüentemente, com relação a seu labor crítico-produtivo, como se devesse dar vida ao começo da dissertação de Anaxágoras sobre o drama, cujas palavras iniciais são: “No começo tudo estava reunido; então veio a inteligência e colocou tudo em ordem”. E assim como Anaxágoras aparecia com seu “nous”[30] entre os filósofos como o primeiro sóbrio[31] entre os ébrios, assim também Eurípides deve ter entendido as suas relações com os outros poetas da tragédia sob um prisma semelhante. Enquanto o único ordenador e guarda do Todo Universal — a nous — ainda era excluída do labor artístico, estava tudo reunido numa mescla caótica; assim devia julgar Eurípides, assim ele devia condenar os poetas “ébrios”, sendo o primeiro “sóbrio”. Aquilo que Sófocles disse de Ésquilo, que ele fazia o que estava direito, apesar de inconscientemente, não foi dito de maneira alguma no sentido de Eurípides; que só diria que Ésquilo, em virtude de trabalhar inconscientemente, produzia o errado. Também o divino Platão fala da faculdade produtiva do poeta e, quando não se trata de introspecção consciente, na maioria das vezes ironicamente, comparando esta faculdade com os dotes do adivinho e do interpretador de sonhos; pois, segundo ele, o poeta não é capaz de compor versos antes de se tornar inconsciente e desprovido de razão. Eurípides empreendeu, como empreendeu também Platão, mostrar ao mundo o oposto do poeta “irrazoável”; sua máxima estética “tudo deve ser consciente para ser belo” é, como já afirmei, a frase paralela ao socrático “tudo deve ser consciente para ser bom”. De acordo com isto, devemos considerar Eurípides como o poeta do socratismo estético. Sócrates, porém, era aquele segundo espectador, que não entendia a tragédia grega antiga, não a considerando por esta razão; aliando-se com ele ousou Eurípides ser o arauto de uma nova produção artística. Se nesta se extinguiu a tragédia antiga, então é o socratismo estético o princípio mortal; na medida, entretanto, em que a luta era dirigida contra o dionisíaco da arte antiga, reconhecemos em Sócrates o adversário de Dionísio, o novo Orfeu, que se levanta contra Dionísio e que, mesmo destinado a ser despedaçado pelas mênades do tribunal ateniense, obriga o deus prepotente à fuga; o qual, como quando fugiu de Licurgo, rei dos Édones, se pôs a salvo nas profundidades do mar, isto é, nas ondas místicas de um culto secreto, que lentamente cobria o mundo inteiro.

13.

Não passou despercebida à antiguidade contemporânea a estreita relação de tendência que Sócrates mantinha com Eurípides; e a melhor prova para tal “faro” feliz é aquela lenda, que corria em Atenas, de que Sócrates costumava auxiliar Eurípides no poetar. Ambos os nomes pronunciavam a um tempo só os partidários dos “bons tempos” passados, quando se tratava de nomear os corruptores do povo da atualidade, de cujas influências provinha que a antiga, robusta capacidade maratônica, no que diz respeito ao corpo e à alma, era vitima, cada vez mais, de esclarecimentos duvidosos com diminuição sempre maior das forças físicas e mentais. É neste tom, com indignação e desprezo, que costuma falar a comédia aristofânica sobre aqueles homens, para espanto dos mais novos que não se importam em abandonar Eurípides, mas que se admiram muito que Sócrates, como primeiro e mais insigne dos sofistas, apareça em Aristófanes como um Alcibíades da poesia, dissoluto e mentiroso, à vergonha pública. Sem defender aqui os instintos profundos aristofânicos contra tais ataques continuo a provar a relação estreita existente entre Sócrates e Eurípides, proveniente do sentimento antigo, em cujo sentido deve ser lembrado que Sócrates, como adversário da arte trágica, se abstinha de visitar tragédias, comparecendo somente quando se representava uma nova peça de Eurípides. O fato mais célebre é, entretanto, a colocação próxima dos dois nomes no dito do oráculo de Delfos, que designava Sócrates como sendo o mais sábio entre os homens, mas que julgava, outrossim, pertencer a Eurípides o segundo prêmio na competição da sabedoria.
Como terceiro desta escala de valores apontou-se Sófocles, ele que podia gabar-se, perante Ésquilo, de que fazia o justo porque sabia o que é justo; visivelmente é justamente o grau da clareza da sabedoria aquilo que distingue aqueles três homens, como sendo os três “sabedores” de seu tempo.
A palavra para tal nova e inaudita apreciação elevada do saber e do conhecimento proferiu Sócrates, quando ele viu ser o único que confessava saber nada; enquanto que, durante sua excursão crítica através de Atenas, indo ter com os maiores estadistas, oradores, poetas e artistas encontrou em todos a presunção da sabedoria. Foi com admiração que ele reconheceu que todas aquelas celebridades não tinham conhecimentos justos e seguros nem sobre seu próprio ofício, praticando este somente através do instinto. “Somente através do instinto”: com esta expressão atingimos o coração e o ponto nevrálgico da tendência socrática. Com ela condena o socratismo tanto a arte existente quanto a ética existente; para onde quer que dirija os seus olhares perscrutadores, reconhece ele a falta de compreensão e o poder de imaginação, deduzindo desta falta o erro interno e a desnecessidade do existente. Partindo deste ponto crê Sócrates dever corrigir a existência: ele só, entra, como precursor de uma cultura, arte e moral totalmente diferentes, com ar de desprezo e superioridade, num mundo cuja ponta procuraríamos atingir, e que constituiria para nós uma felicidade grande.
É esta a dúvida horrível que nos sobrevém, frente a Sócrates, o que sempre de novo nos instiga a reconhecer o espírito e a intenção desta figura mais questionável da antiguidade. Quem é que se permite, como único, negar o ser grego que, como Homero, Píndaro e Ésquilo; como Fídias; como Péricles; como Pítias e Dionísio; como o abismo mais profundo e a cultura mais elevada, está certo de nossa veneração e admiração? Qual a força demoníaca que ousa arremessar à poeira a bebida mágica? Qual o semi-deus ao qual deve exclamar o coro dos espíritos mais nobres da humanidade: “Ai! Ai! Tu o destruíste, o belo mundo, com golpe potente, ele cai, ele se desmorona!” Uma chave para a compreensão da essência do ser socrático nos oferece aquela aparição maravilhosa, em que sua inteligência ingente começava a vacilar, ele conseguia um firme ponto de apoio por uma voz divina, que em tais momentos se lhe fazia ouvir. Esta voz desaconselha toda vez que aparece. A sabedoria instintiva se revela, nesta natureza totalmente anormal, somente para, impedindo aqui e acolá, se opor ao conhecimento consciente. Enquanto que o instinto em todos os homens produtivos é a força criadora e afirmativa, manifestando-se o conhecimento, crítica e de­sa­con­se­lha­do­ra­men­te, torna-se ele um crítico, em Sócrates; o conhecimento um criador — uma verdadeira monstruosidade per defectum! E aqui verificamos um defectus monstruoso de toda disposição mística, pelo que poderíamos designar Sócrates como o não-místico específico no qual a natureza lógica, em virtude de uma superfetação; está tão excessivamente desenvolvida, como no místico aquela sabedoria instintiva. Por outro lado era negado totalmente àquele impulso de Sócrates, de voltar-se contra si mesmo; em tal corrente desencadeada ele dá a perceber uma força natural, como só a encontramos nas maiores forças instintivas, para nosso espanto atroz. Quem sentiu pelo menos o sopro daquela divina ingenuidade e firmeza da direção de vida socrática através dos escritos platônicos, este sente também como a enorme roda impulsora do socratismo lógico está, por assim dizer, atrás de Sócrates e como isto deve ser contemplado através de Sócrates, como através de uma sombra. Que ele próprio tinha conhecimento desta relação, se verifica na seriedade cheia de dignidade, com a qual ele faz valer a sua apelação divina em todo lugar e ainda diante de seus juízes. Refutá-lo nisto era tão impossível, como impossível era aprovar a sua influência que decompunha os instintos. Neste conflito insolúvel oferecia-se, depois de uma vez ter sido levado ao foro do Estado Grego, somente uma única fórmula de condenação, o desterro; como algo enigmático, inclassificável, inexplicável. Poder-se-ia tê-lo desterrado, sem que posteridade alguma tivesse tido o direito de acusar os Atenienses de uma ação ignóbil. O fato porém de ele ter sido condenado à morte e não ao desterro, parece ter conseguido o próprio Sócrates, com clareza total e sem o horror natural da morte. Ele enfrentou a morte com aquela calma com a qual, segundo a descrição de Platão, deixara, ao alvorecer, o simpósio, como último dos beberrões, a fim de começar um novo dia, enquanto que, atrás dele, permanecem nos bancos e no solo, os comensais adormecidos, para sonhar com Sócrates, o erótico verdadeiro. O Sócrates moribundo tornou-se o ideal novo, nunca dantes visto, da nobre juventude grega. Platão, o jovem grego típico, prostrou-se, diante todos, com toda a dedicação fervorosa de sua alma entusiasta, ante tal figura.

14.

Imaginemos agora o grande olho ciclópico de Sócrates voltado para a tragédia, aquele olho no qual jamais brilhou a suave loucura de arrebatamento artístico — imaginemos como era vedado àquele olho, fitar com satisfação os abismos dionisíacos — o que deveria ver este mesmo na “excelsa e afamada” arte trágica, como a denomina Platão? Algo bem irracional, com causas que pareciam desprovidas de efeitos, e efeitos que não pareciam ter causa; o todo tão colorido e diverso que devia repugnar a pessoas sensatas, sendo, no entanto, para almas excitáveis e sensíveis, um explosivo perigoso. Sabemos qual a única espécie da arte poética compreendida por ele; a fábula esópica; e isto só se pode ter dado com aquela complacência sorridente, com a qual o honesto e bom Gellert entoa na fábula da abelha e da galinha o louvor da poesia:
“Em mim reconheces a sua necessidade,
Dizer, para quem não tem muita inteligência,
Através de um quadro, a verdade.”[32]
Para Sócrates, porém, a arte trágica não parecia nem “dizer a verdade”; além de dirigir-se para “quem não tem muita inteligência”, portanto não ao filósofo; uma razão dupla para dela se manter afastado. Semelhante a Platão, incluía-a ele nas artes aduladoras, que somente representam o agradável, não o útil, exigindo, em virtude disto, de seus discípulos abstinência e separação total de tais tentações anti-filosóficas, com tal sucesso, que o jovem poeta trágico Platão queimou as suas poesias a fim de poder tornar-se aluno de Sócrates. Onde, entretanto, lutavam disposições invencíveis contra as máximas socráticas era na sua força, incluindo a violência daquele caráter imenso, ainda suficientemente grande para elevar a poesia a posições novas e até então desconhecidas.
Prova-o o acima citado Platão; ele, que decerto não ficou atrás do ingênuo cinismo de seu mestre, no tocante à condenação da tragédia e da arte em geral, teve que estabelecer uma forma artística por pura necessidade de arte, forma esta que está intimamente ligada com as espécies de arte existentes e por ele rejeitadas. A acusação principal que Platão fazia à arte antiga — ser ela a imitação de um quadro aparente, e, portanto, pertencer a um mundo inferior do que o é o mundo empírico — não podia, de maneira alguma, ser dirigida contra a nova obra de arte; vemos assim Platão esforçando-se por sair desta verdade e representar a idéia que serve de base àquela pseudo-verdade. Com isto alcançou o pensador Platão, por um rodeio, um lugar que, como poeta sempre podia considerar como sendo o seu, e partindo do qual protestavam Sófocles e toda a arte antiga, solenemente, contra tal censura.
Se a tragédia absorvera em si todas as espécies artísticas anteriores, então pôde valer o mesmo, num sentido excêntrico, do diálogo platônico o qual, proveniente de todos os estilos e formas existentes, oscila entre conto, lírico e drama, entre prosa e poesia, tendo quebrado com isto a severa lei antiga da uniformidade do estilo lingüístico. Neste caminho ainda prosseguiram os escritores cínicos, que, na maior bizarria de estilo, conseguiram atingir também a figura literária do “Sócrates furioso”, que costumavam representar em vida, em dúvidas e vacilações entre formas prosaico-métricas. O diálogo platônico foi, por assim dizer, a barca na qual se salvou a antiga poesia naufragante, juntamente com todos os seus filhos; estreitados num espaço apertado, temerosamente submissos ao único piloto — Sócrates —, navegam eles a caminho de um mundo novo, que nunca se cansou de olhar o quadro fantástico deste cortejo. Em verdade, para toda a posteridade, foi Platão o protótipo de uma nova forma artística, deu Platão o quadro exemplar do romance, que poderá ser considerado como a fábula esópica infinitamente aumentada, na qual vive a poesia, em confronto com a filosofia dialética, numa hierarquia semelhante à que foi vivida por muitos séculos, por esta mesma filosofia em confronto com a teologia: a saber, como “ancilla”. Foi esta a nova posição que a poesia foi obrigada a tomar por Platão, sob pressão de Sócrates demoníaco.
Aqui ultrapassa o pensamento filosófico a arte e a força, apegando-se estreitamente no tronco da dialética. No esquematismo lógico cristalizou-se a tendência apolínica; assim como verificámos em Eurípides algo semelhante e, ainda mais, uma transposição do dionisíaco na afeição naturalista. Sócrates, o herói dialético no drama platônico, lembra-nos a natureza parecida do herói euripidéico, que é obrigado a defender as suas ações por contra-razões e razões, e que por isso corre freqüentemente o perigo de perder o nosso trágico co-sofrer: pois quem desconheceria o elemento otimista no ser da dialética, que, em cada conclusão, festeja a sua festa de júbilo e que, somente consegue respirar em clareza fresca e convicção: o elemento otimista que, depois de penetrado na tragédia, deve vagarosamente cobrir as suas regiões dionisíacas impelindo-a necessariamente ao suicídio — com o salto mortal na comédia burguesa. Tenha-se presente a conseqüência das sentenças socráticas: “Virtude é saber; só se peca por ignorância; o virtuoso é o feliz”: nestas três formas fundamentais do otimismo temos a morte da tragédia. Pois agora o poeta virtuoso tem que ser dialético, agora se deve encontrar, entre virtude e saber, crença e moral, uma união necessária e visível; agora está rebaixada a solução transcendental de justiça de Ésquilo ao princípio superficial e insolente da “justiça poética” com seu “deus ex machina” usual.
Como aparece agora, de confronto com tal novo mundo cênico, socrático-otimista o coro e, em geral, todo o fundamento musical-dionisíaco da tragédia? Como algo casual, como uma reminiscência, talvez prescindível, à origem da tragédia; enquanto que reconhecemos que o coro somente pode ser compreendido como causa da tragédia e do trágico. Já em Sófocles se reconhece aquele embaraço no concernente ao coro — um sinal importante, demonstrando que nele principia a desmoronar-se a base dionisíaca da tragédia. Ele não ousa confiar ao coro a parte principal do efeito, mas limita o terreno deste de tal maneira, que ele parece agora quase coordenado aos artistas, como se fosse entrosado à cena pela orquestra, com que naturalmente se acha destruída, de modo total, a sua essência, mesmo que Aristóteles aplauda precisamente este modo de ver. Aquela mudança da posição do coro que Sófocles recomendou por sua prática e, se pudermos acreditar na tradição, mesmo por um escrito, constitui o primeiro passo à destruição do coro, cujas fases se sucedem com velocidade pasmosa em Eurípides, Ágato e na comédia mais recente. A dialética otimista afugenta com o açoite de seus silogismos a música da tragédia; isto é, ela destrói a essência da tragédia, essência que se pode interpretar somente como uma manifestação e configuração de estados dionisíacos, como simbolização visível da música, como o mundo de sonho da embriaguez dionisíaca.
Se, portanto, temos que admitir uma tendência anti-dionisíaca, agindo já antes de Sócrates, recebendo, porém, só com ele, uma expressão grandiosa e inaudita, então não devemos retroceder ante o quesito, qual o trajeto assinalado por uma figura como Sócrates, figura que não podemos entender, tendo em vista os diálogos de Platão, como sendo somente uma força negativa e dissolvente. E tão certo como o efeito primeiro do impulso socrático se dirigia para uma decomposição da tragédia dionisíaca, assim nos força uma experiência profunda da própria vida de Sócrates a perguntar se necessariamente existe entre o socratismo e a arte apenas uma relação antípoda e se o nascimento de um “Sócrates artístico” constitui algo contraditório em si.
Pois aquele lógico despótico tinha, no tocante à arte, aqui e acolá o sentimento de um vácuo, de um vazio, duma semi-censura, de um dever porventura descuidado. Freqüentes vezes sobrevinha-lhe, conforme narrava a seus amigos durante a prisão, a mesma figura de sonho, dizendo sempre:
“Sócrates, ocupa-te de música!”
Tranqüiliza-se ele, até seus últimos dias, com a suposição de ser o seu filosofar a maior arte das musas, não acreditando que uma divindade lhe lembraria àquela “música comum popular”. Finalmente, na prisão ele dedica-se também, para aliviar a sua consciência, à prática daquela música por ele pouco considerada. É nesse sentido que ele compõe um proêmio a Apolo, pondo em versos algumas fábulas esópicas. Isto foi algo parecido com a voz que o prevenia demoniacamente; e, o que o levou a tais experiências foi sua convicção apolínica de que ele, como um rei bárbaro, não conseguia entender uma nobre imagem divina, encontrando-se em perigo de pecar contra sua divindade — por sua incompreensão. Aquela palavra sobre a aparição do sonho socrático é o único sinal de dúvida, a respeito dos limites da natureza lógica. Acaso — assim devia inquirir-se ele — o não compreensível para mim não é logo o incompreensível? Acaso existe um Reino da Sabedoria, do qual o lógico se encontra banido? Porventura não é a Arte um mesmo necessário correlativo e suplemento da Ciência?

15.

No sentido destas últimas interrogações, cheias de pressentimento, deve revelar-se agora como se estendeu a influência de Sócrates até o momento presente, e, mais ainda, por todo o futuro, semelhante a uma sombra, que aumenta de tamanho no crepúsculo, pela posteridade, como a mesma obriga sempre novamente à reprodução da Arte — Arte já, no sentido metafísico, largo e profundo — e como, com sua própria infinidade, assegura também a eternidade desta.
Antes que se reconhecesse isto, antes de ter sido representada a dependência íntima de qualquer arte grega, dos gregos, de Homero a Sócrates, teve que nos suceder com esses gregos, o que sucedia aos atenienses com Sócrates. Quase toda época e etapa cultural procurou libertar-se alguma vez, com profundo desânimo, dos gregos, porque, ante eles, todo o realizado por esforço próprio, aparentemente muito original e sinceramente admirado, parecia repentinamente perder a cor e a vida, encarquilhando-se a uma cópia imperfeita, a uma caricatura. E, assim, sempre de novo se externa um furor concentrado contra aquele povinho arrogante, que ousava considerar todo o estranho para todos os tempos “bárbaro”. Quais são os povos, pergunta-se, que, apesar de terem somente um brilho histórico mui efêmero, instituições irrisoriamente limitadas, capacidade questionável de moral e que sendo, mesmo, marcados com vícios horrendos, fazem pretensão à dignidade e posição superior entre os demais, à posição que merece o gênio entre a multidão? Por infelicidade não se conseguiu encontrar a taça de cicuta, com que se poderia fazer desaparecer tal ser: pois todos os venenos que em si produziam inveja, calúnia e raiva, não bastaram para destruir tal esplendor que a si próprio bastava. E assim teme-se os gregos e sente-se vergonha diante deles; seja por que haja quem ame a verdade acima de tudo, e tenha também a coragem de confessar esta verdade: que os gregos mantêm em suas mãos, como condutores, a nossa e qualquer cultura; que, porém, o carro e os cavalos são quase sempre de valor insignificante e impróprios à glória de seus guias, que então gostavam de precipitar tal parelha em um abismo, que eles transpunham com o salto de Aquiles.
Para demonstrar a dignidade de tal posição de primazia também para Sócrates, bastar-vos-á reconhecer nele o tipo de uma forma de existência não conhecida até então, o tipo do homem teórico, sendo nossa primeira tarefa chegar a conhecer sua importância e seus fins. Também o homem teórico tem um prazer infinito no existente, assim como o artista; e é, como este, posto a salvo da ética prática do pessimismo e de seus olhos de lince, brilhantes na escuridão, por aquele mesmo prazer. Pois se o artista, cada vez que descobre a verdade, sempre se prende, com olhares extasiados, naquilo que ainda agora, depois do descobrimento, continua coberto, então goza e se contenta o homem teórico na cobertura derribada, tendo seu fim de prazer mais elevado no processo de um descobrimento sempre bem sucedido, efetuado por esforço próprio. Não existiria a ciência, se ela somente se importasse com aquela única deusa nua, e com nada mais. Porque então seus discípulos deveriam sentir-se como aqueles que quisessem furar a terra; compreendendo cada um destes que, com o maior e vitalício esforço, só poderia furar um pedaço pequenino de tal imensa profundeza e que este pedaço seria coberto ante seus olhares pelo trabalho do próximo, de modo a um outro fazer bem em escolher, por conta própria, um outro lugar para as suas experiências. Se agora alguém se põe a provar, até convencer, que por este caminho direto é impossível atingir os antípodas, quem quererá continuar a trabalhar nas profundezas antigas, a não ser que se contente em achar pedras preciosas ou descobrir leis da Natureza. É por esta razão que Lessing, o mais honesto homem teórico, ousou confessar que se interessava mais na procura da verdade, do que na própria verdade, com que se descobriu o segredo fundamental da ciência, para o espanto e para desgosto dos cientistas. É verdade, porém, que ao lado deste conhecimento isolado, como um excesso de honestidade, e mesmo de petulância, se encontra uma profunda representação ilusória, que veio ao mundo, em primeiro lugar, na pessoa de Sócrates — aquela crença inquebrantável, de que o pensamento, no fio condutor da causalidade, atinja os mais profundos abismos do ser, e que o pensar não somente se ache capacitado de reconhecer o ser, mas mesmo de corrigi-lo. Esta ilusão metafísica elevada é adicionada à ciência como um instinto e guia-a sempre de novo aos seus limites, nos quais ela deve transformar em arte, que é, propriamente dito, o fim deste mecanismo.
Olhemos agora, com o facho desta idéia, para Sócrates. Ele se nos apresenta como sendo o primeiro que, em virtude daquele instinto da sabedoria, sabia não somente viver, mas também, — o que é bem mais — morrer. É por isso que a imagem do Sócrates moribundo representa, como o homem isento do temor da morte pelo saber e pela razão, o brasão que, colocado sobre a porta de entrada à Ciência, lembra a todos o destino desta, i. é., fazer compreensível a existência, dando com isto uma aparência de justificação da mesma, para o que, caso não bastarem as razões, também deve servir o mito, que eu apontei agora mesmo como conseqüência necessária, e mesmo como propósito da Ciência.
Quem se tornar bem claro como, depois de Sócrates, o mistagogo da Ciência, uma escola filosófica sucede à outra, assim como se sucedem as ondas, como uma universalidade nunca presumida de avidez pelo saber no campo mais vasto do mundo civilizado e como problema indicado para todo elevadamente apto, levou a Ciência a mares altos, dos quais, desde então, ela não pôde ser completamente expulsa, como com esta universalidade se conseguiu estender por todo o globo terrestre uma rede comum do pensamento, com vistas mesmo à legalidade de um sistema solar inteiro; aquele que se representa tudo isto, incluindo a espantosamente alta pirâmide do saber da época presente, este não poderá deixar de perceber em Sócrates um dos vértices e pontos de mudança do que se chama historia universal. Pois se se imaginasse toda esta soma inumerável de força, que foi gasta para tal tendência mundial, não em serviço de reconhecimento, mas sim usado no sentido dos fins práticos, isto é egoístas, dos indivíduos e povos, então teria sido, provavelmente, em lutas de extinção comuns e em contínuas migrações dos povos, enfraquecido de tal maneira o desejo instintivo de viver que, com o costume de suicídio, o indivíduo sentisse talvez a última réstea de sentimento do dever, se ele, como o habitante das ilhas Fidji, estrangulasse como filho os seus pais, como amigo o seu amigo; um pessimismo prático que poderia mesmo produzir uma ética pavorosa de assassinato de povos inteiros por compaixão — o que, aliás, existe e existiu sempre onde não apareceu, para remédio e defesa contra aquele sopro destruidor, a Arte sob quaisquer formas, principalmente como religião e ciência. Em vista deste pessimismo prático, é Sócrates a imagem primitiva do otimista teórico que, na indicada crença na investigação da natureza das cousas, dá ao saber e ao conhecimento a força de um remédio universal, concebendo no erro o mal em si.
Penetrar naquelas razões e separar o verdadeiro conhecimento de aparência e erro, parecia ao homem socrático a função mais nobre e, até, a única ocupação verdadeiramente humana; assim como se considerava superior a todas as outras faculdades aquele mecanismo dos conceitos, juízos e conclusões, considerando-o mesmo, a partir de Sócrates, a ocupação mais elevada e mais admirável dádiva da Natureza. As mais elevadas ações morais, os sentimentos de compaixão, de sacrifício, de heroísmo e aquela tranqüilidade da alma, tão difícil de atingir, e que o grego apolínico denominava sofrósine*, foram deduzidas por Sócrates e seus sucessores, que julgavam do mesmo modo, assim como são deduzidos ainda hoje, da dialética do saber, sendo portanto consideradas ensináveis. Quem já sentiu em si o prazer de um conhecimento socrático e sente como este, em círculos sempre maiores, procura abranger todo o mundo dos fenômenos, e não sentirá, daí por diante, nenhuma ponta, que pudesse impelir à existência, mais agudamente do que o desejo de completar aquela conquista e tecer a rede de modo impenetrável. A quem assim opina aparece o Sócrates platônico como o mestre de uma forma completamente nova da “alegria grega” e felicidade de viver, que procura descarregar-se agindo, e que achará esta descarga em influências maiêuticas e educadoras sobre jovens nobres, a fim de atingir a produção final do gênio.
Agora, porém, via-se a ciência, apressada por sua imaginação vigorosa, até os seus limites, sem sequer se deter, nos quais malogra o seu otimismo, oculto na essência da lógica. Pois a periferia do círculo da Ciência tem uma infinidade de pontos, e apesar de ainda nem se poder pensar em medir totalmente o referido círculo, encontra o homem nobre e apto, ainda antes de completar a metade de sua existência e inevitavelmente, tais pontos limítrofes da periferia, onde alcança o não-elucidável[33]. Se ele percebe então assustado como a lógica se enrosca nestes limites em redor de si mesmo, acabando por morder sua própria cauda — então rompe caminho a nova forma do conhecimento, o conhecimento trágico que, para poder ser suportado, necessita da Arte como defesa e sanativo.
Olhemos, com olhos confortados os gregos e para as esferas mais elevadas do mundo que nos cerca e veremos a ânsia, que como modelo aparecia em Sócrates o insaciável conhecimento otimista, permutada em resignação trágica e necessidade artística, enquanto que a mesma ânsia — em seus graus mais baixos, se deve manifestar de maneira anti-artística e, sobretudo, detestar interiormente a arte dionisíaco-artística, como se demonstrou, por exemplo, no combate à tragédia esquiléica pelo socratismo.
Aqui batemos, com ânimo agitado, à porta do presente e do futuro. Levar-nos-á aquela “mudança” para configurações sempre novas do gênio e, precisamente, ao Sócrates que pratica música? Tecer-se-á a rede da Arte, estendida sobre a existência, seja sob nome de religião ou de ciência, sempre mais forte e delicadamente, ou está ela destinada a ser rasgada sob o redemoinhar bárbaro e intranqüilo, sob aquilo que é chamado agora “presente”? Receosos, mas não inconsolados, ficamos um momento ao lado, como os contempladores, aos quais é permitido testemunhar aquelas lutas pavorosas e aquelas “mudanças”. Ah! é a magia destas lutas que, quem as vê, também por elas deve pelejar.

16.

Procurámos esclarecer, mediante o exemplo histórico mencionado, que a tragédia morre pelo desaparecimento do espírito da música com a mesma certeza com que ela somente pode nascer por intermédio do mesmo espírito. Para suavizar o incomum desta afirmação e para, de outro lado, demonstrar a origem deste nosso conhecimento, devemos colocar-nos, com olhar franco, frente a tais fenômenos análogos, do presente; devemos entrar em tais lutas, as quais são disputadas, como acabo de dizer, entre o insaciável conhecimento otimista e a necessidade trágica de arte nas esferas mais altas de nosso mundo atual. Quero prescindir aqui de todos os impulsos contrários que, em todas as épocas, trabalhavam contra a Arte e, de modo especial contra a Tragédia, e que também na época presente se estendem de tal maneira, que de todas as artes teatrais, por exemplo, somente o ballet e a comédia florescem, num crescimento exuberante, e em flores cujo odor não seja talvez a todos agradável. Quero falar apenas da inimizade mais ilustre da consideração trágica do Universo, referindo-me com isto à ciência otimista em seu ser mais profundo, capitaneada por seu antepassado Sócrates. Em seguida enumerarei também as forças que me parecem garantir uma renascença da Tragédia, além de outras esperanças felizes para o ser alemão.
Antes de nos lançarmos àquelas lutas, envolvamo-nos com a armadura dos conhecimentos conquistados até o momento. Em contraposição a todos aqueles que desejam derivar as artes de um único princípio, como a necessária fonte de vida para toda e qualquer obra de arte, fixo o olhar naquelas duas divindades artísticas dos gregos, Apolo e Dionísio, reconhecendo neles os representantes vivos e perspícuos de dois mundos de arte, diferentes em seu mais profundo ser e em seus mais elevados intentos. Apolo a mim se apresenta como o gênio transfigurado do principii individuationis, pelo qual se pode atingir apenas a libertação, na aparência; enquanto que, sob a mística exclamação de júbilo de Dionísio, se quebra o grilhão da individualidade, estando livre o caminho que nos leva às mães do ser, ao núcleo mais interno de todas as cousas. Este contraste imenso, que se abre entre a arte plástica como sendo a apolínica e a música como sendo a arte dionisíaca, foi compreendido por um único grande pensador de tal forma, que ele, apesar de não-iniciado no simbolismo divino da Hélade, adjudicou à música caráter e origem diferentes de todas as outras artes, por ela ser, não como todas aquelas, imagem do fenômeno, mas porque representa uma imagem do próprio desejo, figura o metafísico para todo o físico do mundo. (Schopenhauer, O mundo como Vontade e Representação — I) Este conhecimento mais importante de toda a estética, com o qual, tomado num sentido profundo, principia a estética, foi ornado, para confirmação de sua verdade eterna, com o sinete de Richard Wagner, quando ele determina no “Beethoven” que a música deve ser julgada por princípios estéticos totalmente diferentes daqueles que regem as artes plásticas, e que a mesma nem pode ser julgada pela categoria da beleza, apesar de uma estética errada, guiada por arte desencaminhada e degenerada, ter-se acostumado a exigir, em virtude de acostumada àquele conceito de beleza reinante no mundo plástico, da música um efeito parecido ao das obras plásticas, a saber a excitação do gosto nas formas belas. Depois de ter tomado conhecimento desta contradição ingente, senti grande necessidade de aproximar-me do ser da tragédia grega, e com isto da revelação mais profunda do gênio grego, pois só agora cria dominar a magia e de, sobrepujando a fraseologia de nossa estética usual, poder colocar diante de minha alma o problema primitivo da Tragédia. Foi-me, em virtude disto, concedido um olhar tão estranhamente singular no helênico, que me pareceu nossa sabedoria clássico-helênica, e que tão orgulhosamente se manifesta, somente ter-se regozijado em imitações e exterioridades.
Talvez queiramos atingir aquele problema fundamental com esta pergunta: Que efeito estético se originará se aquelas potências artísticas, comumente separadas, do apolínico e do dionisíaco, entrarem em ação, uma ao lado da outra? Ou, de maneira mais breve: Como se relaciona a música com a imagem e o conceito? — Schopenhauer, elogiado precisamente neste ponto por Richard Wagner, por apresentar uma clareza e transparência impossíveis de serem ultrapassadas, exprime-se a este respeito eloqüentemente num trecho que aqui transcreverei em toda sua extensão: (Mundo como Vontade e Representação — I)
“Segundo isto, podemos considerar o mundo aparente, ou a Natureza e a Música, como duas expressões diferentes da mesma cousa, que mesmo por isso é o único que serve para a união da analogia de ambos, cujo conhecimento necessário se torna para a compreensão daquela analogia. A Música é portanto, quando considerada como expressão do mundo, um idioma universal, e que se porta ante a generalização dos conceitos assim como esta relativamente a assuntos isolados. Sua generalização, porém, não é aquela generalização vazia da abstração, mas sim de espécie bem diferente, unida com determinação geral e clara. Nisto se assemelha às figuras geométricas e aos números, que estão determinadas como as formas gerais de muitos objetos possíveis da experiência e a todos aplicáveis a priori, mas não abstratamente, e sim intuitiva e totalmente. Todos os possíveis esforços, excitações e externações do desejo, todos os acontecimentos que se passam no interior do homem, que a sabedoria faz encerrar no amplo conceito negativo sentimento, podem ser expressos pela imensa quantidade de melodias, sempre, porém, na generalidade de forma pura, sem a matéria, sempre segundo o em-si, para assim dizer a alma mais íntima da mesma, sem corpo. Em virtude desta relação estreita, existente entre a música e o ser verdadeiro de todas as cousas, torna-se explicável, também que, quando ressoa uma música apropriada para qualquer cena, ação, acontecimento, circunstância, esta nos parece revelar o sentido mais secreto, apresentando-se-nos como o comentário mais certo e mais claro, de tal maneira que aquele que se entrega totalmente à impressão de uma sinfonia, julga ver passar diante de si todos os possíveis acontecimentos da vida e do mundo. Mesmo assim ele não pode, refletindo, indicar uma parecença entre aquela seqüência de sons e o que ele tinha presente em espírito. Pois, conforme disse, a música se diferencia de todas as outras artes em não ser a imagem do fenômeno, ou melhor, da objetividade adequada da vontade, mas sim a imagem da vontade propriamente dita, representando por isso para todo o físico do mundo o metafísico, para todo o fenômeno a cousa em si. Poder-se-ia denominar, de acordo com o exposto, o mundo tanto música corporificada, quanto vontade corporificada; sendo explicável por isto como a música faz ressaltar com significação mais elevada todo quadro e toda cena da vida verdadeira e do mundo; naturalmente tanto mais quanto mais análoga é a sua música ao espírito interior do fenômeno dado. Nisto baseia-se o fato de poder subordinar-se à música uma poesia como canto, ou uma representação contemplativa como pantomima, ou ambas como ópera. Tais quadros isolados da vida humana, subordinados à linguagem comum da música, nunca são correspondentes ou ligados a ela por necessidade geral, mas somente existem na relação de um exemplo qualquer com um conceito comum, representam na certeza do verdadeiro aquilo que a música expressa na generalidade de formas puras. Pois, de um modo geral, as melodias são, como também os conceitos gerais, uma abstração da realidade. Porque esta, isto é, o mundo das cousas isoladas, fornece o representativo, o especial e individual, o caso isolado, tanto para a generalidade dos conceitos, quanto para a generalidade das melodias, generalidades que são, porém, de certo modo, opostas; opostas por os conceitos conterem apenas as formas abstraídas primeiramente da contemplação, por assim dizer a afastada casca externa das cousas, sendo portanto verdadeiras abstrações, enquanto que a música oferece o núcleo mais interno de todas as formas anteriores, quer dizer o coração das cousas. Esta relação poderia muito bem ser expressa na linguagem dos escolásticos, se se dissesse: Os conceitos são as universalia post rem, a música dá as universalia ante rem, e a realidade as universalia in re. Ser possível a relação entre uma composição e uma representação contemplativa baseia-se, como já foi afirmado, no fato de ambas serem expressões totalmente diferentes do mesmo ser interior do mundo. Quando agora, no caso isolado, se encontra verdadeiramente tal relação, isto é, que o compositor soube exprimir os impulsos da vontade, que perfazem o conteúdo de um acontecimento, na linguagem universal da música, então é expressiva a melodia da canção ou a música da ópera. A analogia encontrada entre aquelas pelo compositor, deve ser proveniente de um conhecimento imediato do ser do universo, in­cons­cien­te­mente de sua razão, e não deve ser, com intenção consciente, imitação ocasionada por conceitos, senão a música não externa a ser interior, a vontade de si mesma, imitando apenas insuficientemente seus fenômenos, como o faz toda a música em verdade imitativa”.
Entendemos então, seguindo o preceito de Schopenhauer, a música como a linguagem da vontade imediata e sentimos nossa fantasia excitada a formar aquele mundo de espíritos, que, invisível, a nós se dirige, e que, apesar disto, é tão movimentado, e corporificá-la para nós num exemplo análogo. Por outro lado adquire imagem e conceito, sob a influência de uma música que realmente corresponde a uma importância mais elevada. Efeitos de duas classes costuma exercer a arte dionisíaca sobre a potência artística apolínica: a música instiga à contemplação comparativa da universalidade dionisíaca; a música faz aparecer em seguida a imagem comparativa na importância mais elevada. Destes fatos, compreensíveis, e que não são inacessíveis para observações mais profundas, deduzo a aptidão que a música possui de gerar o mito, isto é, o exemplo mais significativo, o mito trágico, o mito que fala em alegorias de conhecimentos dionisíacos. No concernente ao fenômeno do lírico expus como a música se esforça no lírico por se manifestar em imagens apolínicas a respeito de sua essência. Imaginamos agora que a música em sua gradação mais elevada deve tentar chegar a uma representação elevada, e assim devemos considerar possível que ela encontre a expressão simbólica para a sua sabedoria propriamente dionisíaca; e onde deveríamos procurar esta expressão, se não na Tragédia, no conceito do trágico?
Não é possível deduzir da essência da Arte, como ela é entendida geralmente segundo a categoria da aparência e da beleza, o trágico se honestamente se deseja agir; só se deduzirmos do espírito da música, é que entendemos uma alegria na destruição do indivíduo. Pois é nos exemplos isolados de tal destruição que entendemos o fenômeno eterno da arte dionisíaca, que manifesta a vontade em sua onipotência por assim dizer atrás do principium individuationis a vida eterna longe de todo fenômeno e apesar de toda destruição. O prazer metafísico no trágico é uma tradução da instintiva e inconsciente sabedoria dionisíaca em linguagem da imagem; o herói, a maior aparição de vontade, é negado para nosso prazer, por ser apenas aparição, não sendo tocada com sua destruição a vida eterna da vontade. “Cremos na vida eterna”, exclama a Tragédia; enquanto que a Música é a idéia imediata desta vida. Um fim completamente diferente possui a arte do plástico: Aqui anula Apolo os sofrimentos do indivíduo pela glorificação brilhante da eternidade do fenômeno, aqui a beleza leva de vencida a dor inerente à vida, o sofrimento se faz desaparecer dos traços da Natureza, por um certo modo mentiroso. Na arte trágica e em seu simbolismo a Natureza se nos dirige com sua voz verdadeira, não dissimulada: “Sede como sou! Sob a mudança contínua dos fenômenos, a mãe primitiva eternamente geradora, a que eternamente obriga à existência, a que eternamente se contenta nesta mudança de fenômenos!”

17.

Também a arte dionisíaca deseja convencer-nos da eterna alegria da existência. Não devemos, entretanto, procurar tal alegria nos fenômenos, mas sim atrás dos fenômenos. Devemos reconhecer que tudo aquilo que existe deve estar preparado para uma dolorosa submersão[34], vemo-nos obrigados a fitar os males da existência individual — e apesar disso não nos devemos deter; um consolo metafísico tira-nos momentaneamente da agitação das figuras que sói mudarem. Somos realmente, por poucos momentos, o próprio ser primitivo, sentindo seu desenfreado desejo e prazer de existência. A luta, a dor, a destruição dos fenômenos se nos apresentam como necessárias, em vista do excesso de inúmeras formas de existência, que se apressam para tomar parte da vida, em virtude da demasiada fecundidade da vontade do mundo; vemo-nos traspassados pelo aguilhão furioso destas dores no mesmo momento em que nos tornámos uno com o imenso prazer primitivo na existência e em que pres­sen­timos a in­que­bran­ta­bi­li­dade e a eternidade deste prazer em encanto dionisíaco. Apesar do medo e da compaixão, somos os que vivem ditosamente, não como indivíduos, mas sim como o uno vivente, com cuja prolificidade nós nos fundimos.
A história da origem da tragédia grega diz-nos agora com certeza luminosa que, efetivamente, a obra de arte trágica dos gregos se originou do espírito da Música; pensamento pelo qual cremos, pela primeira vez, fazer justiça ao primitivo e prodigioso sentido do coro. Ao mesmo tempo, porém, devemos confessar, que nunca se tornou visível aos poetas gregos, e muitos menos aos filósofos gregos, a significação citada do mito trágico; seus heróis falam mais superficialmente do que agem, o mito não encontra na palavra falada a sua objetivação adequada. A estrutura das cenas e as imagens contemplativas externam sabedoria mais profundo, do que a que pode ser externada pelo poeta em palavras e conceitos. Pode-se observar o mesmo em Shakespeare, cujo Hamlet, por exemplo, se expressa, num sentido semelhante, mais profundamente do que age, de maneira a podermos deduzir aqueles preceitos de Hamlet atrás mencionados, não pelas palavras, mas sim pela apreciação e contemplação mais profunda do todo. No concernente à tragédia grega, que se apresenta como um drama oral, indiquei mesmo que aquela incongruência entre mito e palavra poder-nos-ia facilmente conduzir ao erro de julgá-la mais fútil e insignificante do que ela realmente é, presumindo, por isso, também um efeito mais superficial, do que ela deve ter tido, segundo o testamento dos antigos; pois quão depressa é esquecido que, o que não conseguiu o poeta oral, atingir a mais elevada espiritualização e idealização do mito, poderia consegui-lo a qualquer momento como músico criador! Devemos reconstruir a supremacia do efeito musical por via quase erudita, a fim de receber um pouco daquele consolo incomparável, que deve ser próprio da tragédia verdadeira. Mesmo esta supremacia musical teríamos sentido somente como tal, se fôssemos gregos; enquanto que nós, em todo desenvolvimento da música grega, — de nós conhecida e familiar e tão imensamente mais rica se a compararmos com a nossa — somente cremos ouvir uma canção juvenil, do gênio musical, entoada num tímido sentimento de força. Os gregos são, como dizem os sacerdotes egípcios, as eternas crianças, sendo também na arte trágica as crianças, que não sabem que brinquedo sublime se originou em suas mãos — e nelas será destruído.
Aquele batalhar do espírito da música pela obtenção de revelação figurativa e mítica que aumenta desde os inícios do lirismo até a tragédia ética, interrompe-se repentinamente, depois de um desenvolvimento grandioso apenas conseguido, e desaparece da superfície da arte helênica, enquanto que a acepção dionisíaca do mundo, originária deste batalhar, continua a viver nos mistérios, não deixando de atrair, nas mais maravilhosas metamorfoses e degenerações, indivíduos de natureza séria. Não se levantará ela algum dia de sua profundeza mística em forma de arte?
Ocupamo-nos aqui da questão de saber se a potência, por cuja ação contrária se extinguiu a Tragédia, terá forças suficientes para impedir a reaparição artística da Tragédia e da consideração trágica do Universo. Se a Tragédia antiga foi obrigada a sair de seu trilho em virtude do impulso dialético ao saber e ao otimismo da ciência, então serviria isto para a dedução de uma luta eterna entre o conceito teórico e o conceito trágico do universo; e somente depois de conduzido o espírito da ciência até os seus limites, sendo extinta sua exigência de validez universal por comprovância daqueles limites, poderíamos contar com o renascimento da Tragédia. Para tal forma cultural deveríamos apresentar o símbolo de Sócrates ao praticar música, no sentido que já anteriormente lhe foi dado.
Nesta comparação entendo por espírito da ciência, aquela crença na averiguação da Natureza e na força sanativa universal da sabedoria, crença que pela primeira vez surgiu na pessoa de Sócrates.
Quem estiver lembrado das conseqüências imediatas deste espírito da música, que avança incansável, representar-se-á em seguida, como o mito foi destruído pelo mesmo, e como por esta destruição foi desalojada a poesia de seu solo natural, como uma que daqui por diante carecerá de pátria. Se tivermos adjudicado, com razão, à música a força de poder gerar novamente o mito de si, então deveremos procurar o espírito da música na estrada em que ele se opõe hostilmente a esta força criadora de mitos da música. Sucede tal no desenvolvimento do novo ditirambo ático, cuja música não mais exprimiu o ser interno, a própria vontade, mas que só transmitia insuficientemente o fenômeno, numa imitação conseguida por meio de conceitos. Desta música, degenerada internamente, se apartavam as pessoas verdadeiramente musicais com a mesma aversão, que tinham da tendência assassina da arte de Sócrates. O instinto seguro de Aristófanes agiu, sem dúvida, acertadamente ao incluir o próprio Sócrates, a tragédia de Eurípides e a música dos ditirâmbicos mais modernos no mesmo sentimento de ódio, sentindo em todos estes três fenômenos os sinais de uma cultura degenerada. Mediante aquele novo ditirambo tornou-se a música, criminosamente, a imagem imitativa do fenômeno, por exemplo de uma batalha, de um temporal, tendo-se, em verdade, roubado com isto toda sua força criadora de mitos. Pois se ela procura excitar o nosso deleite apenas em nos forçando procurar analogias externas entre um acontecimento da vida e da natureza e certas figuras rítmicas e sons característicos da música, se a nossa inteligência se deve contentar com o conhecimento dessas analogias, então descemos a um estado de ânimo em que é impossível a recepção do mítico; pois o mito deseja ser entendido contemplativamente, como único exemplo de uma generalidade e verdade, que crava os olhos no infinito. A verdadeira música dionisíaca se nos depara como um tal espelho geral da vontade do mundo; aquele acontecimento contemplativo, que neste espelho se reflete, alarga-se para nosso sentimento como sendo a imagem de uma verdade eterna. De modo contrário despe-se imediatamente tal acontecimento contemplativo de todo caráter mítico, pela pintura sonora do ditirambo moderno. Agora converteu-se a música a uma pobre imagem do fenômeno, sendo por isto muito mais pobre que o fenômeno em si. Por esta mesma pobreza ela rebaixa ainda, para nossos sentimentos, o próprio fenômeno, de maneira a agora escutar-se uma música que imita uma batalha em ruídos de marcha, sons de sinais etc., sendo a nossa fantasia retida precisamente por estas superficialidades. A pintura de sons é, portanto, sob todos os pontos de vista, o inverso da força criadora de mitos da música verdadeira; por ela a imagem torna-se ainda mais pobre do que é primitivamente, enquanto que pela música dionisíaca se enriquece e alarga a imagem em figura do universo. Foi uma vitória grandiosa do espírito não-dionisíaco quando ele, no desenvolvimento do novo ditirambo, desviou a música de si mesmo, rebaixando-a a escrava do fenômeno. Eurípides, que, num sentido mais elevado, deve ser considerado como uma natureza não musical[35], é, por esta mesma razão, um adepto apaixonado da nova música ditirâmbica, usando com generosidade de larápio todas as partes de efeito e manias.
Em sentido diverso vemos a força deste espírito não-dionisíaco, e dirigido contra o mito, em ação, quando dirigirmos os nossos olhares ao predomínio da representação de caráter e ao “raffinement” psicológico na tragédia escrita a partir da época da Sófocles. O caráter não mais deve ser alargado a um tipo eterno, mas deverá, ao contrário, agir individualmente por traços artificiais e sombreados, mediante a mais fina determinação de todas as linhas, de maneira a sentir o espectador não o mito e sim a potente verdade da Natureza e a força imitativa do artista. Também aqui presenciamos a vitória do fenômeno sobre o geral e o prazer no preparado isolado, por assim dizer anatômico, já respiramos o ar de um mundo teórico, para o qual o conhecimento científico tem um valor mais elevado do que o reflexo artístico de uma regra universal. O movimento na linha do característico precipita-se. Enquanto Sófocles pinta ainda caracteres completos, pondo o mito no jugo para o seu desenvolvimento refinado, já pinta Eurípides somente grandes traços característicos isolados, que sabem externar-se em paixões violentas; na nova comédia ática existem tão só máscaras com uma expressão, velhos levianos, escravos astutos em repetição incansável. Onde está agora o espírito formador de mitos da música? O que ainda resta da música é ou música excitante, ou música recordativa, isto é, ou um estimulante para nervos indiferentes e gastos, ou pintura de sons. Para a primeira já não interessa o texto básico; já com Eurípides temos bastante desordem quando seus coros ou heróis principiam a cantar: como deveria ter sido com seus imitadores descarados!
Mais claramente, porém, externa-se o novo espírito não dionisíaco nas conclusões dos novos dramas. Na tragédia antiga sentia-se, no final, o consolo metafísico, sem o qual é inexplicável o prazer na tragédia; e mais puramente soa, talvez, no “Édipo em Colona” o sonido reconciliador de um outro mundo. Agora, tendo fugido o gênio da música da tragédia, está a tragédia morta, se a considerarmos em sentido estrito; pois de onde se deveria tirar agora aquele consolo metafísico? Procurou-se, por isso, a resolução terrestre da dissonância trágica; o herói, depois de ter sido suficientemente martirizado pelo destino, colhia num casamento feliz, em honrosas distinções divinas, os prêmios merecidos. O herói tornou-se gladiador, ao qual se concedia temporariamente a liberdade, depois de ter sido bastante atormentado e coberto de feridas. O deus ex machina tomou o lugar do consolo metafísico. Não quero dizer que a concepção trágica do mundo fosse em todas as partes e totalmente destruída pelo espírito não-dionisíaco que sobrevinha; sabemos apenas que da arte ela teve que se refugiar aos infernos, numa degeneração de culto secreto. A região mais extensa da superfície do ser helênico, todavia, era assolada pelo bafo esgotante daquele espírito, que se dá a conhecer naquela forma da “alegria grega”, sobre a qual já se dissertou anteriormente, como sendo um desejo de existência anciã e improdutiva. Esta alegria é o oposto à magnífica “ingenuidade” dos gregos mais antigos, que deve ser compreendida, depois da característica dada, como a flor da cultura apolínica, que brota de um abismo escuro, como a vitória, que a vontade helênica conseguiu por seu reflexo de beleza sobre o sofrimento e a sabedoria do sofrimento. A forma mais nobre daquela outra forma da “alegria grega”, da alexandrina, é a alegria do homem teórico; ela demonstra os mesmos sinais característicos, que acabo de deduzir do espírito do não-dionisíaco, — que combate a sabedoria e arte dionisíacas, que procura extinguir o mito, que coloca no lugar de um consolo metafísico uma consonância terrestre, e mesmo um deus ex machina próprio, a saber o deus das máquinas e cadinhos, isto é, as forças dos gênios da Natureza, conhecidas e empregadas no serviço de um egoísmo elevado, que crê em uma correção do mundo pelo saber, em uma vida guiada pela ciência, sendo capaz de encerrar o homem isolado em um círculo estreitíssimo de problemas que se podem resolver, dentro do qual este diz alegremente à vida: “Quero-te, tu mereces ser conhecida!”

18.

O fenômeno é eterno: a vontade ávida encontra sempre um meio de, por meio de uma ilusão estendida por cima de todas as cousas, manter em vida as suas criaturas, forçando-as à continuação da mesma. Este está preso pelo prazer socrático do conhecimento, e a ilusão de poder curar pelo mesmo a eterna ferida da existência, aquele é envolvido pelo véu da beleza da arte que, sedutor, se agita diante de seu olhar, aqueloutro não se pode desprender em virtude do consolo metafísico, que a vida eterna continua a correr indestrutivelmente sob o turbilhão dos fenômenos; para não falar de ilusões mais comuns e quase sempre mais fortes, que a vontade mantém de prontidão a cada momento. Aqueles três degraus de ilusão somente se referem a naturezas nobremente dotadas, que sentem com profundo desgosto as dificuldades e as cargas da existência e que somente por excitantes escolhidos podem ser tirados deste desgosto. Tudo aquilo que denominamos cultura é composto por tais excitantes, segundo a proporção das misturas temos cultura socrática, ou artística, ou trágica; ou, permitindo-se-me exemplificações históricas: há uma cultura ou helênica, ou alexandrina, ou hindu (bramânica).
Todo o nosso mundo moderno está contido na rede da cultura alexandrina e conhece como ideal o homem teórico, equipado com as mais elevadas forças do conhecimento, que trabalha no serviço da ciência, e cujo protótipo e tronco de estirpe é representado por Sócrates. Todos os nossos meios de educação têm em vista aquele ideal, qualquer existência diferente deve surgir acessoriamente, depois de trabalhar de maneira penosa, como existência permitida, mas não como existência visada. Num sentido assustador encontrava-se, assim, o homem culto somente na forma de erudito; mesmo as nossas artes poéticas tiveram que se desenvolver por imitações eruditas, e no efeito máximo da rima reconhecemos ainda a origem de nossa forma poética, proveniente de experiências artificiais com uma linguagem estranha, muito erudita. Como deveria parecer incompreensível a um grego verdadeiro, o moderno homem de cultura, em si tão compreensível, que é representado por Fausto, o Fausto que, descontente, se arrojava por todas as faculdades, aquele que se entregava ao diabo e à magia por sede de saber; que somente devemos colocar ao lado de Sócrates para efeito de comparação e para reconhecermos que o homem moderno principia a adivinhar os limites do socrático prazer do conhecimento, exigindo uma costa, enquanto ainda se encontra de permeio ao deserto e extenso mar do saber. Se Goethe diz certa vez a Eckermann, referindo-se a Napoleão: “Sim, meu caro, há também uma produtividade das ações”, então ele lembrou, de maneira ingênua e graciosa, ser o homem não-teórico algo de inacreditável e digno de admiração para o homem moderno, de tal forma que é necessária a sabedoria de um Goethe para achar compreensível e mesmo perdoável uma forma de existência tão estranhável.
E dizem que não se deve ocultar aquilo que se acha escondido no seio desta cultura socrática! O otimismo que crê ser ilimitável! E dizem que ninguém se deve assustar, se amadurecerem os frutos deste otimismo; se a sociedade que se acha impregnada até às camadas mais baixas de uma tal cultura, começar a tremer sob emoções e desejos voluptuosos; se a crença na felicidade terrestre de todos, se a crença na possibilidade de uma tal cultura geral do saber mude com o tempo na exigência ameaçadora de uma tal felicidade terrena alexandrina, na evocação do deus ex machina euripidéico! É necessário perceber: A cultura alexandrina necessita da classe de escravos para poder subsistir; mas ela nega, em sua concepção otimista da existência, a necessidade de tal classe, indo por isso de encontro a uma destruição terrível, logo que se tenha desgastado o efeito de suas belas palavras sedutoras e tranqüilizantes sobre a “dignidade do homem” e sobre a “dignidade do trabalho”. Nada há que seja mais terrível do que uma classe bárbara de escravos, que aprendeu a considerar a sua existência como injustiça e que se dispõe agora a vingar não somente a si, mas a todas as gerações passadas. Quem é aquele que se atreve a apelar, com ânimo seguro, contra tais ataques ameaçadores, para nossas religiões pálidas e cansadas, religiões de eruditos? É por isso que o mito, o absolutamente necessário para toda religião, já está paralisado em todos os lugares, dominando mesmo neste terreno aquele espírito otimista, que acabamos de designar como sendo o germe destruidor de nossa sociedade.
Enquanto o mal, adormecido no seio da cultura teórica, principia a atemorizar o homem moderno e ele, desinquieto, procura, no tesouro de suas experiências, os meios para evitar o perigo — sem ter mesmo grande confiança em tais meios —; enquanto, portanto começa a perceber suas próprias conseqüências, souberam naturezas grandes, dotadas universalmente, usar com sensatez ímpar a armadura da ciência, a fim de indicar os limites e a condicionalidade do conhecimento, negando com isto a exigência da ciência de ter validez universal e fins universais, demonstração na qual pela primeira vez se reconheceu aquela representação ilusória como tal que, em virtude da causalidade, presume poder penetrar na essência das cousas. A vitória mais difícil alcançada pela imensa coragem e sabedoria de Kant e Schopenhauer, a vitória sobre o otimismo que se mantém oculto na essência da lógica, otimismo que é por sua vez o fundamento de nossa cultura. Se este cria na possibilidade de conhecer e solucionar todos os enigmas do Universo, apoiado nas aeternae veritates, para ele induvidosas, tratando de espaço, tempo e causalidade como leis totalmente incondicionais de valibilidade comum, então revelou Kant como estes serviam somente para elevar o próprio fenômeno, a obra da Maia, à realidade única e mais elevada, e colocá-las em lugar da essência mais profunda e verdadeira das cousas, impossibilitando com isto o conhecimento desta, isto é, segundo a opinião de Schopenhauer, fazer com que o sonhador adormeça ainda mais profundamente (O mundo como vontade e representação). Com este conhecimento está introduzida uma cultura, que ouso designar como sendo a trágica. O sinal mais importante desta é o fato de ter sido o fim mais elevado mudado de ciência em sabedoria que, não se deixando enganar pelas sedutoras divagações das ciências, defronta com olhar imóvel o quadro total do Universo, procurando compreender neste o sofrimento eterno com simpatizante sentimento de amor, como sendo o sofrimento próprio. Imaginemos uma geração vindoura com este olhar impávido, com este traço entre heróico e monstruoso; pensemos e reflitamos no passo atrevido destes matadores de dragões, a audácia orgulhosa com que dão as costas a todas estas doutrinas de enfraquecimento daquele otimismo, para “viver resolutamente”, no todo e no absoluto. Não seria necessário que o homem trágico desta cultura, com sua auto-educação para a seriedade e o terror desejasse uma arte nova, a arte do consolo metafísico, a tragédia, como desejaria à Helena, que lhe pertence exclamando com Fausto:
“Não teria eu de, ó força desejada,
trazer à vida a figura única e amada!”[36]
Depois de, entretanto, ter sido abalada a cultura socrática por dois lados, conseguindo suster o cetro de sua infalibilidade somente com mãos trêmulas, de um lado em virtude do medo de suas próprias conseqüências que começa a perceber, do outro lado por ele próprio não estar mais convencido da valibilidade eterna de seu fundamento com a antiga, ingênua confiança: é um espetáculo triste ver-se precipitar, ansioso, a dança de seus pensamentos sobre figuras sempre novas, para abraçá-las, soltando-as com asco em seguida, assim como fez Mefistófeles com as sedutoras Lamias. É este o caráter daquele “rompimento”, do qual todos falam como sendo o sofrimento especial da cultura moderna: o homem teórico assusta-se de suas conseqüências, e descontente não ousa mais confiar-se à terrível corrente do gelo da existência; timidamente permanece na ribanceira, andando de cima para baixo. Nada mais deseja inteiramente. Tanto o acariciou a concepção otimista. Além disso sente que uma cultura, edificada sobre o princípio da ciência é obrigada a desaparecer desde que se torne ilógica, isto é, retrair-se e fugir de suas conseqüências. A nossa arte externa esta falta comum; debalde está acostumada a se apoiar imitativamente a todos os grandes períodos e naturezas produtores, debalde é reunir-se em torno do homem moderno toda a “Literatura Mundial”, para consolo deste, colocando-se de permeio aos estilos artísticos e aos artistas de todos os tempos, a fim de que ele lhes dê um nome, como Adão aos animais. Ele permanece o eterno esfomeado, o “crítico” sem vontade nem força, o homem alexandrino, que, no fundo, é bibliotecário e revisor, perdendo a vista miseravelmente por causa do pó de livros e de erros tipográficos.

19.

É impossível designar mais claramente o conteúdo mais profundo desta cultura socrática do que ao chamá-la a cultura da ópera: pois, para admiração nossa, foi nesse terreno que esta cultura se exprimiu, com ingenuidade própria, a respeito de sua vontade e conhecimento, se compararmos a gênese da ópera e os fatos do desenvolvimento da ópera com as verdades eternas do apolínico e do dionisíaco. Lembro, primeiramente, a origem do stilo rappresentativo e do recitativo. É crível que esta música de ópera totalmente externativa, incapaz de devoção, fosse recebida e cuidada por uma época com favor delirante, por assim dizer, como renascimento de toda música verdadeira, da qual surgiu, não faz muito, a indizivelmente elevada e sagrada música de Palestrina? E quem quereria, por outro lado, responsabilizar unicamente a suntuosidade ansiosa de distrações daqueles círculos florentinos e a vaidade de seus cantores dramáticos pelo prazer na ópera, que tão extraordinariamente se estendia? O fato de ter despertado na mesma época, e mesmo no mesmo povo, ao lado do edifício arqueado de harmonias de Palestrina, que foi edificado pela totalidade da idade média cristã, aquela paixão por um modo de falar semi-musical, sei explicar somente por uma tendência extra-artística que obrava na essência do estilo recitativo.
O cantor corresponde ao ouvinte, que deseja perceber claramente a palavra sob o canto, por mais falar do que cantar e reforçar neste semi-canto a expressão patética da palavra. Mediante o reforço do patos facilita ele a compreensão da palavra, sobrepujando aquela parte da música, que ainda restava. O perigo que o ameaça agora é conceder em tempo oportuno a preponderância à música; com que se extinguiria imediatamente o patos da palavra e da clareza, enquanto ele sente, por outro lado, continuamente, o impulso à descarga musical e à apresentação virtuosa de sua voz. Aqui vem o “poeta” em seu auxílio, dando-lhe oportunidades suficientes para interjeições líricas, para repetições de palavras e sentenças, etc. Nestas partes pode, então, descansar o cantor no elemento puramente musical, sem tomar em consideração a palavra. Esta mudança de discurso, insinuante e afetuoso, mas somente semi-cantado, e de interjeição cantada inteiramente, que se situa na essência do stilo rappresentativo, este esforço, que rapidamente varia, de agir seja sobre o conceito e a representação, seja sobre o fundo musical do ouvinte, é algo tão fora do natural, e tão repugnante aos impulsos artísticos do apolínico e do dionisíaco, de maneira idêntica, que se é obrigado a supor uma origem do estilo recitativo, que está fora de todos os instintos artísticos. Pode-se definir, segundo esta exposição, o estilo recitativo, como a mistura do recital épico e do recital lírico, e nunca a permanente mistura, que não pode ser atingida em cousas de tal modo diferente, mas sim a aglutinação exterior, que se parece com o mosaico, como algo que, no domínio da natureza e da experiência carece de exemplo. Não era esta, porém, a opinião daqueles inventores do estilo recitativo: Eles, e com eles a sua época, pensavam que tivesse sido resolvido o segredo da música antiga por meio daquele stilo rappresentativo, e que somente por meio deste fosse possível explicar a influência imensa de um Orfeu, Anfião, e mesmo da tragédia grega. O novo estilo era tomado como o renascimento da música mais valorosa, da música antiga grega. Era possível, mesmo, entregar-se à ilusão, em virtude da concepção comum, muito popular do mundo homérico, como sendo o mundo primitivo, de ter novamente descido aos primórdios paradisíacos da humanidade, nos quais também a música devia ter tido aquela insuperável pureza, força e inocência, tão ternamente narradas pelos poetas, em suas peças pastoris. Aqui vemos a formação mais íntima desta espécie artística bem moderna, da ópera: Uma necessidade imperiosa consegue, pela força, uma arte, mas é necessidade de espécie não-estética: O desejo do idílio, a crença na existência do homem artístico e bom. O estilo recitativo era tomado como a linguagem redescoberta daquele homem primitivo; a ópera como o país que novamente se descobriu, daquele ser idílico, bom ou heróico, que segue em todas as suas ações um impulso natural de arte, que, em tudo que tem a dizer, canta pelo menos um pouco, a fim de, na menor excitação sentimental, poder cantar a toda voz. Não tem importância para nós agora que, com esta imagem de criação nova do artista paradisíaco, os humanistas de outrora combateram a representação antiga, eclesiástica do homem corrompido e perdido, de maneira a poder ser entendida a ópera como o dogma de oposição do homem bom, com o qual, entretanto, se encontrou ao mesmo tempo um meio de consolo contra aquele pessimismo, ao qual se achavam principalmente naquela época de insegurança de todas as situações. É suficiente reconhecermos como o encanto verdadeiro e com ele a “gênesis” desta nova forma de arte, se situam na satisfação de uma necessidade totalmente anti-estética, na glorificação otimista do homem em si, no conceito do homem primitivo como o homem bom e artístico desde sua natureza. Este princípio da ópera modificou-se com o tempo em exigência ameaçadora e horrível, que nós, em face dos movimentos socialistas da época, não podemos deixar de ouvir. O “bom homem primitivo” quer os seus direitos: que pers­pec­ti­vas pa­ra­di­sía­cas!
Apresento ao lado desta, uma confirmação igualmente clara de minha opinião, segundo a qual a ópera está edificada sobre princípios iguais à nossa cultura alexandrínica. A ópera é o nascimento do homem teórico, do leigo crítico, não do artista: um dos fatos mais estranháveis na história de todas as artes. Foi a exigência de ouvintes bem pouco musicais que, antes de tudo, fosse necessário ouvir a palavra de maneira a poder esperar-se um renascimento da arte dos sons, se se descobrisse algum modo de cantar, no qual pudesse governar o texto sobre o contraponto, como o senhor sobre o servo. Pois as palavras são mais nobres do que o sistema harmônico que as acompanha na medida em que a alma é mais nobre do que o corpo. Com a rudeza anti-musical e leiga destas concepções foi tratada nos princípios da ópera a ligação de música, imagem e palavra; foi também no sentido desta estética que se fez, nos elegantes círculos de leigos florentinos, por poetas e cantores aí patrocinados, as primeiras experiências. O homem que nada entende de arte, gera para si mesmo uma espécie de arte, justamente em virtude de ser o homem anti-artístico por natureza. Por não conhecer a profundidade dionisíaca da música, ele troca o gozo musical em retórica inteligível, de palavra e som da paixão, no stilo rappresentativo e em voluptuosidade das artes de canto; por não poder ter visão nenhuma, obriga a entrar em seus serviços o técnico e o decorador; por não compreender a verdadeira essência do artista, cria para si, o “homem primitivo artístico”, segundo o seu gosto, isto é o homem que canta com paixão, e que recita versos. Ele sonha com uma época em que a paixão é o bastante para produzir canções e poesias: como se a afeição alguma vez tivesse sido suficiente para produzir algo de artístico. A suposição da ópera é uma crença errada no processo artístico, é aquela crença idílica de que todo homem de sentimento é artista. No sentido desta crença é a ópera a expressão de existência leiga na arte, que dita as suas leis com o otimismo alegre do homem teórico.
Se desejarmos reunir sob um conceito as duas representações agora descritas e que influíram sobre o nascimento da ópera, devemos falar da tendência idílica da ópera, no que nos vemos obrigados a empregar exclusivamente as expressões e a explicação de Schiller. A natureza e o ideal representam, diz este, assunto de tristeza, se aquela é apresentada como tendo perdido tudo, e este como impossível de alcançar. Ou ambos — natureza e ideal — são assunto de alegria se são apresentados como verdadeiros. O primeiro caso origina a elegia em significação estreita, o segundo os idílios em sentido o mais amplo. Aqui deve chamar-se imediatamente a atenção para o caráter comum de ambas as apresentações na gênese da ópera, que nelas o ideal não é sentido como não-alcançado, nem a natureza como perdida. Havia, segundo este sentimento, um tempo primitivo do ser humano, no qual este se situava rente ao coração da natureza, tendo alcançado nesta naturalidade o ideal da humanidade, em bondade e estados artísticos paradisíacos. Todos nós descendemos de tal homem primitivo perfeito, e cuja imagem fiel ainda poderíamos ser, se deitássemos fora algumas qualidades a fim de nos reconhecermos como sendo tal homem primitivo, mediante renúncia voluntária à erudição supérflua, à cultura excessivamente rica. O homem de cultura da Renascença retrocedendo, por sua imitação operesca, da tragédia grega a uma consonância de natureza e ideal, de veracidade idílica, aproveitou ele esta tragédia, assim como Dante se aproveitou de Virgílio, para ser guiado até as portas do Paraíso; enquanto que ele continuou o seu caminho, passando da imitação das formas mais elevadas da cultura grega à “restituição de todas as cousas”, à imitação do primitivo mundo artístico do homem. Que benevolência confiante de tais esforços arriscados, no seio da cultura teórica! — explicáveis somente pela crença consoladora, de que “o homem em si” é o herói eternamente virtuoso da ópera, o pastor que eternamente canta ou toca flauta, que sempre deve reencontrar-se como tal, mesmo que alguma vez se tenha perdido por algum tempo em algum lugar, sendo somente o fruto daquele otimismo, que, das profundezas da concepção universal socrática, aqui se eleva como uma doce coluna de perfume sedutor.
Os traços da ópera não apresentam, em todo caso, aquela dor elegíaca de uma perda eterna, mas sim a alegria de um reencontrar-se eterno, o prazer cômodo em uma verdade idílica que, pelo menos em qualquer momento, pode ser representada como real, no que por vezes se pressente que esta presumida verdade nada mais é senão uma frivolidade fantástica e inútil à qual aquele, que saberia medi-la na seriedade horrível da natureza verdadeira e compará-la com as verdadeiras cenas primitivas da humanidade, devesse exclamar com asco: Fora com o fantasma! Apesar disso seria engano supor que tal ser frívolo, como a ópera, possa ser afugentado como um espectro, por meio de um grito forte, apenas. Aquele que deseja destruir a ópera, deve lutar contra aquela alegria alexandrina, que nela tão ingenuamente se expressa sobre sua representação predileta, cuja forma artística própria é ela mesma. O que se deve esperar, no entanto, para a própria arte da ação de formas artísticas cujas origens nem sequer se situam em domínio estético, que, muito pelo contrário, conseguiu passar de esfera semi-moral ao terreno artístico, e que só algumas vezes conseguiu esconder sua origem híbrida? De que seivas se alimenta este ser parasitário de ópera, senão da arte verdadeira? Não seria de se supor que, sob suas seduções idílicas, sob suas artes adulatórias alexandrinas, degenere o problema mais elevado e verdadeiramente sério da arte — remir a vista do olhar ao horror da noite e salvar o sujeito pelo bálsamo sanativo da aparência das agitações e excitações da vontade — a uma tendência do divertimento, vazia e recreativa? O que será feito das verdades sempiternas do dionisíaco e do apolínico, como as que apresentei na essência do stilo rappresentativo, numa tal mistura de estilos? Onde se considera a música como servo, o texto como senhor, onde se compara a música com o corpo, o texto com a alma? Onde o fim mais elevado pode, talvez, ser representado por uma pintura musical perifrástica, assim como antigamente no ditirambo ático? Onde se tira à música a sua verdadeira dignidade, de ser o espelho universal dionisíaco, de maneira a só lhe restar um caminho, imitar a essência da forma da aparência, como escrava da aparência, e incitar com o jogo das linhas e proporções um deleite externo. A uma consideração severa verifica-se a coincidência desta influência desastrosa da ópera sobre a música com toda a evolução moderna; o otimismo escondido na gênese da ópera e na essência da cultura por ela representada, conseguiu em rapidez alarmante despir a música de suas considerações universais dionisíacas e marcá-la com um caráter formal e alegre; mudança com que se pode, talvez, comparar a metamorfose do homem esquiléico ao homem da alegria alexandrina.
Se, porém, relacionámos, com toda razão na exemplificação aqui indicada, o desaparecimento do espírito dionisíaco com a mudança e degeneração muito visível, mas até agora inexplicável, do homem grego — que esperanças devem ressurgir em nós, quando os auspícios mais seguros nos certificam de um processo contrário, do acordar paulatino do espírito dionisíaco em nosso mundo atual? Não é possível admitir que a força divina de Heracles se enfraqueça eternamente em voluptuosa servidão a Onfale. Do fundo dionisíaco do espírito alemão elevou-se uma força, que nada tem em comum com as condições primitivas da cultura socrática, não sendo explicável nem desculpável por estas, e que, muito pelo contrário, é sentida por esta cultura, como o horrível-inexplicável[37], o prepotente-hostil[38], a música alemã, como deve ser entendida em sua poderosa marcha solar de Bach a Beethoven, de Beethoven a Wagner. O que poderá fazer o socratismo desejoso de conhecimentos, no melhor dos casos, com este demônio que se eleva de profundezas insondáveis? Nem com os ornatos e arabescos da melodia de ópera, nem com a ajuda da tábua aritmética da fuga e da dialética de contraponto se consegue achar a fórmula em cuja luz potente se possa submeter e forçar a falar um tal demônio. Que espetáculo quando nossos estetas, com a rede de uma “beleza” a eles pertencente, procuram bater e pegar o gênio da música, que diante deles se move em vida inconcebível, sob movimentos que não desejam ser julgados nem segundo a beleza eterna, nem segundo o excelso. É necessário examinar de perto tais favorecedores da música quando incansavelmente exclamam beleza! beleza! para ver se eles então se portam como os filhos prediletos da natureza, criados e formados no seio da beleza, ou se procuram, muito ao contrário, uma forma enganosa e encobridora para a própria rudeza, uma desculpa estética para a própria sobriedade, pobre de sentimentos: no que, por exemplo, penso em Otto Jahn. Deverá, porém, tomar cuidado o mentiroso e o hipócrita com a música alemã; é justamente ela que é, de entre a nossa cultura inteira, o único límpido, puro e ressonante espírito de fogo, do qual e para o qual, como no ensinamento do grande Heráclito de Éfesus, todas as cousas se movimentam em duplo trajeto circulatório: tudo que é chamado agora cultura, formação, civilização, deverá apresentar-se alguma vez, diante do infalível juiz Dionísio.
Recordemo-nos como foi possibilitado ao espírito da filosofia alemã, proveniente da mesma fonte, por meio de Kant e de Schopenhauer, destruir o contente prazer de existência do socratismo científico por comprovância de seus limites, como por tal comprovância se iniciou a consideração muito mais profunda e séria das questões éticas e da arte, que por nós podem ser consideradas como a sabedoria dionisíaca encerrada em conceitos. Qual o caminho que nos designa o mistério da unidade entre a música alemã e a filosofia alemã, se não o caminho de uma nova existência, sobre cujo conteúdo nos podemos informar apenas por analogias helênicas? Pois este valor imenso conserva para nós, que nos achamos colocado entre duas diferentes formas de existência, o exemplo helênico, por nele também se imprimirem em formas clássico-instrutivas todas aquelas passagens e lutas: com a diferença de que nós atravessamos em ordem inversa as grandes épocas principais do ser helênico analogicamente, parecendo, por exemplo, marcharmos agora da época alexandrínica de volta ao período da tragédia. Em nós vive o sentimento de que o nascimento de uma época trágica para o espírito alemão nada mais representa que um retorno a nós mesmos, um venturoso reencontro depois de forças horríveis, obrando de fora, terem escravizado, sob sua forma, aquele que vivia em não socorrível estado de barbárie da forma. Agora, afinal, ele pode, depois de sua volta à fonte primitiva do seu ser, atrever-se a marchar intrépido e livre diante de todos os povos, sem estar preso pelo cordão de uma civilização românica, se somente sabe aprender de um povo, o que já por si constituiria uma grande glória e uma raridade que distingue — do povo grego. E quando necessitaríamos mais destes mestres excelentíssimos do que agora, quando assistimos ao renascimento da tragédia e estamos em perigo de ignorar a sua procedência e de explicar o seu destino?

20.

Deveria se julgar uma vez, sob a supervisão de um juiz imparcial, em que época e em que homens tem lutado com maior força o gênio alemão para aprender dos gregos; e, mesmo que suponhamos com toda confiança que à nobre luta cultural de Goethe, Schiller e Winckelmann se deva conferir esta distinção, devemos, entretanto, acrescentar que desde aquela época e desde as primeiras influências daquela luta; o esforço para alcançar num mesmo trajeto os gregos e a cultura se tornou incompreensivelmente cada vez mais fraco. Deveremos, a fim de não desesperarmos completamente do espírito alemão, julgar por isso que, em algum ponto capital, também aqueles lutadores não conseguiram penetrar até o núcleo do ser helênico e de estabelecer um laço permanente e amoroso entre as culturas alemã e grega? — De maneira que, talvez, um conhecimento inconsciente de tal falta, despertasse também nos indivíduos de natureza séria a dúvida, se eles, após tais predecessores, pudessem ultrapassar estes no caminho da formação cultural, chegando até a meta. É por isso que desde aquele tempo vemos degenerar o juízo sobre o valor dos gregos para a cultura; a expressão de compadecida superioridade faz-se ouvir nos mais variados acampamentos do gênio e do anti-gênio; em outra parte ainda brinca uma eloqüência, totalmente desprovida de efeito, com a “harmonia grega”, a “beleza grega”, a “alegria grega”. E precisamente nos círculos, que deveriam considerar como seu dever extrair incansavelmente o que no leito do rio grego se encontra, para felicidade da cultura alemã, nos círculos dos professores universitários, foi que melhor se aprendeu a acomodar-se em tempo e de modo agradável com os gregos, indo-se, não raras vezes, até o abandono cético do ideal helênico e à inversão total dos verdadeiros propósitos de todos os estudos da antiguidade. Quem, naqueles círculos, não se esgotou totalmente no esforço de ser um revisor de confiança de textos antigos ou um filólogo microscópico de história natural, este procure assimilar também a antiguidade helênica, ao lado de outras antiguidades, “historicamente”, mas seguramente, segundo o método e as maneiras superiores de nossa atual literatura histórica erudita. Se, por isso, a própria força de formação das universidades nunca esteve mais baixa e fraca do que atualmente, se o “jornalista”, o escravo do papel, no dia de hoje, levou de vencida o professor superior no tocante à formação cultural, e se a este último não resta senão a metamorfose já tantas vezes experimentada, de mover-se agora também na linguagem do jornalista, com a “elegância fácil” desta esfera, como uma alegre e instruída borboleta — com que confusão contemplarão os assim instruídos da atualidade aquele fenômeno, que somente poderia ser compreendido analogicamente pelo conteúdo o mais profundo do gênio helênico, que até momento não foi compreendido, — o renascimento do espírito dionisíaco e o renascimento da tragédia! Não existe outro período artístico em que a chamada cultura e a verdadeira arte se enfrentassem tão indiferente e tão inamistosamente, como na atualidade. Entendemos porque uma instrução tão fraca odeia uma arte verdadeira: é porque a primeira teme que da segunda venha a sua destruição. Não se haveria de consumir, porém, uma classe inteira de cultura, ou seja a socrático-alexandrina, para vir terminar em uma ponta tão delicada e débil como é a instrução atual! Se heróis, como Schiller e Goethe, não conseguiram arrombar aquela porta encantada que leva à encantada montanha helênica; se, apesar de seu corajoso esforço, não conseguiram passar além daquele olhar ansioso, que a Ifigênia de Goethe lança no Tauris bárbaro à pátria, por sobre o mar, qual a esperança que restaria aos epígonos de tais heróis, se não se abrisse repentinamente, por si, num lado ainda não tocado pelos esforços da cultura atual, a porta — sob o soar místico da re-despertada[39] música de tragédia?
Que ninguém tente diminuir a nossa crença em um futuro renascimento da antiguidade helênica; pois somente nela encontramos as esperanças para uma renovação e purificação do gênio alemão pelo encanto de fogo da música. Saberíamos enumerar algo mais que, na desolação e no cansaço da cultura atual, nos despertaria quaisquer esperanças consoladoras para o futuro? Debalde procuramos uma raiz fortemente ramificada, um pedaço de terra fértil e sã; somente encontramos pó, areia, entorpecimento, consumação. Nesta situação não poderia um indivíduo, isolado inconsolavelmente, escolher um símbolo melhor do que o cavaleiro acompanhado da morte e do diabo, como foi desenhado por Dürer; o cavaleiro armado, com o olhar brônzeo, duro, que sabe tomar seu caminho de desgraças sem se perturbar com a presença do companheiro horrível, apesar de desesperançado, sozinho com ginete e cão. Tal cavaleiro düreriano foi o nosso Schopenhauer: toda esperança lhe faltava, mas ele exigia a verdade. Não há quem o iguale.
Mas como se modifica re­pen­ti­na­men­te o deserto, tão te­tri­ca­mente descrito, de nossa cultura cansada, quando é tocado pelo encanto dionisíaco! Um vendaval leva todo o inerte, podre, quebrantado, o envolve em vermelha nuvem de poeira e o leva pelos ares, semelhante a um abutre. Confuso, o nosso olhar procura o desaparecido: pois o que vê subiu como de um alçapão à luz dourada, tão pleno e verde, tão exuberante e vivo, tão ansioso e incomensurável! A tragédia se situa de permeio a esta superabundância de vida, dor e prazer, em encantamento celestial, ela atenta em uma canção longínqua, merencória — que fala das mães do ser, cujos nomes são: ilusão, vontade, dor. — Sim, meus amigos, acreditai na vida dionisíaca e na renascença da tragédia! O tempo do homem socrático passou: coroai-vos com heras, tomai em vossas mãos o bastão de Tirso e não vos admireis se tigre e pantera se deitam, acariciantes, a vossas pés. Ousai ser agora homens trágicos: vós sereis redimidos. Vós deveis guiar a marcha triunfal dionisíaca da Índia à Grécia! Armai-vos para combates rudes, mas acreditai nos milagres de vosso Deus!

21.

Retornando destes sons exortativos à disposição de espírito que convém ao homem contemplativo, repito que somente poderá ser aprendido dos gregos o que representa o alcance de um tal milagroso acordar repentino para fundamento mais interno de um povo. É o povo dos mistérios trágicos que bate as batalhas persas; e o povo que fez aquelas guerras, que necessita da tragédia como bebida sanativa. Quem poderia supor neste povo, depois de ter sido excitado por várias gerações, pelos estremecimentos mais violentos do demônio dionisíaco, uma efusão tão igualmente poderosa do mais simples sentimento político, dos instintos patrióticos mais naturais, do primitivo e viril desejo de lutar? Nota-se em cada propagação importante de excitações dionisíacas como a soltura dionisíaca das algemas do indivíduo se faz sentir primeiramente em prejuízo dos instintos políticos que chega até à indiferença e mesmo à inimizade, tão certo como, de outro lado, o Apolo, formador de estados, é também o gênio do principii individuationis, e que estado e patriotismo não podem viver sem afirmação da personalidade individual. Partindo do orgiasmo há, para um povo, somente um caminho, o caminho ao budismo hindu, o qual, a fim de poder ser suportado com seu desejo ao nada, necessita daqueles raros estados extáticos com sua elevação sobre lugar, tempo e indivíduo; assim como estes, por seu turno, exigem a filosofia que ensine a vencer o indescritível desgosto nos estados intermediários por uma representação. De modo igualmente imperioso segue um povo, partindo da validez incondicional dos impulsos políticos, uma trilha da maior secularização, cuja expressão mais grandiosa, mas também mais assustadora, é constituída pelo imperium romano.
Colocados entre a Índia e Roma e impelidos à escolha sedutora, conseguiram os gregos descobrir, com pureza clássica, uma terceira forma, não para demorado uso próprio, mas, justamente por isso, para a eternidade. Pois é certo que os prediletos dos deuses morrem cedo, mas igualmente certo é que, depois, eles vivem eternamente com os deuses. Que não se exija do mais nobre a durabilidade do couro; a durabilidade sólida, como, por exemplo, era própria do impulso nacional romano, não pertence, provavelmente, aos predicados necessários da perfeição. Se, porém, inquirirmos sobre o remédio que possibilitou aos gregos de, durante seu tempo máximo, com a potência extraordinária de seus impulsos dionisíacos e políticos, não se esgotarem, nem por meditação extásica, nem por um desejo destruidor a potência e honra mundiais, mas sim de alcançarem aquela mistura maravilhosa, como a tem um vinho nobre, que ao mesmo tempo dispõe o ânimo à excitação e à contemplação, então é necessário lembrarmo-nos da força imensa da tragédia, que excitava e purificava toda a vida popular. Sentiremos o maior valor desta, somente quando ela se nos deparar, como se deparou aos gregos, constituindo o conteúdo de todas as forças profiláticas, como a mediadora que faz sentir o seu domínio entre as qualidades mais fortes e mais perigosas do povo.
A tragédia absorve o supremo orgiasmo musical, de maneira a aperfeiçoar, tanto entre os gregos como entre nós, a música em si; coloca depois, porém, ao seu lado o mito e o herói trágicos que então, igualando um titã poderoso, toma sobre seus ombros todo o mundo dionisíaco, dele nos libertando. De outro lado este mundo, pelo mesmo mito trágico, na pessoa do herói trágico, sabe libertar-se do impulso ávido a esta existência, recordando-nos uma outra existência e um prazer maior, para os quais se prepara o herói combatente por suas derrotas, não por suas vitórias. A tragédia coloca um exemplo elevado entre a validez universal de sua música e o ouvinte capacitado de com­preen­dê-la dio­ni­sia­ca­mente, — o mito, — e desperta naquele a aparência da música ser nada mais do que um elevadíssimo meio de representação para a vivificação do mundo plástico do mito. Confiando nesta nobre ilusão, pode ela, agora, movimentar os seus membros para a execução da dança ditirâmbica e entregar-se, descuidada, a um sentimento entusiástico de liberdade, sem o qual não poderia regalar-se como música em si, isto é, sem aquela ilusão. O mito nos resguarda da música, assim como lhe dá, por outro lado, a maior liberdade. Por isso, pagando a prenda, empresta a música ao mito trágico uma importância tão enérgica e convincente como, sem aquela ajuda, nunca poderia ter sido alcançada pela palavra e pela imagem. O ouvinte trágico, principalmente sente, por meio dela, aquele pressentimento seguro do prazer mais elevado, que é atingido por um caminho que atravessa ruína e negação, de modo a julgar ouvir distintamente o abismo mais profundo de todas as cousas.
Se consegui dar a esta re­pre­sen­ta­ção difícil, com as últimas frases, uma expressão somente temporária, que apenas a poucos se torna imediatamente compreensível, então não posso deixar de, também nesta parte, excitar os meus amigos para uma outra prova e de pedir-lhes que se preparem, num só exemplo de nossa experiência conjunta, para a compreensão do pensamento integral. Neste exemplo não me posso referir àqueles que aproveitam as imagens dos acontecimentos cênicos, as palavras e afeições das pessoas que tomam parte na ação, para, com esta ajuda, se aproximarem do sentimento musical, pois todos estes não entendem a música como língua materna e, apesar desta ajuda, não penetram senão nas ante-salas da percepção musical, sem jamais poderem tocar os santuários íntimos desta; alguns destes, como por exemplo Gervinus, não alcançam nem aquelas ante-salas. Dirijo-me somente a estes que, parentes imediatos da música, nela têm, por assim dizer o seu seio maternal, e que só se relacionam com assuntos comuns por meio de inconscientes relações musicais. A estes músicos de verdade me dirijo perguntando se eles se podem imaginar pessoas que consigam perceber o terceiro ato de “Tristão e Isolda”, sem qualquer ajuda de imagem ou palavra, como uma composição sinfônica ingente, sem asfixiar-se sob excitação temerosa de todas as asas da alma? Uma pessoa que, como no caso presente, tenha colocado o ouvido como que ao centro[40] da vontade universal, que sente a ansiedade terrível de ser como a corrente tonitroante ou como o ribeirinho manso e calmo que daqui se derrama em todas as veias do mundo, tal homem não deveria estalar de repente? Deveria ele suportar, na plenitude miserável e cristalina do indivíduo humano, o eco de intermináveis exclamações de júbilo e dor, que partem do “espaço infindo da noite universal”, sem procurar refugiar-se, ao ouvir tais pastorelas da metafísica, em sua pátria primitiva? Se tal obra, porém, pode ser percebida como um todo, sem negação da existência individual, se tal obra pôde ser criada sem aniquilar o seu criador — onde é possível encontrar a solução de cousa tão contraditória?
Aqui se infiltra, entre nossa maior excitação musical e aquela música, o mito trágico e o herói trágico, no fundo igualdade dos fatos totalmente universais, dos quais, apenas, a música pode falar diretamente. Como igualdade, porém, seria o mito, se o entendêssemos como indivíduo puramente dionisíaco, ineficaz, ficando inobservado ao nosso lado, e nunca nos poderia fazer desviar da necessidade de prestarmos atenção ao eco da universalia ante rem. Aqui, porém, surge a força apolínica, dirigida ao restabelecimento do indivíduo quase totalmente quebrado, como o bálsamo sanativo de deliciosa ilusão: repentinamente cremos ver apenas Tristão, como se interroga imóvel e surdamente: “A velha melodia, por que é que ela me desperta?” E o que nos parecia antigamente como um suspiro profundo, partido do núcleo do ser, diz-nos hoje: “deserto e vazio está o mar”. E onde julgávamos desfalecer sem alento, em convulsiva extensão de todos os sentimentos, ligando-nos quase nada a esta existência, ouvimos e vemos hoje somente o herói que, apesar de ferido mortalmente, não morre, com sua exclamação de desespero: “Anseio! Anseio! Ansiar-me da morte, não morrer por ansiedade!” E se, antes, o júbilo da corneta, depois de tal demasia e excesso de tormentos que consumiam, nos cortava o coração como sendo, quase, o maior de todos estes tormentos, então agora está entre nós e este “júbilo em si”, o Kurweval* regozijante, voltado ao barco que leva Isolda. O mais profundo sofrimento de nós se apodera, nos livra, de alguma maneira, o co-sofrer do sofrimento primitivo universal, assim como a imagem igualante do mito nos salva da contemplação imediata da idéia universal mais elevada e assim como o pensamento e a palavra nos salvam do derramamento irreprimível da vontade subconsciente. Por aquela maravilhosa ilusão apolínica parece acercar-se de nós próprios o reino da música como um mundo plástico, como se também nele somente se tivesse formado o destino de Tristão e Isolda, como na substância mais suave e expressiva.
Assim nos arranca o apolínico da universalidade dionisíaca, encantando-nos para os indivíduos; a estes fixa os nossos sentimentos de compaixão, por estes satisfaz o sentido do belo que anseia por formas grandes e elevadas; faz-nos passar diante de imagens da vida e excita-nos à compreensão profunda do núcleo vital nelas contido. Com a força imensa da imagem, do conceito, do ensinamento ético, da excitação simpática tira o apolínico o homem de sua auto-destruição orgiástica e o ilude sobre a universalidade dos acontecimentos dionisíacos à ilusão, de que ele vê uma imagem universal, por exemplo Tristão e Isolda, e que, por intermédio da música, deveria vê-la melhor e mais intimamente. O que não conseguirá a magia sanativa de Apolo, se mesmo em nós pode criar a ilusão de que o dionisíaco em serviço do apolínico poderia aumentar os efeitos deste, e mesmo de que a música em sua maior parte nada mais é senão arte representativa para um conteúdo apolínico?
É naquela harmonia pré-estabelecida, que reina entre o drama perfeito e sua música, que o drama atinge um grau supremo de visibilidade, inacessível para o drama sem música. Assim como, diante de nós, todas as figuras vivas da cena se simplificam para maior clareza da linha ondulante, ressoa o paralelismo destas linhas na mudança das harmonias, que, do modo mais delicado, simpatiza com a apresentação movimentada. Por esta mudança se nos tornam perceptí veis relações das cousas de maneira observável, e não de modo abstrato. Será também igualmente por ela que reconheceremos que, somente nestas relações, se revela totalmente a essência de um caráter e de uma linha musical. E, enquanto a música nos força, assim, a ver mais e mais intimamente do que de costume, e de estender diante de nós os acontecimentos da cena como um tecido delicado, está, para nosso olhar espiritualizado e dirigido ao nosso íntimo, o mundo da cena tão infinitamente alargado, como iluminado.
O que de analógico poderia oferecer-nos o poeta que, com um mecanismo muito mais imperfeito, procura atingir aquele aumento íntimo do mundo da cena e sua iluminação por meios indiretos, partindo da palavra e do conceito?
De fato, também a tragédia musical se serve da palavra, mas ela pode, ao mesmo tempo, pôr a seu lado, o fundamento e o local de nascimento da palavra, esclarecendo-nos a formação da mesma, de maneira total.
Poderia dizer-se do processo referido, porém, e com a mesma certeza, constituir ele nada mais do que aparência maravilhosa, isto é, aquela ilusão apolínica anteriormente citada, e por cuja ação deveríamos ser livrados do impulso e do excesso dionisíacos. No fundo é a relação entre música e drama justamente o contrário; a música é a idéia verdadeira do mundo, o drama somente o reflexo desta idéia, uma silhueta isolada da mesma. Aquela identidade entre linha melódica e figura viva, entre a harmonia e as relações características daquela figura, é verdadeira em sentido oposto do que poderia parecer-nos ao contemplarmos a tragédia musical. Mesmo que movamos a figura da maneira mais visível, dando-lhe vida, iluminando-a intimamente, ela continuará sempre a ser a aparência, da qual não parte ponte nenhuma que conduza à realidade verdadeira, ao coração do mundo. Mas, é partindo deste coração que a música se externa; fenômenos inumeráveis de todas as espécies poderiam passar pela mesma música sem nunca extinguir a sua essência; poderiam, quando muito, ser suas imagens exteriorizadas. É verdade, porém, que com a contradição popular e totalmente errônea de alma e corpo nada se poderia explicar para o entendimento da relação complicada que existe entre música e drama, se conseguiria, isso sim, confundir tudo. Mas parece que é a rudeza antifilosófica daquela contradição que, justamente entre nossos estetas, se verteu, (sabe-se lá por que razões?) em muito apreciado artigo de fé, enquanto nada aprenderam acerca de uma contradição entre o fenômeno e a contradição em si, ou, por causas igualmente ignoradas, nada quiseram aprender.
Caso resultasse de nossa análise ter, por sua ilusão, o apolínico na tragédia, levado totalmente de vencida o elemento primitivo dionisíaco da música, tendo aproveitado esta para seus fins, isto é, para o supremo esclarecimento de seus fins, então seria necessário fazer uma restrição muito importante: no ponto principal quebrou-se e aniquilou-se aquela ilusão apolínica. O drama, que diante de nós se estende em clareza tão intimamente iluminada de todos os movimentos e figuras, com a ajuda da música, como se víssemos formar-se o tecido no tear — alcança, como conjunto, um efeito, que está além de todos os efeitos artísticos apolínicos. No resultado geral da tragédia alcança, novamente, o dionisíaco a supremacia; ela finda com um sonido que poderia jamais ter-se originado no reino da arte apolínica. Com isto a ilusão apolínica demonstra ser o que realmente é, a cobertura do efeito dionisíaco, propriamente dito, que se mantém durante o tempo em que dura a tragédia. Este efeito, entretanto, é tão poderoso, que impele, no final, o próprio drama apolínico a uma esfera onde principia a falar, com sabedoria dionisíaca, negando-se com clareza apolínica. Poder-se-ia, deste modo, simbolizar a relação complicada do apolínico e do dionisíaco na tragédia por uma aliança fraternal de ambas as divindades: Dionísio fala a linguagem de Apolo, Apolo a linguagem de Dionísio; com o que se conseguiu o fim mais elevado da tragédia e da arte em geral.

22.

Imagine o amigo atento o efeito de verdadeira tragédia musical, pura e não mesclada, segundo as suas experiências. Julgo ter descrito o fenômeno deste efeito, segundo os dois pontos de vista, de maneira que ao explicar agora as suas experiências, lembrar-se-á como, no tocante ao mito, se sentiu elevado a uma espécie de suma sabedoria, como se, então, a força visual de seus olhos não fosse somente uma força de superfície, mas como se conseguisse penetrar da música, superfície, mas como se conseguisse penetrar no íntimo, e como se visse diante de si, com o auxilio da música, as agitações da vontade, a luta dos motivos, a corrente “impetuosa das paixões, visíveis, por assim dizer, materialmente, com plenitude de linhas e figuras vivamente agitadas, e como se conseguisse mergulhar com isto até atingir os segredos mais delicados de emoções inconscientes. Enquanto sente, assim, um aumento supremo de seus impulsos dirigidos à contemplação e glorificação, sente ele de maneira idêntica, que esta longa série de efeitos artísticos apolínicos não produz aquele permanecer feliz em contemplação involuntária, que o plástico e o poeta épico, isto é, os verdadeiros artistas apolínicos, nele conseguem originar mediante suas obras de arte: isto é a justificação que conseguiu naquela contemplação do mundo do individuatio, que é o cume e a substância da arte apolínica. Ele vê o mundo transfigurado da cena, negando-o entretanto. Ele contempla o herói trágico em clareza e beleza épicas e, apesar disso, se alegra com sua destruição. Ele entende o processo da cena até o âmago, mas se refugia no incompreensível. Sente as ações do herói como plenamente justificadas, mas é de seu agrado ver que estas ações destruam o seu autor. Estremece ante os sofrimentos que hão de atingir o herói, mas neles preliba um prazer muito maior, muito mais elevado. Ele vê mais e mais profundamente do que jamais, mas desejaria estar cego. De onde deveríamos derivar este desdobrar-se maravilhoso, esta quebra do cume apolínico, se não do milagre dionisíaco que, incitando os impulsos apolínicos no maior grau à aparência, pode, ainda, obrigar esta superabundância da força apolínica a entrar em seu serviço, O mito trágico pode, somente, ser entendido como representação de sabedoria dionisíaca por meios artísticos apolínicos; conduz o mundo do fenômeno aos limites, onde ele se nega a si mesmo, procurando refugiar-se novamente no seio da realidade única e verdadeira; onde então, juntamente com Isolda, parece entoar seu metafísico canto de cisne:[41]
Na abundância ondulante
do deleitoso mar,
com o som tonitroante
da onda a marulhar,
com o sopro letal
da respiração mundial —
afogar — e, submergindo, morrer
inconscientemente — sumo prazer!
Assim representamo-nos, nas experiências do ouvinte verdadeiramente estético, o próprio artista trágico, como ele, semelhante a uma divindade exuberante do individuatio, cria as suas figuras, sentido no qual dificilmente se poderia compreender a sua obra como “imitação da Natureza”, — como depois, porém, seu imenso impulso dionisíaco devora todo este mundo dos fenômenos, para, depois e por sua destruição fazer pressentir uma imensa alegria primitivo-artística no seio do Uno-Primitivo. Evidentemente, nada sabem relatar os nossos estetas deste retorno à pátria primitiva, da aliança fraternal de ambas as divindades artísticas na tragédia, e da excitação tanto apolínica quanto dionisíaca do ouvinte, mas eles não se cansam de caracterizar a luta do herói com o destino, a vitória da ordem moral no mundo ou a descarga de afeições, produzida pela tragédia, como o trágico em si: incansabilidade que me faz julgar nem serem eles pessoas excitáveis esteticamente, devendo ser considerados, ao ouvir a tragédia, somente como seres morais. Nunca, desde Aristóteles, se deu uma explicação para o efeito trágico, da qual pudessem ser deduzidos os estados artísticos, as atividades estéticas dos ouvintes. Ou temor e compaixão devem ser impelidos, em virtude de sérios acontecimentos, a uma descarga facilitadora, ou devemos sentir-nos enlevados e entusiasmados com a vitória de princípios bons e nobres, com o sacrifício do herói no sentido, de um conceito moral do Universo; e tão certo como acredito ser para muitas pessoas isto, e somente isto, o efeito da tragédia, tão certamente deduz-se disto que todos estes, inclusive seus interpretadores estéticos, nada souberam da tragédia como arte suprema. Aquela descarga patológica, a Katharsis* de Aristóteles, sobre a qual os filólogos não sabem se a devem enquadrar nos fenômenos patológicos ou nos fenômenos morais, lembra um notável pressentimento de Goethe. “Sem um interesse vivamente patológico,” diz ele, “também eu nunca consegui tratar de uma situação trágica, preferindo, portanto, evitá-la a procurá-la. Seria também uma das vantagens dos antigos, que para eles o patético mais elevado nada mais representaria do que um jogo estético, enquanto que para nós é necessário cooperar a verdade natural, para a produção de tal obra?”
Podemos agora, depois de nossas magníficas experiências, formular essa pergunta tão profunda, depois de termos experimentado, precisamente na tragédia musical, como o mais elevado patético pode, na realidade, ser somente um jogo estético, razão pela qual podemos crer que somente agora se poderá descrever o fenômeno primitivo do trágico com alguns resultados. Quem ainda agora fala somente daqueles efeitos representativos, de esfera extra-estética, e quem não se sentir elevado sobre o processo patológico-moral, que desespere de sua natureza estética, em troca de que lhe recomendamos a interpretação de Shakespeare à maneira de Gervinus e o diligente procurar da “justiça poética”, como compensação inocente.
Assim, com o renascimento da tragédia, renasceu também o ouvinte estético, no lugar do qual costumava estar sentado, nas salas de teatro, um estranho quidproquo, com exigências semi-morais e semi-eruditas, o “crítico”. Em sua esfera anterior tudo era artificial e somente revestido com uma aparência de vida. O artista que representava, de fato, já não sabia mais o que fazer com tal ouvinte, que criticamente se comportava; e espreitava por isso, juntamente com o dramaturgo ou compositor de ópera que o inspirava, os últimos restos da vida deste ser exigente e vazio, incapacitado de usufruir o que quer que fosse. De tais “críticos”, porém, se compunha o público até o presente; o acadêmico, o estudante e mesmo o mais ingênuo ser feminino já estava preparado, contra sua vontade, por meio da educação que recebia e dos jornais que lia, para percepção idêntica de uma obra de arte. As naturezas mais nobres entre os artistas contavam num público tal com a excitação de forças morais-religiosas, e o chamado da “ordem moral do mundo” se apresentava como ajudante, quando uma potente magia artística deveria entusiasmar o verdadeiro ouvinte. Ou o dramaturgo expunha uma mais grandiosa, pelo menos enervante tendência da atualidade política e social, tão claramente, que o ouvinte podia esquecer o seu cansaço crítico, entregando-se a afeições semelhantes às dos momentos patrióticos ou guerreiros; ou, diante da tribuna parlamentar, ou por ocasião da condenação do crime e do vício. Tal desvio das verdadeiras intenções artísticas conduziu, em certos casos, o verdadeiro culto da tendência. Aqui, aconteceu, porém, o que acontece com todas as artes artificiais: uma celérrima depravação daquelas tendências, de maneira que, para exemplificar, a tendência de empregar o teatro como instituição para a educação moral do povo, e que seriamente se empregava no tempo de Schiller, já se conta entre as incríveis antiguidades de uma cultura ultrapassada[42]. Enquanto chegaram a dominar o crítico em teatro e concerto, o jornalista na escola, a imprensa na sociedade, degenerou a arte em um objeto de entretenimento da mais baixa qualidade, e principiou-se a empregar a crítica estética como meio de unificação de uma sociabilidade vaidosa, distraída, egoísta e, o que é mais, pobre e vulgar, cujo sentido é dado a conhecer por aquela parábola dos porcos-espinhos de Schopenhauer, de maneira a nunca se ter falado mais e entendido menos de arte. Mas será que ainda é possível ter relações com alguém, que seja capaz de conversar sobre Beethoven e Shakespeare? Que cada qual responda a esta pergunta segundo seus sentimentos; e demonstrará, com a resposta, o que entende por “cultura”, isto no caso de pelo menos, tentar responder ou de não o emudecer, a surpresa de tal pergunta.
Poderia, contrariamente, alguém, nobre e suavemente capacitado pela Natureza, (apesar de se ter tornado bárbaro crítico da maneira mencionada) falar de um efeito, tão inesperado quanto foi incompreensível, que sobre ele foi exercido por uma representação feliz do Lohengrin; apenas que lhe faltou a mão que o tocasse exortativa e significativamente, de modo a também aquela sensação diferente e incomparável, que então o comovia, permanecer isolada, apagando-se, como um astro misterioso, depois de curto resplandecer. Foi então que ele teve um pressentimento sobre o que seria o ouvinte estético.

23.

Aquele que queira submeter-se a um auto-exame, para verificar se pertence aos verdadeiros ouvintes estéticos, ou à sociedade das pessoas socrático-críticas, deverá interrogar-se sobre a emoção com que recebe o milagre, representado no palco; se ele sente, quiçá, ferido o seu senso histórico, dirigido a causalidades severamente psicológicas; se aceita o milagre como uma concessão benévola, como algo inteligível à infância, mas que dele se alienou; ou se experimenta alguma outra sensação. Será nisto que poderá medir até que ponto se acha capaz de compreender o mito, imagem universal reunida, que, como abreviatura do fenômeno, não poderá prescindir do milagre. O provável é, porém, que quase todos que se submeterem a um exame severo, se sentirão decompostos de tal forma pelo espírito crítico-histórico de nossa educação, que somente por caminhos eruditos, por abstrações mediadoras poderão crer na existência do mito nos tempos antigos. Sem mito, porém, perde toda cultura sua força natural, sã e criadora; somente o horizonte rodeado por mitos torna unidade um movimento cultural inteiro. Todas as forças da fantasia e do sonho apolínico são salvas pelo mito de seu vaguear incerto. As imagens do mito devem ser os não sentidos, mas onipresentes guardas demoníacos, sob cuja vigília se desenvolve a alma do jovem, com cujos sinais interpreta o homem a sua vida e as suas lutas; e mesmo o estado não conhece mais potentes leis não escritas do que o fundamento mítico, que garante a sua ligação com a religião, o seu crescimento de representações míticas.
Considere-se, ao lado deste, o homem abstrato, não conduzido por mitos, educação abstrata, moral abstrata, direito abstrato, estado abstrato; representemos o vagueio sem regra da fantasia artística, não refreado por nenhum mito pátrio; imaginemos a cultura que não tem um assento primitivo fixo e sagrado, mas todas as possibilidades de se esgotar e que é condenada a se alimentar parcamente de todas as outras culturas — é esta a atualidade, como resultado daquele socratismo, dirigido à destruição do mito. E agora está o homem sem mito, eternamente faminto, entre todos os passados onde, cavando e revolvendo, procura raízes que não encontra, mesmo que, à sua procura, tenha que cavar nas antiguidades mais remotas.
O que nos indicam a imensa necessidade histórica da descontente cultura moderna, o fato de unirmos em nosso redor inúmeras culturas estranhas, a devorante vontade de conhecimento, se não a perda do mito, a perda da pátria mítica, do seio mítico maternal?
Que cada qual se interrogue, se esta enervante e sinistra agitação representa algo mais do que o agarrar ansioso e a ávida procura de alimento pelo faminto. E quem quererá dar ainda algo a uma tal cultura, que não se sacia com tudo quanto devora, e ao contato da qual o alimento mais nutritivo e sanativo sói transformar-se em “história e crítica”?
Deveríamos de­ses­perar do­lo­ro­sa­mente de nosso ser alemão, se este já estivesse tão indissoluvelmente enredado com sua cultura, tendo-se mesmo tornado uno, como, para horror nosso, podemos observá-lo na civilizada França; e aquilo, que por muito tempo constituiu a superioridade da França, tendo sido a causa de sua preponderância, justamente a unidade de povo e cultura, nos deveria obrigar, ao contemplarmos isto, a elogiar a nossa fortuna por nossa cultura, tão duvidosa, nada ter de comum, até o presente momento, com o âmago nobre de nosso caráter popular. Muito ao contrário se robustecem todas as nossas esperanças, ansiosamente, à percepção de que, sob esta vida cultural e sob esta convulsão educacional, se encontre escondida uma força mui antiga, maravilhosa e intimamente sã, que, como é natural, somente em momentos terríveis se move de forma potente, para, depois, novamente sonhar com um futuro despertar. Foi deste abismo que surgiu a reforma alemã, em cujo canto coral ressoaram pela primeira vez as melodias do futuro da música alemã. Tão profundo, valoroso e espiritual, tão infinitamente bom e suave ressoa este canto de Lutero, como o primeiro chamariz dionisíaco, que surge por detrás de arbustos espessos, com o aproximar-se da primavera.
A esse chamariz respondeu, com eco competidor, aquela sagrada e animosa marcha triunfal de entusiastas dionisíacos, aos quais devemos a música alemã — e aos quais deveremos o renascimento do mito alemão!
Sei que devo conduzir, agora, o amigo sensível e que com interesse me seguiu, a um local elevado de considerações isoladas, onde somente encontrará poucos companheiros, e animando-o, lhe digo que devemos manter-nos fiéis a nossos guias luminosos, os gregos. É deles que temos tomado até agora, para purificação de nosso conhecimento estético, aquelas duas imagens divinas, cada uma das quais domina um reino artístico, e de cujas mútuas relações e desenvolvimentos começámos a ter noção, através da tragédia. Em virtude do despedaçar-se, digno de menção, de ambos os impulsos artísticos primitivos, deveria parecer-nos que se havia produzido a ruína da tragédia; tal acontecimento condizia com a degeneração e modificação do caráter popular grego. Deve obrigar-nos este acontecimento a refletirmos sobre a estreita relação existente entre arte e povo, mito e moral, tragédia e estado. Aquela ruína da tragédia foi, ao mesmo tempo, a ruína do mito. Até lá se sentiram os gregos, involuntariamente, obrigados a unir tudo que sucedia com seus mitos, somente o entendendo mediante esta união. Foi por isto, também, que a atualidade mais próxima deveria parecer-lhes imediatamente sub specie aeterni, e, em certo sentido, como intemporal. Nesta corrente da intemporalidade, porém, se banhava tanto o estado quanto a arte, para nela encontrar sossego, isolando-se da avidez e da cobiça do momento. E o valor de um povo é justamente tanto — como também o valor de um homem — quanto pode imprimir o selo da eternidade em seus sucessos, porque com isto está como que desprendido do mundo, demonstrando estar intimamente convencido da relatividade do tempo e do valor verdadeiro, isto é, metafísico da vida. O contrário sucede quando o povo principia a entender-se historicamente, destruindo os baluartes míticos que se acham em seu redor. Com isto acha-se geralmente relacionados uma secularização determinada, um rompimento com a metafísica inconsciente de sua existência anterior e todas as conseqüências éticas. A arte grega, e principalmente a tragédia grega, susteve a destruição do mito; foi necessário destruí-las para, livre do solo pátrio, poder viver desenfreadamente na selvageria do pensamento, da moral e da ação. Ainda agora tenta proporcionar-se aquele impulso metafísico uma forma de transfiguração, conquanto que enfraquecida, no socratismo da ciência que impele à vida; mas, nas esferas inferiores, este impulso não levou senão a uma procura febril, que se perdeu, pouco a pouco, num pandemônio de mitos e superstições colhidas em toda parte, entre os quais se situava, intranqüilo, o heleno, até que conseguiu, como Gréculo, pôr uma máscara de alegria grega e leviandade grega a esta febre, ou entorpecer-se totalmente com qualquer superstição oriental.
Aproximámo-nos deste estado, desde o renascimento da antiguidade alexandrino-romana do século XV, depois de um entreato difícil de descrever, de forma assombrosa. Nas alturas a mesma imensa vontade de saber, a mesma alegria insaciável de achar, a mesmo enorme secularização, a seu lado um vagueio sem pátria, um ávido acercar-se a mesas estranhas, um leviano endeusar da atualidade ou um alienar entorpecido. Tudo sub specie saeculi do “tempo atual”; sintomas que nos fazem crer em igual falta no coração da cultura, em destruição do mito. Não parece ser possível transplantar, com sucesso contínuo, o mito estranho, sem ferir incuravelmente a árvore com esta transplantação, que é alguma vez, quiçá, bastante forte e sã para expulsar aquele elemento estranho em luta terrível mas que, geralmente, definha e perece ou se consome em viço doentio. Confiamos tanto no núcleo puro e vigoroso do ser alemão, que dele ousamos esperar a expulsão daqueles elementos estranhos, implantados pela violência, e cremos existir a possibilidade do espírito alemão voltar às suas próprias fontes. Há, talvez, quem julgue dever começar aquele espírito com a expulsão do românico; para o que poderia reconhecer uma preparação e um alento externo na coragem vitoriosa e glória sangrenta da última guerra[43], mas deve buscar a necessidade interna na anulação, de sempre ser digno dos excelsos precursores deste trajeto, de Lutero assim como de nossos grandes artistas e poetas. Mas que nunca acredite em poder sustentar embates semelhantes sem seus penates, sem sua pátria mítica, sem um “revolver” de todas as cousas alemãs! E quando o alemão procurar encontrar um guia que com ele retorne à pátria há muito perdida, e cujos caminhos e pontes, nem mais conhece — então ele deve atentar no chamado do pássaro dionisíaco, que se embala acima de sua cabeça, e que deseja mostrar-lhe o caminho certo.

24.

Tivemos de ressaltar que, sob a estranha influência artística da tragédia musical, uma ilusão apolínica, nos deverá salvar do imediato estabelecimento da unidade com a música dionisíaca, enquanto que a nossa excitação musical se poderá aliviar em um terreno apolínico e em um mundo intermediário e visível. Pensávamos ter observado, ao mesmo tempo, que, justamente por tal alívio, aquele mundo intermediário, e o drama em geral, se fizeram visíveis e inteligíveis num grau que é inatingível por toda a arte apolínica restante; de maneira que aqui, onde o mundo intermediário do acontecimento cênico era, por assim dizer, alado e elevado pelo espírito da música, tivemos que reconhecer o maior aumento de suas forças e com isso, naquela aliança fraternal de Apolo e Dionísio, o cume dos propósitos artísticos tanto apolínicos como dionisíacos.
Naturalmente não atingiu a imagem luminosa apolínica, na iluminação íntima pela música, o efeito extraordinário dos graus mais débeis de arte apolínica, ou seja aquilo que conseguem o poema épico ou a pedra animada: forçar o olhar contemplativo a uma admiração calma do mundo da individuatio. Não se conseguiu isso atingir aqui, apesar da animação e a clareza serem superiores. Contemplávamos o drama e penetrávamos com olhar possante em seu movimentado mundo íntimo dos motivos; — e, apesar disso, somente sentíamos como que passar diante de nosso olhar uma imagem comparativa, cujo sentido profundo julgávamos quase adivinhar, e que desejávamos entreabrir, como um reposteiro, a fim de ver atrás dele a imagem primitiva. A mais luminosa clareza da imagem não nos satisfazia; pois ela tanto parecia revelar como ocultar alguma cousa; e, enquanto parecia desejar, com sua revelação comparativa, o rompimento do véu, mantinha, por outro lado. àquela iluminada onivisualidade preso o olhar, impedindo-o de mais profunda penetração.
Aquele que não chegou a ver, ansiando-se ao mesmo tempo para muito além daquilo que via, dificilmente poderá representar-se quão determinada e claramente existem, paralelamente, ambos os processos na consideração do mito trágico e quão determinada e claramente são sentidos; enquanto os verdadeiros espectadores estéticos poderão confirmar que, entre os efeitos estranhos da tragédia, é, sem dúvida, aquele paralelismo o mais digno de nota. Transfira-se agora este fenômeno do espectador estético, num processo analógico, ao artista trágico, e ter-se-á entendido a gênesis do mito trágico. Ele compartilha com a esfera apolínica da arte do prazer total na aparência e no olhar, mas nega ao mesmo tempo este prazer, tendo satisfação ainda superior na destruição do mundo-aparente[44] visível. O conteúdo do mito trágico é, primeiramente, um acontecimento épico com a glorificação do herói combatente. De onde procede, porém, aquele traço enigmático de que o sofrer no destino do herói, as vitórias mais dolorosas, as mais tormentosas contradições de motivos, enfim, exemplificação daquela sabedoria de Sileno, ou, expresso esteticamente, o feio e o desarmonioso, é representado em formas tão numerosas e, justamente na idade mais exuberante e jovem de um povo, se não se percebe nisto tudo um prazer muito mais elevado?
Porque a resposta de que, de fato, a vida é tão trágica, explicaria ainda menos a origem de uma forma artística, se a arte não for apenas imitação da realidade da natureza, mas sim um suplemento metafísico desta realidade da natureza, colocada junto a esta para a vencer. O mito trágico, na parte em que pertence à Arte, toma também parte naquela vontade de transfiguração metafísica da arte em geral; o que é, porém, transfigurado, quando apresenta o mundo das aparências sob a imagem do herói que sofre? Não a “realidade” deste mundo de aparências, porque ele nos diz: “Vede! Olhai cuidadosamente! É esta a vossa vida! Este o ponteiro no relógio de vossa existência!”
E é esta a vida que nos mostra o mito, para transfigurá-la ante nosso olhar? Se não, em que está o prazer estético com que também nós olhamos para tais imagens? Pergunto pelo prazer estético e sei muito bem que muitas de tais imagens podem produzir um deleite moral, seja sob forma da compaixão ou de um triunfo moral. Aquele, porém, que quiser derivar os efeitos do trágico somente destas fontes morais, como se fez durante muito tempo na estética, que não creia ter feito, com isto, algo para a arte, que, antes de mais nada, deve exigir pureza em seus domínios. A primeira exigência para a explicação do mito trágico consiste em procurar o prazer, que é próprio dele, na esfera puramente estética, sem passar ao domínio da compaixão, do medo, do sublime-moral. Como pode excitar o feio e o desarmonioso, conteúdo do mito trágico, um prazer estético?
Aqui torna-se necessário entrarmos com impulso ousado numa metafísica da arte, repetindo a frase anterior, de que a existência e o mundo somente parecem ser justificados como fenômenos estéticos, sentido no qual justamente o mito trágico nos deve convencer de que mesmo o feio e o desarmonioso representam um jogo artístico, que a vontade, na eterna plenitude de seu prazer, joga consigo mesmo. Este fenômeno primitivo, dificilmente compreensível, da arte dionisíaca, torna-se compreensível unicamente em trajeto direto, entendido imediatamente na significação maravilhosa da dissonância musical; assim como, em geral, só a música sabe dar, colocada paralela ao mundo, uma idéia do que deve ser entendido sob “justificação do mundo como fenômeno estético”. O prazer produzido pelo mito trágico, tem pátria idêntica à sensação prazenteira dada pela dissonância da música. O dionisíaco, com seu prazer primitivo, percebido mesmo na dor, é o regaço comum, que produziu tanto a música como o mito trágico.
Não se terá facilitado, em virtude de nos valermos da ajuda da relação musical da dissonância, aquele problema difícil do efeito trágico? Pois agora entendemos o que significa, na tragédia, querer ver e ansiar-se, ao mesmo tempo, para muito além daquilo que vê; estado que, no tocante à dissonância empregada artisticamente, deveríamos caracterizar da mesma forma, isto é, que queremos ouvir, ansiando-nos, ao mesmo tempo, para muito além daquilo que ouvimos. Aquela tendência ao infinito, o bater de asas do anseio, no maior prazer da realidade claramente percebida, lembram-nos que devemos reconhecer em ambos os estados um fenômeno dionisíaco, que sempre e sempre nos revela a. construção e destruição facílima do mundo individual como emanação de algum prazer primitivo, de maneira semelhante à comparação, feita por Heráclito — o Obscuro, da força criadora do Universo com a criança que, brincando, coloca pedras aqui e acolá, constrói montões de areia, derrubando-as em seguida.
Para avaliar bem a capacidade dionisíaca de um povo, deveríamos pensar não só na música desse povo, mas também, e com igual necessidade, no mito trágico deste, como testemunha segunda daquela capacidade. Deve-se crer agora, com este íntimo parentesco entre música e mito, que à degeneração e depravação de um, estará aliado o deperecimento da outra; isto, se no enfraquecimento do mito se externar o enfraquecimento do poderio dionisíaco. Fitando a evolução do ser alemão, não ficaremos em dúvida no que diz respeito a ambos os casos: na ópera como no caráter abstrato de nossa existência vazia de mitos, na arte, que degenerou em deleite, assim como em uma vida guiada pelo conceito, revelou-se-nos aquela natureza do otimismo socrático, igualmente anti-artística e consumante da vida. Para consolo nosso, porém, existiam sinais de que, apesar disso, dormia e sonhava o espírito alemão em perfeita saúde, profundeza e força dionisíaca de modo indestrutível, semelhante a um cavaleiro deitado e dormente, em abismo inatingível, abismo do qual se eleva o canto dionisíaco, para fazer-nos entender que esse cavaleiro alemão, ainda agora, sonha com seu velho mito dionisíaco, tendo visões sérias e bem-aventuradas[45]. Que ninguém creia ter o espírito alemão perdido para sempre a sua pátria mítica, porque este ainda compreende muito bem o gorjeio dos pássaros que lhe revelam aquela pátria. Um dia acordará, e na frescura matinal de um sonho imenso matará o dragão, destruirá os anões pérfidos e despertará Brunhilda — não podendo a própria lança de Wotan barrar o seu caminho!
Meus amigos, vós, que credes na música dionisíaca, sabeis também o que, para nós, significa a tragédia. Nela encontramos, renascido da música, o mito trágico — e nele deveis esperar tudo e esquecer o mais doloroso! Mas o mais doloroso para nós é a longa degradação na qual viveu o espírito alemão, longe da casa materna e da pátria, em serviço de pérfidos anões. Vós entendeis a palavra, assim como também compreendereis, finalmente, as minhas esperanças.

25.

Música e mito trágicos são expressões idênticas da capacidade dionisíaca do povo, sendo inseparável uma do outro. Ambos são originários de um domínio artístico, que se encontra além do apolínico; ambos transfiguram uma região, em cujos acordes prazenteiros ressoam encantadoras tanto a dissonância quanto a imagem terrível do universo; ambos brincam com o acúleo do desgosto, confiando em suas potentíssimas artes mágicas; ambos justificam por este jogo a existência mesmo do “pior dos mundos”. Aqui se revela o dionisíaco, medido no apolínico, como a força-artística eterna e primitiva, que dá origem a todo o mundo dos fenômenos; em cujo centro se torna necessária uma nova aparência de transfiguração, para manter em vida o mundo animado da individualização. Se nós pudéssemos representar uma encarnação da dissonância — (e que mais é o homem?) — necessitaria tal dissonância, para poder viver, de alguma ilusão maravilhosa, que cobrisse sua própria essência com o véu da beleza. É esta a verdadeira intenção artística de Apolo, sob cujo nome reunimos todas aquelas inumeráveis ilusões, de aparência formosa, e que a cada instante fazem a existência digna de ser vivida, impelindo-nos a viver o momento subseqüente.
Daquele fundamento de toda existência, da base dionisíaca do mundo, somente deve passar ao conhecimento do indivíduo humano aquilo que possa ser novamente vencido pela força apolínica da transfiguração, de forma que ambos os impulsos artísticos se vêem obrigados a desenvolver as suas forças em proporção recíproca,[46] segundo a lei da justiça eterna. De onde se elevam tão impetuosamente as forças dionisíacas, como é por nós presenciado, já deve ter descido Apolo, envolto em uma nuvem; e seus mais exuberantes efeitos de beleza serão admirados, provavelmente, por uma das gerações futuras.
Que este efeito, porém, é altamente necessário, poderia ser experimentado por cada um, com a maior segurança, através da intuição, se alguma vez se sentisse, embora em sonhos, transportado à existência da antiguidade helênica. Se vagueasse sob elevados pórticos jônicos, alçando o olhar para um horizonte limitado por linhas puras e nobres, — tendo a seu lado a sua figura, transfigurada por reflexos visíveis em reluzente mármore, e, em seu redor, pessoas que majestosamente caminham, ou que suavemente são movidas, com sons harmoniosos e com linguagem mímica e rítmica — será que ele, nesse contínuo afluxo de beleza, não levantaria as mãos para Apolo, exclamando: “Ó, bem-aventurado povo helênico! Quão grande deve ser Dionísio entre vós, se o deus delíaco** necessita de tais magias, para curar a vossa loucura ditirâmbica!” A uma pessoa com tal disposição de ânimo responderia um ancião ateniense, com o olhar excelso de Ésquilo: “Porém, dize também, ó singular estranho, quanto teve de sofrer este povo, para se poder tornar assim belo! Agora, entretanto, acompanha-me à Tragédia e imola nos templos de ambas as divindades!”

F I M


Notas

[1] — “Sturm und Drang” [N.T.]
[2] — Trad. livre [N.T.]:
Und sollt' ich nicht, sehnsüchtigster Gewalt,
In's Leben zieh'n die einzigste Gestalt?"
[3] — Tradução livre de [N.T.]:
Mein Freund, das grad' ist Dichters Werk,
dass er sein Träumen deut' und merk'.
Glaubt mir, des Menschen wahrster Wahn
wird ihm im Traume aufgethan:
all' Dichtkunst und Poëterei
ist nichts als Wahrtraum-Deuterei.
[4] — orgiastischen Sakäen [N.E.]
[5] — Refere-se Nietzsche à canção do último movimento da Nona Sinfonia de Beethoven. [N.T.]
[6] — É uma referência à mesma canção, que é uma poesia de Schiller, e que Beethoven aproveitou para a sua Sinfonia. O nome da poesia é ALEGRIA (Freude). [N.T.]
[7] — Refere-se Nietzsche à bebida das bruxas do Fausto de Goethe. [N.T.]
[8] — Geração de um dia. [N.T.]
[9] — Ingênuo = naive [N.T.]
[10] — Wahrhaft — Seiende. [N.T.]
[11] — Ur-Eine. [N.T.]
[12] — Ewig — Leidende [N.T.]
[13] — Wahrhaft — Nichtseiende. [N.T.]
[14] — A palavra alemã SCHEIN pode significar tanto brilho, como aparência ou aparição. Preferimos adotar a palavra aparição porque, segundo nossa opinião, é a que mais se aproxima do sentido que Nietzsche queria emprestar a esta palavra. [N.T.]
[15] — Ur-Schmerzen. [N.T.]
[16] — Ur-Künstler [N.T.]
[17] — Uma coleção de canções populares alemãs, que têm o nome de Knabe Wunderhorn = rapaz corneteiro. [N.T.]
[18] — Foi necessário traduzir figura ... sol, pois a expressão alemã Sonnenauge é intraduzível. [N.T.]
[*] — Okeanidenchor [N.E.]
[19] — Umschleiertsein = envolver por véus [N.T.]
[20] — CF: Guilherme Tell de Frederico Schiller. “O antigo cai, o mundo se transforma, e vida nova floresce sobre as ruínas”. [N.T.]
[21] — Em alemão: “Oedipus auf Kolonos” [N.E.]
[22] — [N.T.]:
“Hier sitz ich, forme Menschen
Nach meinem Bilde,
Ein Geschlecht, das mir gleich sei,
Zu leiden, zu weinen,
Zu geniessen und zu freuen sich
Und dein nicht zu achten,
Wie ich!”
[23] — Urfrevel. [N.T.]
[24] — Ursünde [N.T.]
[25] — Fausto 1a. parte — Noite de Walpurgis — pág. 106 G. Witkowski 4. ed. Leipzig. [N.T.]
“Wir nehmen das nicht so genau:
Mit tausend Schritten macht's die Frau;
Doch wie sie auch sich eilen kann,
Mit einem Sprunge macht's der Mann”.
[26] — Os totalmente iniciados nos mistérios Bleusínicos. [N.T.]
[27] — Esta frase está deturpada nas edições francesas e uruguaia onde se lê: “Que queria deixar enforcar-se em seguida, somente para poder buscar a Eurípides nos infernos, como se devesse estar convencido por completo, de que o morto estava ainda com a razão.” — Confira: Ed. francesa, pg. 79; Ed. uruguaia pg. 82 (Colección Cultura). [N.T.]
Em alemão: Bei diesem Zusammenhange ist die leidenschaftliche Zuneigung begreiflich, welche die Dichter der neueren Komödie zu Euripides empfanden; so dass der Wunsch des Philemon nicht weiter befremdet, der sich sogleich aufhängen lassen mochte, nur um den Euripides in der Unterwelt aufsuchen zu können: wenn er nur überhaupt überzeugt sein dürfte, dass der Verstorbene auch jetzt noch bei Verstande sei. [N.E.]
Em inglês: In this context we can understand the passionate fondness of the writers of the new comedy for Euripides. Now the wish of Philemon — who was willing to be hanged for the pleasure of visiting Euripides in Hades, providing he could be sure that the dead man was still in possession of his senses — no longer seems strange to us. [N.E.]
[28] — Outro erro cometido na quase totalidade das traduções, onde se lê: “Nada podiam explicar-lhe porque tinham razão suas dúvidas e objeções a respeito dos grandes mestres”. [N.T.]
[29] — À palavra alemã mitleiden = “sofrer conjuntamente com” preferimos dar a tradução supra. Cumpre-nos esclarecer que nas traduções deste livro vem sendo feito um erro grave, no tocante a esta palavra. Por analogia com das Mitleid = “a compaixão”, julgaram os tradutores ser compaixão a palavra indicada nesta frase. Tal interpretação não tem cabimento. [N.T.]
[30] — O sistema de Anaxágoras representa um progresso enorme do pensamento helênico, pois este apela para uma inteligência ordenadora, a fim de explicar o universo racionalmente. Tal inteligência — vous — é simples, imaterial, independente, única e infinita, causa eficiente do movimento e da ordem cósmica. [N.T.]
Em alemão: Anaxagoras mit seinem "Nous". Provável erro tipográfico na edição digitalizada. Refere-se ao νους de Anaxágoras. Na edição digitalizada, no corpo do texto aparece o u com til, aqui e adiante, na nota o u com circunflexo. [N.E.]
[31] — Por uma falta evidente de revisão lê-se na edição uruguaia: “el ebrio entre los ebrios”. [N.T.]
[32] — [N.T.] Tradução livre de:
“Du siehst an mir, wozu sie nützt,
Dem, der nicht viel Verstand besitzt
Die Wahrheit durch ein Bild zu sagen”.
[*] — Em alemão: Sophrosyne - Do grego — σοφροσυνη — termo etimologicamente signficando ‘sanidade moral’ e, daí, ‘autocontrole’ ou ‘moderação’. Este conceito resumiria os dois mais famosos ditos do oráculo de Delfos: “Nada em excesso” e “Conheça-te a ti mesmo”. Liga-se à idéia pitagórica de ‘harmonia’ — Harmonia e Fluir, duas idéias caras aos pitagóricos e seus descendentes intelectuais. As palavras latinas mais próximas seriam ‘Continência’ e ‘Moderação’. Também figura na mitologia grega. [N.E.]
[33] — Tradução livre de: “Wo er in das Unaufhellbare starrt” [N.T.].
[34] — CF. Fausto — I (Goethe): “Pois tudo que existe, merece desaparecer.” [N.T.]
“Denn Alies was besteht,
Ist wert dass es zu Grunde geht!”
[35] — Ocorreu a certos tradutores o erro de traduzirem esta parte: “uma natureza musical”. [N.T.]
[36] — Tradução livre do seguinte trecho de “Fausto”: [N.T.]
“Und sollt' ich nicht, sehnsüchtigster Gewalt,
In's Leben ziehn die einzigste Gestalt?”
[37] — Das Schrecklich = Unerklärliche [N.T.]
[38] — Das Übermächtig = Feindselige [N.T.]
[39] — wiedererweckt significa despertada novamente. [N.T.]
[*] — Curneval, na fonte digitalizada. Evidente erro tipográfico. Refere-se a Kurwenal, personagem de Tristão e Isolda, ópera de Richard Wagner, com libreto do próprio compositor, que se baseou no drama de Gottfried von Strassburg, inspirado na lenda celta de Tristão. Nietzche cita e faz referências, em A Origem da Tragédia, a outras obras do compositor. Por exemplo, Die Meistersinger, de 1868. [N.E.]
[40] — Herzkammer = quarto do coração, câmara cardíaca. [N.T.]
[41] — [N.E.]:
“In des Wonnemeeres
wogendem Schwall,
in der Duft - Wellen
tönendem Schall,
in des Weltathems
wehendem All
ertrinken - versinken
unbewusst - höchste Lust!”
[*] — Na fonte digitalizada, catársis, no alemão, Katharsis, catarse. [N.E.]
[42] — Uma vez que Schiller faleceu em 1805, mediavam cerca de 70 anos entre as épocas mencionadas. [N.T.]
[43] — Refere-se à guerra de 1870, entre a Alemanha e a França. [N.T.]
[44] — — A palavra original é Scheinwelt [N.T.]
[45] — A expressão alemã é: selig - ernsten Visionen. [N.T.]
[46] — wechselseitig significa recíproco. Houve, porém, quem traduzisse, em edições estrangeiras, “mítico”. [N.T.]
[**] — Na fonte digitalizada, deus delíaco, fiel ao original alemão: delische Gott; Em inglês, na tradução compulsada: Delphic god. Apolo era o deus de Delfos, daí algumas traduções (como é o caso), erroneamente, terem traduzido delische por délfico. Delíaco (delische), natural de Delos, local de nascimento de Apolo e Artemis, pela mitologia grega. Delfos não fica em Delos. [N.E.]


© 2006 — Friedrich Nietzsche

Versão para eBook
eBooksBrasil

__________________
Maio 2006
eBookLibris
© 2006 eBooksBrasil.org
Proibido todo e qualquer uso comercial.
Se você pagou por esse livro
VOCÊ FOI ROUBADO!
Você tem este e muitos outros títulos
GRÁTIS
direto na fonte:
eBooksBrasil.org

Nenhum comentário:

Postar um comentário