5G indica que a Terceira Guerra Mundial começou, mas é econômica — e não atômica
A guerra da tecnologia 5G escancara a batalha entre os Estados Unidos e a China pela hegemonia global. O Brasil está no meio da pendenga e pode sair ganhando
“Não sei como será a terceira guerra mundial, mas sei como será a quarta: com pedras e paus”, disse o físico alemão Albert Einstein, certamente o mais famoso da história.
Einstein disse isto porque, com uma guerra nuclear, dependendo de sua extensão, a destruição seria imensa. Então, os homens que sobrassem — poucos, e talvez doentes — teriam de lutar, na Quarta Guerra Mundial, “com pedras e paus”. A humanidade regrediria.
O fato é que a bomba atômica, com sua ampla possibilidade de destruição em massa — como aconteceu em Hiroshima e Nagazaki, no Japão, em 1945 —, no lugar de produzir a Terceira Guerra Mundial, praticamente pacificou o mundo. Estados Unidos e União Soviética, os primeiros a terem a bomba atômica (os soviéticos furtaram a pesquisa americana), no lugar de uma “guerra quente”, optaram pela Guerra Fria. Quer dizer, pela política. Entre as décadas de 1940 e 1980, os dois países brigaram pelo controle do mundo, com ameaças variadas, mas nenhum teve a audácia de dar o primeiro passo. Pode-se dizer, portanto, que a energia nuclear salvou o mundo e consolidou a paz — claro que se está falando de batalhas mundiais, porque guerras localizadas, sobretudo no Oriente Médio, continuaram acontecendo.
Entretanto, se não há uma batalha global com armas nucleares, talvez seja possível falar numa Terceira Guerra Mundial econômica. A Rússia, apesar de seu arsenal nuclear e dos rompantes de Vladimir Putin — uma espécie de czar híbrido, filho tanto do czarismo quanto do stalinismo —, foi superada pela China. Hoje, os chineses são a principal ameaça econômica à hegemonia dos Estados Unidos.
A China se tornou uma potência de primeira grandeza rapidamente. Os comunistas chineses descobriram o que não funcionava no socialismo — o mercado engessado pelo Estado — e adotaram um sistema híbrido, com o Estado forte, mas um mercado relativamente livre. O resultado é uma economia sólida e altamente competitiva. A China conseguiu fazer aquilo que Mikhail Gorbachev quis mas não conseguiu: abrir a economia, mas mantendo o controle comunista.
A China chegou pra ficar
As pessoas que viajam pelo mundo, se forem minimamente observadoras, certamente perceberão que a China inundou quase todos os países de tudo quanto é tipo de bugigangas. Fica-se com a impressão de que o mundo, que já foi inglês (o chá é o símbolo) e é americano (a Coca-Cola e o cinema são símbolos), se tornou ou está se tornando também chinês. Reclama-se que as bugigangas são de baixa qualidade e, por isso, duram pouco. Na verdade, os produtos, quase todos e de todo o mundo, se tornaram ou estão se tornando descartáveis — uns mais, outros menos. O celular de ponta de determinada empresa funciona bem por um determinado período, mas, depois de várias atualizações, “precisa” ser trocado. Às vezes, nem é tão necessário trocá-lo, mas o lançamento de outro celular mais avançado, com adornos que chamam a atenção e ampliam as conexões, praticamente cobra que o consumidor o compre, deixando o anterior de lado. Em termos tecnológicos, o novo deixa de ser novo ao nascer. Já nasce velho. Os olhos do consumidor brilham não para o que já existe, e sim para o que o mercado tecnológico está prometendo. Afinal, tudo que é novo desmancha no ar. É líquido, diria Zygmunt Bauman.
As bugigangas chinesas “escondem” um fato crucial: foram e são úteis para o processamento do que, na falta de melhores palavras, se pode chamar de “acumulação primitiva” de capital. Os produtos de má ou de qualidade razoável ajudaram, no médio ou longo prazo, a China a modernizar seu parque tecnológico-industrial. Então, se antes fazia produtos ruins, com os recursos financeiros absorvidos de todo o mundo, passou a ter capital para investir em tecnologia refinada. O país fabrica computadores, chips, automóveis, trens de ferro (seus metrôs são avançadíssimos), celulares e muitos outros produtos. A qualidade está cada vez melhor — o que aumenta sua competitividade. Acrescente-se que, com mão de obra barata — baratíssima, ao contrário do custo dos trabalhadores americanos e alemães — e a produção em alta escala, os preços dos produtos chineses são imbatíveis. O resultado é que o país tem o segundo maior PIB do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e à frente de gigantes como Japão, Alemanha, Inglaterra, França, Itália, Índia, Brasil e Rússia.
A China chegou pra ficar — é o novo Império. Não só. Seu objetivo, a médio prazo, é se tornar a potência econômica dominante — superando os Estados Unidos, o Império Romano dos tempos atuais. Vai conseguir? A economia americana é dinâmica, ancorada no que há de melhor em termos de tecnologia — em variados campos —, e a qualidade de vida de seu povo é muito superior à do povo chinês. Mas será muito difícil manter a China atrás por muito tempo. Há economistas — que deveriam ser chamados de “profetólogos” — que chegaram a sugerir que, em 50 anos, a China se tornaria a potência hegemônica. Hoje, dado o avanço dos chineses — a América Latina e a África começaram a ser “absorvidas” pelo gigante asiático —, a possibilidade de hegemonia não é nada remota. Está chegando mais cedo do que se pensava.
A tecnologia 5G é, no momento, o motivo de uma guerra brutal — em termos econômicos e de pressões políticas — entre Estados Unidos e a China. Não se fala em guerra ideológica ou em disputa entre comunismo e capitalismo. A China não está interessada neste debate, que é pueril e infrutífero. Para conquistar mercado para sua tecnologia — na verdade, uma cabeça de ponte para outros produtos —, a China está jogando pesado, oferecendo recursos financeiros para vários países. Os Estados Unidos estão fazendo o mesmo, embora sem tanta volúpia. Mas, como gigante político que é, os Estados Unidos estão dando “broncas” nos outros países — o que, em termos de economia, não funciona. Com a pandemia do novo coronavírus, que está quebrando várias economias nacionais, os gigantes econômicos, como Estados Unidos e China, terão papel crucial nas suas recuperações. Com a vantagem de que os países poderão escolher: inglês ou mandarim?
Donald Trump e Joe Biden
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, às vezes é visto pela imprensa como “causa” das posições geopolíticas e econômicas do país mais rico do mundo. Talvez seja menos inapropriado sugerir que o descabelado dirigente é mais consequência do que causa. Ele não está inventando um Estados Unidos isolacionista (de fato, é menos intervencionista, em assuntos de outros países, inclusive em termos de guerras armadas, do que alguns ex-presidentes democratas, como Bill Clinton e Barack Obama). Na verdade, os Estados Unidos isolacionistas, com o objetivo de combater o avanço dos chineses — que tratam como “novos bárbaros” (leia poema de Caváfis abaixo) —, “inventaram” Trump para proteger os interesses americanos.
Ocorre que o isolacionismo dos Estados Unidos — os americanos para os americanos — não funciona mais num mundo globalizado, que é sinônimo de integração. Se os Estados Unidos querem reforçar a economia interna, para fortalecê-la contra a fúria econômica do Dragão da Ásia, a China está oferecendo parceria — capital e assistência tecnológica (financiada com custo quase “zero”) —, a vários países. A possível volta dos democratas ao poder, nos EUA, têm a ver com o desgaste político de Trump, é certo, mas também com a possibilidade de que os homens do poder econômico do país de Henry James e William Faulkner estejam percebendo que é preciso mudar a política do país em relação ao mundo. Talvez o isolacionismo de Trump não sirva mais. Um Império tem de ser mais aberto aos súditos, aos quase-súditos e aos não-súditos. O pragmatismo americano sabe que salvar o Império americano — e os impérios às vezes tombam quando estão no auge — talvez signifique sacrificar Trump. Joe Biden não é o que há de melhor, mas, teoricamente (na prática, os democratas sempre foram mais protecionistas do que os republicanos), pode, como presidente, retomar o diálogo americano com o mundo, fortalecendo seus negócios, para além das discussões ideológicas (que só interessam mesmo àqueles que vivem o sonho de que o paraíso é palpável e passam ao largo da vida real dos cidadãos comuns que levantam-se às 6 horas da manhã, pegam ônibus lotado, ganham salário mínimo e voltam para a casa para ver um jogo de futebol, uma novela, um filme ou uma série e tomar uma cerveja).
Com Joe Biden, os Estados Unidos poderão dizer ao mundo: “O problema não são os EUA, e sim Trump; portanto, estamos removendo-o”. Dará certo? Talvez sim. Talvez não. Porque, como se disse acima, a China não está para brincadeira e tende a superar, a médio ou a longo prazo, os Estados Unidos.
A Terceira Guerra Mundial está no ar, efetiva, e é profundamente tecnológica (o 5G), portanto econômica. E não deixa de ser política. Vencerá o mais realista, e não o mais ideológico.
Bolsonaro e os democratas
A imprensa patropi sugere que, se Joe Biden, do Partido Democrata, ganhar a eleição para presidente, em novembro, as coisas vão ficar gris para o Brasil. O presidente Jair Bolsonaro é considerado um peão do jogo de xadrez de Donald Trump. Por apoiá-lo, poderia prejudicar o país na relação com os Estados Unidos? Sim, pode mesmo. Mas, se a China está com duas presas firmes e os EUA continuam com duas presas, mas uma bamba, na prática, um presidente como Joe Biden poderia levar a ferro e fogo uma retaliação contra o país de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Antônio José de Moura e Gabriel Nascente? Talvez não.
A China já é o maior parceiro comercial do Brasil. Não porque ame a música de Noel Rosa, Elis Regina, João Gilberto, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Luiz Melodia, Chico Buarque de Holanda, Gal Costa, Maria Bethânia, Fernanda Takai, Marina de la Riva, Marcelo Barra e Maria Eugênia. Nada disso. A China precisa dos minérios — ferro e aço são fundamentais para sua tecnologia —, da soja e da carne brasileiros. Mais: a China necessita de um mercado de 210 milhões de pessoas, com uma classe média relativamente consolidada, para colocar seus produtos (na área de ferrovias, o gigante asiático avança a passos largos). Quem conquistar o Brasil, lançando bases sólidas em seu território, tende a conquistar a América do Sul e, possivelmente, toda a América Latina.
Portanto, amando ou odiando Bolsonaro, os Estados Unidos terão de recolher os dentes (lembre-se, leitor: uma presa está bamba) e, como Trump ou Joe Biden, aderir, mais uma vez, ao soft power. Os americanos querem e vão lutar pela parceira com um país que tem 8,5 milhões de quilômetros quadrados — o que significa commodities em grandes volumes —, independentemente se o país estará sob o comando da direita, do centro ou da esquerda (o direitista George Walker Bush se dava muito bem com o esquerdista Lula da Silva). Os Estados Unidos, que têm estrategistas de primeira linha, não vão “entregar” a terra de Bernardo Élis, Edival Lourenço, Afonso Félix de Souza, Maria José Silveira e Miguel Jorge de mão-beijada aos chineses.
Observe-se, por fim, o pragmatismo chinês em ação. Alegando problemas decorrentes da pandemia do novo coronavírus, a China parou de comprar carne de seis frigoríficos brasileiros — entre eles a JBS e a BRF. A causa é mesmo esta? De fato, em alguns frigoríficos, dezenas de funcionários testaram positivo e estão ou estiveram com a Covid-19. Trata-se, claro, de um problema sério. Mas a China não estaria usando isto para tentar impor sua tecnologia 5G ao Brasil? E provável. Num momento de crise, e mesmo sem a crise, o Brasil se tornou “dependente” do mercado chinês para manter sua economia forte e crescendo. Se a China reduz as compras, o crescimento econômico será ainda menor do que o previsto. Aderindo ao 5G da China — da Huawei —, deixando os americanos de lado, o Brasil logo perceberá que o boicote chinês cederá. É, como estamos dizendo, a Terceira Guerra Mundial em ação. A arma não é mais a bomba atômica. A mais letal e precisa tem outro nome: c-a-p-i-t-a-l. Leia de novo: capital — bufunfa, pila, grana, capim, gaita, tutu, dinheiro.
O Brasil, com Trump ou Joe Biden, pode acabar ganhando… Basta, quem sabe, Bolsonaro distensionar um pouco mais sua política exterior — jogando mais do que aderindo… O que se espera do presidente patropi é mais pragmatismo e menos ideologia…
À espera dos bárbaros
Konstantinos Kaváfis
— Que esperamos reunidos na ágora?
É que hoje os bárbaros chegam.
— Por que tanta abulia no Senado?
Por que assentam os senadores? Por que não ditam normas?
Porque os bárbaros chegam hoje.
Que normas vão editar os senadores?
Quando chegarem, os bárbaros ditarão as normas.
— Por que o Autocrátor levantou-se tão cedo
e está sentado frente à Porta Nobre da cidade
posto em seu trono, portanto insígnias e coroa?
Porque os bárbaros chegam hoje.
E o Autocrátor espera receber
o seu chefe. Mais do que isto, predispôs
para ele o dom de um pergaminho. Ali
fez inscrever profusos títulos e nomes sonoros.
— Por que nossos dois cônsules e os pretores saíram
esta manhã com togas rubras, com finos bordados de agulha?
Por que essas braçadeiras que portam, pesadas de ametistas,
e os anéis dactílicos lampejando reflexos de esmeralda?
Por que ostentam hoje os cetros preciosos,
esplêndido lavor de cinzel, amálgama de ouro e prata?
Porque os bárbaros chegam hoje,
e toda essa parafernália deslumbra os bárbaros.
— Por que nossos bravos tributos não acodem
como sempre, a blasonar seu verbo, a perorar seus temas?
Porque os bárbaros chegam hoje,
e eles desprezam a oratória e a logorreia.
— Por que de repente essa angústia,
esse atropelo? (Todos os rostos de súbito sérios!)
Por que rápidas se esvaziam ruas e praças
e os antes reunidos retornam atônitos às casas?
Porque a noite chegou e os bárbaros não vieram.
E pessoas recém-vindas da zona fronteiriça
murmuram que não há mais bárbaros.
E nós, como vamos passar sem os bárbaros?
Essa gente não rimava conosco, mas já era uma solução.
[Tradução de Haroldo de Campos]