domingo, 20 de abril de 2014

Mapa Introdutório das Teorias da Verdade

01/07/2008

Dois homens que se preocuparam com os caminhos da América (e do mundo) disseram frases com as palavras “verdade” e “liberdade” interconectadas. Seus nomes: Marcuse e Rorty. Marcuse disse certa vez que ter uma concepção errada de verdade levaria a uma concepção errada de liberdade. Rorty, por seu turno, diferentemente, afirmou que se deixarmos de investigar a verdade (não sabemos como definir) para cuidarmos da liberdade (que sabemos bem o que é quando a perdemos) estaremos fazendo algo melhor com nossas energias.
A investigação que proponho aos que ficarem motivados a partir deste pequeno texto, não deverá contrariar marcusianos e rortianos. Os primeiros poderão investigar o que a filosofia diz atualmente sobre a verdade para, enfim, formularem suas concepções e, então, ver se isso realmente aperfeiçoa suas noções de liberdade.
Os segundos, não estarão gastando energia à toa, uma vez que não estou propondo que se empenhem no tema acreditando que vão fundamentar a liberdade, mas apenas que vão entender, afinal, porque podemos, nos dias de hoje, falarmos meio que esquizofrenicamente. Esquizofrenia? Sim, porque assim agimos: em determinados momentos dizemos “eis aqui a verdade” e, então, quem nos escuta nos alerta “ei, você não é o dono da verdade”, e então, não raro, saltamos de lado e avisamos, “bem, tenho o modo meu de olhar as coisas, esta é a minha verdade”. Ora, mas afinal, quem assim age estava ou não querendo dizer a verdade?
1. O que é “discutir a verdade” em filosofia?
Começo pelo episódio de Pedro. “E passada quase uma hora, um outro afirmava, dizendo: também este verdadeiramente estava com ele, pois também é galileu. E Pedro disse: homem, não sei o que dizes. E logo, estando ele ainda a falar, cantou o galo. E, virando-se o Senhor, olhou para Pedro, e Pedro lembrou-se das palavras do Senhor, como lhe havia dito: antes que o galo cante hoje, me negará três vezes”. Era então a terceira vez que Pedro, ao ser reconhecido como amigo de Jesus, mentia, afirmando que não conhecia seu mestre.
Pedro, o homem que fundou a Igreja de Jesus, o incorruptível, era de fato um corrompido, um grande mentiroso? Pedro foi, sem dúvida, naquele momento, um fraco. Um covarde. E certamente, naquele momento, um mentiroso.
O que caracteriza a mentira?
Jacques Derrida nos lembra a diferença entre o que é mentira e o que é falso. Ele tem de retomar Santo Agostinho para tal, pois é somente a partir de uma perspectiva em que alguma subjetividade está envolvida que a mentira pode se dar. O que vale para Santo Agostinho vale para Derrida: o que conta, para dizer que uma expressão é fruto do ato de mentir, é a intenção de quem a diz. A frase é de Agostinho: ‘não há mentira, apesar do que se diz, sem intenção, desejo ou vontade de enganar’ (Apud Derrida, 1996, p. 10). Derrida diz que “a mentira depende do dizer e do querer dizer, do ato de dizer”, ela “permanece independente da verdade ou falsidade do conteúdo”, ou seja, “daquilo que é dito” (cf. Derrida, 1996, pp 9-11).
Pedro foi mentiroso, porque intencionalmente queria se livrar de Jesus no momento em que, estando seu mestre preso, ele foi apontado como seguidor e, então, viu que poderia também cair em desgraça como subversivo. Mas a noção de falsidade e de verdade não cabem a Pedro, somente ao conteúdo de seu enunciado, de sua sentença: “Homem, não sei o que dizes”. O que Derrida nos ensina é que o enunciado “Homem, não sei o que dizes” é contrastado com outro enunciado, “também este estava verdadeiramente com ele, pois também é galileu”. O que tomamos como estando em jogo, neste caso, são enunciados e, portanto, verdade e falsidade. Embora eles tenham sido pronunciados por homens, um que acusa e outro que se escusa, tais enunciados podem ser desligados de quem os enunciou e se colocarem um contra o outro. Se assim é, o enunciado de Pedro, “homem, não sei o dizes”, será dito como verdadeiro ou falso. Mas se o enunciado é acoplado a uma intenção (o desejo de Pedro de se livrar de Jesus naquele momento ou a tentativa de Pedro de enganar os que o reconheceram), então o enunciado pode ser mentira ou verdade.
No estudo filosófico da verdade, um primeiro ato pode ser o de distinguir os pares falso-verdadeiro e mentira-verdade. Um segundo ato pode ser o de lembrar que certas correntes filosóficas estão menos interessadas em tal distinção do que em investigar a “natureza da verdade”. Aqui, não é o caso de Pedro e seu acusador, mas de Jesus e Pilatos.
“Disse-lhe, pois, Pilatos: logo, tu és rei? Jesus respondeu: tu o dizes que eu sou rei. Eu para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade, ouve a minha voz. Disse-lhe Pilatos: que é a verdade? E, dizendo isso, tornou a ir ter com os judeus, e disse-lhes: não acho nele crime algum”.
Pilatos não podia mesmo ver crime algum. Como o diálogo foi conduzido, importava menos para ele mentiras e verdades, mas sim uma questão metafísica: “o que é a verdade?”. A verdade da verdade – eis o que está em pauta aqui. Ao levar o rumo da conversa para tal encruzilhada, propositadamente, pois ele parecia quer livrar Jesus (ou, ao menos, se livrar do problema), Pilatos não tinha razão para continuar, levantou-se e foi dizer aos judeus que ele não estava encontrando falta alguma em Jesus.
Filosoficamente, a natureza da verdade está relacionada, direta ou indiretamente, às “teorias de verdade”. As teorias tradicionais ou metafisicamente fortes são as que parecem querer explicar o que poderia alimentar respostas à questão “o que é a verdade?”. Muitas vezes, tais teorias respondem positivamente, outras vezes criam grandes enredos para induzir o leitor a captar a noção discutida. As teorias não substantivas de verdade (ou não-metafísicas, ou metafisicamente fracas), por sua vez, tendem a criar descrições de como ocorre na linguagem a participação do termo “verdade” e/ou “verdadeiro” (cf. Blackburn, 1999).
2. Teorias da verdade na filosofia
Podemos criar mapas das teorias de verdade de diversas formas. Susan Haack estabelece um mapa com critério histórico e, em parte, de conteúdo temático: começa por Aristóteles e chega, então, aos vários filósofos analíticos atuais (cf. Haack, 1978, pp. 787-134). Michael Lynch cria um quadro a partir de como as correntes filosóficas respondem sim ou não para a pergunta “a verdade tem uma natureza?” (cf. Lynch, 2001, pp. 1-6). Simon Blackburn estabelece uma divisão entre teorias tradicionais e contemporâneas, colocando na fronteira divisória a sua “escada de Ramsey” (Blackburn, 1999). Donald Davidson, ele próprio personagem importante na história dos mapas anteriores, cria um quadro com quatro posições: a deflacionista, a epistêmica, a realista e a sua própria visão (cf. Ghiraldelli Jr., 2003, p. 9).
Para o que me interessa aqui, ofereço um mapa alternativo brevíssimo. Coloco as teorias de verdade em quatro grandes campos: as teorias tradicionais, as teorias deflacionárias, as teorias não-analíticas contemporâneas e as teorias neopragmáticas. Falarei mais das duas primeiras, ainda que de forma apenas indicativa, e deixarei alusões sobre as duas últimas.
Entre as teorias tradicionais, imagino quatro formulações: teoria da correspondência, da coerência, do pragmatismo clássico, e da teoria da verificação ideal (em parte, pragmatista). Entre as teorias deflacionárias coloco todas as que seguem Ramsey, a partir da teoria da redundância, ou as que seguem Tarski, a partir da teoria semântica da verdade; é possível falar aqui, também, de minimalismo, descitacionismo, teoria performativa, etc. Entre os não analíticos contemporâneos, vale a pena lembrar de observações de Nietzsche, Foucault e Adorno. O neopragmatismo, por seu turno, caminha em formulação, e está dependendo do debate entre Habermas e Rorty (que, então, lêem vários outros, como Hilary Putnam, Robert Brandom, etc.), e nas reformulações que ambos fazem de suas próprias posições na leitura que vem tecendo da obra de Donald Davidson
3. Teorias tradicionais
As teorias tradicionais da verdade são também chamadas de teorias substantivas da verdade. Elas podem ser mostradas em uma formulação ao gosto dos filósofos analíticos e dos manuais de lógica. Para tal, devemos considerar X uma frase ou uma expressão (ou uma sentença, uma proposição, etc. – não faremos distinções aqui, que em geral são feitas em textos sobre o tema que visam serem mais detalhados). Considerando que X é uma frase, uma declaração, um pensamento ou uma proposição, e que o símbolo sse (iff) é o operador “se e somente se”, então essas teorias podem ser expressas assim:
Teoria da Correspondência: X é verdadeiro sse X corresponde a um fato;
Teoria da Coerência: X é verdadeiro sse X é um membro de um conjunto de crenças coerente internamente;
Teoria Pragmatista: X é verdadeiro sse X é útil de se acreditar;
Teoria da Verificação Ideal: X é verdadeiro sse X é provável, ou verificável em condições ideais.
A teoria da correspondência vem da definição de Aristóteles: “Dizer do que é que ele é, ou dizer do que não é que ele não é, é a verdade”. Tal noção tem força intuitiva e, por isso mesmo, a teoria da correspondência parece, à primeira vista, não problemática. Ela diz “X é verdadeiro se e somente se X corresponde a um fato”. Todavia, entre várias objeções que são lançadas contra tal teoria, uma delas é a de que ela cai em um círculo. Afinal, o que é um fato? A definição do que é fato é, em geral, a seguinte: fato é o que realmente acontece; ou fato é o que é verdadeiro; ou fato é o que corresponde à verdade, etc. Definimos a verdade como correspondência a fato usando a idéia de verdade como correspondência a fato – este é o círculo.
A teoria da coerência pode ser apresentada como uma saída para os impasses da teoria da correspondência? O que diz tal formulação é que o erro da teoria da correspondência é justamente querer comparar elementos heterogêneos. Isto é, de um lado há itens lingüísticos e de outro há elementos não-lingüísticos. “X” é algo lingüístico, e o que recebe o nome de “fato” é algo não-lingüístico. A teoria da coerência diz que seria mais adequado comparar o que é da ordem de enunciados com o que também é ordem de enunciados, crenças com crenças, por exemplo. Todavia, não se trata de fazer isso caso a caso, frase por frase. Isso se aplica, dizem os coerentistas, de um modo holístico, levando em consideração sistemas de enunciados ou sistemas de crenças, ou seja, teorias ou “vocabulários” (como diz Rorty) ou “campos de força” (como diz Quine).
Em outras palavras: a verdade, na teoria coerentista, não é um predicado que se aplica a uma frase solitária ou crença isolada, mas se aplica a um conjunto de frases, conjuntos de crenças em um todo, um sistema. Assim, um sistema de crenças é dito coerente quando seus elementos são consistentes entre si em uma rede de crenças, e quando estão dispostos de maneira que detêm um tipo específico de simplicidade capaz de provocar a intelecção racional normal. Dessa forma, o sistema todo e cada um de seus elementos são verdadeiros – a verdade é a propriedade de se pertencer a um sistema harmoniosamente coerente de crenças ou enunciados.
A força intuitiva da teoria da coerência também não é desprezível. E ela ganha adeptos por isso. Mas há uma força intuitiva contrária, que não podemos negligenciar. O que conta contra a teoria coerentista da verdade é que ela parece conduzir ao relativismo. Resumindo ao máximo: o que se faz contra tal teoria é dizer que todos nós conhecemos vários conjuntos harmoniosos de crenças muito bem estruturados em relação aos quais não estaríamos dispostos a gastar uma gota de saliva para defendê-los como verdadeiros em uma discussão. São coerentes, mas não fomentam a coragem para que um conjunto de pessoas de bom senso possa chamá-los de verdadeiros, porque em nada eles convencem de que falam de alguma realidade.
William James e John Dewey buscaram sair dos impasses do correspondentismo e do coerentismo. Eles criam a teoria pragmatista da verdade, que é menos uma teoria do que um procedimento metodológico. O que dizem?
Eles enunciam o seguinte. As teorias de verdade que existem não são ruins, o que falta é falar em condições da verdade. Assim, a teoria pragmatista nasce menos com o intuito de ser uma teoria e mais com a perspectiva de encontrar regras de conduta para quem procura o verdadeiro. Eles tentam discutir menos a correspondência ou a coerência e chamar a atenção para a idéia de que qualquer teoria da verdade deve levar em conta a noção de experiência. Não se trata aqui de experiência somente como experimento, nem exclusivamente de experiência como experiência sensível. Trata-se de experiência no sentido mais amplo possível: experiência de vida, experiência psíquica, experiência de um povo ou de um tempo, e também experiência científica, de laboratório (nunca é demais lembrar que Dewey foi um bom leitor de filosofia alemã, em especial de Kant e Hegel, e guardou bem as noções de Erlebnis e Erfahrung). Então, cada indivíduo que quer saber da verdade deve olhar para a experiência, ou seja, deve olhar para a conduta dos seres humanos. É mais útil acreditar em um enunciado sobre o qual há consenso do que sobre um enunciado que não possui defensores, que está longe do consenso entre os são conhecidos como razoáveis. Este é o pragmatismo de James. A verdade está mais próxima, diz ele, quando as experiências conduzem a um maior consenso. Uma frase que está mais próxima do consenso leva os homens a colocarem as suas fichas nela; mas uma frase que está mais distante do consenso faz, de modo a seguir o que é mais útil, os mais razoáveis se afastarem dela. É nesse sentido específico que se diz que “a verdade é o útil” para o pragmatismo clássico (cf. James, 1997, pp. 112-31).
Dewey, com o mesmo propósito de procurar como rastro da verdade o consenso, elabora sua noção de assertibilidade garantida (warranty assertibility). Ele vê a verdade como o predicado de um enunciado que pode ser, de alguma forma, assegurado – tal enunciado é fruto de uma ação razoavelmente controlada. Após controle e experiência, podemos emitir frases consensuais sobre a experiência realizada. O controle sobre tais ações produz o consenso sobre algumas frases, e estas, então, recebem um selo de garantia. Elas estão asseguradas. Como? Tal selo diz em quais situações nós usaremos os predicados falso ou verdadeiro para o enunciado em questão na medida em que especificam sob que condições eles são falsos ou verdadeiros, isto é, aceitos ou não (cf. Ghiraldelli Jr., 2003; 2007).
Charles S. Peirce elabora uma versão mais estreita do que a de Dewey. Peirce, diferentemente de James e Dewey, pensa a experiência de modo mais delimitado. Ele a vê como experimento. Quando ele fala em experiência controlada, refere-se a experimento sob domínio laboratorial. Então, são enunciados verdadeiros, para Peirce, aqueles que, referindo-se a certas observações, podem receber o consenso de uma comunidade de experts, que estão lidando com a experiência imaginando-a em um limite ideal.
Em relação às três posições dos pragmatistas clássicos, também há objeções. Uma das objeções respeitáveis é sobre a noção de experiência. Ela seria pouco explicativa, não delimitável e, se é para se considerar as sugestões dos pragmatistas como metodológicas e não propriamente teóricas, então a noção de experiência seria vaga, não permitindo ao observador decisões seguras.
4. Teorias não substantivas
A tentativa de solucionar tal problema levou os pragmatistas atuais a direcionarem suas atenções menos para a experiência (como termo geral) e mais para comportamentos possíveis de serem mensurados, como o caso do comportamento lingüístico. Ou seja, o problema parece ter sido senão resolvido ao menos equacionado pela virada lingüística (linguistic turn). De modo mais claro, mais abrangente, então, atualmente avançamos em direção de teorias de verdade que são ao mesmo tempo pragmáticas e lingüísticas. Nesse contexto, em parte há certo abandono das teorias tradicionais, ou há a reformulação delas.
As teorias da verdade, atualmente, se envolvem com a semântica, e a filosofia da linguagem se mistura com a lógica para falar do tema.
Não vou dizer que tudo o que se faz no campo deflacionário é apenas desdobramento das idéias de Frank Pluptom Ramsey. Mas, sem dúvida, suas observações dão uma idéia representativa do espírito das teorias que dessubstantivam a verdade.
Tais teorias desessencializam a verdade ou, no limite, retiram da verdade qualquer carga metafísica. A perspectiva deflacionista nega que há uma questão como esta, a saber: “qual é a natureza da verdade?”.
O filósofo deflacionista diz que a verdade não é uma propriedade “real”, ou “robusta”, ou uma propriedade metafísicamente interessante. Chega a dizer, inclusive, que a verdade não é, absolutamente, um predicado. Alguns deflacionistas, inclusive, sustentam que a concepção de verdade é “redundante”, como os mais ligados à herança de Ramsey, e outros, que se inspiram nos trabalhos da concepção semântica da verdade de Alfred Tarski, advogam que a verdade é uma noção primitiva, necessária na conversação, mas que não pode ser definida (como a noção de ponto em geometria: primitivo, intuitivo, mas não definível). Donald Davidson é um dos adeptos de tal formulação última.
Abaixo, coloco um resumo do espírito do deflacionismo inspirado em Ramsey.
O deflacionista diz o seguinte: se emito a expressão “é verdadeiro que dois e dois são quatro” ou a expressão “é verdadeiro que nada é importante além do amor”, não estou dizendo nada mais do que “dois e dois são quatro” e “nada é importante além do amor”. O termo “verdadeiro” está presente nas frases por uma questão de performance da linguagem. Os falantes dizem “é verdadeiro” no interior de certas frases apenas por uma questão de estilo retórico que ajuda no desempenho comunicativo das frases, ou seja, na melhoria da funcionalidade do discurso, na adequação comunicativa do discurso. Assim, a verdade e o verdadeiro, para os deflacionistas, pertencem não ao campo metafísico, e sim ao campo da pragmática da linguagem.
Isso pode ser formalizado da seguinte maneira pelo deflacionista:
1) quando digo que “é verdade que p”, estou afirmando, de um modo mais eficaz, mais enfático, até talvez mais econômico, apenas “p”;
2) o termo “verdade” não cabe no templo metafísico, mas cabe tão-somente na rua quotidiana dos usos da linguagem.
Isso é o que se pode chamar de uma formulação derivada da “escada de Ramsey”. Do que se trata?
A imagem da escada é a seguinte: na base da escada pode-se dizer “p”; no primeiro degrau, “é verdadeiro que p”; no segundo degrau, “está na ordem do universo que é verdadeiro que p”, e assim por diante. Nos últimos degraus (se é que isso tem fim) há a permissão de criar uma frase a mais aparentemente universal possível, ou a mais profunda possível, de acordo com a performance lingüística desejada. Um deflacionista, então, acredita que, do ponto de vista do que pode encontrar de substancial nas frases que são colocadas nos degraus da escada, a perspectiva do topo da escada é a mesma que a perspectiva da base da escada. Se há alguma diferença entre topo e base, ela não é uma diferença substantiva ou metafísica, mas apenas uma diferença retórica (cf. Ghiraldelli Jr., 2000, pp. 7-22)
5. Para além da dessubstantivação
Resta, agora, lembrar algumas outras passagens que indicam como o tema se desenvolve no dias atuais.
Temos o movimento iniciado por Nietzsche, que alertou para o caráter social da noção de linguagem de um modo bastante específico: o homem teria tido um desenvolvimento: de animal que não sabia fazer promessas para um animal que deveria saber quando fazia uma promessa e como cumpri-la. Tal tarefa teria começado a ser bem desempenhada somente depois de muito sofrimento. O homem teria deixado sua vida natural e passado a viver comunitariamente, podendo então prometer, e assim, vir a ter de cumprir o que prometeu; e para cada não cumprimento, inventou o castigo, a dor – o sofrimento em troca do que não cumpriu. Entender que tem de pagar o que deve e cumprir o que prometeu é, enfim, entender uma forma de convenções sociais. Entre tantas, as da linguagem é uma delas e, no interior desta, a de mentir (extra-moralmente, ou seja, sem que se precise aqui invocar a intenção, no sentido inicial do texto). No mundo comunal, que é convencional, a verdade nada mais é que a mentira socialmente aceita (cf. Nietzsche, 1987).
Foucault, bem mais tarde, usou desse recurso de Nietzsche para desprezar a “busca pela verdade” e, sem medo de paradoxos, propôs mais uma história da verdade do que uma verdade da história (cf. Foucault, 1989).
Antes de Foucault, os filósofos frankfurtianos Adorno e Horkheimer também duvidaram de noções mais comuns de verdade. Adorno, por exemplo, dizia que a verdade não está nem no conceito nem no objeto, mas entre eles – era uma forma de mostrar o quanto a verdade escapulia. Foi uma forma de justificar sua idéia de que a tarefa do filósofo era a de convencer o outro o quanto ele mesmo estava errado (cf. Adorno, 1996).
O debate mais interessante sobre verdade, na filosofia contemporânea, no entanto, é o que ocorre no interior do neopragmatismo. Richard Rorty (cf. Brandom, 2000) tem se fixado na noção de Donald Davidson, a saber, de que a verdade é primitiva e, portanto, ainda que a noção de verdade seja usada – e ele faz um elenco de tal uso – ela não pode ser definida e, assim, não pode ser tomada como algo capaz de decidir situações “para todo o sempre”. Rorty está preocupado em não alimentar concepções fortes de verdade, uma vez que as vê ligadas ao autoritarismo e, de um modo bem estadunidense, ao fundacionalismo (ou fundamentalismo de cunho religioso). Davidson, por sua vez, diz o que diz a partir de um profundo estudo e transformação da teoria semântica de verdade de Tarski (cf. Tarski, 1990; cf. Davidson, 2003). Para Rorty, esta é a base para advogar a posição de que o melhor a se fazer, agora, é não voltar a prestigiar o tema para não reinflacioná-lo. Davidson parece menos preocupado com as conseqüências disso para o debate social. Por fim, Habermas diz estar de acordo com Peirce e Putnam (cf. Putnam, 2002), e avança afirmando que a forma como Rorty lida com o termo verdadeiro, não fazendo as devidas distinções entre “justificação” e “verdade”, é errôneo, e que haveria ainda espaço para um trabalho deweyano de especificação de condições de verdade. A diferença para com Dewey seria, em Habermas, o fato de tais condições especificarem condições de debate e comunicação ideais (cf. Habermas, 2003).
Bibliografia referenciada

Adorno, T. W. Mínima Moralia.
São Paulo: Ática, 1996.
Blackburn, S. e Keith, S. (eds). Introduction. Truth. Oxford: Oxford University Press, 1999.
Brandon, R. (ed.). Rorty and hist critics. Nova York: Blackwell, 2000.
Derrida, J. História da mentira: prolegômenos. Estudos avançados 10(27): pp. 7-39, maio-agosto de 1996.
Davidson, D. Ensaios sobre a verdade. São Paulo: UNIMARCO, 2003.
Foucault, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
Ghiraldelli Jr. P. O que é pragmatismo. São Paulo: Brasiliense, 2007.
Ghiraldelli Jr., P. Davidson: a elegância no labirinto da verdade. In: Davidson, D. Ensaios sobre a verdade. São Paulo: UNIMARCO, 2003.
Ghiraldelli Jr., P. Filosofia da educação e ensino. Ijuí: UNIJUI, 2000.
Ghiraldelli Jr., P. Neopragmatismo e verdade: Rorty em conversação com Davidson e Habermas. São Paulo: FFLCH-USP, 2001 (tese de doutorado), 2001.
Haack, S. Philosophy of logic. Cambridge: Cambridge University Press, 1978.
Habermas, J. Truth and justification. Cambridge: MIT Press, 2003.
James, W. Pragmatism’s conception of truth. In: Menand, L. (ed.). Pragmatism – A reader. Nova York: Vintage Books, 1997.
Lynch, M. P. The nature of truth. Cambridge: MIT, 2001.
Nietzsche, F. Verdade e mentira em um sentido extra moral. In: Nietzsche – Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1987.
Putnam, H. The colapse of the fact/value dichotomy. Cambridge: Havard University Press, 2002.
Tarski, A. A concepção semântica da verdade e os fundamentos da semântica. In: Existência e linguagem. Lisboa: Editorial Presença, 1990.

© Paulo Ghiraldelli Jr filósofo, do Centro de Estudos em Filosofia Americana e da International Pragmatism Society.

Os pobres têm filhos? Sim, é o proletariado!


Miséria - esta é a charge descabelada, errada, burra, que deu origem ao meu pequeno texto aqui.
O Brasil é um dos países que mais produz sociologia da pobreza e um dos países em que nossa elite, que estuda tal coisa, menos conhece o pobre.
Encontro gente acreditando que as mulheres pobres têm muitos filhos por falta de informação (como se a pílula fosse desconhecida das mulheres pobres). Encontro outros imaginando que as mulheres têm muitos filhos porque o governo incentiva (como se o proletariado fosse proletariado, ou seja, os que têm prole, a partir do governo do Lula!). Meu Deus! Qualquer estudo sócio-psicológico, com base antropológica, aponta fácil que:
1) ser mãe dá novo status na comunidade pobre perante vizinhos, amigos e familiares;
2) garante por mais tempo a atenção do companheiro e amplia seu orgulho na comunidade como “pai”, “macho” etc., isso reverte em benefício para a mulher;
3) e logo depois que as crianças ficam grandinhas, elas facilitam as tarefas domésticas, ajudam na companhia e, principalmente, integram a mulher como pessoa na vida das mulheres que, enfim, são todas mães.

Miséria - esta é a charge descabelada, errada, burra, que deu origem ao meu pequeno texto aqui.
Miséria – esta é a charge descabelada, errada, burra, que deu origem ao meu pequeno texto aqui.

Não entender isso é não entender nada da vida comunitária, que é bem diferente da vida mais liberal, digamos assim, da mulher de classe média com profissão não braçal. Por isso o proletariado é proletariado mesmo num mundo com pílula.
Aliás, muitas vezes não se entende isso porque o paradigma liberal em ciências humanas acaba não convivendo com o paradigma comunitarista. Uma melhor integração entre leituras de autores liberais e comunitaristas, por parte de estudantes de ciências humanas, poderia melhorar isso.
© 2014 Paulo Ghiraldelli, filósofo.

Descartes: o nascimento da “metafísica da subjetividade”




Crânio de Descartes no Museu do Homem, na FrançaO químico sueco Berzelius andou por Paris e ficou sabendo que no túmulo de Descartes não havia nenhum crânio. Isso o impressionou. Quando de volta para a Suécia, vagueando pelas ruas de Estolcomo, foi avisado de um leilão em que uma das peças era o crânio de Descartes. Berzelius foi ter com o comprador e conseguiu o crânio. Entregou-o ao governo francês. Foi assim que o crânio de Descartes chegou à sua terra natal. Isso foi em 1821. Descartes faleceu em 1650, na Suécia. Quase dois séculos de separação entre “corpo” e “cabeça”. Eles foram unidos, depois disso?
Quando os ossos de Descartes foram transferidos da Suécia para a França, houve a separação. Para comodidade da viagem, de modo a sobrar espaço, colocaram a cabeça em uma caixa e esqueleto na urna, e um capitão resolveu ficar com o crânio. Roubo – é claro. Mas bem intencionado, disse o homem. Era para preservar o crânio! Hoje este crânio contém o nome dos seus vários proprietários, e outras inscrições esquisitas. Está no Museu do Homem, em Paris. Fica lá, ao lado do crânio marcado como “Cro-magnon, idade 100 mil anos”. Nunca mais conseguiu voltar para junto do resto do esqueleto.
Caso possamos – de modo grosseiro – dizer que o crânio abriga o cérebro e este é o “lugar” da mente, então eis aí a separação mente-corpo de Descartes. A única plausível. Pois, ao contrário do que os estudantes (e até professores) de Ciências Cognitivas imaginam, Descartes não “separou corpo e mente”. Aliás, é horrível escutar esse enunciado. É coisa de quem ouviu o galo cantar, mas não sabe onde.
Nas Meditações, Descartes deixou claro que o homem “não é um piloto em seu navio”, não é uma mente comandando um barco, mas um todo coeso. A consideração que Descartes fez, apontando para uma dupla substância, a res cogitans e a res extensa, era puramente metodológica. O mental não ocuparia espaço e o não mental ocuparia espaço, e isso deveria implicar em alguma coisa a mais, pensou ele. Eis aí o “dualismo cartesiano” – não mais que isso. De modo algum Descartes quis dizer que poderíamos entender o homem por meio de uma separação entre “corpo” e “mente”. Poderíamos fazer pesquisas metafísicas com tal dualismo, mas não pesquisas filosóficas e antropológicas a respeito do homem.
O projeto de Descartes, ao menos no campo filosófico em sentido estrito, isto é, metafísico, nãoDescartes com a Rainha Christina, da Suécia era o de “entender o homem”. No campo metafísico seu projeto era o de mostrar a inconsistências de posições relativistas e, enfim, céticas – um projeto tradicional em filosofia, portanto. Um projeto herdeiro daquele que o próprio Platão se fez porta voz, depois de Parmênides e Heráclito: o de encontrar e bloquear os mecanismos pelos quais nós nos enganamos e tomamos o falso pelo verdadeiro. Como bloquear isso? Conseguindo uma primeira verdade indubitável. Bastaria uma, as outras poderiam ser tiradas por dedução, por silogismos corretos. Isso deveria, talvez, lhe dar um critério, um modo de saber quando se estaria diante de um enunciado ou pensamento verdadeiro, isto é, certo. E, para tal, ele começou pelo mesmo ponto de Platão: na discussão com a conversa do cético. E o que dizia o cético?
O que diz um cético profissional? O cético não duvida da verdade. Ele duvida do conhecimento. Ele nos fustiga dizendo que o conhecimento não é possível. Conhecimento, lá em Platão, é “crença verdadeira justificada”. E assim também no tempo de Descartes e, de certo modo, ainda hoje utilizamos (em parte) tal definição.[1] O cético não vai dizer que a verdade não existe, pois isso tornaria essa sua frase uma auto-refutação. Ele diz que não conseguimos lhe dar uma boa justificação do que afirmamos ser verdadeiro e, então, o conhecimento é que é o ponto sobre o qual recai a dúvida. Explico isso com um exemplo. E eis aí a oportunidade para uma visita de volta a Platão.
A sofística e, no seu interior, a retórica, foram os inimigos eleitos por Platão para serem alvejados. Sua pesquisa em torno do que seria o ponto fraco dos sofistas resultou na sua célebre distinção entre “crença verdadeira” e “conhecimento”. Platão tratou da distinção entre conhecimento e crença verdadeira principalmente no Teeteto (e no Menon). A questão posta no Teeteto é exemplificada com o caso cotidiano da investigação sobre um crime e de como que um júri pode chegar a responsabilizar ou não o apontado como culpado. Podemos imaginar que estamos assistindo um júri (de tipo americano) em que Joana é a vítima de um assalto levado a cabo por José, que está presente e é réu. Tudo que Joana conta sobre o episódio do roubo é bastante plausível e, embora não existam testemunhas, a carteira de Joana é encontrada com José e ele não tem qualquer álibi, nenhuma história plausível para se safar da acusação e, o que é pior, sabe-se que ele já cometeu outros roubos. Por tudo que ouvimos, estamos convencidos de que a verdade está com Joana: ela reconheceu José como assaltante e descreveu o evento do assalto com detalhes, enquanto que José não conseguiu desmenti-la. O júri parece que concorda com nossa opinião. O advogado de José tem o semblante carregado, pois ele não consegue disfarçar sua preocupação, como se ele admitisse que o que Joana diz é verdade e que não há maneira de amenizar a situação de José. A partir disso, podemos dizer que sabemos que Joana foi roubada por José? DescartesNão há razão para acreditar que Joana não esteja falando a verdade, e temos a crença, então, de que o que diz é verdadeiro. No entanto, apesar de nossa crença, não podemos afirmar que sabemos que Joana foi assaltada por José. Não podemos dizer que temos conhecimento disso – não no sentido correto do termo “conhecimento” ou do termo “saber”. Em um júri, não estaria Joana com outras intenções e, José, apesar de já ter cometido crimes, não poderia estar calado por causa de ameaças de alguém ligado a Joana, ainda que não tenhamos qualquer indício de que ela se liga a esse tipo de prática? Joana, afinal, não seria uma mestra da retórica, capaz de dar várias vezes descrições idênticas, e enfáticas, de um evento que não ocorreu, ou que não ocorreu nos termos que ela insiste em dizer que ocorreu? Nesse tipo de caso, Platão diz (usando Sócrates) que a crença verdadeira que temos não é conhecimento. Da crença verdadeira, uma vez assim definida – verdadeira – não há o que duvidar. Se a qualificamos como verdadeira, o caso está encerrado (quando digo “eu acredito em X”, é claro que estou tomando que é X é um enunciado verdadeiro). Todavia, quanto ao conhecimento, caberia a dúvida. Caso tivéssemos visto o assalto bem de perto e reconhecido José e Joana, então poderíamos dizer: “sabemos que José assaltou Joana” ou “temos conhecimento do assalto e este assalto foi praticado por José contra Joana”. Do conhecimento, como Platão o toma, cabe duvidar, pois não conseguimos, só com o que acreditamos e assumimos como verdadeiro, dizer que sabemos o que o ocorreu. A dúvida do cético recai sobre o conhecimento.
Sendo assim, para escapar do cético, o filósofo deve mostrar que “crença verdadeira bem justificada” é possível, insistindo, então, que a justificação é algo realizável ou alcançável. Descartes entendia, portanto, que precisava apenas de uma única e primeira verdade, e essa verdade deveria ser irrefutável, isto é, não haveria qualquer justificação contra ela melhor do que a que estivesse a seu favor. Ela viria com suas justificações e traria a “clareza e distinção”. Tais justificações deveriam se tornar, elas próprias, o critério de verdade – a régua infalível pela qual poderíamos dizer que sabemos algo. Uma régua que não precisaria, ela mesma, de outra régua para avaliá-la – pois é esse o problema que aparece quando queremos critérios.
Caso Descartes fosse um antigo, ele procuraria esse critério em qualquer outro lugar, menos no âmbito do “eu”. Mas, sendo moderno, tendo passado por uma educação em que o “eu” foi construído e aperfeiçoado, tendo experimentado anos de cultura que trouxeram a alma como uma noção muito mais complexa do que era para os antigos, foi natural para Descartes jogar suas fichas no que veio a ser conhecido como sujeito.
Seu raciocínio começa pela aceitação da dúvida. O cético quer duvidar, não é? Pois então, que duvide, mas ele tem de duvidar com método. Descartes se põe na condição de cético e passa a mostrar com é que se duvida metodicamente. Não há como duvidar de tudo, pois isso seria um projeto infinito, então, devo duvidar de algo que, caso minha dúvida se mostre eficaz, todo o resto entrará automaticamente em dúvida, até mesmo as crenças e enunciados que desconheço. Descartes resolveu investigar, então, não o conhecimento, mas as faculdades que deveriam ter propiciado a ele ter em sua posse o que até então chamava de conhecimento. Colocou em dúvida, dessa maneira, as faculdades pelas quais o conhecimento é gerado: os sentidos, a imaginação e o intelecto.
Nas Meditações Descartes afirma que tudo que tem ou passou pelos sentidos ou lhe é inato. Então, duvidar de tudo que tem e tudo que um homem pode ter é duvidar dos sentidos e da razão (a imaginação estaria subordinada aos sentidos). O que veio pelos sentidos, teria sua primeira morada no exterior à sua alma. O que não veio pelos sentidos e, no entanto, está em sua alma, teria vindo junto com ele ao mundo – seria um conjunto de crenças inatas. As primeiras serviriam para as ciências empíricas, como a física, as segundas construiriam as ciências puramente intelectuais, como a matemática ou geometria. Sua idéia básica e, então, a de colocar tudo em dúvida – o que vem dos sentidos e o que já está, de modo inato, no intelecto. Como fazer isso?
Com os sentidos Descartes vê que a atuação é fácil. Os sentidos parecem já o ter enganado ao menos uma vez. Então, dali para diante, nada de confiar nos sentidos. Eles estariam na berlinda. Todavia, como colocar as crenças matemáticas e geométricas na berlinda? Como dizer que não confiamos que dois e dois são quatro ou que a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180 graus? Impossível. Isso é certo e indubitável, estando nós aqui acordados ou dormindo, estando nós aqui na Terra ou não. Dessa forma, para colocar verdades do tipo da matemática em dúvida, haveria de encontrar outra estratégia.
Descartes elaborou a estratégia da hipótese do “gênio maligno”. Haveria um gênio instalado em seu pensar, em sua cogitatio, de modo a fazer com que ele se enganasse todas as vezes que ele viesse a pensar, mesmo que pensasse coisas logicamente corretas. Ao assumir tal hipótese, Descartes consegue ampliar sua dúvida de modo irrestrito. Ela é uma dúvida hiperbólica nesse sentido: ocupa todo o espaço. Nada há que não esteja, agora, em dúvida. Mas, ao mesmo tempo em que ele imagina esse forma de duvidar de modo hiperbólico, surge a ele a primeira verdade: para ser enganado o gênio precisa acessá-lo o tempo todo, e isso só pode ser feito se ele, Descartes (ou o eu de qualquer um que se submeter a tal exercício), estiver pensando – cogitando. Eis aí que ele tem sua primeira verdade; e também o critério de verdade, que é a certeza produzida no Cogito: por mais errado que esteja eu pensando, devido à atuação do gênio, se estou errando, estou pensando. Pararei de errar se parar de pensar. Mas enquanto penso e me engano, estou pensando. Sendo assim, eis a certeza subjetiva: “penso, sou”.
Que ninguém se engane, aqui, como o “sou”. Descarte não está dizendo é alguma coisa – ainda não está. Ele diz que é “uma coisa pensante” depois. Mas não precisa de ir mais além para ter um enunciado certo e indubitável. E se quiserem entender melhor, podem ler o “penso, sou” como “penso, existo”. Isso não é a conclusão de um silogismo. É uma evidência, uma intuição intelectual. Mas, às vezes, a literatura o mostra na forma de conclusão: “penso, logo existo”.
Que ninguém diga (não em um primeiro momento) que para pensar é preciso existir. Pois isso não vale. Descartes começa as Meditações duvidando de tudo, dos sentidos e, depois, do intelecto. Portanto, ele não está certo de nada, nem mesmo, é claro, de sua existência.
O que é importante entender é que essa certeza (como toda certeza, pois o verbo certeza implica já remete para o sujeito) é subjetiva. E subjetiva, aqui, não quer dizer mais “só de um homem – Descartes”. Subjetiva, aqui, quer dizer: todo homem que quiser fazer esse exercício, ou melhor, todo ser dotado de razão que quiser meditar, irá chegar à mesma conclusão que eu – diz Descartes. Portanto, ele já está tomando a subjetividade como uma instância universal, e a certeza do cogito, que é seu critério de verdade agora, é o critério universal de verdade. “Penso, sou” é uma verdade todas as vezes que a enuncio, diz Descartes. Sim, correto. E eis que Descartes consegue mostrar algo que é uma crença verdadeira justificada corretamente: é impossível dar uma justificativa que derrube a justificativa arrumada por ele. Sua certeza é indubitável. E qualquer um de nós pode chegar à mesma evidência, à mesma intuição intelectual.
DescartesAssim, o projeto cartesiano é no âmbito da verdade. Mas, a partir dele, e incentivado por ele, as pesquisas filosóficas não serão somente sobre a verdade, mas também sobre o “eu”. A certeza é alguma coisa do âmbito subjetivo. E o trabalho dos filósofos será o de mostrar que o “eu” que apresentam é universal e, ao mesmo tempo, não uma figura estranha aos homens. Os filósofos passam a disputar para mostrar que cada um pode montar uma subjetividade mais abstrata, mais universal e, ao mesmo tempo, menos falha, menos não humana. O projeto moderno acaba, então, de certo modo, até desconsiderando a questão do conhecimento e da verdade, e volta-se para uma epistemologia mais articulada à psicologia ou a uma metafísica do eu. Crescem os estudos sobre os modelos de sujeito. A filosofia passa a ser uma fábrica de sujeitos. Todas as vezes que um filósofo critica o outro, em geral o faz apontando as falhas do sujeito montado pelo outro, e então, é fato, deve mostrar como é que é o seu modelo de sujeito – melhor, mais bem acabado.

Paulo Ghiraldelli Jr. pgjr23@gmail.com

Portal Brasileiro de Filosofia

Em 1913, o filósofo Ludwig Wittgenstein deixou as interrupções e distrações de Cambridge para viver como um ermitão na Noruega. Ninguém o conhecia lá, de modo que ele poderia se focar em seu trabalho sobre lógica, isolado. Funcionou. Ele ficou alojado durante algum tempo com o agente postal em Skjolden, uma vila remota a 200 milhas ao norte da cidade de Bergen e, depois, teve uma cabana construída com vista para o fiorde. Sozinho, ele lutou com as ideias que iriam se metamorfosear em seu Tractatus Logico-Philosophicus (1921). Qualquer um que tentasse passar algum tempo com ele não tinha lá muita atenção. “Vá embora! Agora vão me custar duas semanas para voltar ao ponto onde eu estava antes de você me interromper”, ele supostamente gritou para um morador local que cometeu o erro de cumprimentá-lo quando ele estava parado, pensando sobre o que não poderia ser dito. Da perspectiva de Wittgenstein, o ano que ele gastou na Noruega foi a fonte de muito da sua criatividade filosófica, algumas das ideias mais intensas que esse marcadamente intenso filósofo alcançou em sua vida. Na sua estada ali, ele fez pouco além de pensar, de andar, de assobiar e de sofrer de depressão.
Wittgenstein abrigado na sua “cabana” norueguesa (na verdade, uma casa de madeira de dois andares com uma varanda) é para muitos o modelo de um filósofo trabalhando. Aqui o gênio solitário procurou o isolamento que espelhava os rigores de sua própria filosofia austera. Sem distrações. Sem companhia humana. Apenas uma mente parecida com um laser a pensar sobre primeiros princípios, enquanto ele observava o fiorde ou caminhava sobre a neve. Wittgenstein não foi o único. Boécio, filósofo do século sexto d. C, escreveu sua Consolação da Filosofia confinado numa cela de prisão romana, com sua mente focada em sua execução iminente; Nicolau Machiavel produziu O Príncipe (1532) no exílio, em uma quieta fazenda nos arredores de Florença; René Descartes escreveu suas Meditações sobre filosofia primeira (1641) encolhido ao lado de uma fogueira. Jean-Jacques Rousseau foi mais feliz vivendo no meio de uma floresta, longe da civilização etc. Filosofia em suas formas mais elevadas parece intencionalmente solitária e frequentemente prejudicada pela presença de outras pessoas.
Ainda assim, esse esteriótipo do gênio trabalhando em completo isolamento é enganador, mesmo para Wittgenstein, Boécio, Machiavel, Descartes e Rousseau. A filosofia é eminentemente uma atividade social que prospera com a colisão de pontos de vista e raramente surge do monólogo interior incontestado. Um exame mais de perto do ano de Wittgenstein na floresta norueguesa revela sua correspondência com os filósofos de Cambridge, Bertrand Russell e G. E. Moore. Ele até mesmo convenceu Moore a viajar para Noruega — naqueles dias, em uma árdua viagem por trem e barco — e ficar por duas semanas. O objetivo da visita de Moore foi discutir as novas ideias de Wittgenstein sobre lógica. Na verdade, a ‘”discussão” se transformou no que Wittgenstein (que ainda era tecnicamente um aluno de graduação) disse e no que Moore (que era bem mais eminente à época) ouviu e anotou.
Ainda assim a presença de Moore foi de algum modo necessária para o nascimento dessas ideias: Wittgenstein precisava de uma audiência e de um ouvinte inteligente que pudesse criticá-lo e ajudá-lo a focar-se em seu pensamento, mesmo que essas críticas não fossem ouvidas. E ele não foi o único que precisou de uma audiência. Boécio, em sua cela, imaginou sua visita: a Filosofia personificada em uma mulher alta, com um vestido em que estavam desenhadas as letras de Pi a Teta. Ela o repreendeu por abandonar o estoicismo pregado por ela. O livro de Boécio foi uma resposta ao seu desafio.
Machiavel, entrementes, foi de fato exilado, arrancado das intrigas da vida da corte, um morador da cidade forçado a uma existência bucólica contra sua vontade. Mas, em uma carta ao seu amigo Francesco Vettori de 10 de dezembro de 1513, ele descreveu como passava suas tardes: retirava-se aos seus estudos, evocava grandes pensadores antigos e mantinha conversas imaginárias com eles sobre a melhor forma de governar. Essas conversas imaginárias foram o material bruto de O Príncipe. Descartes pode ter se retirado para escrever e evitado distrações realizando a maior parte de seu trabalho deitado na cama, mas quando ele publicou suas Meditações foi com inúmeros comentários críticos de outros filósofos, incluindo Thomas Hobbes, junto com respostas suas. Da mesma maneira, Rousseau amava a solidão, mas ele incluía diálogos na sua escrita e até escreveu o bizarro livro Rousseau, juiz de Jean-Jacques (1776), no qual ele apresenta duas versões de si próprio debatendo uma com a outra.
A filosofia ocidental teve suas origens na conversação, em discussões cara-a-cara sobre a realidade, o nosso lugar no cosmos e sobre como devemos viver. Começou com algo de mistério, maravilhamento, confusão e com o desejo poderoso de ir além das meras aparências para encontrar a verdade ou, se não, ao menos algum tipo de sabedoria ou ponderação.
Sócrates começou a conversação sobre conversação filosófica. Esse homem pobre e excêntrico que vagou pelo mercado da Atenas do séc. V a. C, abordando os transeuntes e questionando-os em seu célebre estilo, estabeleceu o padrão para o ensino e a discussão filosóficos. Seu pupilo Platão criou eloquentes diálogos socráticos que, nós supomos, capturam algo do que era ser arengado e instigado por seu mentor, embora eles sejam mais como um ato de ventríloquo. O próprio Sócrates, se acreditarmos no diálogo de Platão, Fedro, não tinha lá tanto respeito pela palavra escrita. Ele argumentava que ela era inferior à falada. Uma página escrita pode parecer inteligente, mas a qualquer questão que você lhe dirija ela responderá exatamente do mesmo modo todas as vezes que você a ler – exatamente como esta sentença aqui irá fazer, não importa quantas vezes você retorne a ela.
Além disso, por que um pensador lançaria sementes em solo estéril? Certamente é melhor semear onde mais elas estão propensas a crescer, compartilhar suas ideias de um modo mais adequado à audiência, adaptar o que você diz para quem quer que esteja na sua frente. Wittgenstein fez uma anotação similar em seus cadernos quando escreveu: “Dizer a alguém algo que ele não entenderá é sem propósito, até mesmo se você adicionar algo ele não vai entender”. As inflexões da fala permitiram a Sócrates exercer sua famosa ironia, a dar ênfase, a provocar, a persuadir, a jogar, a tudo que é suscetível de ser mal interpretado na página escrita. Sócrates sugeriu que um filósofo pode escrever algumas notas como lembrete de um pensamento que surge, porém para a comunicação filosófica a conversa era rei.
O uso dos diálogos por Platão refletiu a centralidade da discussão na filosofia. Infelizmente, com as exceções de David Hume nos seus Diálogos a respeito da religião natural (1779) e de Søren Kierkegaard em Ou isso ou aquilo: um fragmento de vida (1843), em que ele faz uso de personagens apresentando pontos de vista alternativos a partir de dentro, poucos filósofos tem conseguido tratar de múltiplas vozes tão bem. Alguns tentam representar o advogado do diabo contra suas próprias ideias, mas como reconheceu John Stuart Mill, críticos imaginários podem ser bem menos enérgicos e usar argumentos mais fracos que os reais.
Até mesmo agora, a filosofia é melhor ensinada fazendo-se uso do método socrático de pergunta e resposta. É verdade, a demanda por longas aulas faz com que seja difícil interagir, mas, como o professor de Harvard, Michael Sandel, tem mostrado com as suas conferências, intituladas Justiça, qual a coisa certa a fazer?, em discussões sobre bem público, até aqui a conversação e o diálogo são possíveis. Isso é de várias formas uma melhora no estilo de ensinar de Wittgenstein, que, de acordo com testemunhos contemporâneos seus, envolvia alunos assistindo a esse gênio atormentado enquanto ele lutava com a suas próprias ideias em desenvolvimento, de vez em quando parando por alguns minutos para olhar sua mão virada para cima, outras vezes amaldiçoando sua própria estupidez: “Que idiota que eu sou!” Cativante como dever ter sido e superior em muitos aspectos a um monólogo ensaiado, isso deve ter sido infligido ad nauseam sobre os graduandos, faltando-lhe o golpe e o impulso dos diálogos socráticos.
As novas tecnologias estão mudando a paisagem em que conversações filosóficas — e indiscutivelmente todas as conversas – acontecem. Isso tem permitido a filósofos contemporâneos atingir audiências globais com suas ideias e levar a filosofia além das salas de aula. Porém há mais desse ‘dito filósofo’ que simplesmente palavras proferidas e ideias discutidas. Aspectos audíveis não verbais da interação, tais como ouvir o sorriso na voz de alguém, um momento de impaciência, uma pausa (ou dúvida, talvez?) ou um insight — esses fatores humanizam a filosofia. Eles tornam impossível pensá-la como uma simples aplicação mecânica de lógica rigorosa e revelam tanto algo sobre o pensador quanto sobre a posição assumida. O entusiasmo expresso pela voz pode ser contagiante e inspirador.
Hobbes respondeu às Meditações de Descartes por escrito, porém imagine o quão fascinante teria sido ouvir e vivenciar os dois pensadores em um diálogo público gravado. De modo igual, se nós pudéssemos ouvir a uma gravação de Wittgenstein discutindo o seu “Tractatus” com Frank Ramsey, um de seus primeiros leitores mais perspicazes, isso poderia muito bem transformar nossos pontos de vista sobre ambos os pensadores. O equivalente dessas conversas imaginárias está sendo gravado agora, dentro e fora das universidades. Elas estão disponíveis livremente na internet: YouTube, iTunes e outros lugares, se você souber onde procurar.
Sem conversa e desafio, a filosofia rapidamente cai no dogma morto que Mill temia. Mas isso não significa que cada ponto de vista seja igualmente válido ou que nós devamos aceitar que cada pessoa encontre sua própria verdade. Todo grande filósofo foi guiado pelo esforço de ir além das aparências e dizer algo importante sobre como as coisas realmente são. A filosofia é uma matéria que põe posições na balança e não apenas as passa adiante. Conversa sem julgamento crítico se torna mera tagarelice e veiculação de opiniões diferentes – como William Empson escreveu em seu poema Let It Go (1949)1:
As contradições abrangem tal escala.
A conversa conversaria e seguiria tão oblíqua.
Você não quer um hospício e tudo o mais que está ali.
Entretanto, foi John Stuart Mill que cristalizou a importância de ter suas ideias desafiadas pelo compromisso com outros que discordam de você. No segundo capítulo de Sobre a Liberdade (1859), ele argumentou a favor do imenso valor de vozes dissonantes. São as dissonantes que nos forçam a pensar, que desafiam a opinião recebida, quem nos empurra para longe do dogma morto em direção às crenças que sobreviveram ao desafio crítico, da melhor maneira que podemos esperar. Dissonantes são de grande valor até mesmo quando elas estão largamente ou até totalmente erradas em suas crenças. Como Mill afirma: “Professores a estudantes vão dormir em seus postos, assim que não houver nenhum inimigo à vista no campo.”
Sempre que a educação filosófica cair no aprendizado de fatos sobre história e textos, regurgitando as posições do professor ou aprendendo de um compêndio, ela se afasta das suas raízes socráticas de conversação. Então isso se torna maléfico para a filosofia e para os estudantes que estão no lado extremo de quem recebe o que o educador radical Paulo Freire, em sua Pedagogia do Oprimido (1970), chamou pejorativamente de “banco” do conhecimento. O objetivo da filosofia não é possuir uma porção de fatos a sua disposição, embora isso seja útil, nem se tornar uma Wikipédia portátil: ao invés disso, ela serve para desenvolver habilidades e sensibilidade para que se seja capaz de argumentar sobre algumas das mais significativas questões que nós podemos perguntar a nós mesmos, questões sobre realidade e aparência, vida e morte, deus e sociedade. Como o Sócrates de Platão nos diz: “Essas questões que estamos discutindo aqui não são questões triviais, nós estamos discutindo como viver.”
Texto traduzido por Vitor Lima do CEFA. Estudante de Filosofia da UFRRJ.
Texto original: WARBUTON, Nigel. Talk with me. Aeon Magazine. Publicado em 23/09/13. Disponível em http://www.aeonmagazine.com/world-views/without-conversation-philosophy-is-no-better-than-dogma/ . Acesso em 05/10/13.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

As rememorações espontâneas de vidas transatas são um argumento bastante importante



O PORQUÊ DA REENCARNAÇÃO

Fabiano Possebon



As rememorações espontâneas de vidas transatas são um argumento bastante importante e favorável à reencarnação. Podemos dizer que as teorias materialistas ou unicistas são acanhadas em tentar explicar esse fenômeno.

Essas lembranças estão efetivamente comprovadas em levantamentos idôneos realizados por pesquisadores eméritos em diversos países. Só para citar um exemplo: Dr. Ian Stevenson, autor do famoso “Vinte Casos Sugestivos de Reencarnação”, desencarnado este ano, catalogou mais de mil casos.

Ocorrem lembranças não intencionais, como no caso Manika, já lançado em vídeo, também no filme “Minha Vida na Outra Vida”, ambos baseados em casos reais, o DVD deste último contém extras com depoimentos de espíritas famosos e uma interessante seleção de fotos.

Ocorrem também lembranças espontâneas através de reencontros, de repetição de situações, desde a sensação de “déjà vu” até as cenas minuciosas, recordações surgidas pela presença de objetos antigos, ou então durante sessões de TVP.

Recordações aparecem também, muitas vezes, provocadas pelos espíritos bons, para entendermos certas circunstâncias da vida atual, quer por clarividência quer por informações através do canal mediúnico ou senão hipnose.

Algumas lembranças são fragmentárias, podem surgir em sonhos, no entanto, outras são bem completas, precisas e claras.

Há evidências, outrossim, no domínio paranormal de um idioma estrangeiro, conhecimento inato de ciências ou fatos, predição de futuro nascimento e que certas circunstâncias acabam comprovando, como vemos em “Vozes  do Antigo Egito”, de Francisco Waldomiro Lorenz.

A reencarnação, só ela, explica as desigualdades morais e intelectuais entre as criaturas, as aptidões, as tendências e idéias inatas; ela funciona como um instrumento de aperfeiçoamento e de redenção do homem na sua qualidade de espírito eterno.

O seu objetivo é fazer com que sejam desenvolvidas as faculdades da alma, a inteligência, sobretudo as aptidões; fazer com que o indivíduo melhore sucessivamente pelo cansaço e exaustão do mal, assinalando exemplos e realizando experiências; influir cada alma, pelos valores assimilados (culturais, intelectuais sentimentais, morais) no progresso da humanidade como um todo, também permitir que se cumpram, através das provas e experiências necessárias, a lei de causa e efeito.

A reencarnação não deve nunca ser vista como castigo, ela é, isso sim, uma oportunidade de ajustamento, corrigindo imperfeições, reabilitando-nos. O seu propósito é a reparação com vistas ao progresso e não o sofrimento. Ela é, fundamentalmente, condição de progresso.

Só mesmo a reencarnação explica os gênios precoces da arte e da ciência, conhecedores da história universal aos dois anos, poliglotas aos três, artistas consumados aos oito e assim por diante!

Uma coisa é certa: o arrependimento puro e simples não traz o alívio desejado, pois a criatura estaria pronta a repetir os mesmos erros. Se o arrependimento surge na vida física ou extrafísica e é sincero, brotará, naturalmente, o desejo de reparação em outra existência. E, nesse caso, o espírito prepara-se para as provas e expiações necessárias. Isto responde à afirmação de muita gente que diz não haver pedido para nascer. Pediu sim, como não?!!

Espero que este artigo atinja o seu escopo, que é o de tecer apenas alguns breves comentários sobre esta bênção maravilhosa que é a reencarnação.

Fonte: Verdade e Luz, edição n°. 259, Agosto de 2007

Federação Espírita do Estado de Mato Grosso 

quarta-feira, 16 de abril de 2014

O direito penal do inimigo.


Günther Jakobs

As críticas emanadas da classe jurídica são, em regra, acertadas, principalmente diante das experiências históricas catastróficas que tivemos, em que muitos estados, após tacharem de "inimigos" alguns (milhares de) indivíduos, deixaram de considerá-los como pessoas, dando, assim, ensejo aos mais insanos dos terrores.
SUMÁRIO: Sumário. 1.Antecedentes jusfilosóficos do conceito de inimigo.2.Fundamentos do "Direito"penal do inimigo. Conclusão: críticas a esse punitivismo exacerbado. Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO

Jakobs menciona alguns precedentes jusfilosóficos. Primeiramente Rousseau, para quem "qualquer ‘malfeitor’ que ataque o ‘direito social’ deixa de ser ‘membro’ do Estado, posto que (sic) se encontra em guerra com este, como demonstra a pena pronunciada contra o malfeitor" [02].
No que concerne a Rousseau, mais nos parece que esse mestre da filosofia política iluminista se refere ao inimigo nos estritos limites da guerra, e não de modo tão amplo como afirma o autor:
A guerra não é pois uma relação de homens, porém de Estado a Estado; só acidentalmente nela são inimigos os particulares, não como homem ou mesmo cidadãos, mas como soldados, não como membros da pátria, mas como defensores dela. Cada Estado, enfim, só pode ter por inimigo outro Estados, e não homens, visto que entre coisas de diversa natureza não há verdadeira relação.
Até esse princípio está de acordo com as máximas estabelecidas em todos os tempos e com prática constantes de todos os povos civilizados. As declarações de guerra são mais advertências aos vassalos que às potências. O estranho que furta, mata ou prende os vassalos sem declarar guerra ao príncipe, ou seja rei, ou particular, ou povo, não é um inimigo, mas um ladrão [...] Sendo o alvo da guerra a destruição do país contrário, há direito de matar seus inimigos, enquanto tiverem na mão as armas; apenas se as depõem e se rendem, cessam de ser inimigos, ou instrumentos do inimigo, tornando-se meramente homens, e já não se tem direito sobre sua vida [03] (grifos nossos).
Assim, entendemos que, embora Rousseau dispense ao inimigo um tratamento diferenciado, não o faz de maneira tão ampla quanto Jakobs. Aquele se restringe aos limites de uma guerra formalmente declarada. Todavia, Jakobs afirma que sua proposta é muito menos ampla do que a desse pensador contratualista. Não nos parece que assim o seja, haja vista que Jakobs admite essa aplicação até mesmo fora do estado de guerra formalmente declarada, bastando a periculosidade do indivíduo.
Hobbes, Fichte e Kant também entram nesse rol de precursores do conceito de inimigo. Hobbes, no mesmo sentido de Kant (mutatis mutandis), afirma que o cidadão não pode ser retirado desse status que lhe é conferido, mas, sim, em casos de prática de crime de alta traição. "Pois a natureza deste crime está na rescisão da submissão [04], o que significa uma recaída no estado de natureza... E aqueles que incorrem em tal delito não são castigados como súditos, mas como inimigos" [05].
O autor traça um paralelo entre esse dois pensadores. Haja vista que, para Kant, esse inimigo não merece ser tratado como pessoa quando se recusa a integrar um "estado comunitário-legal", da mesma forma que Hobbes "despersonaliza o réu de alta traição" [06]. Ambos reconhecem um Direito Penal do cidadão e um "Direito" Penal do inimigo. "Este exclui e aquele deixa incólume o status de pessoa" [07].

2.FUNDAMENTOS DO "DIREITO" PENAL DO INIMIGO

O Direito Penal destinado a tutelar a norma [08] é o que Jakobs chama de Direito Penal do cidadão, que não perde seu status de pessoa em face dos delitos que comete. O "Direito" Penal aqui analisado (do inimigo) não se trata de um Direito propriamente dito, mas de uma coação contra aquele que põe em perigo a paz e a segurança social, persistindo na reiteração dessa quebra de princípios [09].
Nas palavras de Jakobs, "Direito Penal do cidadão mantém a vigência da norma, o Direito Penal do inimigo (em sentido amplo: incluindo o Direito das medidas de segurança) combate perigos; com toda certeza existem múltiplas formas intermediárias" [10]. Como se vê, é negada ao inimigo a sua condição como pessoa.
A própria "despersonalização" do indivíduo já nos parece, em si mesma, uma sanção imposta a priori que nem sequer se reveste de um processo legitimador. Isto é, quer-se desconstituir a pessoa para afastá-la de suas garantias fundamentais, sem qualquer análise para uma fundamentação. Como se não bastasse sua ilegitimidade material, nem se fala em um processo cognitivo ou lógico-valorativo para essa desconstituição.
Nesse sentido, Eduardo Luiz Santos Cabette:
Além disso, praticamente administrativiza a decisão sobre a aplicação desse formato autoritário, vez que na maioria das vezes tal se operará desde a fase investigatória pré-processual. Mesmo quando alguma decisão judicial seja a que determine ou corrobore semelhante tratamento, é incontestável que tratar-se-á invariavelmente de uma escolha arbitrária como uma petição de princípio ou uma profecia que se auto-realiza. Ora, se o Juiz ou uma Autoridade Administrativa atribuem ao réu ou investigado a pecha de "inimigo" ou lhe impõem por quaisquer critérios um "Direito Penal de Terceira Velocidade" [11], suprimindo-lhe garantias básicas, inclusive referentes à sua ampla defesa, como poderá, a partir de então, ser tal decisão eficazmente combatida? Todo o raciocínio torna-se circular (um círculo vicioso): és inimigo; portanto, não há para ti garantias defensivas; portanto, és inimigo... [12].
Essa construção se dirige a coibir os perigos à segurança da comunidade. Até 1985, a abrangência dada a essa teoria punitivista era ainda maior. Após 1999, Jakobs restringiu seu ângulo de abertura, valendo-se sobremodo do terrorismo para exemplificar sua aplicabilidade. Mas não se presta a coibir apenas estes, dirige-se também aos crimes sexuais, à criminalidade econômica, ao tráfico de drogas, ao terrorismo, ao racismo e outros.
Essa concepção punitivista foge de vários axiomas básicos de Direito Penal. Traduz um Direito Penal de autor, tão rechaçado pelas doutrinas do pós-guerra até as atuais. Assim, em delitos dessa natureza, muitos ordenamentos têm equiparado, e.g., a participação à autoria, os atos preparatórios à consumação [13] etc. Dessa forma, não se pune por que se cometeu um delito, mas "por fazer parte’ de alguma maneira, ‘ser um deles" [14]. Isso se dá porque ao inimigo é negada a aplicação do postulado da proporcionalidade, além de muitas outras normas de ordem constitucional.
O Direito Penal do Fato, que é o constitucionalmente legitimado, dá lugar a uma política repressiva que pune o indivíduo pelo que ele é, e não pelo que ele fez ou deixou de fazer. Tenta-se, com essas proposições, o reconhecimento de dois pólos: "o tratamento com o cidadão, esperando-se até que exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade [...], o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade" [15].
Nesse diapasão, o homicida comum é punido somente após a realização da conduta, e como pessoa, com todos os direitos a ela inerentes. Já o chefe de uma organização criminosa é punido pelo fato de sê-lo. Na Alemanha atual, a pena do homicida pode variar de 5 a 15 anos de pena privativa de liberdade; já ao chefe de uma organização terrorista, varia de 3 a 15 anos. Veja que o tipo pode chegar a alcançar a cogitação, e ter uma pena assemelhada à consumação.
Esse pensamento teve forte precedente no Reich alemão, quando um assassino potencial se disse disposto a matar Bismark. Logo após, em 1933, foi sancionado um projeto que punia atos desse natureza (cogitação) com maior ou igual severidade do que se fazia aos crimes consumados, para punir quem "planejasse" matar membros do governo. Em 1935 passou-se a punir também quem cogitasse insurgência contra membros do partido.
O "Direito" Penal do inimigo não se limita, porém, ao direito substantivo. Abarca também o direito processual. Admite, por exemplo, a prisão preventiva independentemente do perigo concreto, factível, que o processado possa representar, baseando-se na periculosidade instintiva do "inimigo".
E mais: a) não se fala em igualdade processual; b) o Poder Executivo pode intervir em desfavor do acusado, podendo interrogá-lo inclusive (recentemente foram divulgadas as técnicas de tortura, mediante simulação de afogamento, utilizadas nos interrogatórios dos "inimigos" nos EUA); c) as interceptações das comunicações são ilimitadas; d) a incomunicabilidade do imputado se legitima etc.
O imputado não é tido como um sujeito processual, que participa do processo, mas como um indivíduo perigoso. Como lembra Meliá, "De novo, como no Direito material, as regras mais extremas do processo penal do inimigo se dirigem a eliminação dos riscos terroristas" [16].
Jakobs analisa o Poder punitivo internacional, no âmbito do Tribunal Penal Internacional e dos instrumentos que visam a defender os Direitos Humanos. Argúe que não se trata de uma preservação de um ordenamento normativo, e, sim, de uma tutela de sua própria criação.
O autor afirma que esse sistema punitivo internacional tem normas que estão em consonância com o "Direito" Penal do inimigo, o que não o torna ilegítimo. Sua posição conflita com o escopo dessas instituições, que, na ótica de inúmeros pensadores, visam a tutelar bens inerentes aos indivíduos e a toda humanidade, todavia, se porventura essas normatizações contiverem "fórmulas" dessa natureza, estas devem ser extirpadas desses ordenamentos.
Em suma, o "Direito" Penal do inimigo se dirige à eliminação de um perigo, o que não exclui a possibilidade de que sejam excluídos aqueles que o Estado assim considere. Nessa vereda, defende-se uma ampla antecipação da punibilidade no curso do iter criminis, ocupando-se de punir fatos futuros, eventuais, e não atual ou passado como se espera.
Conclui-se, portanto, que a antecipação dessa barreira punitiva não se presta a reduzir a pena, pois a proporcionalidade é incompatível com esse sistema [17] e, por derradeiro, que as garantias processuais são afastadas [18]; tudo isso em nome de um "Direito da sociedade".

CONCLUSÃO: CRÍTICAS A ESSE PUNITIVISMO EXACERBADO

Como ocorre com a maioria das teorias desenvolvidas no campo das Ciências Humanas (e também com inúmeros dispositivos legais que são introduzidos no ordenamento jurídico), as interpretações podem tanger para o bem ou para o mal [19]. Como bem expõe Zaffaroni, "O poder instrumentaliza as ideologias na parte em que estas lhe são úteis e as descarta quanto ao resto", e a isso ele dá o nome de manipulação ideológica[20].
Há inúmeros exemplos históricos. O Poder soviético, de Lênin e Stalin, abriu os caminhos trilhados por Marx, no que conduzia a uma ditadura do proletariado, de certa forma carregado de positivismo. Contudo, escondeu até o quanto pode os Manuscritos de Marx, que poderiam levar os opositores a outra interpretação dentro da própria doutrina. Depois de virem à tona esses Manuscritos, passou-se a afirmar que havia "dois Marx": um evoluído e outro imaturo. Nessa esteira, os delitos mais graves eram os que tinham por fim restabelecer o poder da burguesia [21].
O fascismo, na Itália, aproveitou todo conteúdo de "exaltação ao Estado" de Hegel (o que limitou de certo modo a irracionalidade daquele poder), porém, jamais mencionou o continente liberal do pensamento hegeliano. O nazismo, na Alemanha, por sua vez, não se baseava no fundamento de Estado (isto é, fora da concepção neo-hegeliana), mas num conceito de "comunidade de sangue e solo", que se pretendia "purificada", sob uma visão racial, e que buscava exterminar todas as outras "raças" que, ao seu juízo, eram impuras, logo, inimigas da comunidade. Ainda que se diga que o nazismo aplicou com rigor o positivismo de Kelsen, foi pior, pois essa afirmação não leva em conta as aplicações da analogia in mallan partem que foram utilizadas em prol dos interesses da ideologia defendida, mesmo antes da legislação alemã a prever expressamente [22], o que não a tornaria menos absurda.
Isso não é diferente com a teoria do "Direito" Penal do inimigo, embora ainda não tenhamos vislumbrado interpretações defensáveis que pudessem conduzi-lo com preponderância ao caminho do "bem", é dizer, que pudessem retirá-la das margens da arbitrariedade ou das mãos daqueles que visam a esse método de poder, isso no sentido de se buscar uma redução de danos, pois nos parece que os prejuízos que essa teoria pode nos trazer são desmensuravelmemte maiores do que os danos que ela propõe evitar.
Portanto, no nosso sentir, eis "um prato cheio" para os ditadores contemporâneos e para aqueles que vêem na "guerra" (oficializada ou não) uma fonte de poder e mercado para sustentar seus governos e, para tanto, buscam um "inimigo" para tergiversar essas suas tendências (não menos terroristas que aqueles que eles próprios dizem sê-lo).
Atualmente, o "Direito" Penal do inimigo faz ressoar seus efeitos por muitos países. Na América Latina inclusive. Para citar um exemplo trazido por Meliá, na Colômbia, o Presidente tem adotado várias medidas que convergem com essa teoria – e segundo esse autor, "essa aproximação teórica não é ‘ideologicamente inocente". Não obstante, a Corte Constitucional colombiana vem declarando-as inconstitucionais [23].
Nos Estados Unidos, a repressão tem se mostrado um forte instrumento para angariar votos em campanhas eleitorais. Um bem sucedido candidato a governador exibia a foto de um criminoso, prometendo vingança. Outro político, um prefeito de Nova Iorque (Rudolph Giuliani) exaltou a repressão sobre a classe marginalizada [24], representada por negros e imigrantes, num esquema esdrúxulo chamado tolerância zero, e, como se não bastasse "explica idiotices a executivos latino-americanos que lhe pagam cifras astronômicas para ouvir suas incoerências publicitárias" [25].
Jakobs tem falado muito dos ataques de 11 de setembro de 2001, como se fosse um sustentáculo bem vindo para a teoria da coerção ao inimigo (creio que só para a teoria e não para o teórico, evidentemente). Mas, ainda com esse acontecimento, dentre outros, essa tese não se tem mostrado convincente. Um trecho do texto de Zaffaroni talvez reforce o que dissemos:
Os crimes de destruição maciça e indiscriminada ocorridos em 11 de setembro de 2001 e em 11 de maio de 2004 são expressões de violência brutal que, na opinião dos internacionalistas, configuram crimes de lesa-humanidade, os quais, por sua vez, são respostas a outras violências e assim poderíamos continuar até Adão e Eva ou até o primeiro golpe que um hominídeo desferiu contra outro, sem chegar a nenhuma solução com vistas a uma convivência racional no futuro.
[...]
A história ensina que os conflitos que não terminaram em genocídio se solucionaram pela negociação, que pertencem ao campo da política. Porém, a globalização, ao debilitar o poder de decisão dos Estados nacionais, empobreceu a política até reduzi-la à sua expressão mínima. As decisões estruturais atuais assumem, na prática, a forma pré-moderna definida por Carl Schmitt, ou seja, limitam-se ao mero exercício de designar o inimigo para destruí-lo ou reduzi-lo à impotência total. Qualquer pessoa que lê um jornal enquanto toma seu café da manhã – se não limitar a leitura às notícias de esportes – vai se inteirando dos passos que o poder mundial toma rumo aos genocídios, ou seja, rumo ao aniquilamento total daqueles a quem considera seus inimigos.
Como resultado desta sensação de minimização da política da negociação, duas frentes vão sendo delineadas no mundo do pensamento, com seu natural impacto no mundo político: a dos direitos humanos e da negociação, por um lado e, por outro, a da solução violenta que arrasa os direitos humanos e, mais cedo ou mais tarde, acaba no genocídio. A consciência desta disjuntiva é maior onde as experiências do terrorismo de Estado permanecem na memória coletiva, como na Europa e na América Latina, porém não é assim nos Estados Unidos, onde existiram outros abusos repressivos, mas sua população não sofreu, em seu território, nem a guerra nem o terrorismo [26].
Dessa perspectiva de tratar o outro como hostis [27],daninho ou inimigo constrói-se um Direito Penal preventivo. Esse sistema penal encontrou seu inimigo no terrorismo, após os atentados de 11 de setembro de 2001. O caráter preventivo foi emprestado à guerra contra o Iraque. "Como nunca antes, fica evidente a identidade do poder bélico com o poder punitivo na busca desesperada do inimigo" [28].
Na lição de Luigi Ferrajoli, às normas que sigam essa linha dá-se o nome de leis penais constitutivas, ou, nas doutrinas mais freqüentes, direito penal de autor. De tal sorte, são, com efeito, repelidas pela teoria do garantismo, anunciada por este autor: "as normas penais constitutivas, bem se sabe, não vedam, mas, sim, castigam imediatamente. Ou, se preferirmos, não proíbem atuar, senão ser" [29].
Por conseguinte, somos levados a raciocinar que esses atos lesivos à coletividade (o que se chama hoje por terrorismo) não servem de fundamento para que se retire de alguém o status de pessoa, que é inerente a qualquer indivíduo humano (viva ou não como ser de uma sociedade). Em verdade, nem se sabe ao certo, ao menos juridicamente, como se conceituar um ato terrorista [30].
Na Itália, por exemplo, a legislação, de certa forma, também se norteou por essa vereda. Os partidários de grupos terroristas passaram a receber da lei um tratamento diferenciado. E, só para citar um exemplo de como esse tipo de idéia pode ser um imprudente e perigoso instrumento de regozijo político, diante de uma empobrecida capacidade de reflexão desses setores, lembraremos o que aconteceu naquele país após o dia 11 de novembro de 2007.
Naquele dia, o torcedor de um time de futebol, Gabriele Sandri, morreu ao ser baleado por um policial que tentava conter um tumulto. Muitos torcedores se rebelaram, pedindo para que os jogos fossem suspensos em razão do luto. A confusão se expandiu, acarretando saques, confrontos com a polícia e mortes. Isso fez com que a Ministra dos Esportes da Itália, Giovanna Melandri, pedisse urgência na aprovação de projetos que visam a aumentar a pena de torcedores que assim se comportam e que lhes fosse dado tratamento de terroristas.
Ademais, a Procuradoria de Roma anunciou na segunda-feira (dia 12/11/2007) que irá processar por terrorismo os quatro torcedores presos no dia anterior na capital italiana. Aí é que nos perguntamos: quem são os inimigos? Quem os define? No interesse de quem serão assim considerados? Para confortar e trazer a sensação de segurança? Isso traduz um "Direito" Penal simbólico" [31]? Até que ponto um torcedor, um grevista, um sindicalista, um membro de um movimento universitário, ou qualquer outro cidadão pode ser considerado um inimigo ou terrorista? Não se tem resposta mais ou menos alicerçada que satisfaça a qualquer dessas questões, o que dirá definir um inimigo.
Na legislação espanhola, também a título de exemplo, introduziu-se a figura do "terrorista individual", uma tipificação que, de acordo com Meliá, "não se encaixa de nenhum modo com a orientação da regulação espanhola neste setor, estruturada à especial periculosidade das organizações terroristas" [32].
O autor faz essa referência ao apontar o "Direito" Penal do inimigo como um Direito Penal de autor. Ainda nessa direção, Meliá sustenta que "Direito Penal do inimigo" não é Direito e que todo Direito Penal é do cidadão, de modo que "Direito Penal do cidadão’ é um pleonasmo; ‘Direito Penal do inimigo’ uma contradição em seus termos" [33].
No Brasil, há vozes ali e acolá, de alguns setores, que sustentam essa idéia; embora muitas vezes com fundamentação raquítica, o que não a torna menos preocupante [34].
Por isso, não é difícil nos convencermos de que despersonalizar um indivíduo humano é dar azo a despersonalização de toda uma sociedade, podendo-se chegar ao cúmulo da despersonalização, isto é, a despersonalização de toda HUMANIDADE. Exagero? Não.
Imaginemos que a humanidade se dividisse em dois grandes grupos em conflito e que ambos resolvessem considerar o outro como inimigo, despersonalizando-se reciprocamente e trazendo para si a prerrogativa de poder exterminar um ao outro – restariam todos despersonalizados, portanto, desprotegidos pelo Direito.
É por isso que entendemos que o conceito de pessoa não é um conceito de Estado, mas conceito de Direito inerente ao ser humano, que transcende a qualquer soberania. Uma sociedade é formada por pessoas (que se revestem de todos os direitos e garantias a elas inerentes); se uma pessoa pode deixar de ser pessoa, logo uma sociedade pode deixar de ser sociedade, conseqüentemente, humanidade pode deixar de ser humanidade tutelada pelo Direito; tal discurso legitima o genocídio. Isso é inconcebível.
De tal sorte, não se pode afastar o que preceitua o art. 6° da Declaração Universal dos Direitos Humanos: "Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei". Veja que a Declaração nem sequer vislumbra a hipótese de dar outro nome à pessoa senão aquele que realmente traduz aquilo que ela é e deve ser: "pessoa".
São muitos os esforços críticos que têm sido feitos para deixar claro que um "Direito" que despersonaliza o ser humano, privando-o dos direitos que lhes são intrínsecos, não é um Direito e nem sequer pode ser aceito por este.
A nosso ver, esse trabalho de rechaço não se torna tão difícil em razão da sustentabilidade técnica da corrente criticada (que beira ao despotismo global), mas, sim, por sua conveniência política, que muito aproveita àqueles aos quais ela possa satisfazer. A crítica em nada diminui o seu autor, que é um dos grandes penalistas da atualidade, mas, especificamente nesse ponto, sua teoria não nos induz a felicitações.
Diante da velha frase de Jean Carcagne – A qualidade do Direito é inversamente proporcional à quantidade dos argumentos –, pode parecer desnecessário (chegar ao ponto de) ter que defender os Direitos Humanos e afastar um "Direito" Penal que desconsidere a personalidade, mas não o é, sobremodo frente ao panorama que se apresenta no contexto globalizado.

Flagrante de Adultério




Já são 43 anos investigando casos de traição. Maridos e mulheres infiéis que se cuidem: alguém pode estar de olho. Detetives nos anúncios de jornal prometem investigações rápidas e discretas. Antigamente – 20, 30 anos atrás – eram quase só casos de mulheres querendo saber se o marido traía. Hoje, quase 50% dos clientes são homens querendo saber se a mulher é infiel. E esses são, sem dúvida, os casos mais complicados. "A mulher é difícil. Em uma semana de investigação eu pego o homem. A mulher, eu levo dois, três meses", diz a detetive particular Ângela Bekeredjian. "Acho que as mulheres são mais inteligentes".
Se as mulheres traem com mais competência, essa não é a única diferença entre os clientes.
"O homem chega mais retraído, por vergonha de se sentir traído. A mulher já chega falando mal do marido. Dizem: 'Aquele sem-vergonha' Tenho certeza de que ele me trai porque chega com batom no colarinho'", conta Ângela Bekeredjian.
A detetive particular mostra as imagens de uma das investigações mais recentes. Vinte anos atrás, seria um caso raro. O marido contratou Ângela para investigar a mulher, que estava num hotel-fazenda na beira da praia. Ela tinha dito para o marido que iria participar de um congresso no Nordeste, mas estava tendo um caso com um colega de trabalho. As câmeras dos detetives acompanhavam tudo.
"Nós estávamos por fora, em cima do muro e de longe. Naquele momento só os dois estavam lá dentro. Se ficássemos, dava para ver que estávamos investigando", diz Ângela Bekeredjian. As imagens foram gravadas no segundo dia de investigação.
Muitas vezes, a detetive tem que se envolver com a vítima do flagrante.
"Ela foi ao cabeleireiro fora do hotel. Eu fiz meu cabelo também. Foi quando comecei a pegar amizade com ela, porque o agente estava filmando. Ela não desconfiou de nada", conta Ângela Bekeredjian. "Era um congresso a dois. Ela inventou o congresso", diz a detetive particular.
Confirmada a traição, o cliente não quis saber de conversa e pediu a separação. Mas nem sempre o marido termina a história pacificamente.
"Às vezes, ele se torna violento. Tem muitos homens que têm amantes e não aceitam que a mulher traia. Depende da personalidade e do caráter de cada um. Alguns são violentos", conta Ângela Bekeredjian.
Não é o perfil do comerciante Renato, que estava casado há seis anos e continuava apaixonado pela mulher, mas começou a desconfiar que o contrário não era verdadeiro. "Eu me ausentei muito na época. Estava viajando muito e não parava em casa. Você nota que é o comportamento é diferente, as coisas começam a mudar", diz.
Renato resolveu contratar um detetive particular e descobriu. "A sensação não é agradável. Você tem a suspeita, mas nunca espera que seja real". E o pior é que o outro era um amigo dele. "É uma mistura de frustração com raiva. É uma bagunça".
Renato afirma que em seis anos de casamento nunca traiu a mulher. "A gente brinca de dizer 'pior que não'. Eu não tinha necessidade disso", garante.
Seria difícil esconder se não fosse verdade. Pelo menos é o que reza a velha filosofia de um detetive.
"Quando existe alguma coisa fora do casamento, parece que a gente sente. O ser humano muda. É a mesma coisa com a criança que ganha um brinquedo novo", compara Ângela Bekeredjian. Brincadeira que o detetive tem como missão estragar.
Um flagrante difícil. Um noivo desconfiado contratou a detetive 15 dias antes do casamento. Nas imagens mostradas por ela, o casal está num restaurante. A noiva já tinha avisado o noivo que a mãe dela não estava passando bem e que talvez tivesse que sair de repente.
"Aí, o telefone tocou, e ela foi atender", conta Ângela Bekeredjian.
A noiva sai da mesa.
"Ela volta e diz que vai ter que chamar um táxi. O táxi chega e ela entra", descreve Ângela.
Os detetives acompanham de motocicleta.
"Eles param num posto de gasolina. O taxista desce com ela e tira o emblema do carro. Eles entram na loja de conveniência. Eu fico perplexa de ver uma coisa dessas", diz a detetive diante do beijo da traição (foto).
Ela estava traindo o noivo com o taxista. Os detetives continuam filmando até que o casal vai para um motel. "Quer saber do final? Eu chamei o rapaz, e ele foi com a mãe ao motel. Eles fizeram o flagrante e cancelaram o casamento, claro”, conclui a detetive.

ANDREA BOCELLI (HQ) AVE MARIA (SCHUBERT)