domingo, 20 de abril de 2014

Portal Brasileiro da Filosofia

Harry
Perigo! Nossos filósofos alertam: estamos sendo invadidos por bruxos. Vassouras voadoras, feitiços e poções encantadas, eis a que se resume as manifestações que acontecem neste momento nas ruas do País. Há um confronto declarado: bruxos versus trouxas.
O trouxa (muggle), na saga Harry Potter de J.K. Rowling, é simplesmente o nascido não bruxo, aquele que não possui qualquer poder mágico. A intenção é se referir aos não bruxos como aqueles que são de fora do círculo mágico, dando a eles uma certa conotação do que seria o fool, i.e., o tolo, o que não sabe das coisas. Em contraste à escritora, nossos filósofos imaginam que tolos são os bruxos. Mas a quem me refiro quando digo filósofos e a quem me refiro quando digo bruxos?
Dois de nossos filósofos brasileiros mais afamados – e mais politizados, já que fazem questão de serem conhecidos por pertencerem ou à direita ou à esquerda – são Luiz Felipe Pondé e Marilena Chauí. Ambos tentam explicar as manifestações se utilizando do mesmo expediente, enquadrando-as em algo que estaria sob a égide de um “pensamento mágico” ou sustentado por uma “relação mágica”. É a eles que me refiro quando digo filósofos.
No caso da filósofa, o “pensamento mágico” é a ideia de que uma satisfação se dá de modo imediato e direto, bastando para isso somente que ela seja desejada [1]. No caso do filósofo, “relação mágica” é o tipo de noção que dá margem à crença de que uma solução, simples e única, dará conta dos problemas postos [2]. As duas posições surgem como tentativas de explicar, no caso de Chauí, os protestos de junho em São Paulo e, no caso de Pondé, os Black Blocs. “A bruxa está solta!”, posso imaginar nossos filósofos bradando.
Tanto Chauí quanto Pondé relutam em dar legitimidade ao que está acontecendo nas ruas. Ela acredita que pelo fato de não haver mediação institucional, as manifestações não tem autonomia política. Só de modo institucionalmente vinculado que as coisas não se dão de modo mágico, direto, imediato. No dicionário de Chauí parece que imediato, ao invés de ser aquilo que acontece sem intervalo, significa, única e exclusivamente, algo sem uma mediação (do Partido, talvez? Nunca saberemos…). Por seu turno, ele acredita que os atos levados a cabo pelos Black Blocs advém de um modo primitivo de pensar a política que considera que o povo detém uma aura redentora que, por isso mesmo, tem alguma legitimidade para praticar quaisquer atos em nome da justiça social, a violência inclusa. Para Pondé, nas atuais circunstâncias, os Black Blocs são o povo e eles só são violentos devido a uma “relação mágica” entre eles e a política considerada como redenção. Explico mais.
O texto de Pondé se baseia numa analogia do pensamento do mundo atual com o pensamento da Idade Média, de onde ele retira a noção de redenção. Para o filósofo, a redenção medieval em deus equivale à redenção contemporânea na política. Trocando em miúdos, Pondé diz que não há o que explique a violência dos Black Blocs e que qualquer tentativa de legitimá-los incorre no que ele chama de “fetichização do povo”. O fetichismo seria aquilo que apontaria uma entidade que traz uma resposta absoluta. Ter o povo como fetiche, então, é tê-lo como solucionador universal dos problemas políticos. O povo encarnado nos Black Blocs vem para nos redimir – diríamos nós outros na conta da explicação filosófica de Pondé.
Pondé é sardônico, e muito do que ele diz é direcionado mais aos que ele chama de “chatos e bregas” que a quem está comprometido de modo mais efetivo com mudanças politicas. Pondé funciona como um filósofo catarse, cujo propósito é lavar a alma de gente que quer dizer o que ele diz, mas que não possui nem o mesmo vocabulário, nem a mesma e bibliografia que ele carrega. Por isso mesmo, não é difícil encontrá-lo percorrendo caminhos que antes visam satisfazer a esse público que contribuir de modo mais imaginativo para um debate. É o que parece acontecer neste caso.
Dizer que os Black Blocs não passam de violência gratuita é tão ingênuo quanto defender a teoria da política como redenção. O que Pondé denuncia – dizer que tudo se resolve pela política – finda por ser o que ele mesmo defende – que os Black Blocs são meramente resultado da política. É necessário que se force muito a abstração filosófica para ignorar a relação entre a violência de grupos como os Black Blocs e fatos brasileiros (e cariocas) como i) desigualdades econômicas profundas ainda não resolvidas, ii) atitudes mesquinhas de governantes, iii) questões humilhantes na saúde e na moradia, iv) genocídio de pobres causado pelo confronto com a polícia (que cada vez mais consolida sua imagem de máquina de truculência, de tortura e de morte que pratica execuções extra-judiciais) etc. Diante disso, é preciso por a máscara do cinismo e naturalizar o horror e a barbárie para dizer que a violência que ai está é apenas violência causada por uma “relação mágica” e nada mais.
Atitudes explicativas como as de Chauí e de Pondé nos fazem rir de tão deslocadas do que se esperaria de intelectuais do porte de cada um deles. Elas parecem não passar do que Luiz Eduardo Soares chamou de “teatro farsesco do mesmo” [3], ao referir-se à atitude daqueles que defendem simplesmente o quadro da ordem e da legalidade. No caso da filósofa, a ordem é a institucional; no caso do filósofo, a legalidade é a patrimonial privada – eu diria. E já que se trata de uma farsa, volto à comparação com a obra de J.K. Rowling.
Sendo os acontecimentos das ruas sustentados por aquilo que, sinteticamente, podemos chamar de “aura mágica” a ser combatida pela filosofia, racional e científica, parece que tudo se resume não a um fenômeno social que deve ser equacionado, mas sim a uma alegórica batalha de bruxos versus trouxas. Num esforço imaginativo, Pondé e Chauí seriam os Dursley, tios não-mágicos de Harry Potter, e este seria interpretado pelos Black Blocs. É possível uma aproximação: na literatura, a atitude dos tios é de uma ignorância pré-conceituosa que não aceita os poderes mágicos do sobrinho. A vida toda vivendo sob repressões psicológica, material e afetiva, Harry estoura aqui e ali, sempre acompanhado da mesma embasbacada atitude dos tios: “Demos tudo a este garoto, comida, casa, escola… E ele ainda nos trata assim.” Enfim, se o bruxo são os Black Blocs, cabe aos filósofos que alcunha?
Vitor Lima
Estudante de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)e membro do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA)
[1] Chauí explica suas ideias em artigo publicado na revista Teoria e Debate, intitulado As manifestações de junho de 2013 na cidadede São Paulo, no dia 27/06/13. Disponível em http://www.viomundo.com.br/denuncias/marilenachaui-o-inferno-urbano-e-a-politica-do-favor-clientela-tutela-e-cooptacao.html. Acesso em 17/10/2013.
[2] Pondé defendeu essa tese em seu artigo Do mito ao fetiche, na Folha de São Paulo, do dia 14/10/2013. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2013/10/1356032-do-mito-ao-fetiche.shtml . Acesso em 17/10/2013.
[3] A expressão é utilizada por Luiz Eduardo Soares em vídeo intitulado Mensagem ao governador Sérgio Cabral que eu estenderia a toda a sociedade brasileira. Disponível em http://vimeo.com/77130796. Acesso: 17/10/2013.

meu Heidegger essencial

 meu Heidegger essencial

· A fenomenologia[1] de Martin Heidegger (1889-1976) nasceu como uma alternativa ao que Heideggerparecia ao filósofo enclausurar o pensamento ocidental: a metafísica tradicional e o positivismo. A metafísica era a de Platão, na Antiguidade, e tipicamente a de Descartes, nos tempos modernos. O positivismo era não só o de cunho filosófico-sociológico, mas também e principalmente o positivismo lógico, interno à escola da filosofia analítica e exposto pelo Círculo de Viena. Criticando essas escolas de filosofia, Heidegger retomou o que seria o pensamento ontológico, isto é, a busca de uma filosofia que pudesse “desvelar o ser” – o que é. Essa filosofia deveria nos tirar da experiência envolvida com o pensamento de características dualistas da metafísica e do positivismo.
· Mas o que era o dualismo no pensamento, que desgostava Heidegger?
· Heidegger viu na metafísica, segundo o modelo platônico-cartesiano, o nascimento do pensamento dualista, expresso sempre por dicotomias. Em Platão, a dicotomia privilegiada foi a de real-aparente. Nos modernos, a dicotomia real-aparente ganhou uma cobertura epistemológica, gerando a dicotomia sujeito-objeto. Esse tipo de pensamento teria se casado com o Humanismo. O fruto dessa união teria provocado um enfraquecimento da filosofia – o desvio de seu caminho autêntico. Isto é: o desvio de toda a reflexão ocidental.
· Os modernos, imaginando terem se libertado da metafísica – e este era o ideal positivista – teriam sucumbido a uma nova forma de metafísica, aquela em que o projeto cartesiano seria o modelo par excellence. Heidegger chamou a metafísica moderna de “metafísica da subjetividade”.
· modernidade teria reduzido a filosofia a uma discussão sobre a relação, tipicamente epistemológica, entre sujeito e objeto. Segundo Heidegger, o sujeito foi definido como o substrato, o que subjaz a tudo, capaz então de gerar ele próprio o objeto. O objeto, por definição, só é objeto para um sujeito. O sujeito representa para si e em si o objeto – ou como algo que é descoberto ou como algo que é criado pelo sujeito. Até aí, meio problema. O problema mais desagradável teria sido a aliança disso tudo ao Humanismo.
· Com essa aliança, o sujeito passou a ser o homem, e o objeto o mundo. Tudo que se faz no mundo se faria para o homem enquanto sujeito; ou melhor dizendo: o homem seria o palco do mundo e, ao mesmo tempo, o legitimador de tudo que efetivamente existe. O que existe não existiria por si, mas apenas para o homem-sujeito e no homem-sujeito. O mundo todo teria passado a ser não mais o que se faz presente, mas o que é re-presentado no palco chamado homem. Este, o sujeito, seria o fundamento de tudo. O mundo todo teria se transformado, então, em concepção do mundo ou imagem do mundo – aquilo que o homem produz para si mesmo, em seu palco que, enfim, seria o próprio mundo.
· E Heidegger não parou nisso. A noção de representação não poderia deixar de trazer, junto, a idéia de representação exata, isto é, a verdade. Ele viu a noção de representação exata – a verdade correspondencial – como o que é produto do homem ou como o que é encontrado pelo homem. O que isso implicou? Simples: se tudo ganha a propriedade de existência na medida em que é re-apresentado pelo homem, tudo se comporta, ontologicamente, enquanto o que é passível de manipulação – em todos os níveis – pelo homem. Isto é, o sujeito, que é então o homem, não tem outra função que não se relacionar com o objeto. Assim, tudo no mundo, se é para o sujeito, nada é a não ser objeto. O mundo, e o próprio homem nele, são transformados em objetos – em algo manipulável. O homem é o manipulador do homem. Eis no que desembocaria o Humanismo.
· Ao seguirmos este raciocínio, três conseqüências emergem sem dificuldades, especificamente nos campos filósofo, cultural e da vida cotidiana. Na filosofia, a situação denunciada por Heidegger teria produzido a hegemonia da epistemologia: a pretensão de se estabelecer uma teoria para descrever como que o homem descobre ou produz o saber, o que nada seria senão a manipulação em pensamento do meio ambiente. Na cultura, isso teria produzido o domínio da ciência sobre outras manifestações. O resultado: a preponderância do tipo de saber exclusivamente metodológico sobre qualquer outro tipo de saber. No âmbito da vida cotidiana, a tecnologia teria se tornado comandante de tudo o mais. A tecnologia, enfim, teria se transformado no afazer par excellence do homem moderno. Todas as coisas que nos cercam teriam assumido uma única característica, a de ser recurso – o que “rende” e que “não rende”. Nós mesmos nos veríamos assim. Pela educação, principalmente, estaríamos sempre procurando sermos transformados em elementos mais habilidosos para nos mostrar como recurso, tais como os objetos ao nosso redor. Todo nosso propósito seria o de nos fazermos passíveis de troca. Um propósito que pudesse ser chamado de essencial, isto é, imanente às entidades do mundo, teria desaparecido na medida em que nós e todas as coisas do mundo simplesmente teríamos passado a pertencer ao campo da circulação dos objetos imposta pela tecnologia.
· Com a fenomenologia, Heidegger quis escapar desse mundo em que nosso encontro com as coisas e conosco mesmo nos faria imediatamente manipuladores e, então, dominadores e dominados ao mesmo tempo. A manipulação e a dominação implicariam em violência – violência física inclusive. Essa violência teria um corpo bem determinado: a cabeça seria formada pela filosofia enquanto epistemologia ou como “metafísica da subjetividade”, o seu coração seria a ciência e, enfim, as mãos seriam a tecnologia. A violência não seria ilegítima, uma que tudo teria se transformado em peça, em recurso, em coisas que rendem ou não rendem. E tudo que é recurso, coisa, poderia ser violentado sem grandes reclamações. Como a fenomenologia tiraria seu adepto dessa condição?
· Heidegger propôs que viéssemos a perceber o quanto a filosofia como epistemologia, a cultura como Humanismo e a ciência como tecnologia poderiam ser deixadas de lado para que pudéssemos voltar a conviver com o que teríamos perdido: o ser – aquilo que é e que se mostra, e não o que é representado. Que caminho seguir para realizar algo assim? A filosofia que retoma a linguagem e dá a devida atenção a ela deveria apontar um de nossos caminhos. A filosofia poderia se voltar para a linguagem, mas de um modo completamente diferente do que estaria sendo ensinado pelos filósofos analíticos. Nenhuma análise da linguagem daria bom fruto. Não teríamos de reduzir a linguagem para que ela ficasse como que um código simples e, então, pudesse ser colocada em paralelo com o que seriam a sensações, para nos dar o que seria chamado de “contato real com o mundo” – este seria o projeto da filosofia analítica, na sua versão positivista; o projeto inimigo de Heidegger.
· Teríamos de voltar a experienciar a linguagem segundo o que aparece, segundo o fenômeno da linguagem, de modo a deixar aquilo que é – o ser – se manifestar em sua morada. Deveríamos deixar a linguagem se mostrar como ela é – como o que fala para nós e por nós, e não o que é falado segundo nosso comando de pretensos sujeitos.
· Um exercício pode levar ao entendimento do que Heidegger planejou para escapar da condição moderna e deteriorada em que estaríamos vivendo. Por exemplo, olhe você para determinada paisagem na sua janela e comece a descrever o que vê. Perceba que cada coisa que enuncia – prédio, carro, árvore, cachorro – não indica uma experiência sua com o que é enunciado, por sua deliberação. Perceba que cada palavra enunciada já estava dada antes, criada e estabelecida junto de toda uma rede de outras palavras; ou seja, tudo que você aprendeu como sendo uma semântica e uma sintaxe que dão o norte, o rumo, o conteúdo e tudo o mais do que pode fazer ao falar do que fala. Todavia, a paisagem e tudo nela podem deixar de serem percebidos como nomes dados por você, e podem aparecer como efetivamente são. Isso tudo é o que a linguagem diz; e a linguagem é essa rede anterior a você. Essa experiência fenomenológica pode ocorrer, se você ouvir a linguagem. É ela, a linguagem, que fala, e não você que fala com ela. Nela, na linguagem, há a experiência originária – mas não é a sua experiência se você não a escuta. Não é a experiência autêntica se você, em vez de escutar a linguagem, escuta apenas a você mesmo falando. Efetivamente, a experiência fenomenológica mostra que caímos nela, na linguagem, e ela fala por nossa boca. Não enxergamos nada do que pensamos que estamos enumerando e falando em uma descrição, pois o que efetivamente ocorre é a linguagem falando. Então, o melhor é prestar atenção nela e, com sorte, ouviremos o que é – o ser que se manifesta em sua morada, a linguagem. Olhamos para a janela, mas não vemos o que a ciência diz que vemos e o que imaginamos que seria uma experiência. Vemos a luz? Não! Vemos uma coisa. Mas que coisa? A ciência diz que é a luz, por meio de ondas, atinge a coisa e, então, pega nossa retina – e assim vemos a coisa que está diante de nós e emitimos um som com o qual damos nome àquela coisa. É isso? Nada disso. Não vemos a luz ou ondas. E a coisa que vemos só se delimita, só ganha contorno, só recebe algum significado por já estar prenhe de significado na teia da linguagem, e de modo algum fomos nós os autores do significado. Em uma experiência autêntica, para além do que a ciência ensina que é a experiência, vemos coisas que são o que são por estarem se manifestando como som emitido pelas palavras da linguagem; ou seja, ela própria, a linguagem, usando nossa boca, nos fala e fala para todos – nela, em sua rede, há o significado e, então, o som se faz som, palavra. Temos a capacidade de ouvi-la? Essa capacidade de ver o fenômeno da linguagem, nessa dimensão profunda que escapa do modo moderno de conversar (este que implica no sujeito-objeto e na representação) foi o método Heidegger. Foi isso que, em boa medida, ele propôs como filosofia.
Paulo Ghiraldelli Jr, o filósofo da cidade de São Paulo

Popozuda – de Heidegger a Rawls e Nozick


Popozuda - de Heidegger a Rawls e Nozick
Não foi Marx quem autorizou os filósofos a olharem para Valesca Popozuda e enxergarem ali filosofia. Paulo Freire não viu filosofia na cultura popular por causa de suas leituras marxistas, feitas tardiamente.
A base para Freire veio antes, quando da sua entrada na fenomenologia, sucesso para todos de sua época, uma vez que se tratava de uma postura associada ao existencialismo. É claro que Sócrates já teria autorizado Valesca Popozuda a se por como expressão filosófica, mas quem realmente chamou a atenção para isso, entre nós contemporâneos, foi Martin Heidegger.
A respeito de Popozuda ou, melhor dizendo, de expressões culturais e dos afazeres do homem comum, Heidegger escreveu:
  • “A questão é que não estamos de forma alguma ‘fora’ da filosofia; e isso não porque, por exemplo, talvez tenhamos uma certa bagagem de conhecimentos sobre filosofia. Mesmo que não saibamos expressamente nada sobre filosofia, já estamos na filosofia porque a filosofia está em nós e nos pertence; e, em verdade, no sentido de que já sempre filosofamos. Filosofamos mesmo quando não conhecemos nada sobre isso, mesmo que não ‘façamos filosofia’. Não filosofamos apenas vez por outra, mas de modo constante e necessário porquanto existimos como homens. (…) Ser homem já significa filosofar. (…) Como o ser-homem tem, contudo, diversas possibilidades, múltiplos níveis e graus de lucidez, o homem pode encontrar-se de diversas maneiras na filosofia. De modo correspondente, a filosofia como tal pode permanecer velada ou manifestar-se no mito, na religião, na poesia, nas ciências, sem que seja reconhecida como filosofia. E visto que a filosofia como tal também pode se constituir de modo efetivo e expresso, parece que aqueles que não tomam parte no filosofar expresso estão fora da filosofia” (Introdução à filosofia, São Paulo: Martins Fontes, pp. 3-4, 2009).
Quando Paulo Freire começou a trabalhar com educação, percebeu que esse tipo de visão filosófica ia lhe ajudar. Ele vinha de outras leituras, do pragmatismo americano de John Dewey, através de Anísio Teixeira. Dewey era um democratizador da cultura e entendia que a democracia, que ele amava, só poderia se construir se a educação fosse democratizada. Freire acreditava nisso, e viu que a questão básica da educação, quanto ao brasileiro “desenraizado”, não era o de falta de cultura, mas o de não receber consideração pelo que tinha como cultura. Ora, se Heidegger dizia que até o mito, tradicionalmente tomado como o polo oposto da filosofia, continha filosofia, então seria interessante ver o quanto a cultura popular abrigaria elementos filosóficos, já sofisticados, já abertos ao pensar e já frutos do pensar, e reaproveitá-los como ponto de partida na educação. Foi assim que tudo começou no percurso freireano.
Por outras vias, mas segundo cânones que não desmentiriam Heidegger, eu fiz incursões parecidas: arranquei questões metafísicas do sucesso do BBB da Globo, em um livro com o título de Filosofia, amores e companhia (Manole), e também mais recentemente no A filosofia como crítica da cultura (Cortez). Não escrevi sobre Valesca Popozuda, mas não é difícil ver o quanto há, no sentido que Heidegger aponta, de atividade de pensadora no seu trabalho. Mas aqui moram os equívocos fatais. Todo cuidado é pouco.
Heidegger não está dizendo que o homem que não é filósofo profissional filosofa do mesmo modo que o filósofo profissional, ele está informando que há filosofia no que o homem faz, nas suas várias expressões. Extrair questões filosóficas e atividades filosóficas da cultura popular? Sim, e isso de diversos modos, e contando ou não com a clareza do autor do trabalho. Valesca Popozuda pode dizer um verso que expressaria preocupação com a filosofia. Ela quer dizer algo, e quando diz isso e, com tal coisa, diz algo mais, não é ela que tem que afirmar que está em um campo filosófico. Seu papel como “pensadora” é o de quem diz a letra e canta a música; ora, extrair daí o elo entre a filosofia de Vanessa e a filosofia propriamente dita pode muito bem ser a de alguém que estuda filosofia, ajudado pelo filósofo.
Tudo isso parece ser tranquilo se estivéssemos falando de uma lírica de Chico Buarque ou até de outros com menos sofisticação. O que muitos não entendem é que o mesmo se dá com a lírica de Valesca Popozuda, além, é claro, o quanto se pode tirar de sua inserção comportamental na sociedade brasileira (que abordei brevemente em texto anterior).
Eu poderia aqui, a título de exemplo, fazer um exercício de interpretação da Popozuda e mostrar o elo do seu trabalho com a filosofia. Não há espaço para tal, mas dou uma das dicas, no caso de Beijinho no ombro. (1)
A questão filosófica interna da lírica de Valesca é uma das mais importantes da filosofia: a da inveja. Começa na nossa cultura com um caso estupendo: Caim e Abel. Chega à filosofia profissional contemporânea por meio dos debates da filosofia política, a polêmica entre Rawls e Nozick (trabalhada em meu livro Filosofia política para educadores, Manole). Esses dois filósofos discutiram a sociedade como um bom lugar de viver a partir de um termômetro: o da inveja social. Uma sociedade capaz de aumentar a inveja social entre grupos e indivíduos a partir de determinado grau saudável – e isso tem a ver com trabalho, sucesso e consumo –, não iria ela própria desencadear seus mecanismos de entrave da própria vida social? Ora, a la Mamonas Assassinas, ou seja, como o mesmo tom engraçado, não é isso que Valesca está cantando? Em Beijinho no ombro ela está dizendo que tem um “sensor de periguete”. Um radar que localiza a moça que quer aparecer a todo custo, mas não tem nada para mostrar senão o seu protoprojeto. Ela, Valesca, está dizendo que está por cima, e a outra, por baixo. Ela está apontando para o fato de que pode fazer um gesto – que ela mesmo criou – para colocar a piriguete (adversária) na distância cabível. E eis aí o “beijinho no ombro”. Mas está dizendo, também, que a distância pode se dar na base da “porrada” – não é exatamente a violência que preocupa os teóricos quando eles percebem que a sociedade, organizada como está, pode gerar a inveja para além do suportável?
Esse diálogo, o contido na lírica, deve existir em uma sociedade bem arrumada? Essa é a questão central da justiça social e dos graus de inveja que uma sociedade permite. É um problema central da filosofia, o da justiça (social). Começa com a própria filosofia – com Platão. Chega a Rawls e Nozick, o debate entre liberalismo igualitarista e liberalismo libertário. Agora, é claro que esse trabalho, para ser feito, já não depende de qualquer um. A mediação entre Valesca e Platão, Valesca e os contemporâneos, Brasil e filosofia, bem, aí é necessário o filósofo no corpo do professor de filosofia. Sem isso, tudo se perde. Sem isso o banal do qual se parte é apenas reiterado. Não é isso que se faz. Não é isso que Paulo Freire disse que se deveria fazer. O filósofo bem formado, que fez uma boa universidade, está apto a tal trabalho. Deveria estar. Pode estar sim.
© 2014. Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo.
(1) Beijinho no ombro de Wallace Vianna, André Vieira e Leandro Pardal

Mapa Introdutório das Teorias da Verdade

01/07/2008

Dois homens que se preocuparam com os caminhos da América (e do mundo) disseram frases com as palavras “verdade” e “liberdade” interconectadas. Seus nomes: Marcuse e Rorty. Marcuse disse certa vez que ter uma concepção errada de verdade levaria a uma concepção errada de liberdade. Rorty, por seu turno, diferentemente, afirmou que se deixarmos de investigar a verdade (não sabemos como definir) para cuidarmos da liberdade (que sabemos bem o que é quando a perdemos) estaremos fazendo algo melhor com nossas energias.
A investigação que proponho aos que ficarem motivados a partir deste pequeno texto, não deverá contrariar marcusianos e rortianos. Os primeiros poderão investigar o que a filosofia diz atualmente sobre a verdade para, enfim, formularem suas concepções e, então, ver se isso realmente aperfeiçoa suas noções de liberdade.
Os segundos, não estarão gastando energia à toa, uma vez que não estou propondo que se empenhem no tema acreditando que vão fundamentar a liberdade, mas apenas que vão entender, afinal, porque podemos, nos dias de hoje, falarmos meio que esquizofrenicamente. Esquizofrenia? Sim, porque assim agimos: em determinados momentos dizemos “eis aqui a verdade” e, então, quem nos escuta nos alerta “ei, você não é o dono da verdade”, e então, não raro, saltamos de lado e avisamos, “bem, tenho o modo meu de olhar as coisas, esta é a minha verdade”. Ora, mas afinal, quem assim age estava ou não querendo dizer a verdade?
1. O que é “discutir a verdade” em filosofia?
Começo pelo episódio de Pedro. “E passada quase uma hora, um outro afirmava, dizendo: também este verdadeiramente estava com ele, pois também é galileu. E Pedro disse: homem, não sei o que dizes. E logo, estando ele ainda a falar, cantou o galo. E, virando-se o Senhor, olhou para Pedro, e Pedro lembrou-se das palavras do Senhor, como lhe havia dito: antes que o galo cante hoje, me negará três vezes”. Era então a terceira vez que Pedro, ao ser reconhecido como amigo de Jesus, mentia, afirmando que não conhecia seu mestre.
Pedro, o homem que fundou a Igreja de Jesus, o incorruptível, era de fato um corrompido, um grande mentiroso? Pedro foi, sem dúvida, naquele momento, um fraco. Um covarde. E certamente, naquele momento, um mentiroso.
O que caracteriza a mentira?
Jacques Derrida nos lembra a diferença entre o que é mentira e o que é falso. Ele tem de retomar Santo Agostinho para tal, pois é somente a partir de uma perspectiva em que alguma subjetividade está envolvida que a mentira pode se dar. O que vale para Santo Agostinho vale para Derrida: o que conta, para dizer que uma expressão é fruto do ato de mentir, é a intenção de quem a diz. A frase é de Agostinho: ‘não há mentira, apesar do que se diz, sem intenção, desejo ou vontade de enganar’ (Apud Derrida, 1996, p. 10). Derrida diz que “a mentira depende do dizer e do querer dizer, do ato de dizer”, ela “permanece independente da verdade ou falsidade do conteúdo”, ou seja, “daquilo que é dito” (cf. Derrida, 1996, pp 9-11).
Pedro foi mentiroso, porque intencionalmente queria se livrar de Jesus no momento em que, estando seu mestre preso, ele foi apontado como seguidor e, então, viu que poderia também cair em desgraça como subversivo. Mas a noção de falsidade e de verdade não cabem a Pedro, somente ao conteúdo de seu enunciado, de sua sentença: “Homem, não sei o que dizes”. O que Derrida nos ensina é que o enunciado “Homem, não sei o que dizes” é contrastado com outro enunciado, “também este estava verdadeiramente com ele, pois também é galileu”. O que tomamos como estando em jogo, neste caso, são enunciados e, portanto, verdade e falsidade. Embora eles tenham sido pronunciados por homens, um que acusa e outro que se escusa, tais enunciados podem ser desligados de quem os enunciou e se colocarem um contra o outro. Se assim é, o enunciado de Pedro, “homem, não sei o dizes”, será dito como verdadeiro ou falso. Mas se o enunciado é acoplado a uma intenção (o desejo de Pedro de se livrar de Jesus naquele momento ou a tentativa de Pedro de enganar os que o reconheceram), então o enunciado pode ser mentira ou verdade.
No estudo filosófico da verdade, um primeiro ato pode ser o de distinguir os pares falso-verdadeiro e mentira-verdade. Um segundo ato pode ser o de lembrar que certas correntes filosóficas estão menos interessadas em tal distinção do que em investigar a “natureza da verdade”. Aqui, não é o caso de Pedro e seu acusador, mas de Jesus e Pilatos.
“Disse-lhe, pois, Pilatos: logo, tu és rei? Jesus respondeu: tu o dizes que eu sou rei. Eu para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade, ouve a minha voz. Disse-lhe Pilatos: que é a verdade? E, dizendo isso, tornou a ir ter com os judeus, e disse-lhes: não acho nele crime algum”.
Pilatos não podia mesmo ver crime algum. Como o diálogo foi conduzido, importava menos para ele mentiras e verdades, mas sim uma questão metafísica: “o que é a verdade?”. A verdade da verdade – eis o que está em pauta aqui. Ao levar o rumo da conversa para tal encruzilhada, propositadamente, pois ele parecia quer livrar Jesus (ou, ao menos, se livrar do problema), Pilatos não tinha razão para continuar, levantou-se e foi dizer aos judeus que ele não estava encontrando falta alguma em Jesus.
Filosoficamente, a natureza da verdade está relacionada, direta ou indiretamente, às “teorias de verdade”. As teorias tradicionais ou metafisicamente fortes são as que parecem querer explicar o que poderia alimentar respostas à questão “o que é a verdade?”. Muitas vezes, tais teorias respondem positivamente, outras vezes criam grandes enredos para induzir o leitor a captar a noção discutida. As teorias não substantivas de verdade (ou não-metafísicas, ou metafisicamente fracas), por sua vez, tendem a criar descrições de como ocorre na linguagem a participação do termo “verdade” e/ou “verdadeiro” (cf. Blackburn, 1999).
2. Teorias da verdade na filosofia
Podemos criar mapas das teorias de verdade de diversas formas. Susan Haack estabelece um mapa com critério histórico e, em parte, de conteúdo temático: começa por Aristóteles e chega, então, aos vários filósofos analíticos atuais (cf. Haack, 1978, pp. 787-134). Michael Lynch cria um quadro a partir de como as correntes filosóficas respondem sim ou não para a pergunta “a verdade tem uma natureza?” (cf. Lynch, 2001, pp. 1-6). Simon Blackburn estabelece uma divisão entre teorias tradicionais e contemporâneas, colocando na fronteira divisória a sua “escada de Ramsey” (Blackburn, 1999). Donald Davidson, ele próprio personagem importante na história dos mapas anteriores, cria um quadro com quatro posições: a deflacionista, a epistêmica, a realista e a sua própria visão (cf. Ghiraldelli Jr., 2003, p. 9).
Para o que me interessa aqui, ofereço um mapa alternativo brevíssimo. Coloco as teorias de verdade em quatro grandes campos: as teorias tradicionais, as teorias deflacionárias, as teorias não-analíticas contemporâneas e as teorias neopragmáticas. Falarei mais das duas primeiras, ainda que de forma apenas indicativa, e deixarei alusões sobre as duas últimas.
Entre as teorias tradicionais, imagino quatro formulações: teoria da correspondência, da coerência, do pragmatismo clássico, e da teoria da verificação ideal (em parte, pragmatista). Entre as teorias deflacionárias coloco todas as que seguem Ramsey, a partir da teoria da redundância, ou as que seguem Tarski, a partir da teoria semântica da verdade; é possível falar aqui, também, de minimalismo, descitacionismo, teoria performativa, etc. Entre os não analíticos contemporâneos, vale a pena lembrar de observações de Nietzsche, Foucault e Adorno. O neopragmatismo, por seu turno, caminha em formulação, e está dependendo do debate entre Habermas e Rorty (que, então, lêem vários outros, como Hilary Putnam, Robert Brandom, etc.), e nas reformulações que ambos fazem de suas próprias posições na leitura que vem tecendo da obra de Donald Davidson
3. Teorias tradicionais
As teorias tradicionais da verdade são também chamadas de teorias substantivas da verdade. Elas podem ser mostradas em uma formulação ao gosto dos filósofos analíticos e dos manuais de lógica. Para tal, devemos considerar X uma frase ou uma expressão (ou uma sentença, uma proposição, etc. – não faremos distinções aqui, que em geral são feitas em textos sobre o tema que visam serem mais detalhados). Considerando que X é uma frase, uma declaração, um pensamento ou uma proposição, e que o símbolo sse (iff) é o operador “se e somente se”, então essas teorias podem ser expressas assim:
Teoria da Correspondência: X é verdadeiro sse X corresponde a um fato;
Teoria da Coerência: X é verdadeiro sse X é um membro de um conjunto de crenças coerente internamente;
Teoria Pragmatista: X é verdadeiro sse X é útil de se acreditar;
Teoria da Verificação Ideal: X é verdadeiro sse X é provável, ou verificável em condições ideais.
A teoria da correspondência vem da definição de Aristóteles: “Dizer do que é que ele é, ou dizer do que não é que ele não é, é a verdade”. Tal noção tem força intuitiva e, por isso mesmo, a teoria da correspondência parece, à primeira vista, não problemática. Ela diz “X é verdadeiro se e somente se X corresponde a um fato”. Todavia, entre várias objeções que são lançadas contra tal teoria, uma delas é a de que ela cai em um círculo. Afinal, o que é um fato? A definição do que é fato é, em geral, a seguinte: fato é o que realmente acontece; ou fato é o que é verdadeiro; ou fato é o que corresponde à verdade, etc. Definimos a verdade como correspondência a fato usando a idéia de verdade como correspondência a fato – este é o círculo.
A teoria da coerência pode ser apresentada como uma saída para os impasses da teoria da correspondência? O que diz tal formulação é que o erro da teoria da correspondência é justamente querer comparar elementos heterogêneos. Isto é, de um lado há itens lingüísticos e de outro há elementos não-lingüísticos. “X” é algo lingüístico, e o que recebe o nome de “fato” é algo não-lingüístico. A teoria da coerência diz que seria mais adequado comparar o que é da ordem de enunciados com o que também é ordem de enunciados, crenças com crenças, por exemplo. Todavia, não se trata de fazer isso caso a caso, frase por frase. Isso se aplica, dizem os coerentistas, de um modo holístico, levando em consideração sistemas de enunciados ou sistemas de crenças, ou seja, teorias ou “vocabulários” (como diz Rorty) ou “campos de força” (como diz Quine).
Em outras palavras: a verdade, na teoria coerentista, não é um predicado que se aplica a uma frase solitária ou crença isolada, mas se aplica a um conjunto de frases, conjuntos de crenças em um todo, um sistema. Assim, um sistema de crenças é dito coerente quando seus elementos são consistentes entre si em uma rede de crenças, e quando estão dispostos de maneira que detêm um tipo específico de simplicidade capaz de provocar a intelecção racional normal. Dessa forma, o sistema todo e cada um de seus elementos são verdadeiros – a verdade é a propriedade de se pertencer a um sistema harmoniosamente coerente de crenças ou enunciados.
A força intuitiva da teoria da coerência também não é desprezível. E ela ganha adeptos por isso. Mas há uma força intuitiva contrária, que não podemos negligenciar. O que conta contra a teoria coerentista da verdade é que ela parece conduzir ao relativismo. Resumindo ao máximo: o que se faz contra tal teoria é dizer que todos nós conhecemos vários conjuntos harmoniosos de crenças muito bem estruturados em relação aos quais não estaríamos dispostos a gastar uma gota de saliva para defendê-los como verdadeiros em uma discussão. São coerentes, mas não fomentam a coragem para que um conjunto de pessoas de bom senso possa chamá-los de verdadeiros, porque em nada eles convencem de que falam de alguma realidade.
William James e John Dewey buscaram sair dos impasses do correspondentismo e do coerentismo. Eles criam a teoria pragmatista da verdade, que é menos uma teoria do que um procedimento metodológico. O que dizem?
Eles enunciam o seguinte. As teorias de verdade que existem não são ruins, o que falta é falar em condições da verdade. Assim, a teoria pragmatista nasce menos com o intuito de ser uma teoria e mais com a perspectiva de encontrar regras de conduta para quem procura o verdadeiro. Eles tentam discutir menos a correspondência ou a coerência e chamar a atenção para a idéia de que qualquer teoria da verdade deve levar em conta a noção de experiência. Não se trata aqui de experiência somente como experimento, nem exclusivamente de experiência como experiência sensível. Trata-se de experiência no sentido mais amplo possível: experiência de vida, experiência psíquica, experiência de um povo ou de um tempo, e também experiência científica, de laboratório (nunca é demais lembrar que Dewey foi um bom leitor de filosofia alemã, em especial de Kant e Hegel, e guardou bem as noções de Erlebnis e Erfahrung). Então, cada indivíduo que quer saber da verdade deve olhar para a experiência, ou seja, deve olhar para a conduta dos seres humanos. É mais útil acreditar em um enunciado sobre o qual há consenso do que sobre um enunciado que não possui defensores, que está longe do consenso entre os são conhecidos como razoáveis. Este é o pragmatismo de James. A verdade está mais próxima, diz ele, quando as experiências conduzem a um maior consenso. Uma frase que está mais próxima do consenso leva os homens a colocarem as suas fichas nela; mas uma frase que está mais distante do consenso faz, de modo a seguir o que é mais útil, os mais razoáveis se afastarem dela. É nesse sentido específico que se diz que “a verdade é o útil” para o pragmatismo clássico (cf. James, 1997, pp. 112-31).
Dewey, com o mesmo propósito de procurar como rastro da verdade o consenso, elabora sua noção de assertibilidade garantida (warranty assertibility). Ele vê a verdade como o predicado de um enunciado que pode ser, de alguma forma, assegurado – tal enunciado é fruto de uma ação razoavelmente controlada. Após controle e experiência, podemos emitir frases consensuais sobre a experiência realizada. O controle sobre tais ações produz o consenso sobre algumas frases, e estas, então, recebem um selo de garantia. Elas estão asseguradas. Como? Tal selo diz em quais situações nós usaremos os predicados falso ou verdadeiro para o enunciado em questão na medida em que especificam sob que condições eles são falsos ou verdadeiros, isto é, aceitos ou não (cf. Ghiraldelli Jr., 2003; 2007).
Charles S. Peirce elabora uma versão mais estreita do que a de Dewey. Peirce, diferentemente de James e Dewey, pensa a experiência de modo mais delimitado. Ele a vê como experimento. Quando ele fala em experiência controlada, refere-se a experimento sob domínio laboratorial. Então, são enunciados verdadeiros, para Peirce, aqueles que, referindo-se a certas observações, podem receber o consenso de uma comunidade de experts, que estão lidando com a experiência imaginando-a em um limite ideal.
Em relação às três posições dos pragmatistas clássicos, também há objeções. Uma das objeções respeitáveis é sobre a noção de experiência. Ela seria pouco explicativa, não delimitável e, se é para se considerar as sugestões dos pragmatistas como metodológicas e não propriamente teóricas, então a noção de experiência seria vaga, não permitindo ao observador decisões seguras.
4. Teorias não substantivas
A tentativa de solucionar tal problema levou os pragmatistas atuais a direcionarem suas atenções menos para a experiência (como termo geral) e mais para comportamentos possíveis de serem mensurados, como o caso do comportamento lingüístico. Ou seja, o problema parece ter sido senão resolvido ao menos equacionado pela virada lingüística (linguistic turn). De modo mais claro, mais abrangente, então, atualmente avançamos em direção de teorias de verdade que são ao mesmo tempo pragmáticas e lingüísticas. Nesse contexto, em parte há certo abandono das teorias tradicionais, ou há a reformulação delas.
As teorias da verdade, atualmente, se envolvem com a semântica, e a filosofia da linguagem se mistura com a lógica para falar do tema.
Não vou dizer que tudo o que se faz no campo deflacionário é apenas desdobramento das idéias de Frank Pluptom Ramsey. Mas, sem dúvida, suas observações dão uma idéia representativa do espírito das teorias que dessubstantivam a verdade.
Tais teorias desessencializam a verdade ou, no limite, retiram da verdade qualquer carga metafísica. A perspectiva deflacionista nega que há uma questão como esta, a saber: “qual é a natureza da verdade?”.
O filósofo deflacionista diz que a verdade não é uma propriedade “real”, ou “robusta”, ou uma propriedade metafísicamente interessante. Chega a dizer, inclusive, que a verdade não é, absolutamente, um predicado. Alguns deflacionistas, inclusive, sustentam que a concepção de verdade é “redundante”, como os mais ligados à herança de Ramsey, e outros, que se inspiram nos trabalhos da concepção semântica da verdade de Alfred Tarski, advogam que a verdade é uma noção primitiva, necessária na conversação, mas que não pode ser definida (como a noção de ponto em geometria: primitivo, intuitivo, mas não definível). Donald Davidson é um dos adeptos de tal formulação última.
Abaixo, coloco um resumo do espírito do deflacionismo inspirado em Ramsey.
O deflacionista diz o seguinte: se emito a expressão “é verdadeiro que dois e dois são quatro” ou a expressão “é verdadeiro que nada é importante além do amor”, não estou dizendo nada mais do que “dois e dois são quatro” e “nada é importante além do amor”. O termo “verdadeiro” está presente nas frases por uma questão de performance da linguagem. Os falantes dizem “é verdadeiro” no interior de certas frases apenas por uma questão de estilo retórico que ajuda no desempenho comunicativo das frases, ou seja, na melhoria da funcionalidade do discurso, na adequação comunicativa do discurso. Assim, a verdade e o verdadeiro, para os deflacionistas, pertencem não ao campo metafísico, e sim ao campo da pragmática da linguagem.
Isso pode ser formalizado da seguinte maneira pelo deflacionista:
1) quando digo que “é verdade que p”, estou afirmando, de um modo mais eficaz, mais enfático, até talvez mais econômico, apenas “p”;
2) o termo “verdade” não cabe no templo metafísico, mas cabe tão-somente na rua quotidiana dos usos da linguagem.
Isso é o que se pode chamar de uma formulação derivada da “escada de Ramsey”. Do que se trata?
A imagem da escada é a seguinte: na base da escada pode-se dizer “p”; no primeiro degrau, “é verdadeiro que p”; no segundo degrau, “está na ordem do universo que é verdadeiro que p”, e assim por diante. Nos últimos degraus (se é que isso tem fim) há a permissão de criar uma frase a mais aparentemente universal possível, ou a mais profunda possível, de acordo com a performance lingüística desejada. Um deflacionista, então, acredita que, do ponto de vista do que pode encontrar de substancial nas frases que são colocadas nos degraus da escada, a perspectiva do topo da escada é a mesma que a perspectiva da base da escada. Se há alguma diferença entre topo e base, ela não é uma diferença substantiva ou metafísica, mas apenas uma diferença retórica (cf. Ghiraldelli Jr., 2000, pp. 7-22)
5. Para além da dessubstantivação
Resta, agora, lembrar algumas outras passagens que indicam como o tema se desenvolve no dias atuais.
Temos o movimento iniciado por Nietzsche, que alertou para o caráter social da noção de linguagem de um modo bastante específico: o homem teria tido um desenvolvimento: de animal que não sabia fazer promessas para um animal que deveria saber quando fazia uma promessa e como cumpri-la. Tal tarefa teria começado a ser bem desempenhada somente depois de muito sofrimento. O homem teria deixado sua vida natural e passado a viver comunitariamente, podendo então prometer, e assim, vir a ter de cumprir o que prometeu; e para cada não cumprimento, inventou o castigo, a dor – o sofrimento em troca do que não cumpriu. Entender que tem de pagar o que deve e cumprir o que prometeu é, enfim, entender uma forma de convenções sociais. Entre tantas, as da linguagem é uma delas e, no interior desta, a de mentir (extra-moralmente, ou seja, sem que se precise aqui invocar a intenção, no sentido inicial do texto). No mundo comunal, que é convencional, a verdade nada mais é que a mentira socialmente aceita (cf. Nietzsche, 1987).
Foucault, bem mais tarde, usou desse recurso de Nietzsche para desprezar a “busca pela verdade” e, sem medo de paradoxos, propôs mais uma história da verdade do que uma verdade da história (cf. Foucault, 1989).
Antes de Foucault, os filósofos frankfurtianos Adorno e Horkheimer também duvidaram de noções mais comuns de verdade. Adorno, por exemplo, dizia que a verdade não está nem no conceito nem no objeto, mas entre eles – era uma forma de mostrar o quanto a verdade escapulia. Foi uma forma de justificar sua idéia de que a tarefa do filósofo era a de convencer o outro o quanto ele mesmo estava errado (cf. Adorno, 1996).
O debate mais interessante sobre verdade, na filosofia contemporânea, no entanto, é o que ocorre no interior do neopragmatismo. Richard Rorty (cf. Brandom, 2000) tem se fixado na noção de Donald Davidson, a saber, de que a verdade é primitiva e, portanto, ainda que a noção de verdade seja usada – e ele faz um elenco de tal uso – ela não pode ser definida e, assim, não pode ser tomada como algo capaz de decidir situações “para todo o sempre”. Rorty está preocupado em não alimentar concepções fortes de verdade, uma vez que as vê ligadas ao autoritarismo e, de um modo bem estadunidense, ao fundacionalismo (ou fundamentalismo de cunho religioso). Davidson, por sua vez, diz o que diz a partir de um profundo estudo e transformação da teoria semântica de verdade de Tarski (cf. Tarski, 1990; cf. Davidson, 2003). Para Rorty, esta é a base para advogar a posição de que o melhor a se fazer, agora, é não voltar a prestigiar o tema para não reinflacioná-lo. Davidson parece menos preocupado com as conseqüências disso para o debate social. Por fim, Habermas diz estar de acordo com Peirce e Putnam (cf. Putnam, 2002), e avança afirmando que a forma como Rorty lida com o termo verdadeiro, não fazendo as devidas distinções entre “justificação” e “verdade”, é errôneo, e que haveria ainda espaço para um trabalho deweyano de especificação de condições de verdade. A diferença para com Dewey seria, em Habermas, o fato de tais condições especificarem condições de debate e comunicação ideais (cf. Habermas, 2003).
Bibliografia referenciada

Adorno, T. W. Mínima Moralia.
São Paulo: Ática, 1996.
Blackburn, S. e Keith, S. (eds). Introduction. Truth. Oxford: Oxford University Press, 1999.
Brandon, R. (ed.). Rorty and hist critics. Nova York: Blackwell, 2000.
Derrida, J. História da mentira: prolegômenos. Estudos avançados 10(27): pp. 7-39, maio-agosto de 1996.
Davidson, D. Ensaios sobre a verdade. São Paulo: UNIMARCO, 2003.
Foucault, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
Ghiraldelli Jr. P. O que é pragmatismo. São Paulo: Brasiliense, 2007.
Ghiraldelli Jr., P. Davidson: a elegância no labirinto da verdade. In: Davidson, D. Ensaios sobre a verdade. São Paulo: UNIMARCO, 2003.
Ghiraldelli Jr., P. Filosofia da educação e ensino. Ijuí: UNIJUI, 2000.
Ghiraldelli Jr., P. Neopragmatismo e verdade: Rorty em conversação com Davidson e Habermas. São Paulo: FFLCH-USP, 2001 (tese de doutorado), 2001.
Haack, S. Philosophy of logic. Cambridge: Cambridge University Press, 1978.
Habermas, J. Truth and justification. Cambridge: MIT Press, 2003.
James, W. Pragmatism’s conception of truth. In: Menand, L. (ed.). Pragmatism – A reader. Nova York: Vintage Books, 1997.
Lynch, M. P. The nature of truth. Cambridge: MIT, 2001.
Nietzsche, F. Verdade e mentira em um sentido extra moral. In: Nietzsche – Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1987.
Putnam, H. The colapse of the fact/value dichotomy. Cambridge: Havard University Press, 2002.
Tarski, A. A concepção semântica da verdade e os fundamentos da semântica. In: Existência e linguagem. Lisboa: Editorial Presença, 1990.

© Paulo Ghiraldelli Jr filósofo, do Centro de Estudos em Filosofia Americana e da International Pragmatism Society.

Os pobres têm filhos? Sim, é o proletariado!


Miséria - esta é a charge descabelada, errada, burra, que deu origem ao meu pequeno texto aqui.
O Brasil é um dos países que mais produz sociologia da pobreza e um dos países em que nossa elite, que estuda tal coisa, menos conhece o pobre.
Encontro gente acreditando que as mulheres pobres têm muitos filhos por falta de informação (como se a pílula fosse desconhecida das mulheres pobres). Encontro outros imaginando que as mulheres têm muitos filhos porque o governo incentiva (como se o proletariado fosse proletariado, ou seja, os que têm prole, a partir do governo do Lula!). Meu Deus! Qualquer estudo sócio-psicológico, com base antropológica, aponta fácil que:
1) ser mãe dá novo status na comunidade pobre perante vizinhos, amigos e familiares;
2) garante por mais tempo a atenção do companheiro e amplia seu orgulho na comunidade como “pai”, “macho” etc., isso reverte em benefício para a mulher;
3) e logo depois que as crianças ficam grandinhas, elas facilitam as tarefas domésticas, ajudam na companhia e, principalmente, integram a mulher como pessoa na vida das mulheres que, enfim, são todas mães.

Miséria - esta é a charge descabelada, errada, burra, que deu origem ao meu pequeno texto aqui.
Miséria – esta é a charge descabelada, errada, burra, que deu origem ao meu pequeno texto aqui.

Não entender isso é não entender nada da vida comunitária, que é bem diferente da vida mais liberal, digamos assim, da mulher de classe média com profissão não braçal. Por isso o proletariado é proletariado mesmo num mundo com pílula.
Aliás, muitas vezes não se entende isso porque o paradigma liberal em ciências humanas acaba não convivendo com o paradigma comunitarista. Uma melhor integração entre leituras de autores liberais e comunitaristas, por parte de estudantes de ciências humanas, poderia melhorar isso.
© 2014 Paulo Ghiraldelli, filósofo.

Descartes: o nascimento da “metafísica da subjetividade”




Crânio de Descartes no Museu do Homem, na FrançaO químico sueco Berzelius andou por Paris e ficou sabendo que no túmulo de Descartes não havia nenhum crânio. Isso o impressionou. Quando de volta para a Suécia, vagueando pelas ruas de Estolcomo, foi avisado de um leilão em que uma das peças era o crânio de Descartes. Berzelius foi ter com o comprador e conseguiu o crânio. Entregou-o ao governo francês. Foi assim que o crânio de Descartes chegou à sua terra natal. Isso foi em 1821. Descartes faleceu em 1650, na Suécia. Quase dois séculos de separação entre “corpo” e “cabeça”. Eles foram unidos, depois disso?
Quando os ossos de Descartes foram transferidos da Suécia para a França, houve a separação. Para comodidade da viagem, de modo a sobrar espaço, colocaram a cabeça em uma caixa e esqueleto na urna, e um capitão resolveu ficar com o crânio. Roubo – é claro. Mas bem intencionado, disse o homem. Era para preservar o crânio! Hoje este crânio contém o nome dos seus vários proprietários, e outras inscrições esquisitas. Está no Museu do Homem, em Paris. Fica lá, ao lado do crânio marcado como “Cro-magnon, idade 100 mil anos”. Nunca mais conseguiu voltar para junto do resto do esqueleto.
Caso possamos – de modo grosseiro – dizer que o crânio abriga o cérebro e este é o “lugar” da mente, então eis aí a separação mente-corpo de Descartes. A única plausível. Pois, ao contrário do que os estudantes (e até professores) de Ciências Cognitivas imaginam, Descartes não “separou corpo e mente”. Aliás, é horrível escutar esse enunciado. É coisa de quem ouviu o galo cantar, mas não sabe onde.
Nas Meditações, Descartes deixou claro que o homem “não é um piloto em seu navio”, não é uma mente comandando um barco, mas um todo coeso. A consideração que Descartes fez, apontando para uma dupla substância, a res cogitans e a res extensa, era puramente metodológica. O mental não ocuparia espaço e o não mental ocuparia espaço, e isso deveria implicar em alguma coisa a mais, pensou ele. Eis aí o “dualismo cartesiano” – não mais que isso. De modo algum Descartes quis dizer que poderíamos entender o homem por meio de uma separação entre “corpo” e “mente”. Poderíamos fazer pesquisas metafísicas com tal dualismo, mas não pesquisas filosóficas e antropológicas a respeito do homem.
O projeto de Descartes, ao menos no campo filosófico em sentido estrito, isto é, metafísico, nãoDescartes com a Rainha Christina, da Suécia era o de “entender o homem”. No campo metafísico seu projeto era o de mostrar a inconsistências de posições relativistas e, enfim, céticas – um projeto tradicional em filosofia, portanto. Um projeto herdeiro daquele que o próprio Platão se fez porta voz, depois de Parmênides e Heráclito: o de encontrar e bloquear os mecanismos pelos quais nós nos enganamos e tomamos o falso pelo verdadeiro. Como bloquear isso? Conseguindo uma primeira verdade indubitável. Bastaria uma, as outras poderiam ser tiradas por dedução, por silogismos corretos. Isso deveria, talvez, lhe dar um critério, um modo de saber quando se estaria diante de um enunciado ou pensamento verdadeiro, isto é, certo. E, para tal, ele começou pelo mesmo ponto de Platão: na discussão com a conversa do cético. E o que dizia o cético?
O que diz um cético profissional? O cético não duvida da verdade. Ele duvida do conhecimento. Ele nos fustiga dizendo que o conhecimento não é possível. Conhecimento, lá em Platão, é “crença verdadeira justificada”. E assim também no tempo de Descartes e, de certo modo, ainda hoje utilizamos (em parte) tal definição.[1] O cético não vai dizer que a verdade não existe, pois isso tornaria essa sua frase uma auto-refutação. Ele diz que não conseguimos lhe dar uma boa justificação do que afirmamos ser verdadeiro e, então, o conhecimento é que é o ponto sobre o qual recai a dúvida. Explico isso com um exemplo. E eis aí a oportunidade para uma visita de volta a Platão.
A sofística e, no seu interior, a retórica, foram os inimigos eleitos por Platão para serem alvejados. Sua pesquisa em torno do que seria o ponto fraco dos sofistas resultou na sua célebre distinção entre “crença verdadeira” e “conhecimento”. Platão tratou da distinção entre conhecimento e crença verdadeira principalmente no Teeteto (e no Menon). A questão posta no Teeteto é exemplificada com o caso cotidiano da investigação sobre um crime e de como que um júri pode chegar a responsabilizar ou não o apontado como culpado. Podemos imaginar que estamos assistindo um júri (de tipo americano) em que Joana é a vítima de um assalto levado a cabo por José, que está presente e é réu. Tudo que Joana conta sobre o episódio do roubo é bastante plausível e, embora não existam testemunhas, a carteira de Joana é encontrada com José e ele não tem qualquer álibi, nenhuma história plausível para se safar da acusação e, o que é pior, sabe-se que ele já cometeu outros roubos. Por tudo que ouvimos, estamos convencidos de que a verdade está com Joana: ela reconheceu José como assaltante e descreveu o evento do assalto com detalhes, enquanto que José não conseguiu desmenti-la. O júri parece que concorda com nossa opinião. O advogado de José tem o semblante carregado, pois ele não consegue disfarçar sua preocupação, como se ele admitisse que o que Joana diz é verdade e que não há maneira de amenizar a situação de José. A partir disso, podemos dizer que sabemos que Joana foi roubada por José? DescartesNão há razão para acreditar que Joana não esteja falando a verdade, e temos a crença, então, de que o que diz é verdadeiro. No entanto, apesar de nossa crença, não podemos afirmar que sabemos que Joana foi assaltada por José. Não podemos dizer que temos conhecimento disso – não no sentido correto do termo “conhecimento” ou do termo “saber”. Em um júri, não estaria Joana com outras intenções e, José, apesar de já ter cometido crimes, não poderia estar calado por causa de ameaças de alguém ligado a Joana, ainda que não tenhamos qualquer indício de que ela se liga a esse tipo de prática? Joana, afinal, não seria uma mestra da retórica, capaz de dar várias vezes descrições idênticas, e enfáticas, de um evento que não ocorreu, ou que não ocorreu nos termos que ela insiste em dizer que ocorreu? Nesse tipo de caso, Platão diz (usando Sócrates) que a crença verdadeira que temos não é conhecimento. Da crença verdadeira, uma vez assim definida – verdadeira – não há o que duvidar. Se a qualificamos como verdadeira, o caso está encerrado (quando digo “eu acredito em X”, é claro que estou tomando que é X é um enunciado verdadeiro). Todavia, quanto ao conhecimento, caberia a dúvida. Caso tivéssemos visto o assalto bem de perto e reconhecido José e Joana, então poderíamos dizer: “sabemos que José assaltou Joana” ou “temos conhecimento do assalto e este assalto foi praticado por José contra Joana”. Do conhecimento, como Platão o toma, cabe duvidar, pois não conseguimos, só com o que acreditamos e assumimos como verdadeiro, dizer que sabemos o que o ocorreu. A dúvida do cético recai sobre o conhecimento.
Sendo assim, para escapar do cético, o filósofo deve mostrar que “crença verdadeira bem justificada” é possível, insistindo, então, que a justificação é algo realizável ou alcançável. Descartes entendia, portanto, que precisava apenas de uma única e primeira verdade, e essa verdade deveria ser irrefutável, isto é, não haveria qualquer justificação contra ela melhor do que a que estivesse a seu favor. Ela viria com suas justificações e traria a “clareza e distinção”. Tais justificações deveriam se tornar, elas próprias, o critério de verdade – a régua infalível pela qual poderíamos dizer que sabemos algo. Uma régua que não precisaria, ela mesma, de outra régua para avaliá-la – pois é esse o problema que aparece quando queremos critérios.
Caso Descartes fosse um antigo, ele procuraria esse critério em qualquer outro lugar, menos no âmbito do “eu”. Mas, sendo moderno, tendo passado por uma educação em que o “eu” foi construído e aperfeiçoado, tendo experimentado anos de cultura que trouxeram a alma como uma noção muito mais complexa do que era para os antigos, foi natural para Descartes jogar suas fichas no que veio a ser conhecido como sujeito.
Seu raciocínio começa pela aceitação da dúvida. O cético quer duvidar, não é? Pois então, que duvide, mas ele tem de duvidar com método. Descartes se põe na condição de cético e passa a mostrar com é que se duvida metodicamente. Não há como duvidar de tudo, pois isso seria um projeto infinito, então, devo duvidar de algo que, caso minha dúvida se mostre eficaz, todo o resto entrará automaticamente em dúvida, até mesmo as crenças e enunciados que desconheço. Descartes resolveu investigar, então, não o conhecimento, mas as faculdades que deveriam ter propiciado a ele ter em sua posse o que até então chamava de conhecimento. Colocou em dúvida, dessa maneira, as faculdades pelas quais o conhecimento é gerado: os sentidos, a imaginação e o intelecto.
Nas Meditações Descartes afirma que tudo que tem ou passou pelos sentidos ou lhe é inato. Então, duvidar de tudo que tem e tudo que um homem pode ter é duvidar dos sentidos e da razão (a imaginação estaria subordinada aos sentidos). O que veio pelos sentidos, teria sua primeira morada no exterior à sua alma. O que não veio pelos sentidos e, no entanto, está em sua alma, teria vindo junto com ele ao mundo – seria um conjunto de crenças inatas. As primeiras serviriam para as ciências empíricas, como a física, as segundas construiriam as ciências puramente intelectuais, como a matemática ou geometria. Sua idéia básica e, então, a de colocar tudo em dúvida – o que vem dos sentidos e o que já está, de modo inato, no intelecto. Como fazer isso?
Com os sentidos Descartes vê que a atuação é fácil. Os sentidos parecem já o ter enganado ao menos uma vez. Então, dali para diante, nada de confiar nos sentidos. Eles estariam na berlinda. Todavia, como colocar as crenças matemáticas e geométricas na berlinda? Como dizer que não confiamos que dois e dois são quatro ou que a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180 graus? Impossível. Isso é certo e indubitável, estando nós aqui acordados ou dormindo, estando nós aqui na Terra ou não. Dessa forma, para colocar verdades do tipo da matemática em dúvida, haveria de encontrar outra estratégia.
Descartes elaborou a estratégia da hipótese do “gênio maligno”. Haveria um gênio instalado em seu pensar, em sua cogitatio, de modo a fazer com que ele se enganasse todas as vezes que ele viesse a pensar, mesmo que pensasse coisas logicamente corretas. Ao assumir tal hipótese, Descartes consegue ampliar sua dúvida de modo irrestrito. Ela é uma dúvida hiperbólica nesse sentido: ocupa todo o espaço. Nada há que não esteja, agora, em dúvida. Mas, ao mesmo tempo em que ele imagina esse forma de duvidar de modo hiperbólico, surge a ele a primeira verdade: para ser enganado o gênio precisa acessá-lo o tempo todo, e isso só pode ser feito se ele, Descartes (ou o eu de qualquer um que se submeter a tal exercício), estiver pensando – cogitando. Eis aí que ele tem sua primeira verdade; e também o critério de verdade, que é a certeza produzida no Cogito: por mais errado que esteja eu pensando, devido à atuação do gênio, se estou errando, estou pensando. Pararei de errar se parar de pensar. Mas enquanto penso e me engano, estou pensando. Sendo assim, eis a certeza subjetiva: “penso, sou”.
Que ninguém se engane, aqui, como o “sou”. Descarte não está dizendo é alguma coisa – ainda não está. Ele diz que é “uma coisa pensante” depois. Mas não precisa de ir mais além para ter um enunciado certo e indubitável. E se quiserem entender melhor, podem ler o “penso, sou” como “penso, existo”. Isso não é a conclusão de um silogismo. É uma evidência, uma intuição intelectual. Mas, às vezes, a literatura o mostra na forma de conclusão: “penso, logo existo”.
Que ninguém diga (não em um primeiro momento) que para pensar é preciso existir. Pois isso não vale. Descartes começa as Meditações duvidando de tudo, dos sentidos e, depois, do intelecto. Portanto, ele não está certo de nada, nem mesmo, é claro, de sua existência.
O que é importante entender é que essa certeza (como toda certeza, pois o verbo certeza implica já remete para o sujeito) é subjetiva. E subjetiva, aqui, não quer dizer mais “só de um homem – Descartes”. Subjetiva, aqui, quer dizer: todo homem que quiser fazer esse exercício, ou melhor, todo ser dotado de razão que quiser meditar, irá chegar à mesma conclusão que eu – diz Descartes. Portanto, ele já está tomando a subjetividade como uma instância universal, e a certeza do cogito, que é seu critério de verdade agora, é o critério universal de verdade. “Penso, sou” é uma verdade todas as vezes que a enuncio, diz Descartes. Sim, correto. E eis que Descartes consegue mostrar algo que é uma crença verdadeira justificada corretamente: é impossível dar uma justificativa que derrube a justificativa arrumada por ele. Sua certeza é indubitável. E qualquer um de nós pode chegar à mesma evidência, à mesma intuição intelectual.
DescartesAssim, o projeto cartesiano é no âmbito da verdade. Mas, a partir dele, e incentivado por ele, as pesquisas filosóficas não serão somente sobre a verdade, mas também sobre o “eu”. A certeza é alguma coisa do âmbito subjetivo. E o trabalho dos filósofos será o de mostrar que o “eu” que apresentam é universal e, ao mesmo tempo, não uma figura estranha aos homens. Os filósofos passam a disputar para mostrar que cada um pode montar uma subjetividade mais abstrata, mais universal e, ao mesmo tempo, menos falha, menos não humana. O projeto moderno acaba, então, de certo modo, até desconsiderando a questão do conhecimento e da verdade, e volta-se para uma epistemologia mais articulada à psicologia ou a uma metafísica do eu. Crescem os estudos sobre os modelos de sujeito. A filosofia passa a ser uma fábrica de sujeitos. Todas as vezes que um filósofo critica o outro, em geral o faz apontando as falhas do sujeito montado pelo outro, e então, é fato, deve mostrar como é que é o seu modelo de sujeito – melhor, mais bem acabado.

Paulo Ghiraldelli Jr. pgjr23@gmail.com

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Em 1913, o filósofo Ludwig Wittgenstein deixou as interrupções e distrações de Cambridge para viver como um ermitão na Noruega. Ninguém o conhecia lá, de modo que ele poderia se focar em seu trabalho sobre lógica, isolado. Funcionou. Ele ficou alojado durante algum tempo com o agente postal em Skjolden, uma vila remota a 200 milhas ao norte da cidade de Bergen e, depois, teve uma cabana construída com vista para o fiorde. Sozinho, ele lutou com as ideias que iriam se metamorfosear em seu Tractatus Logico-Philosophicus (1921). Qualquer um que tentasse passar algum tempo com ele não tinha lá muita atenção. “Vá embora! Agora vão me custar duas semanas para voltar ao ponto onde eu estava antes de você me interromper”, ele supostamente gritou para um morador local que cometeu o erro de cumprimentá-lo quando ele estava parado, pensando sobre o que não poderia ser dito. Da perspectiva de Wittgenstein, o ano que ele gastou na Noruega foi a fonte de muito da sua criatividade filosófica, algumas das ideias mais intensas que esse marcadamente intenso filósofo alcançou em sua vida. Na sua estada ali, ele fez pouco além de pensar, de andar, de assobiar e de sofrer de depressão.
Wittgenstein abrigado na sua “cabana” norueguesa (na verdade, uma casa de madeira de dois andares com uma varanda) é para muitos o modelo de um filósofo trabalhando. Aqui o gênio solitário procurou o isolamento que espelhava os rigores de sua própria filosofia austera. Sem distrações. Sem companhia humana. Apenas uma mente parecida com um laser a pensar sobre primeiros princípios, enquanto ele observava o fiorde ou caminhava sobre a neve. Wittgenstein não foi o único. Boécio, filósofo do século sexto d. C, escreveu sua Consolação da Filosofia confinado numa cela de prisão romana, com sua mente focada em sua execução iminente; Nicolau Machiavel produziu O Príncipe (1532) no exílio, em uma quieta fazenda nos arredores de Florença; René Descartes escreveu suas Meditações sobre filosofia primeira (1641) encolhido ao lado de uma fogueira. Jean-Jacques Rousseau foi mais feliz vivendo no meio de uma floresta, longe da civilização etc. Filosofia em suas formas mais elevadas parece intencionalmente solitária e frequentemente prejudicada pela presença de outras pessoas.
Ainda assim, esse esteriótipo do gênio trabalhando em completo isolamento é enganador, mesmo para Wittgenstein, Boécio, Machiavel, Descartes e Rousseau. A filosofia é eminentemente uma atividade social que prospera com a colisão de pontos de vista e raramente surge do monólogo interior incontestado. Um exame mais de perto do ano de Wittgenstein na floresta norueguesa revela sua correspondência com os filósofos de Cambridge, Bertrand Russell e G. E. Moore. Ele até mesmo convenceu Moore a viajar para Noruega — naqueles dias, em uma árdua viagem por trem e barco — e ficar por duas semanas. O objetivo da visita de Moore foi discutir as novas ideias de Wittgenstein sobre lógica. Na verdade, a ‘”discussão” se transformou no que Wittgenstein (que ainda era tecnicamente um aluno de graduação) disse e no que Moore (que era bem mais eminente à época) ouviu e anotou.
Ainda assim a presença de Moore foi de algum modo necessária para o nascimento dessas ideias: Wittgenstein precisava de uma audiência e de um ouvinte inteligente que pudesse criticá-lo e ajudá-lo a focar-se em seu pensamento, mesmo que essas críticas não fossem ouvidas. E ele não foi o único que precisou de uma audiência. Boécio, em sua cela, imaginou sua visita: a Filosofia personificada em uma mulher alta, com um vestido em que estavam desenhadas as letras de Pi a Teta. Ela o repreendeu por abandonar o estoicismo pregado por ela. O livro de Boécio foi uma resposta ao seu desafio.
Machiavel, entrementes, foi de fato exilado, arrancado das intrigas da vida da corte, um morador da cidade forçado a uma existência bucólica contra sua vontade. Mas, em uma carta ao seu amigo Francesco Vettori de 10 de dezembro de 1513, ele descreveu como passava suas tardes: retirava-se aos seus estudos, evocava grandes pensadores antigos e mantinha conversas imaginárias com eles sobre a melhor forma de governar. Essas conversas imaginárias foram o material bruto de O Príncipe. Descartes pode ter se retirado para escrever e evitado distrações realizando a maior parte de seu trabalho deitado na cama, mas quando ele publicou suas Meditações foi com inúmeros comentários críticos de outros filósofos, incluindo Thomas Hobbes, junto com respostas suas. Da mesma maneira, Rousseau amava a solidão, mas ele incluía diálogos na sua escrita e até escreveu o bizarro livro Rousseau, juiz de Jean-Jacques (1776), no qual ele apresenta duas versões de si próprio debatendo uma com a outra.
A filosofia ocidental teve suas origens na conversação, em discussões cara-a-cara sobre a realidade, o nosso lugar no cosmos e sobre como devemos viver. Começou com algo de mistério, maravilhamento, confusão e com o desejo poderoso de ir além das meras aparências para encontrar a verdade ou, se não, ao menos algum tipo de sabedoria ou ponderação.
Sócrates começou a conversação sobre conversação filosófica. Esse homem pobre e excêntrico que vagou pelo mercado da Atenas do séc. V a. C, abordando os transeuntes e questionando-os em seu célebre estilo, estabeleceu o padrão para o ensino e a discussão filosóficos. Seu pupilo Platão criou eloquentes diálogos socráticos que, nós supomos, capturam algo do que era ser arengado e instigado por seu mentor, embora eles sejam mais como um ato de ventríloquo. O próprio Sócrates, se acreditarmos no diálogo de Platão, Fedro, não tinha lá tanto respeito pela palavra escrita. Ele argumentava que ela era inferior à falada. Uma página escrita pode parecer inteligente, mas a qualquer questão que você lhe dirija ela responderá exatamente do mesmo modo todas as vezes que você a ler – exatamente como esta sentença aqui irá fazer, não importa quantas vezes você retorne a ela.
Além disso, por que um pensador lançaria sementes em solo estéril? Certamente é melhor semear onde mais elas estão propensas a crescer, compartilhar suas ideias de um modo mais adequado à audiência, adaptar o que você diz para quem quer que esteja na sua frente. Wittgenstein fez uma anotação similar em seus cadernos quando escreveu: “Dizer a alguém algo que ele não entenderá é sem propósito, até mesmo se você adicionar algo ele não vai entender”. As inflexões da fala permitiram a Sócrates exercer sua famosa ironia, a dar ênfase, a provocar, a persuadir, a jogar, a tudo que é suscetível de ser mal interpretado na página escrita. Sócrates sugeriu que um filósofo pode escrever algumas notas como lembrete de um pensamento que surge, porém para a comunicação filosófica a conversa era rei.
O uso dos diálogos por Platão refletiu a centralidade da discussão na filosofia. Infelizmente, com as exceções de David Hume nos seus Diálogos a respeito da religião natural (1779) e de Søren Kierkegaard em Ou isso ou aquilo: um fragmento de vida (1843), em que ele faz uso de personagens apresentando pontos de vista alternativos a partir de dentro, poucos filósofos tem conseguido tratar de múltiplas vozes tão bem. Alguns tentam representar o advogado do diabo contra suas próprias ideias, mas como reconheceu John Stuart Mill, críticos imaginários podem ser bem menos enérgicos e usar argumentos mais fracos que os reais.
Até mesmo agora, a filosofia é melhor ensinada fazendo-se uso do método socrático de pergunta e resposta. É verdade, a demanda por longas aulas faz com que seja difícil interagir, mas, como o professor de Harvard, Michael Sandel, tem mostrado com as suas conferências, intituladas Justiça, qual a coisa certa a fazer?, em discussões sobre bem público, até aqui a conversação e o diálogo são possíveis. Isso é de várias formas uma melhora no estilo de ensinar de Wittgenstein, que, de acordo com testemunhos contemporâneos seus, envolvia alunos assistindo a esse gênio atormentado enquanto ele lutava com a suas próprias ideias em desenvolvimento, de vez em quando parando por alguns minutos para olhar sua mão virada para cima, outras vezes amaldiçoando sua própria estupidez: “Que idiota que eu sou!” Cativante como dever ter sido e superior em muitos aspectos a um monólogo ensaiado, isso deve ter sido infligido ad nauseam sobre os graduandos, faltando-lhe o golpe e o impulso dos diálogos socráticos.
As novas tecnologias estão mudando a paisagem em que conversações filosóficas — e indiscutivelmente todas as conversas – acontecem. Isso tem permitido a filósofos contemporâneos atingir audiências globais com suas ideias e levar a filosofia além das salas de aula. Porém há mais desse ‘dito filósofo’ que simplesmente palavras proferidas e ideias discutidas. Aspectos audíveis não verbais da interação, tais como ouvir o sorriso na voz de alguém, um momento de impaciência, uma pausa (ou dúvida, talvez?) ou um insight — esses fatores humanizam a filosofia. Eles tornam impossível pensá-la como uma simples aplicação mecânica de lógica rigorosa e revelam tanto algo sobre o pensador quanto sobre a posição assumida. O entusiasmo expresso pela voz pode ser contagiante e inspirador.
Hobbes respondeu às Meditações de Descartes por escrito, porém imagine o quão fascinante teria sido ouvir e vivenciar os dois pensadores em um diálogo público gravado. De modo igual, se nós pudéssemos ouvir a uma gravação de Wittgenstein discutindo o seu “Tractatus” com Frank Ramsey, um de seus primeiros leitores mais perspicazes, isso poderia muito bem transformar nossos pontos de vista sobre ambos os pensadores. O equivalente dessas conversas imaginárias está sendo gravado agora, dentro e fora das universidades. Elas estão disponíveis livremente na internet: YouTube, iTunes e outros lugares, se você souber onde procurar.
Sem conversa e desafio, a filosofia rapidamente cai no dogma morto que Mill temia. Mas isso não significa que cada ponto de vista seja igualmente válido ou que nós devamos aceitar que cada pessoa encontre sua própria verdade. Todo grande filósofo foi guiado pelo esforço de ir além das aparências e dizer algo importante sobre como as coisas realmente são. A filosofia é uma matéria que põe posições na balança e não apenas as passa adiante. Conversa sem julgamento crítico se torna mera tagarelice e veiculação de opiniões diferentes – como William Empson escreveu em seu poema Let It Go (1949)1:
As contradições abrangem tal escala.
A conversa conversaria e seguiria tão oblíqua.
Você não quer um hospício e tudo o mais que está ali.
Entretanto, foi John Stuart Mill que cristalizou a importância de ter suas ideias desafiadas pelo compromisso com outros que discordam de você. No segundo capítulo de Sobre a Liberdade (1859), ele argumentou a favor do imenso valor de vozes dissonantes. São as dissonantes que nos forçam a pensar, que desafiam a opinião recebida, quem nos empurra para longe do dogma morto em direção às crenças que sobreviveram ao desafio crítico, da melhor maneira que podemos esperar. Dissonantes são de grande valor até mesmo quando elas estão largamente ou até totalmente erradas em suas crenças. Como Mill afirma: “Professores a estudantes vão dormir em seus postos, assim que não houver nenhum inimigo à vista no campo.”
Sempre que a educação filosófica cair no aprendizado de fatos sobre história e textos, regurgitando as posições do professor ou aprendendo de um compêndio, ela se afasta das suas raízes socráticas de conversação. Então isso se torna maléfico para a filosofia e para os estudantes que estão no lado extremo de quem recebe o que o educador radical Paulo Freire, em sua Pedagogia do Oprimido (1970), chamou pejorativamente de “banco” do conhecimento. O objetivo da filosofia não é possuir uma porção de fatos a sua disposição, embora isso seja útil, nem se tornar uma Wikipédia portátil: ao invés disso, ela serve para desenvolver habilidades e sensibilidade para que se seja capaz de argumentar sobre algumas das mais significativas questões que nós podemos perguntar a nós mesmos, questões sobre realidade e aparência, vida e morte, deus e sociedade. Como o Sócrates de Platão nos diz: “Essas questões que estamos discutindo aqui não são questões triviais, nós estamos discutindo como viver.”
Texto traduzido por Vitor Lima do CEFA. Estudante de Filosofia da UFRRJ.
Texto original: WARBUTON, Nigel. Talk with me. Aeon Magazine. Publicado em 23/09/13. Disponível em http://www.aeonmagazine.com/world-views/without-conversation-philosophy-is-no-better-than-dogma/ . Acesso em 05/10/13.